CAMPOS EM CONFRONTO: JORNALISMO E MOVIMENTOS SOCIAIS

AS RELAÇÕES ENTRE O MOVIMENTO SEM TERRA E A ZERO HORA


Tese de Doutorado na ECA, USP - Maio de 1996


Christa Liselote Berger Kuschick, Universidade Federal do Rio Grande do Sul


(Índice; Introdução; Capítulo I; Capítulo II; Capítulo III; Capítulo IV; Conclusão)



RESUMO

Com este trabalho pretendo reconhecer as possibilidades de relação entre o popular e o massivo através da observação do “encontro” entre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e o jornal Zero Hora.
A intenção é, por um lado, refletir acerca da reestruturação do popular nestes tempos de predomínio da mídia, a partir do estudo das ações de comunicação do MST. Por outro, apreender a especificidade do discurso jornalístico que, ao noticiar os acontecimentos produzi-dos pelo MST, os constrói como “eventos significativos” para a mediação com os interlocutores do Movimento.
Ancorada em uma teoria dos campos e em uma teoria dos discursos, interpreto as interrelações destas instâncias de produção de sentidos e, assim, os modos de dizer o MST na Zero Hora.


ABSTRACT

The present study aims to identify the possibilities of relation between popular movement and the mass media by observing the instances involving both the Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (the Landless Rural Workers Movement) and the Zero Hora newspaper.
On the one hand, the purpose is to consider the reestructuration of the popular in these times of mass media predominance by analyzing the MST communication actions. On the other hand, this study also intends to point the peculiarities of the journalistic text which, when referring to the events produced by the MST, build them as “significant events” for the mediation with the MST spokesmen
Based on both the “field theory” and the discourse theory, the interrelations between these two instances producing meaning are analyzed, as well as the way Zero Hora refers to the MST.


SUMÁRIO


0- DAS INDAGAÇÕES E DAS INTENÇÕES


1- DAS RELAÇÕES: REALIDADE & LINGUAGEM, POLÍTICA & COMUNICAÇÃO;


2- DO JORNALISMO: TODA NOTÍCIA QUE COUBER,  O LEITOR APRECIAR E O ANUNCIANTE APROVAR,  A GENTE PUBLICA

2.1- Como estudar um Jornal

2.2- Zero Hora: Cenário da Construção das Notícias 

2.2.1- O Sujeito ZH 

2.2.2- A Rotina de Trabalho

2.2.3- O Auto-Retrato

2.2.3.1- Os gráficos elogiam 

2.2.3.2- As notícias enaltecem 

2.2.3.3- Os prêmios confirmam 

2.2.3.4- As coberturas ditas imparciais

2.2.3.5- Você (leitor) é quem manda 


3- DO POPULAR: TODA TRANSGRESSÃO QUE COUBER E O POVO APROVAR, A GENTE REIVINDICA

3.1- Como estudar um Movimento Popular 

3.2- Movimento Sem Terra: Cenário dos Acontecimentos

3.2.1- Ecos das Lutas Passadas 

3.2.2- Políticas de Comunicação

3.2.2.1- O Documento Propõe

3.2.2.2- O Setor Executa

3.2.2.3- Os Ocupantes Fazem

3.2.2.4- Você (cidadão) é quem luta 


4- A CENA DISCURSIVA: O MST NA/DA ZERO HORA

4.1- Contando Outra Vez 

4.2- Os Títulos das Invasões

4.3- O Acontecimento de Rotina

4.4- Um Acontecimento Singular

4.4.1- A Voz de Referência Gaúcha

4.4.2- As Vozes Cúmplices


PARA CONCLUIR:  DA TERRA E DO TEXTO


BIBLIOGRAFIA


ANEXOS


Introdução

Das indagações e das intenções


Tento (re)fazer o caminho de volta e localizar a indagação primeira: por que escolhi o Movimento Sem Terra e o jornal Zero Hora para expor o que procurei com tanto empenho nestes últimos cinco anos?

