CAMPOS EM CONFRONTO: JORNALISMO E MOVIMENTOS SOCIAIS

AS RELAÇÕES ENTRE O MOVIMENTO SEM TERRA E A ZERO HORA


Tese de Doutorado na ECA, USP - Maio de 1996


Christa Liselote Berger Kuschick, Universidade Federal do Rio Grande do Sul


(Introdução; Capítulo I; Capítulo III; Capítulo IV; Conclusão)




Segundo Capítulo


Do Jornalismo: Toda Notícia que couber, o leitor apreciar e o anunciante aprovar, a gente publica

Quando [o general de Gaulle] chegou ao poder, havia 1 milhão de aparelhos de televisão na França... Quando saiu havia 10 milhões... O Estado é sempre uma questão de show-biz. Mas o Estado-teatro de ontem era uma coisa muito diferente do Estado-TV que existe hoje.
Régis Debray



Este título inspira-se no artigo de Robert Darnton - Jornalismo: Toda Notícia que Couber a Gente Publica - que trata da estrutura de trabalho do jornal The New York Times a partir de sua experiência como jornalista. (1990, p.70) Parece nos uma sugestão interessante pensar, como critério de passagem do acontecimento à notícia, o espaço que ele virá a ocupar numa página. Mas mais interessante ainda é o outro sentido de caber, pois o acontecimento deve ser compatível com a “estrutura editorial”, ou seja, “caber” na ideologia do jornal.

Acrescentamos a aprovação do anunciante e a apreciação do leitor para completar o círculo que ajuda a definir a noticiabilidade e, assim, a natureza da imprensa. A questão para um editor, é: o que há de novo no mundo hoje que “caiba” no meu jornal, que conquiste leitores e não se confronte com os que o sustentam economicamente.

Neste enunciado encontram-se os indicadores para a compreensão do jornalismo: os vínculos com o mercado - dos patrocinadores e dos consumidores - e a equação do vivido num espaço editável. Alguns jornais tendem a uma postura mais intelectualizada e, assim, menos submetidos à intenção de lucro. Porém, a tendência dominante e que se acentuou no transcorrer do capitalismo é sua função mercadológica. Por isso, há exemplos na literatura e na filosofia de autores que saudaram com temor este “novo” modo de produção da realidade, que viria a fazer o mesmo que o romance realista - destruir a idealização - só que contra pessoas reais.

Balzac, em Ilusões Perdidas, trata, pela primeira vez na Literatura, do Jornalismo, apresentando a Imprensa como o mal do mundo. Primeiro, criticando a mercantilização inerente à produção diária e de massa; segundo, pelo poder de “tomar como verdade” tudo o que é provável, isto é, convertendo o real na “estatística dos verossímeis possíveis”.

José Miguel Wisnik partiu deste romance para tratar da ética do jornalismo, reconhecendo seus méritos e sua contemporaneidade. Ele afirma:

[...] o que atualiza ainda o romance é o fato de que seus jornalistas manifestam uma escancarada consciência, cínica, de todos esses processos de uso e abuso de poder, como se lessem nas vísceras da incipiente e florescente imprensa de então os futuros poderes ilimitados dessa que, aliada à publicidade, fará e desfará monarquias com a mesma facilidade com que faz e desfaz contextos. Mais do que personagens típicos de algum romance de costume e exatamente porque mais reais do que o real, soam às vezes como metajornalistas pós-modernos, pela consciência exposta, em alguns momentos, de um processo que mal começava e no qual convergem arte, simulacro, poder e dinheiro. (1992, p.324) Tudo começa com o fato de que um jornal, uma revista, um programa de televisão que não se subordine cegamente à demanda da atualidade seja inconcebível. A conseqüência é que todos os dias somos confrontados com eventos zero. Os assim chamados Diários de Hitler são apenas um exemplo particularmente visível. Até‚ mesmo os assim chamados “jornais de qualidade” reportam principalmente eventos que literalmente nada significam. Jogos olímpicos, visitas papais ou julgamentos de assassinos são, no mais verdadeiro sentido da palavra, irrelevantes. Mensagens zero como as que anunciam que o político X é a favor da paz ou de mais direitos humanos, ou os elogios uníssonos ao compositor Y no centenário de sua morte ou do seu nascimento em todas as editorias culturais, apenas variam a nulidade imutável do Bild de uma maneira mais ambiciosa e possivelmente ainda mais entediante. (p.67)

Da mesma forma que chamava a atenção de Balzac o poder maléfico de destruição inerente aos jornais, o filósofo Soren Kierkegaard anotava em seu diário, em 1848: “De fato, se a imprensa diária, tal como acontece com outros grupos profissionais, tivesse de pendurar um letreiro, seus dizeres deveriam ser os seguintes: aqui homens são desmoralizados com a maior rapidez possível, na maior escala possível ao preço mais baixo possível.” (apud Enzensberger, 1995 A, p.56)

Enzensberger parte deste filósofo para tratar do jornal alemão Bild e identificar nele todos os jornais com os quais “o leitor fica seguro na certeza de que tudo continuará como é, de que nada está fazendo coisa alguma ou, o que equivale à mesma coisa, de que nada está fazendo nada.” (ibidem, p.64) Mesmo reconhecendo diferenças essenciais na mídia jornalística, o que ele acentua são as semelhanças: “comum a todos eles, no entanto, é a lei pela qual aparecem: seu cinismo objetivo; e qualquer um que negue que eles tenham isso em comum é um hipócrita.” E, continua:

Em outro texto Enzensberger acrescenta na lista de “problemas da imprensa”, a questão da objetividade. Ao comentar as descrições do fim da Segunda Guerra Mundial e da Alemanha nazista, afirma:

Qualquer pessoa que recorra às opiniões publicadas na esperança de obter um quadro mais claro da situação na Europa do pós-guerra ficará ainda mais frustrada. É virtualmente impossível encontrar veredictos equilibrados, análises inteligentes ou reportagens convincentes nos jornais e revistas dos anos de 1945 a 1948. E não apenas por causa das restrições impostas pelas potências de ocupação. A disposição de espírito dos jornalistas, sua autocensura interna, teve um papel muito mais importante. Também neste ponto os alemães se destacavam. Em vez de transmitir um testemunho sereno dos fatos, os intelectuais em geral preferiram refugiar-se em abstrações. É vã a procura de uma grande reportagem. O que se pode encontrar, além de generalizações filosóficas sobre o tema da culpa coletiva, são infindáveis invocações da tradição ocidental... É evidente que a devastação não tinha afetado apenas o cenário físico, mas também as faculdades de observação. A Europa como um todo, pode-se dizer, “levara uma bela pancada na cabeça”. (1995 B, p.78)

Ou seja, nem o testemunho dos indivíduos envolvidos nem a descrição do jornalista dão conta da situação posterior à guerra. Enzensberger aponta a possibilidade de conhecer aquele tempo na conjugação de duas condições: no olhar do “estrangeiro” e na reportagem literária.

Tudo parece indicar que a fonte mais confiável que temos é o olhar de alguém de fora. E os relatos mais aguçados foram produzidos pelos autores que acompanhavam os exércitos vitoriosos dos Aliados. Entre eles se destacavam os melhores repórteres dos Estados Unidos, jornalistas como Janet Flanner e Marta Gellhorn, e escritores como Edmund Wilson, que não se achavam superiores demais para trabalhar na imprensa. Todos se filiam à grande tradição anglo-saxã da reportagem literária - na Europa continental, até hoje, nada foi produzido que se lhe compare [...] Mais tarde, escritores de países poupados pela guerra, como o suíço Max Frisch e o romancista sueco Stig Dagerman, também deram suas contribuições.

