CAMPOS EM CONFRONTO: JORNALISMO E MOVIMENTOS SOCIAIS

AS RELAÇÕES ENTRE O MOVIMENTO SEM TERRA E A ZERO HORA


Tese de Doutorado na ECA, USP - Maio de 1996


Christa Liselote Berger Kuschick, Universidade Federal do Rio Grande do Sul


(Introdução; Capítulo I; Capítulo II; Capítulo III; Capítulo IV)




Conclusão


Para Concluir: Da Terra e do Texto


Esta ilustração está no lugar da epígrafe final. Se bastasse informar uma impressão acerca dos sem-terra, poderia representar, também, a conclusão do trabalho: ela traz o colono agigantado como indivíduo, com a família imigrante em pose de foto no peito, tendo, ao fundo, colonos de fisionomias apreensivas e gestos simbólicos de chamamento à luta. De um lado, podem estar os novos bárbaros do campo, cujo braço erguido é ameaça de violência; do outro, os sem terra organizados, expressando resistência. Ela ilustra uma “reportagem literária” na Zero Hora, quando o jornalista, fazendo ficção, parte da sua história para revelar a causalidade da existência dos sem-terra: “O imigrante está desaparecendo no vórtice de uma nação que se modernizou criando abismos de desigualdade social”. (Dacanal, 16 mar.1996, p.4-5)

Assim, texto e ilustração comprovam o ponto de partida do trabalho de que o MST é lugar de confluência de opções governamentais equivocadas e tragédias pessoais; de que o jornal é lugar de produção de sentidos; e que o encontro de ambos produz interpretações plurais. Sem tratar dos sem-terra, esta página do Caderno de Cultura dá a conhecer as razões do Movimento com mais propriedade que matérias informativas.

Terra e Texto, as mediações derradeiras, saltam aos olhos do leitor/cidadão. E, assim, ensaio a conclusão: a terra é mediação, pois está na passagem da condição de imigrante para brasileiro; de despossuído, para proprietário; de excluído, para cidadão. E é mediação, também, no percurso inverso, quando, pela ausência dela, faz o perdedor individual tornar-se militante organizado. Acampado em terra alheia, lutando por ela, a terra provoca consciência e é espaço físico de sua manifestação. E a consciência adquirida como acampado não permitirá ao colono voltar a ser colono tão somente.

O texto jornalístico é, também, mediação pois faz o acontecido entre os colonos acontecer para os leitores, deslocando a cena vivida no campo para o universo da cidade e as esferas de poder. Na seqüência, há outras mediações que devem ser observadas, considerando-se que:

o isolamento, a assimetria, a dominação política e econômica têm universalmente produzido necessidades de mediação para o “bem” ou para o “mal”. Isto é, para a reprodução ou para o questionamento da dominação. Antropólogos, “coronéis”, mestres, padres contribuíram para submissões e rebeldias camponesas. Mas, em todas as formas, todos se propõem a ser ponte, estar entre, fazer meio de campo. Fazer mediação é traduzir, e/ou introduzir, falas, linguagens [...] (Novaes, 1994, p.178) [grifo da autora]

Há mediações ancestrais conduzindo a decisão de um sem-terra ingressar no Movimento e elas encontram-se (como vimos no capítulo três) na tradição cristã que legitima a igreja progressista (avalizadora das reivindicações); está, também, na memória de lutas passadas (que informam possibilidades de organização) e na origem do processo de colonização (que inscreveu os colonos como desapropriados históricos).

Em seguida, o MST passa a ser a instância mediadora entre os sem-terra desorganizados e aqueles que decidem “lutar pela terra e pela reforma agrária”, projetando-se como porta-voz dos novos sujeitos sociais. A sua estrutura supõe mediadores: agentes pastorais, entidades de assessoria, pesquisadores de universidades, líderes sindicais, políticos. Todos envolvidos na trama complexa de relações entre sujeitos políticos posicionados estrategicamente no cenário das lutas.

Na intenção de compreender a relação entre o Movimento Sem Terra e a Zero Hora, a mediação aflora, portanto, como conceito unificador. Ao mesmo tempo, ação política e/ou institucional de “estar entre” e categoria de análise que permite captar as correspondências e as interdependências entre os Campos Político e Midiático.

Outras questões, no entanto, merecem registro quando o objetivo é salientar o que já foi dito. Elas podem ser agrupadas em dois tópicos: dos campos e dos discursos, que são definidores para o desvelamento do jornalismo e dos movimentos sociais. A pesquisa no jornal Zero Hora e no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra demonstrou, primeiro, que as dinâmicas que organizam os diferentes campos sociais, para além de todas as diferenças, têm uma característica semelhante. Num e noutro a luta entre os componentes é pela palavra. Elevada a capital capaz de propiciar lucro material ou simbólico, é disputada pelos militantes no MST e pelos jornalistas na redação de ZH.