Quisera passar para o texto escrito a emoção que a fala evidenciaria ao elencar o conjunto de razões que mobilizou a busca. Se as filiações teóricas esclarecem o ponto de vista, a escolha do tema mostra o ponto de partida. Os fenômenos transformados em objeto de estudo contam sobre o tempo vivido, a história das idéias e, também, expõem uma história pessoal. A História molda o tratamento científico pois as pesquisas inserem-se em um modo coletivo de pensar e cada trabalho é único, porque também conta a história de alguém. Esta conjunção assemelha a reflexão, imprimindo nela interpretações e orientações, ao mesmo tempo que a diferencia pelo tom e nuances que são pessoais e intransferíveis.

O tempo histórico é de crise: fracassaram os projetos políticos dos dois lados e os paradigmas legitimados já não dão conta dos fragmentos sociais em sua totalidade. Categorias prontas são conclamadas a se flexibilizarem para esclarecer as descontinuidades e as novidades.

As classes que insistem em se manter antagônicas já não se explicam exclusivamente pela luta de classes, os conflitos no interior da luta transcendem às desigualdades econômicas, fundando diferenças outras que solicitam novas explicações, sem poder, no entanto, prescindir das antigas.

Paradigmas em xeque, projetos políticos em falta, instituições acadêmicas em descompasso. É neste panorama que as pesquisas se movem e o meu projeto busca fazer sentido.

Hannah Arendt ensina que no tempo histórico, às vezes, se insere um “estranho período intermediário determinado por coisas que não são mais e por coisas que não são ainda”. E, o mais importante, ela afirma que “na História, esses intervalos mais de uma vez mostraram poder conter o momento da verdade.” (1979, p.35)

Confesso que me aproprio desta idéia para argumentar que talvez o tempo que nos cabe viver seja “deste intervalo” e que busquei encontrar um ponto de paragem nele que contivesse um “sinal de verdade”, ancorando a utopia de que fala Boaventura de Souza Santos. (1995)

Para mim, os Movimentos Sociais Populares permitem imaginar uma utopia possível: são o lugar da vivência e da construção dos desejos e mesclam projetos de libertação e de emancipação. E, assim, o ponto de partida do trabalho fica anunciado: ele se inscreve entre aqueles que sonham “um mundo melhor”.

A pretensão teórica e metodológica é compreender o encontro do Popular e do Massivo, através do estudo da relação entre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a Zero Hora (ZH). Os movimentos sociais, bem como o jornalismo, transformaram-se em lugares de destaque do desenvolvimento capitalista. A imprensa, porque plasma em discurso o projeto burguês, e os movimentos sociais, porque conduzem a sua crítica mais radical. Conseqüentemente, são, também, objetos de estudo privilegiados, estando legitimados como tema para a Sociologia e a Teoria da Comunicação.

Juntos, eles vão ao encontro dos desafios temáticos atuais, quando vigoram idéias de que o processo de conhecimento é relacional (Bachelard), complexo e interdisciplinar (Morin) e de que a contradição faz parte da ordem.

A lição aprendida de que o conflito compõe a existência, reorienta, assim, o olhar sobre as dinâmicas sociais. A pergunta persistente é pelo social que a conflitualidade instaura. No caso do Movimento Sem Terra e da Zero Hora, das relações conflitivas que os regem internamente e das relações - evidentes, invisíveis, de enfrentamento e de convivência - que marcam seu encontro. Estes espaços serão, pois, analisados através “da relação entre as posições sociais, as disposições e as tomadas de posição e, as ‘escolhas’ que os agentes sociais fazem nos domínios da sua prática.” (Bourdieu, 1996, p.18)

Da mesma forma que o popular e o massivo vão sendo reestudados, quando se trata da dimensão cultural (com novas abordagens, como é o caso de Canclini com o conceito de hibridização), o subalterno e o hegemônico também são redimensionados na esfera política, onde os movimentos sociais intercalam questões políticas e culturais, massivas e populares, de classe e gênero.