Todos eles vinham de um mundo que era semelhante ao nosso; ordenado, regular, caracterizado pelas mil e uma coisas que consideramos normais numa sociedade civil operante. Por isso mesmo, a sensação de choque que tiveram diante da catástrofe européia foi maior ainda. Mal conseguiam acreditar em seus olhos ao se deparar com as cenas brutais, extravagantes, aterradoras e comoventes que encontraram em Paris e Nápoles, nas aldeias de Creta e nas catacumbas de Varsóvia. É o olhar do estrangeiro que pode nos fazer perceber o que ocorria na Europa; porque ele não se concentra numa análise ideológica restritiva, e sim nos detalhes físicos mais reveladores. Enquanto os principais artigos e polêmicas do período apresentam sempre um estranho ranço, esses relatos de testemunhas oculares preservam seu frescor.

Os especialistas na percepção produzem melhor quando generalizam menos, quando não censuram as contradições fantásticas do mundo caótico em que ingressaram, apresentando-as da forma como as encontram. Max Frisch conclui suas anotações sobre Berlim citadas acima com uma observação lacônica que silencia qualquer debate acerca do estado da civilização: “Uma paisagem de montanhas de tijolos, por baixo delas os soterrados e acima delas as estrelas cintilantes; nada se move ali, além dos ratos. Noite no teatro: Ifigênia.” (p.80)

Este final representa a reportagem literária na concepção de Enzensberger e o que a diferencia do texto jornalístico é a permissão à subjetividade.

O que torna o trabalho desses repórteres tão esclarecedor não é que eles dispusessem de uma objetividade superior, mas justamente o contrário: atinham-se a seu ponto de vista radicalmente subjetivo, mesmo - e sobretudo - quando se enganavam. Um dos custos da proximidade imediata é que a pessoa acaba infectada pelo que a cerca, não tendo como elevar-se acima dos acontecimentos. (ibidem)

Elevar-se acima dos acontecimentos não para ser neutro ou buscar a objetividade, mas, para olhar como sujeito sensível com a perplexidade e a estranheza que só o distanciamento permite. Ao refletir sobre as descrições do Movimento Sem Terra no capítulo quatro, voltamos, com exemplos brasileiros atuais, a estas questões.

Quando entramos no programa de editoração eletrônica da Folha de São Paulo, recebemos mensagens diversas sobre a imprensa. Chama atenção um autor - Karl Kraus - e sua frase: “A missão da imprensa é a de difundir o espírito e, ao mesmo tempo, destruir toda a capacidade de assimilação.” Este é um claro exemplo de apropriação que a mídia faz da crítica dirigida a ela; naturalizando e banalizando a, evidencia o que Enzensberger critica: a liquidação de qualquer conteúdo.

Kraus foi um intelectual polêmico que descreveu, como jornalista, o dia a dia da decadência do Império Austro-Húngaro, deixando centenas de aforismos sobre sexo, política, religião e, principalmente, sobre jornalismo. Por exemplo:

Estas intromissões literárias e filosóficas têm apenas a intenção de comprovar a afirmação de que a prática do jornalismo foi matéria-prima criticável da Literatura e da Filosofia desde o seu início. E, ao mesmo tempo, cercar o jornalismo com aqueles elementos que o descrevem fora dele: a sujeição aos poderosos, a vocação para a destruição, a anulação do conhecimento.

O paradoxo está na justaposição da descrição da imprensa por ela mesma: independência, objetividade e neutralidade são suas bandeiras. Livros didáticos e manuais de redação comprovam a segunda perspectiva. Por exemplo, o Manual de Redação da Zero Hora, ensina:

Comprometidos com os valores assimilados por sociedades civilizadas e decididos a informar com isenção, responsabilidade e independência, os profissionais de Zero Hora devem cumprir as seguintes normas éticas. (1994, p.13) [o grifo é nosso]

E, na seqüência:

Zero Hora entende que a simples publicação de versões conflitantes não é sinônimo de imparcialidade. Informações desencontradas podem confundir o leitor. Cabe ao jornal apurar a verdade, com isenção e abrangência. (p.19) [o grifo é nosso]

Todo leitor que acompanhou a cobertura de alguma reivindicação social na qual esteve envolvido - seja um professor em greve, um colono sem-terra, um funcionário público de instituição em vias de privatização - sabe por experiência que o jornal não foi isento. Pode até ter trazido as duas versões, mas a legenda na foto, o número de manifestantes, a palavra que designa o movimento, tomam posição. E a posição negada em nome do princípio liberal do jornalismo - a imparcialidade - é que confirma a que veio a imprensa. É consenso sabê-la arauto da perspectiva histórica da burguesia e, assim, sustentação do capitalismo.

A perspectiva dialética ensina que nesta dinâmica, no entanto, existem contradições: ela é também a única possibilidade de um movimento social fazer ouvir suas queixas e a conquista da democracia passa pela sua aprovação.

Sem imaginar, como Kierkegaard ou Kraus, a possibilidade de voltar atrás na História e dispensar a Imprensa, é mais fecundo chamar a companhia de Walter Benjamin que observou a era da “reprodutibilidade técnica” transformando não apenas a maneira como se dava a criação, (assim tornando o cinema e tudo que dele deriva como a arte central do século) mas, também, a maneira como os seres humanos percebiam a realidade e sentiam as obras de criação. Diz Benjamin:

Ao curso dos grandes períodos históricos, juntamente com o modo de existência das comunidades humanas, modifica-se também seu modo de sentir e de perceber. A forma orgânica que a sensibilidade humana - o meio no qual ela se realiza - não depende apenas da natureza, mas também da história. (in Costa Lima, 1969, p.212)

No nosso caso, é ver como as aceleradas transformações tecnológicas produziram possibilidades de versar sobre os fatos, moldando a fisionomia da imprensa, e das variadas possibilidades de apreensão (por parte dos leitores) que delas resultaram.

Iniciamos o capítulo com duas epígrafes. A primeira, de Tom Stoppard, dramaturgo inglês, representa com humor a fase de impacto do jornalismo. Que poderia ser completada com a de Balzac enfatizando a mesma postura: “Se a imprensa não existisse, seria preciso não inventá-la.” Enquanto a de Debray aponta para a condição atual, em que a ênfase está na tevê e a esta cabe produzir espetáculos. Nestes tempos de predomínio da televisão sobre os demais meios e da imagem sobre o texto, o fazer televisivo pauta o fazer do jornalismo escrito. Este passa a ser mais visual, fragmentário e superficial. Quer se assemelhar, também, a um espetáculo.

Neste caso, a realidade produzida pela mídia mantém parentesco com a estrutura do gênero ficcional - não na tradição que incorpora a subjetividade, como na reportagem literária, reivindicada e exemplificada por Enzensberger - mas pela montagem que inclui a criação de personagens e um tipo de contrato com o leitor. Por outro lado, deve desfiliar-se da ficção, pois a informação é produzida para ser verossímil e crível. Pela verossimilhança é que a informação compõe o campo de credibilidade e de verdade que habilita a mídia ao exercício de sua função de “expositor do real”.

Quanto ao plano da recepção, a percepção da realidade também tem por referência a estrutura ficcional e podemos trabalhar com duas hipóteses na sua ocorrência: ou a leitura do jornal corrobora a informação como ficção, para liberar a angústia de tudo saber e nada poder fazer pois, que consciência suporta confrontar-se conscienciosamente, todos os dias, com as agruras da vida que é dos outros mas que, assim mesmo, lhe diz respeito? Ou confirma que o que está escrito é verdadeiro, aceitando o jogo da Imprensa de afirmar-se pela literalidade fiel à representação. Aqui, há um querer acreditar na verdade do que lemos, pois, caso contrário, em quem acreditar? Nos dois casos - pensar que o mundo do jornal é ficção ou que é tudo estritamente “verdade” - faz relembrar Balzac, são ilusões (difíceis) de perder.