Sendo uma relação de comunicação entre um emissor e um receptor, fundada no ciframento e no deciframento, e portanto na operação de um código ou de uma competência geradora, a troca lingüística é também uma troca econômica que se estabelece em meio a uma determinada relação de força simbólica entre um produtor, provido de um dado capital lingüístico, e um consumidor (ou um mercado), capaz de propiciar um certo lucro material ou simbólico. Em outros termos, os discursos não são apenas (a não ser excepcionalmente) signos destinados a serem compre-endidos, decifrados; são também signos de riqueza a serem avaliados, apreciados, e signos de autoridade a serem acreditados e obedecidos. (Bourdieu, 1996, p.53) (grifos do autor)

Enquanto as reivindicações do MST precisam da materialidade da língua para existir socialmente, o discurso de Zero Hora contribui para fazer a realidade deste mundo produzindo, ambos, signos de riqueza e de autoridade. As palavras engajadas e as palavras nomeadoras são produzidas por sujeitos históricos em condições de produção específicas.

Essas condições encontram-se plasmadas na política de comunicação do MST e, na ZH, na política de contratação de jornalistas e nos critérios de eleição de temas e fontes. São condições extra-textuais que intervêm, como vimos no capítulo quatro, no processo de produção que orienta a feitura dos textos jornalísticos.

Não foi o sujeito da linguagem o objeto perseguido aqui, mas o sujeito que, construindo sua história (o militante), e o sujeito que, escrevendo a História (o jornalista), se encontram no texto e são conhecidos através dele. Os sem-terra produzem o “primeiro texto” para ser “lido” pelos jornalistas que, interpretando os através dos “constrangimentos organizacionais”, negociam o “segundo texto”, para ser lido pelos consumidores do jornal.

Podemos afirmar que cada discurso se apresenta a si mesmo de determinada maneira, orienta sua própria leitura ou interpretação, estabelecendo uma determinada relação com seus leitores. Não é só o contexto que determina o sentido das produções significativas, também estas atuam sobre este contexto, do mesmo modo que não só os sujeitos produzem os discursos mas são, também, um produto deles.

Bourdieu, afirma que:

a forma pela qual as produções simbólicas participam mais diretamente das condições sociais de sua produção é também aquilo com que exerce seu efeito social mais específico, a violência propriamente simbólica, que somente pode ser exercida por aquele que a exerce e suportada por aquele que a suporta sob uma forma tal que ela permaneça como que desconhecida, isto é, reconhecida como legítima. (ibidem, p.134)

Isto vale para o jornalista que, num mercado de trabalho saturado, deve reconhecer como legítimas as condições de trabalho que lhe são impostas, e para o leitor, que deve suportar como legítima a violência de não ter opção de leitura, pelo processo de concentração dos Meios de Comunicação de Massa no Rio Grande do Sul.

E, assim, justifico o título: há conflito na constituição interna dos campos e os campos estão em confronto permanente entre si.

Desde que iniciei a redação do trabalho, em dezembro de 95 - um período normalmente de escassos acontecimentos políticos no Brasil - o MST tem sido notícia constante na mídia. Líder feminina dos sem-terra é presa, secretário da reforma agrária demitido, Ministro da Agricultura substituído, ocupações, caminhadas, interrupções de rodovias, união dos sem-terra com pequenos agricultores e mortes, muitas mortes: previstas, planejadas, anunciadas e enunciadas. Os sem-terra e a reforma agrária são temas das conversas cotidianas e medeiam relações políticas e relações pessoais. Toma-se conhecimento à força e deve-se optar por um dos lados, ter opinião, argumentá-la. Estas questões “invadiram”, também, a tese, “reivindicando” constar dela. No entanto, como substituir a amostra e comprometer-se com a atualização das informações quando o objeto altera-se a cada dia?

Quando estava concluindo o texto, foi lançado o filme Jenipapo1formando imagens e cenas dos personagens abstratos deste trabalho, oferecendo outras pistas para decifrar a relação MST x Imprensa x Igreja. Lembrei-me de que, ao iniciar o doutorado e definir que iria trabalhar sobre o MST, a série de televisão Anos Rebeldes2 apresentou como alternativa ao revolucionário de 68, exilado nos anos 70, no retorno ao Brasil em 80, a luta pela reforma agrária. Realidade, informação, ficção e pesquisa acadêmica vão formando, assim, as múltiplas vozes, os consensos e as disparidades sobre quem são os sem-terra brasileiros.

Quando o ponto final estava para ser escrito, recebi, como um presente, a carta do MST ao 27.° Congresso dos Jornalistas em Porto Alegre e os convido a partilhá-la, pois, nela, está contido o que pretendi compreender e comprovar.

1 Jenipapo conta a trajetória de um jornalista do periódico carioca Brazilian Tribune que busca obter, de qualquer forma, uma entrevista com um padre favorável à Reforma Agrária. O filme foi lançado em Porto Alegre, em abril de 1996, na semana do massacre de 19 sem-terra pela polícia militar no Pará. Dirigido por Monique Gardenberg, EUA/Brasil, 1995, 100 min.

2 Anos Rebeldes é uma minissérie que retrata o Brasil entre 1964 e 1971, através dos conflitos vividos por um grupo de jovens. No último capítulo o personagem de Cassiano Gabus Mendes, ao retornar do exílio, em conversa com amigos sobre as novas formas de luta, é informado de um movimento pela reforma agrária, em uma “longínqua região” entre Cruz Alta e Sarandi. Ele dirige-se, então, à este lugar a fim de fazer uma reportagem para uma revista alemã. Escrito por Gilberto Braga, Rede Globo, 1992.