Assim como a mídia absorve o universo cultural dos subalternos, evocando, por exemplo, o melodrama para a sua dramaturgia, os movimentos sociais consideram a dinâmica da imprensa na elaboração de suas estratégias políticas. E isto é novo no panorama da ação e da reflexão sobre o popular na América Latina.

Na tentativa de referendar teoricamente a observação desta modalidade de relação é que cheguei a Pierre Bourdieu. Primeiro, porque ele não separa a teoria da interpretação. Conceitos, diz ele, servem para explicar resultados de pesquisa, já  que o trabalho empírico é lugar de revelação teórica. Depois, porque enfatiza que os fenômenos contemporâneos existem em relação e propõe a noção de Campo para examinar situações concretas. Minha proposta é compreender a relação entre o Movimento Sem Terra e a Zero Hora apoiada, primeiro, na noção de Campo.

Por isso, estudo a Zero Hora - pertencente ao Campo do Jornalismo - e o Movimento Sem Terra - ao Campo Político - analisando um e outro na luta específica em torno do seu capital: do Jornalismo pela credibilidade; da Política pelo poder, confluindo, ambos, na luta pelo poder simbólico. O capítulo dois dialoga com o capítulo três, pois tem a mesma estrutura para propiciar o reconhecimento das sociabilidades que os conflitos inerentes à constituição dos campos - do Jornalismo e do Popular - produzem. Apresento um ponto de vista sobre o jornalismo, assim como um ponto de vista sobre o popular e um modo de estudar jornais, bem como um modo de estudar os movimentos sociais.

Para, só então, dar a conhecer o rosto da Zero Hora e o rosto do MST: ambos refletem o desenvolvimento do capitalismo no Rio Grande do Sul. A Zero Hora, ao centralizar e concentrar o capital dos meios de comunicação de massa, conta a história do monopólio da informação, e o MST conta a história da concentração da propriedade da terra ao revés. São os excluídos pela riqueza concentrada que organizam e formam o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.

O objetivo deste trabalho é observar as razões e os modos de relacionamento de um Movimento Social com a Imprensa mas, também, da Imprensa com um Movimento Social. O MST percebe a mediação da informação na sua interlocução com o poder político. E a mídia sabe que seu poder está  na sua condição de mediação. Nesta interação (sinuosa, sutil, não dita) ambas se vinculam mediante um “jogo de usos”. O MST precisa encenar suas reivindicações, torná-las fotografáveis e oferecer à imprensa os elementos que confirmarão sua natureza. A ela cabe contar o presente e quanto mais “expedientes de real” tiver, maior será sua credibilidade.

No capítulo quatro o MST e a ZH encontram-se no texto jornalístico. E, assim, como a noção de Campo quer esclarecer o Movimento Social e o Jornal em seus contextos, a noção de Discurso deve explicar a encenação dos signos em seu contexto.

Não sou semioticista nem lingüista para tratar como especialista as questões de linguagem, que reconheço complexas. No entanto, o desafio do trabalho passa pelo capítulo da Análise de Discursos1 pois, para compreender os Campos em ação, o processo de “ver” (o jornalismo) versus “ser visto” (o movimento social) e poder acompanhar o percurso do acontecimento acontecendo até a notícia publicada, a natureza da linguagem deve ser elucidada.

Só assim, posso averiguar a hipótese de que a notícia (produção de acontecimentos pela linguagem) cria sentidos e media as diferentes instâncias do social.

Fausto Neto2 e Eni Orlandi3 abriram-me, ao mesmo tempo, a porta dos estudos dos discursos. Vali-me, livremente, de suas indicações conceituais e bibliográficas para compor o meu roteiro de observações.

De certa forma, sou autorizada por Bourdieu e por Landowski. O primeiro afirma que:

[...] não existe ciência do discurso considerado em si mesmo e por si mesmo; as propriedades formais das obras desvelam seu sentido somente quando referidas às condições sociais de produção - e, por outro lado, às posições ocupadas por seus autores no campo da produção - e ao mercado para o qual foram produzidas. (1996, p.129)

De fato, minha intenção é pôr em contexto a notícia sobre os sem terra,4 observando as condições de produção do discurso do Movimento e as condições de produção do discurso do jornal, considerando os sujeitos dos campos da produção e seus destinatários.