Enfim, com maior ou menor perplexidade, nos defrontamos com as mutações da imprensa atual: ela não é só porta-voz do social; ela faz o social existir, publicizando-o através da visibilidade de um real.1 Assim, não só o acontecimento cria a notícia, como a notícia cria o acontecimento.2 Assistimos, por isso, à produção de eventos com o objetivo específico de se tornar notícia ou, ainda, à transfiguração de ações ou pessoas diante das câmeras. Já existe uma “cultura de mídia”, um saber intuitivo que informa grupos (culturais e políticos) de que precisam atravessar a mídia para obter estatuto de existência.

Um exemplo que expressa com radicalidade esta situação, são as ameaças do terrorista Unabomber3 que quer ver seus discursos (antijornalísticos em tamanho e texto) publicados. Neste caso, o texto publicado não recebe o aval do reconhecimento, pois transcrito não significa editado. Assim, o enunciado produzido sem as regras do fazer jornalístico também não alcança o efeito de notícia.

Diferente é o exemplo de Bourdieu, que afirma:

[...] as manifestações bem-sucedidas não são necessariamente as que mobilizam o maior número de pessoas, mas as que atraem maior interesse entre os jornalistas. Exagerando apenas um pouco, poder-se-ia dizer que cinquenta sujeitos inteligentes que conseguem obter cinco minutos na TV para um happening bem sucedido podem produzir um efeito político comparável ao de meio milhão de manifestantes (apud Hobsbawm,1994, p.314)

Esta última observação vem ao encontro da idéia do poder atual da mídia, que é o poder de produzir sentidos, projetá-los e legitimá-los. Mas, também, um poder (que provém da visibilidade) de interferir em uma determinada ação, exemplificada na declaração de uma refugiada bósnia para jornalistas estrangeiros. “Vocês não viram nada. Assim que as câmeras de tevê foram embora, os soldados começaram a arrancar gente dos ônibus com violência. Meninas foram separadas dos homens. Depois, foram estupradas. A maioria não voltou.” (Isto É, 19 jul. 1995, p.112)

O próximo exemplo remete para o poder de registro histórico da imprensa e, como tal, de memória e reconhecimento.

Aqui, como em Belgrado, vejo nas ruas um considerável número de moças cujos cabelos estão ficando grisalhos, ou já  o estão completamente. Têm os rostos atormentados mas ainda jovens, enquanto as formas dos corpos traem ainda mais claramente sua juventude. Parece-me ver como a mão desta última guerra passou pelas cabeças desses seres frágeis...

Tal visão não pode ser preservada para o futuro: essas cabeças logo se tornarão mais grisalhas ainda e desaparecerão. É uma pena. Nada poderia falar tão claramente sobre nossa época às futuras gerações quanto essas jovens cabeças grisalhas, das quais se roubou a despreocupação da juventude.

Que pelo menos tenham um memorial nesta notinha. (Andric, apud Hobsbawm,1995, p.29.)

Por tudo isto, podemos afirmar que o jornalismo, enquanto uma prática social, capta, transforma e divulga acontecimentos, interpretando o presente e veiculando várias vozes constitutivas deste presente, explicitando desta forma que faz parte de um determinado tempo histórico. O discurso jornalístico está, assim, entranhado de historicidade.

2.1 Como estudar um Jornal

Há muitas possibilidades de se acercar do jornalismo como objeto de estudo. Por um lado, enquanto problemática textual, tem-se tanto a leitura dos conteúdos ideológicos como das estruturas narrativas ou das estratégias de discurso que aí se manifestam. Já de uma perspectiva sociológica são enfatizadas as estruturas de poder. Ambas possibilitam conclusões interessantes mas são apreensões parciais e, na verdade, frustram a pergunta pela totalidade do jornal. Que é o que importa conhecer, conforme Landowski, que diz: “Mas resta, então, a questão central de que nos vamos ocupar aqui: para lá de todas as interrogações parciais, é possível conceber uma problemática mais global, que vise o jornal tal como ele é em si mesmo, como totalidade de significação.” (1989, p.118)

Para chegar a esta “totalidade de significação” de um jornal, o autor conduz sua proposta através de três abordagens - de tempo, de espaço e de “pessoa”.

Em primeiro lugar, o jornal deve ser encarado como um sujeito - “tem personalidade jurídica, um estatuto e uma razão social que garantem sua individuação ante o direito e ante terceiros” (ibidem, p.120). Mas, mais que isto, esta pessoa/jornal precisa possuir uma “imagem de marca”, que provoca atitudes de atração ou repulsa, como qualquer pessoa. E que deseja imiscuir-se de tal forma na vida dos leitores que estes não podem prescindir de sua companhia. É este modo de ser que deve ser pesquisado.

A segunda entrada para a percepção da totalidade de um jornal diz respeito às imbricações entre “tempo de discurso” e identidade dos sujeitos. O jornal, ao dar as “notícias do dia”, produz um tempo social objetivado, fazendo uma história do presente. Ao “tempo contado”, enunciado, o jornal superpõe um “tempo vivido” - o da enunciação e da recepção do discurso para a constituição da imagem do jornal, construindo, assim, sua identidade. Aqui há dois tipos possíveis de contrato entre um jornal e seus leitores. Por um lado, jornal e leitor vivem a história do presente. Há uma expectativa de conhecer o “acontecimento do dia” e a “continuação dos acontecimentos”. Mas, há também a expectativa da simples “aparição” do jornal como retorno diário do mesmo discurso que confirma o leitor como sujeito que está no mundo e sintonizado com um discurso.

Por último, Landowski afirma que o jornal deve responder todos os dias à questão: que há de novo, hoje, no mundo? E, neste mundo, o inesperado, o singular, o a-normal é valorizado, ao mesmo tempo em que deve situar-se em uma história já conhecida. O inesperado desta tempestade logo entra nas tragédias pessoais repetidas, bem como nos pedidos de ajuda e na presteza dos governantes em atendê-las, só passíveis de serem assimiladas porque já foram vividas, entrando em um circuito que confirma a imprevisibilidade das catástrofes, as histórias de sorte e azar e a responsabilidade do governo. Por isso, em uma parte significativa do jornal o que acontece, em primeiro lugar, é a sedimentação das noções e atitudes que constroem o próprio leitor, onde o novo é apenas aparente.

Assim, se compreende o jornal como uma “figura social”, com nome próprio, identidade e contrato de leitura, integrado a uma determinada comunidade, buscando rotineiramente a comprovação de sua aceitação. Esta descrição deve levar em conta, ainda, a situação do jornal no mercado, ou seja, seu lugar em relação aos outros jornais locais. Em geral, diz Landowski, “quatro vozes são mais do que o necessário para formar um sistema de discursos sociais”, e assim poder definir e tornar reconhecível o lugar de cada um. Estas vozes se formulam na proximidade com uma tendência já legitimada. Há o jornal oficial, que na formulação mais radical é o Diário Oficial, cuja marca é a objetividade institucional. No pólo oposto está a imprensa sensacionalista que se define pela passionalidade, onde o medo, o desejo, o ódio são a chave de leitura dos acontecimentos.

Entre estes, as duas tendências que agrupam a maioria dos jornais: “a de prestígio ou de referência, do tipo Le Monde; a outra, mais específica da ‘nova imprensa’ ou da ‘jovem imprensa’ (de vanguarda?), do tipo Libération.” (p.121) No Brasil, podemos identificar O Globo e Jornal do Brasil na tendência a jornais de referência e o Jornal da Tarde e a Folha de São Paulo da nova imprensa. O que a nova imprensa tem de “vanguardista” vai da experimentação gráfica ao tratamento mais livre do texto; da assimilação mais rápida das inovações à introdução de modismos - como a do ombudsman da Folha de São Paulo. Na verdade, elas representam um tipo de enfoque do cotidiano bem como correspondem a um tipo de leitor. Enquanto o jornal de referência pretende testemunhar o mundo, produzindo um discurso universal e objetivável, o jornal de vanguarda ou da “jovem imprensa” está aberto a um discurso ligado ao “vivido” e com permissão à subjetividade. A este pertence tanto o tom narcísico como auto crítico.