Landowski diz que os discursos enquanto “totalidades significantes” são “apreensíveis em diferentes níveis de profundidade”. (1992, p.206) Estudei o jornal Zero Hora e o Movimento Sem Terra, buscando a especificidade do discurso jornalístico (sua vocação a informar) e do discurso popular (sua vocação a reivindicar), enquanto expressão de sujeitos complexos na dinâmica da produção social de sentidos na profundidade compatível com minha formação de jornalista.

Resumindo minha intenção: com este trabalho, busco captar as interações efetuadas com a ajuda do discurso, entre o MST e a ZH e os agentes que compõem os seus campos. No primeiro capítulo esclareço o ponto de vista teórico do trabalho, enfatizando as relações conceituais entre Campo, Capital e Discurso, oferecendo as pistas para ingressar no capítulo dois e, com as referências sobre o jornalismo, compreender a Zero Hora. Da mesma forma, a partir das inferências sobre o Popular, decifrar o Movimento Sem Terra, no capítulo três.

A Cena Discursiva de que trato no último capítulo, recolhe as informações publicadas sobre o MST na ZH entre 1990 e 1993, na expectativa de encontrar, pela repetição dos enunciados, o sentido para os sem-terra da Zero Hora. Das 1.227 matérias publicadas neste período, selecionei: a) os títulos das 18 ocupações para identificar os dispositivos de impacto; b) as matérias sobre a cobertura da Ocupação da Fazenda Bom Retiro, de nove a 23 de março de 1993, como exemplo de caso rotineiro de noticiabilidade do Movimento; e, c) a cobertura da Morte do soldado Valdeci de Abreu Lopes, no dia 8 de agosto de 1990, como um caso excepcional (pelo acontecimento e pela sua repercussão).

Estas seqüências discursivas, juntamente com a observação de suas condições de produção, poderão dar a conhecer o MST na e da Zero Hora e, assim, um exemplo da construção simbólica de um movimento social pela grande imprensa.

Registro as frases que me acompanharam enquanto escrevi a tese - rondando, zumbindo, amedrontando - para contar um pouco, da minha condição de produção. Afinal, este é um trabalho que considera, na produção dos discursos, o sujeito da enunciação e os contextos (objetivos e subjetivos) que se instalam, qual tatuagem, no discurso verbal.

- Quanto mais a gente se expõe, mais possibilidade existe de tirar proveito da discussão. Bourdieu

- Falar (escrever) me dá  medo pois, sem dizer nunca o suficiente, falo, também, sempre em demasia. Derrida



1 Uso Análise de Discursos no plural, ao invés de Análise do Discurso, considerando a observação de Milton José Pinto, de que “esta escolha reflete uma maior proximidade com a base empírica da análise”. (1995, p.2) Por outro, com este cuidado, o estudo não se restringe à tradição francesa da A.D. Também Bourdieu refere-se à Análise de Discursos (1996, p.129), quando reflete sobre a consituição de uma ciência do discurso.

2 A leitura de Mortes em Derrapagem (1991) e A Sentença dos Media: O Discurso Antecipatório do Impeachment de Collor (1994), remeteram a Eliseo Verón e, assim, às questões da enunciação e dos sujeitos do discurso.

3 A leitura de A Linguagem e seu Funcionamento (1987) e Discurso & Leitura (1988) remeteram a Michel Pêcheux e, assim, às questões do funcionamento dos discursos e das condições de produção.

4 O MST não usa hífen na expressão “sem terra”, e, na Zero Hora, a encontramos algumas vezes - principalmente em títulos - também grafada assim. Por isso, o uso neste trabalho é irregular, pois respeita a forma da citação. Quando o texto é nosso, escrevemos “sem terra”, com hífen, seguindo a norma gramatical: “O hífen em palavras compostas tem o objetivo de alertar para a mudança de sentido que ocorre”. (LEDUR, Paulo. Os pecados da língua. Porto Alegre : AGE Editora, 1993.)