O leitor-modelo da primeira tendência apreende a informação como objeto de conhecimento e como campo de ação e se encontra na esfera das altas responsabilidades. O segundo quer ler o universal na conotação local ou com a rubrica de um intérprete reconhecido. A Folha de São Paulo, por exemplo, traz articulistas intelectuais (internacionais) aos domingos para interpretar e refletir questões complexas do mundo atual que se manifestam, também, no Brasil.

A “jovem imprensa” só se desenvolve na medida em que dialoga em tensão ou em confronto com o discurso da imprensa tradicional. Por isso, estes tipos se estabelecem na medida em que se desenvolvem pelo menos duas ou três posições de escrita e de leitura. Ou seja, quando há um universo intertextual que garante as diferentes marcas textuais. Normalmente em cada local em que se desenvolvem estas tendências um jornal tende a dominar ou a acirrar a concorrência.

Por exemplo, no Rio Grande do Sul é difícil observar esta dinâmica, pois é outra a lógica que ordena a distribuição dos jornais. A Zero Hora é o jornal de referência, mas não por prestígio, pois este corresponderia, por tradição, ao Correio do Povo. É jornal de referência dominante por pertencer ao grupo RBS que possui o canal de televisão afiliado à Rede Globo e, assim, detém um dos componentes de dominância no cenário da comunicação no Brasil.

A questão, nestes jornais de referência dominante,4 é observar como chegam a se institucionalizar. No caso de Zero Hora, no processo de anulação da concorrência, transformando-se em “o jornal gaúcho” cujo poder está mais na condição de poder-dizer do que no próprio dizer. Logo, na enunciação, mais que no enunciado, tendo conquistado o status de “a fonte da informação”, mediando, assim, o acesso dos leitores gaúchos à realidade.

O caso de Zero Hora no Rio Grande do Sul é argumento da necessidade de situar o jornal no contexto para dar sentido a seu texto. Ou seja, de lhe dar o estatuto de um sujeito com nome próprio pertencente a uma “família” que se afirma através de uma fala para deter um prestígio, tornando-se referência e, assim, garantindo um poder através do dito.

Esta perspectiva recolhida de Landowski permite reconhecer o modo próprio de escrever o cotidiano que um determinado jornal possui, bem como a forma de produzir sua imagem e instituir seu leitor.

Vale a pena acrescentar a este conjunto de observações mais uma questão acerca do contexto que intervém no texto. Ou seja, qual a autonomia do jornal e dos jornalistas em relação aos dois pólos que o sustentam: o mercado dos anunciantes e o mercado dos leitores. O grau de autonomia de um jornal é medido pela receita proveniente da publicidade - pública e privada - enquanto o grau de autonomia de um jornalista em particular depende da posição que ele ocupa no jornal e do grau de concentração da imprensa em sua região que, reduzindo o número de profissionais em potencial, leva à insegurança no emprego e torna o mercado mais propenso a baixos salários. Logo, jornalistas mais vulneráveis a acatar a versão oficial - das fontes, dos anunciantes e do proprietário.5

Tendo como pano de fundo a identidade externa e formal do jornal e os seus enunciados sobre si é possível entrar na redação e observar a dinâmica responsável pela produção dos acontecimentos em forma de notícia.

Podemos outra vez comparar as diferentes maneiras de estudar o discurso jornalístico: à análise de conteúdo corresponde a noção de gatekeeper (selecionador, porteiro), assim como a análise de discursos corresponderia ao newsmaking (produção da informação). Na perspectiva do gatekeeper, o guia da pesquisa é a manipulação explícita e se busca a associação do conteúdo dos jornais ao trabalho de seleção das notícias.

A abordagem do newsmaking articula a cultura profissional dos jornalistas com a organização do trabalho e dos processos produtivos. E a “manipulação”6 está ligada às práticas profissionais, às rotinas produtivas e aos valores interiorizados acerca do modo de desempenhar a função de informar. A diferença principal, no que diz respeito aos estudos sobre a produção de informação (newsmaking), é que estes não se referem à cobertura de um acontecimento particular, mas ao andamento normal da cobertura informativa por longos períodos. Uma problemática específica que se quer estudar é, então, situada no andamento da rotina do jornal. (Wolf, 1987, p. 157-177)

Sobre o processo produtivo do texto jornalístico, vale a pena ouvir Fausto Neto.

Sabe-se que o processo de construção da realidade não é inteiramente livre, no qual o jornalista é meramente um observador, e nem a notícia emerge livremente dos acontecimentos do mundo real; as notícias acontecem na conjugação de acontecimentos e textos.

Evidentemente que as notícias correspondem a índices do real, porém os procedimentos estratégicos adotados pelo jornalista para narrar fazem com que eles não sejam livres para escolher as formas: as narrativas são elaboradas através de metáforas, exemplos, frases feitas e imagens, ou seja, símbolos de condensação. Fórmulas antigas são reatualizadas, transformam acontecimento em notícias [...] Portanto, os procedimentos estratégicos de construção da notícia são anteriores à voluntariedade do jornalista. São as “rotinas produtivas” que condicionam, dentre outras coisas, o chamado exercício profissional, na medida em que estruturam e fazem operar a lógica produtiva da organização informativa. (1994, p.330)

Sabedor que o produto notícia é constituído “no próprio trabalho de produção do processo de publicização[...] e que os media não são apenas suportes de reais construídos em outras instâncias” o autor corrobora a perspectiva de estudo das rotinas de trabalho ao afirmar:

[...] que se torna necessário conhecer o “modus operandi” dos media. Para tanto é que introduzimos o conceito de “contratos de leitura”, ou seja, “saberes”, “regras”, “leis” construídos enquanto códigos particulares a cada suporte, a partir dos quais cada jornal, rádio e TV constrói o acontecimento, mas também o “acontecimento rádio”, o “acontecimento jornal” e o “acontecimento TV”. (p.331)

Assim, a gramática da produção discursiva pode ser apreendida pelas regras e leis que regem a feitura dos acontecimentos em cada mídia, que corresponde a uma determinada organização de trabalho e que está situada no interior de um específico modo de produção.

Tuchman (1983), Alsina (1989), van Dijk (1990) propõem estudos sobre a organização jornalística, salientando seu caráter de burocracia da não-rotina ou do estabelecimento de uma rotina não-rotineira. Esta marca funcional não impede de acompanhar o percurso do trabalho informativo e de reconhecer a especificidade desta rotina, que inicia pela coleta da matéria-prima. Repórteres e correspondentes recolhem fatos com potencial de noticiabilidade e os levam para a redação. Aqui também as fontes procuram os jornalistas e os jornais. Há um processo de decisão redacional que precede a realização da matéria, elegendo se certos assuntos e descartando outros. Esta seleção de primeiro grau diz respeito à possibilidade de o fato acontecido entrar no circuito informativo.

A seleção de segundo grau diz respeito à função de hierarquização dos acontecimentos, ou seja, há uma atribuição de importância ao acontecimento por parte do editor que decide a forma de tratar o assunto, escolhe o jornalista para realizar a cobertura, opta por fotografar ou não.

Nesta função se dá a conversão do acontecimento em notícia. O redator/ repórter deve considerar a ordem do esquema pré-fixado: respeito ao manual, exigências técnicas da redação, bem como da edição - delimitação do espaço, ilustração, etc.

Por último, a edição, ou o momento de socialização do trabalho final: a revisão do texto, os comentários, as reuniões na redação, a titulação, a decisão em torno da primeira página. O universo informativo, já duas vezes selecionado, recebe a seleção de terceiro grau: a função de tematização que, mais do que expor os temas, centra a atenção em alguns. Esta vai além da agenda-setting (teoria da construção do temário), pois aí se desenvolve o nível cognoscitivo/ valorativo sobre os acontecimentos.7

Fausto Neto diz que a tematização é a fase mais delicada para a produção da realidade, “na medida em que é através dela que os media se apresentam como um sistema não apenas classificador, mas de interpretação da realidade”. (p.330) E, novamente, este processo se dá num específico modo de produção, onde os “constrangimentos organizacionais”8 dão forma e conteúdo aos acontecimentos.

O jornal, ao “tematizar” um assunto, na verdade reduz a complexidade da vida social àqueles “temas” que ele define a priori como relevantes, pois a interpretação se dá conceitualmente. Martin Serrano (1989) afirma que os acontecimentos adquirem sentido social quando a situação é descrita de tal forma que pode ser interpretada à luz de algum “princípio” reconhecível pelos receptores. Este princípio, para ele, é um valor expresso no tema (que não é o mesmo para todos os jornais, uma vez que os “contratos de leitura” de um veículo com seus leitores se encontra no interior de uma gramática específica), e que põem em relação dois tipos de informação: a)  que permite identificar o acontecido e b)  que possibilita interpretá-lo.

Desde a Teoria das Mediações, proposta por Serrano (1978), aqui temos a primeira operação mediadora, que consiste em distinguir e estabelecer uma conexão entre o que é dado que pertence ao Plano da Situação, e o que é suposto e se encontra no Plano dos Princípios e, da identificação destes é que se chega ao Tema. Na notícia sobre a invasão da Fazenda Bom Retiro (que será detalhada no capítulo quatro), temos, por exemplo:



PLANO DA SITUAçãO

PLANO DOS PRINCíPIOS

TEMA


A Invasão

Cumprir a Lei

Propriedade Privada


No Plano da Situação está o objeto de referência e ele está explícito, é o fato acontecido; já o conteúdo do Plano dos Princípios se refere aos dados de referência e normalmente não estão explicitados, pertencendo ao conjunto de valores que orientam a redação. Neste caso, o cumprimento da lei serve tanto para acusar os colonos pela invasão, como para justificar sua expulsão. E o Tema é o conceito dentro do qual a situação e os princípios se movem e a situação é interpretada.

A coleta, a hierarquização e a tematização fazem parte da notícia, mesmo sem palavras, e compõem o percurso do fato que bateu à porta da redação, sensibilizou um intérprete/mediador, recebeu a aprovação de um editor para, então, apresentar-se em forma textual ao leitor, reordenando o tempo, pois o real/papel já é passado ao chegar no jornaledor.9 Eu li hoje, logo, é hoje que o fato aconteceu para mim, que sou somente um leitor.

2.2 Zero Hora: Cenário da Construção das Notícias

Seguindo a perspectiva que indicamos no projeto de estudo de um jornal, buscamos compreender o jornal Zero Hora: a)  como figura social em sua totalidade de significação; b)  pelo processo de produção da informação; c)  através da veiculação da sua auto-imagem e d)  do discurso informativo. Este último item será apreciado no capítulo quatro, referindo-se apenas à análise do noticiário sobre o Movimento Sem Terra.

Na Porto Alegre dos anos 60 concorriam pela preferência de leitura dos gaúchos os jornais da Companhia Jornalística Caldas Junior - Correio do Povo, Folha da Tarde e Folha da Manhã -, o Diário de Notícias, do grupo Diários Associados, a Última Hora, de Samuel Wainer e o Jornal do Comércio, da família Jarros.

Com o golpe militar de 1964, a Última Hora é ocupada e deixa de circular. Um mês depois Ary de Carvalho assume o jornal, buscando novos sócios e mudando o nome, demasiadamente identificado com o governo civil. Assim, no dia 4 de maio, circulava a Zero Hora, dizendo em seu editorial: “nasce hoje um novo jornal. Autenticamente gaúcho. Democrático. Sem compromissos políticos. Nasce com um único objetivo: servir ao povo, defender seus direitos e reivindicações, dentro do respeito às leis e às autoridades.”

Em dezembro de 1965 também a editora muda de nome, passando a chamar se Empresa Jornalística Sul-Riogrande S.A., presidida por Maurício Sirotsky Sobrinho. “O jornal rompeu os laços que ainda o ligavam à Última Hora, mudou o logotipo, modernizou-se e alterou os métodos administrativos,” conta Galvani, que completa: “o jornal que também era editado em formato tablóide, reeditando o sucesso da Folha da Tarde, tinha agora a missão de combater os três jornais da Caldas Júnior.” (1995, p.460)10

Neste mesmo período, a família Sirotsky adquire também a TV Gaúcha que em 1967 afilia-se à Rede Globo. Em 1970, adquire o controle total do jornal que já se denomina Zero Hora, formando o complexo de comunicação Rede Brasil Sul (RBS), expandindo suas rádios, emissoras de tevê e jornais pelo interior e em Santa Catarina.

A rede de emissoras AM do grupo é formada pela Rádio Gaúcha (a mais potente do sul do país - 100kwa), a Farroupilha e a 1.120 em Porto Alegre, a rádio Diário da Manhã de Florianópolis e a Princesa em Lages (SC).

As FMs iniciaram com a rádio Gaúcha Zero Hora FM, em 1976, que depois transformou-se em rádio Atlântida, formando a Rede Atlântida nas seguintes localidades: Porto Alegre, Pelotas, Santa Maria, Passo Fundo, Santa Cruz do Sul, Florianópolis, Blumenau, Chapecó, Lages e Brasília. Em 1983 foi criada a Rede Itapema FM, com o objetivo de preencher uma lacuna do mercado - a música brasileira. Em 1986, estas eram as cidades que contavam com a Rádio Itapema FM: Porto Alegre, Rio Grande e Florianópolis. Em 1990 a rádio Cidade passou a integrar a rede de emissoras FM do grupo RBS.

Quanto à televisão, a Gaúcha foi a segunda no Estado, iniciando suas transmissões em 29 de dezembro de 1962, com o slogan “Imagem Viva do Rio Grande”. Na memória da RBS a tevê é descrita assim:

Dois estúdios, algumas salas, uma mesa de suíte, um caminhão de reportagens externas, um pequeno mas bem montado departamento de telejornalismo com os recursos da época, um transmissor PYE e uma torre junto ao prédio nos altos do Morro Santa Tereza. Estas foram as primeiras imagens que as câmeras do Canal 12 mostraram naquele 29 de dezembro de 1962, num programa pré-inaugural.

Logo depois o então Presidente da República João Goulart, desatava a fita inaugural da nova emissora, entregando à comunidade gaúcha o Canal 12, cujo símbolo - uma cuia e uma câmera - expressava toda sua filosofia voltada para as coisas da nossa terra e da nossa gente. (Aikin, 30 ago.1991)

Em 26 de abril de 1965 era inaugurada a Rede Globo, que viria assumir a liderança no sistema de redes, com a qual a Gaúcha se associou em 1967, consolidando a supremacia da depois RBS no Estado. Em 1972, com uma transmissão ao vivo da Festa da Uva em Caxias do Sul, foi introduzida oficialmente a televisão a cores no Brasil. A TV Gaúcha foi também a primeira emissora brasileira a estabelecer um sistema de emissoras interligadas no interior do Estado e implantou um sistema próprio de retransmissoras nas principais cidades, criando em 1979 a Rede Regional de Televisão, composta atualmente pelas seguintes emissoras:

São doze emissoras de TV instaladas nos principais pólos regionais do RGS e cinco em Santa Catarina, atingindo uma cobertura de 14 milhões de pessoas e 541 municípios.11

Em maio de 1995 entrou no ar uma nova emissora do grupo, a TVCOM, sintonizada na grande Porto Alegre pelo sistema UHF ou através da TV por assinatura. A característica deste canal, autodenominado comunitário, é de uma programação jornalística ao vivo, por oito horas diárias, e totalmente produzida em Porto Alegre.

Por isso a primeira questão ao trabalhar a Zero Hora é localizá-la na história da formação da Indústria Cultural no Rio Grande do Sul, observando o processo de concentração característico do modelo adotado no Brasil.

Dos três grandes jornais da capital e de dezenas de pequenos periódicos no interior do Estado que formaram a história da imprensa no Rio Grande do Sul, restou, para a década de 90, o grupo RBS. Ainda que sobrevivam jornais regionais, suas tiragens são insignificantes e os mesmos não representam concorrência informativa à Zero Hora. Ao contrário, aqueles que detêm um mercado promissor são adquiridos pelo grupo, como é o caso do jornal O Pioneiro de Caxias do Sul. Alguns dados comprovam a distribuição da tiragem dos jornais até a década de 80.

Tiragem estimada dos principais jornais
diários de Porto Alegre: 1975 1980
(em milhares de exemplares dia)


Ano

Título

1975

1980

Correio do Povo

60

95

Zero Hora

40

90

Folha da Tarde

50

50

Folha da Manhã

25

Diário de Notícias

30

Fonte: IBGE; material publicitário das empresas.
(Apud Rüdiger, 1993, p.77)

Neste período, diz Sérgio Caparelli:

[...] duas únicas empresas, a Caldas Jr. e a Gaúcha Gráfica e Editora Jornalística S.A., com quatro diários, controlam, portanto, 80% da circulação de jornais em Porto Alegre e pouco  menos no Rio Grande do Sul, devido à concentração da  imprensa na capital: a tiragem global dos jornais da Capital  representa cerca de 70% da tiragem total dos 72 jornais do Estado, dos quais 16 diários. (1976, p.161)

Entre 1975 e 1980, dois jornais (Folha da Manhã e Diário de Notícias) deixaram de existir mas, se considerarmos que o Correio do Povo e a Folha da Tarde pertenciam ao mesmo grupo, a  diferença em relação à Zero Hora ainda é significativa.

Nos anos 80, também a Folha da Tarde fechou e o Correio do Povo além de trocar de proprietário, perdeu sua identidade: mudou de tamanho e de linha editorial. Ao mesmo tempo a Zero Hora   investiu em tecnologia, sedimentou sua imagem e, associada ao complexo de comunicação RBS, pode anunciar-se na tevê e no rádio de maiores audiências. E, assim, na década de 90 a sua supremacia é total, como mostra o quadro a seguir. (Geral, 2 jan. 1994, p.24)


















E, ainda que não disputando o leitor nacional (pois seu perfil é de um jornal regional) conquistou o quinto lugar entre os jornais brasileiros mais lidos e pretende ocupar espaço entre aqueles que influenciam a cena política e cobrem as grandes questões nacionais, conforme pesquisa do Ibope.


Por isso, Zero Hora é um jornal de referência dominante no Rio Grande do Sul onde seu efeito é mais representativo que referencial, pois, ao não reconhecer concorrentes (e eles realmente pouco o são), o jornal atua como ante-sala do poder, publicizando os que nele escrevem e os elevando a representantes formais de opinião. Ao mesmo tempo, exclui da realidade os que não figuram em suas páginas, tanto jornalistas como políticos e intelectuais.

Ou como diz Geràrd Imbert, ao comentar o El País de Madrid, também ele um jornal de referência dominante:

Es lo que podríamos llamar el poder performativo del periódico; poder formal, que da realidad a lo que nombre, poder de institucionalizar cuanto dice, de dar cartas de realidad a todo cuanto publica y, por consiguiente, de anular simbolicamente lo que omite, voluntaria o involuntariamente. (1986, p.26)

Da pluralidade de títulos ofertados na década de 60, o Rio Grande do Sul ingressou na tendência à concentração pelas mãos de duas empresas, na década seguinte, chegando aos anos 90 com a dominação de um único grupo - a RBS - proprietário de jornais, de emissoras de televisão e de emissoras de rádio no estado.

2.2.1 O Sujeito ZH

Definitivamente a Zero Hora não é um tipo puro: não se filia nem à narrativa objetivada de O Globo/Le Monde nem ao discurso “intimista” da Folha de São Paulo/Libération12 que existem dialogando entre si e propondo cada um seu público leitor específico. Zero Hora, no sentido dos interdiscursos informativos locais, faz um monólogo, não se constrói em oposição (textual, ideológica) ao Correio do Povo ou ao Jornal do Comércio e não disputa o leitor pela posição de leitura mas pela posição de consumidor, investindo em campanhas publicitárias, oferecendo fascículos e prêmios aos que adquirem o jornal e chamando a um contrato de “propriedade”. A última campanha de assinatura de 1995, por exemplo, dizia: “Seja Dono de seu Jornal”.

A posição de hegemonia, se é um ganho econômico para uma empresa jornalística (e a RBS investe em todos os seus veículos em sua definição comercial), representa uma perda na identidade do jornal e na cumplicidade com um tipo de leitor. Costuma-se dizer que no Rio Grande do Sul não há opção - ou se lê a ZH ou não se sabe do que se passa aqui. Mas o “leitor constrangido” que garante a existência material do veículo não é o leitor identificado com a linha editorial do jornal. E a pesquisa que o põe em primeiro lugar apenas comprova a supremacia, mas não a preferência. Pois não há preferência quando não há opção. E o Correio do Povo, que é seu concorrente formal, conforma-se à posição secundária e não disputa o lugar no jogo político, onde a imprensa efetivamente se afirma.

Ao ser o jornal de todos os gaúchos, ele deve falar igualmente ao dirigente empresarial e a seu empregado, aos intelectuais e aos semi-alfabetizados, aos bem informados (que tem acesso à NET, às viagens internacionais e às revistas especializadas) e aos que tem a RBS como única fonte. A alternativa para atingir este leque de leitores se encontra no modo de organizar a leitura e nos cadernos especiais. Nestes, os “contratos de leitura” solicitam como pré-requisito uma especialização.

O jornal chega ainda de madrugada aos assinantes da grande Porto Alegre, está nas bancas de revistas quando estas abrem suas portas e, ao se denominar “Zero Hora”, apresenta-se trazendo a última novidade acontecida. As notícias são da primeira hora e o leitor tem acesso a elas na sua primeira hora. Mesmo não de todo desperto ele pode “ler” a primeira e a última página e sentir-se atualizado. A estrutura é fixa e não há surpresas - o logotipo, ao alto, muda a cor do seu contorno para acompanhar o colorido das fotos (que em geral são duas). A manchete confirma o que o último noticiário do dia anterior indicou como o acontecimento. Quatro ou cinco chamadas compõem o quadro do que importa saber para sair à rua.

Se o jornal chegou à casa de uma família, pode ser desdobrado: o corpo principal, o Caderno ZH (com a programação cultural, os colunistas fixos, o horóscopo, a numerologia e os comentários de livros, filmes, peças de teatro, shows) e um caderno especial: na segunda, é Esporte; na terça Viagem; na quarta, Informática; na quinta, Sobre Rodas; na sexta, Gastronomia; no sábado, Vida. Na terça-feira, na quinta-feira e no domingo o jornal é acompanhado, ainda, por cadernos de anúncios classificados.

Enquanto prepara-se para sair ou está no carro, o leitor pode “ouvir” a Zero Hora, pois a programação matutina da Rádio Gaúcha lê e comenta o noticiário do dia a partir do jornal e re-entrevista as pessoas que opinaram nele ou serão chamadas para esclarecer a informação noticiada. É um caso de inversão da função complementar entre o rádio e o jornal. A agilidade noticiosa do rádio não se confirma nestes programas que são pautados pelo jornal do dia, ou seja dos acontecimentos do dia anterior. Mas também são programas de propaganda do jornal. Eles anunciam o produto que é sempre o mesmo - compre a ZH - através das notícias que poderão tornar consumível o jornal deste dia para o leitor eventual.

É importante observar que a promoção dos veículos entre si é duplamente favorável ao grupo RBS. Primeiro, o tempo/espaço do anúncio veiculado é caro; tê-los disponíveis sem custo representa, portanto, uma economia.

Por outro, representa uma concorrência desleal pois, não há outro grupo com esta concentração de veículos e, estes, para anunciar-se com bom retorno, devem fazê-lo na RBS, pagando o preço de mercado.

Mas este modo de funcionamento representa, também, economia para o grupo, enquanto produção de informação, uma vez que o programa radiofônico que lê a notícia do jornal paga o salário de um profissional para cobrir os acontecimentos que serão veiculados em dois ou até três meios.

No final de semana ampliam-se os leitores, logo, também os cadernos se multiplicam, buscando individualizar aquele que não tem possibilidade de encontrar um jornal inteiro com o seu perfil. No sábado, o intelectual recebe o Caderno de Cultura que expressa a reflexão acadêmica e cultural centrada no Rio Grande do Sul. No domingo, o empresário tem substrato, através de entrevistas, comentários e indicadores econômicos, para refletir sobre a situação financeira, no caderno Economia; o politizado têm um colunista nacional - Elio Gaspari - que orienta a interpretação política da semana; aficcionados por televisão (Revista de TV) e mulheres (Donna) também são contemplados com um caderno só seu.

No dia a dia o jornal tem a seguinte seqüência: inicia com pequenas notas (opinativas, provocativas) numa página não-assinada, ou seja, é a opinião do jornal chamada Informe Especial; as páginas 4 e 5 são de Reportagem Especial (considerado um espaço nobre para exibir reportagens com assuntos em destaque no noticiário dos últimos dias). De duas a cinco páginas são de Política Nacional. Na Página 10, o colunista José Barrionuevo comenta a política, principalmente estadual e municipal. Na seqüência, vêm as páginas de Editoriais e a de Opinião- no sábado consta ainda deste espaço uma Carta ao Leitor, assinada pelo diretor de redação ou o editor-chefe. Depois é a vez de Economia (até quatro páginas), Campo & Lavoura que trata dos problemas dos agricultores em relação a safras e financiamentos - mas não é aqui que os sem-terra entram com suas reivindicações: o campo e a lavoura são propriedade dos proprietários de terra. Os Indicadores trazem informações numéricas sobre dinheiro e o Mundo se resume em duas páginas, cujas fontes são as agências UPI, AFP, EFE e Reuters, The Washington Post, Los Angeles Times Syndicate e Ansa.

Aí é a vez da Geral, que pode merecer até dez páginas, e onde os personagens saem da vida que não se enquadra na política, na polícia e no esporte. É o lugar da cara do cotidiano que se completa com o Tempo, em forma de mapa e em cores, para ser interrompido por um anúncio de página inteira e preparar o leitor para a Polícia, as Publicações Legais e os Anúncios Fúnebres. O Esporte pode ter até seis páginas e é uma editoria prestigiada, que consagra jogadores, técnicos e também jornalistas. O jornal encerra com a sessão de cartas - Espaço Livre - onde uma é respondida pelo destinatário. A página seguinte - Há 30 Anos em ZH - traz a memória do jornal, com o resumo do que aconteceu naquele dia há trinta anos. E o encerramento do jornal fica para o colunista Paulo Sant’Ana, polemista, carismático, que abandonou a crônica esportiva (sem negá-la) para se transformar no “cronista da vida”.

A Zero Hora oferece ao leitor um itinerário que pretende dar conta do cotidiano, facilitado pelas cartolas em corpo 18, claramente identificadas no alto de cada página, propiciando a opção de onde parar e ler e onde saltar para ir ao encontro do que interessa. Informe Especial, Reportagem Especial, Política, Página 10, Editoriais, Opinião, Economia, Campo & Lavoura, Indicadores, Mundo, Geral, Tempo, Polícia, Publicações Legais, Esportes, Espaço Livre, Há 30 Anos em ZH. São estas as palavras-chave para ingressar no mundo de Zero Hora, um mundo ordenado pela linguagem e hierarquizado por um gesto de interpretação da Redação do que o leitor quer saber.

Esta é a assinatura do jornal, como ele se apresenta publicamente:





A sua “carteira de identidade”, impressa todos os dias, é:













E a publicação do nome do editor e do editor-assistente juntamente com o número do telefone da editoria na abertura da página é informação que autoriza, publicamente, os leitores a ter contato com os profissionais. E, assim, o Campo da Produção manifesta a intenção de dialogar com o Campo da Recepção.

2.2.2 A Rotina de Trabalho

O prédio funcional, sem estilo, na avenida Ipiranga, 1075, é referencial obrigatório para quem se movimenta fisicamente por Porto Alegre e, mais ainda, para os vendedores de anúncios e os promotores de acontecimentos e personalidades. Fica à beira do Arroio Dilúvio, em diagonal com o Centro Municipal de Cultura e vizinha com uma quadra de ensaio de escola de samba. Numa área plana, sem construções notáveis, o edifício da Zero Hora é visível à distância de várias direções.

Há alguns anos, da mesma forma, a grife Zero Hora é referência da informação. Sua redação, centro-nervoso do grupo RBS, ao longo dos 30 anos de existência do jornal, já esteve em diferentes andares do edifício. Também já desapareceu - durante um incêndio, no início dos anos 70. Hoje, está no terceiro andar, com acesso reduzido àqueles que passam pela sucessão de portarias e crachás e, claro, pela (in)disponibilidade de quem estiver sendo procurado.

Ultrapassadas estas barreiras, o que se divisa, então, é o modelo-padrão de redação - mesas, terminais, aquários de vidro mais ou menos devassáveis (dependendo da função e do cargo do ocupante) e gente. Conforme a hora, muita gente/jornalista.

As luzes são acesas, na redação, já às 7h da manhã, quando chegam os editores e diagramadores dos cadernos especiais. Em seguida, os coordenadores de produção de cada área estão ali para a primeira reunião do dia, que se realiza às 9h a fim de esboçar o jornal - capa e contracapa e, ainda, as páginas 4 e 5 de Reportagem Especial.13

Em plena manhã, uma boa parte dos 177 jornalistas que ali “ganham o seu sustento” já se movimenta em torno de seus núcleos de trabalho e respectivas chefias, recebendo pautas, apanhando seus laptops para viagens, ou até mesmo sentando diante do terminal para não apenas redigir, mas também dar forma à sua matéria - a tendência, de acordo com as últimas determinações da direção de redação, é de que o repórter deve preocupar-se, também, com a paginação eletrônica de sua reportagem, sugerindo títulos e disposição das matérias.

Com uma estrutura de funcionamento que tem, no topo, a figura de Augusto Nunes como diretor de redação, Marcelo Rech como diretor editor-chefe, oito editores executivos, secundados por editores de área (Segundo Caderno, Projetos Especiais, Mundo, Esportes, Opinião, Arte, Geral e Fotografia) e editores assistentes, Zero Hora investe na busca de informação através de uma equipe de reportagem que reúne profissionais enquadrados em um dos dez níveis que organizam a hierarquia de importância e salário. Três faixas (A, B, C), cada uma subdividida em cinco níveis, enquadram os produtores da notícia, do iniciante ao repórter especialíssimo.

Graças a um sistema de rodízio, os editores do jornal hoje se revezam numa tarefa que lhes permite conhecer em profundidade um terreno historicamente administrado por um anacronismo denominado “secretário de Redação.” A cada semana, um deles cuida da montagem da capa da edição, além de administrar o ritmo da trajetória das páginas rumo à área industrial. (Nunes, 30 set. 1995, p.15)

No início da tarde os editores de área voltam a se reunir, agora com o diretor editor-chefe, para relatar o encaminhamento dos respectivos trabalhos. Neste momento, a maior parte das equipes já estará nas ruas ou pendurada nos telefones coletando dados para suas matérias. Também estará acionado o banco de dados ou algum dos quinze correspondentes para anexar informações ao material em preparo. À medida que a tarde avança, caminha-se para a confecção do elemento principal da venda em banca - a capa do jornal, que, às 18h, já deverá estar desenhada para o fechamento da edição, às 21h - cerca de 3h e meia depois da chegada do “espelho”, que contém já os anúncios confirmados para a edição.

ZH, todos os dias, começa a nascer às 10h, numa reunião de que participam representantes de todas as editorias. Às 15h, sob o comando de Marcelo Rech, os editores se reúnem para conferir contornos mais precisos ao que foi esboçado no encontro matutino. Às 18h, agora na sala do diretor de Redação, os chefes de cada área do jornal se encontram novamente. Ao fim de 15 minutos, ganha nitidez o rosto, condenado a ser retocado pela procissão de novidades originárias do Rio Grande, do Brasil e do resto do mundo, com que ZH começará a ser distribuída no final da noite. (ibidem)

A tarde é, também, a fatia do dia em que batem na porta de entrada os que trazem o material pronto para virar notícia - divulgadores, com seus releases e fotos; candidatos a entrevistados, com suas histórias; fontes habituais que passam para um lobby, um cafezinho, uma conversa de pé-de-ouvido.

Também o telefone e o fax, neste espaço de tempo, depois do almoço até a entrada da noite, literalmente não param, trazendo sugestões de pautas, pedidos de confirmação para entrevistas coletivas e, para reforçar o lobby ao vivo, mais lobby.

O final de tarde, tradicionalmente, é o horário de maior lotação em uma redação. Por mais informatizada e fria que tenha se tornado, é nesse horário que ela volta a ter aquele clima de agitação que mitificou, tempos afora, a vida jornalística e que os nostálgicos do passado sentem saudade.

Para quem olha, de fora, este horário conturbado de volta da rua, conversas rápidas e nem sempre gentis, cobranças e desculpas, disputas por espaço e medo da caneta hidrocor voltar a delinear defeitos, esta é a “hora derradeira” do jornal. Diagramadores, editores, boys, repórteres, redatores, um ou outro divulgador retardatário que escapou da vigilância da portaria e vem se debruçar sobre um sujeito descorado, que olha para o monitor do computador, ora com desalento, ora eufórico, sempre com pressa - eis a fauna de uma redação à beira de um ataque de nervos. A Redação, sem dúvida, é um campo de batalha. A batalha dos eventos, das personagens, da vida e das palavras nomeadoras, que darão o sentido para o dia transcorrido.

Dali a poucas horas, apenas as chefias estarão, silenciosas, repassando os passos de um dia inteiro de trabalho, para legitimar o sentido pretendido.

Seria essa, resumidamente, a rotina da Redação - se uma redação permitisse alguma rotina. Esta é a edição nº. 11.000 de Zero Hora. Nenhuma foi igual à outra, porque os dias jamais se repetirão... (Nunes, 30 set. 1995, p. )

A madrugada trará o barulho das rotativas, alguém vai para casa com a edição embaixo do braço e sem a paciência para ler tudo o que viu passar diante de si no dia que começou às 7h da manhã. A notícia recém publicada já é passado. Sua preocupação será com os desdobramentos das notícias de amanhã e depois. Ao seguir para casa, vai cruzar, nas ruas, com algum dos caminhões da empresa, despejando jornais nas esquinas já tomadas por seus jornaleiros que ajudam a despertar a cidade com seu grito de guerra:

Na Redação, enquanto isso, o editor de cadernos especiais está chegando para finalizar ou começar um trabalho. Um ou outro colega de chefia estará por perto. Daqui a pouco, a primeira reunião do dia. Às 9h em ponto. Para iniciar a rotina de mais um dia não-rotineiro.

2.2.3 O Auto-Retrato

A cultura organizada em torno do consumo de massa estimula o narcisismo, afirma Christopher Lasch (1986, p.24) que não o relaciona com egoísmo ou exibicionismo mas o toma como uma “prática” para a sobrevivência psíquica do homem na sociedade pós-industrial.

Sem pretender psicologizar, buscamos a palavra narcisismo no dicionário Aurélio, onde ela é referida “como uma qualidade daqueles que narcisam”, ou seja, oriunda “daquele homem muito vaidoso, enamorado de si mesmo.” (1995, p.450)

É assim que muitos jornais (estes sujeitos complexos) se apresentam aos seus leitores: enamorados de si, ou como canta Caetano Veloso - “narciso acha feio o que não é espelho”. (Veloso, 1992)

Há uma tendência bastante generalizada e identificada em alguns jornais de: a) falarem de si e b) de falarem bem de si, olhando-se encantados no espelho do seu próprio texto, o que, na linha de Lasch, poderia ser interpretado como uma prática para sua sobrevivência. E a sobrevivência do “ego” do jornal, se dá através da estruturação de um sentimento de gratificação e de orgulho dos que compõem a redação: são os escolhidos, privilegiados, e estão no melhor lugar. E, o que é mais importante, isto é publicizado.

Umberto Eco falou de uma tendência da televisão de ser auto-referente (1984) e Ciro Marcondes diz que

[...] também na imprensa escrita há sintomas claros desta auto-referencialidade comunicativa, no fato de os jornais construírem as notícias de fatos absolutamente extrajornalísticos ou não-jornalísticos, no fato de fazerem matérias ou série de matérias sobre si mesmos, olhando-se como espelhos narcísicos, passando para o público algo que só teria a ver - quando muito - com a economia interna de cada empresa.

Novos projetos editoriais, os ombudsmen que saem dos próprios corpos da redação, os jornais se auto-elogiando pelas coberturas ou furos jornalísticos e fazendo a crítica dos media, em última análise, está-se girando em torno das mesmas coisas e a redação do jornal torna-se a matriz imaginária dessa fantástica indústria de ficções. (1993, p.104)

Na Zero Hora esta tendência é explícita e firmou-se juntamente com as mudanças ocorridas em 1991 e que trouxeram para a direção da redação o jornalista de São Paulo Augusto Nunes. A auto-referência de ZH pode ser observada através das informações que divulgam seu crescimento (são gráficos, números e resultados de pesquisas); pela forma como se apresenta, intervindo e dando direção aos fatos; através dos prêmios que recebem seus profissionais; prestando conta das coberturas políticas e com as campanhas que devem convencer o leitor a ser seu leitor.

Apresentamos alguns exemplos, aleatoriamente recolhidos, para demonstrar cada um dos itens, sem a intenção de fornecer um mapa de tudo o que foi publicado.

2.2.3.1 Os gráficos elogiam

Todos os jornais realizam pesquisas e estas vão sendo sofisticadas, oferecendo maiores possibilidades de dados sobre os leitores. Como são pesquisas encomendadas pelos jornais, a estes cabe decidir o que irão publicar e de que forma. Zero Hora, que vem tendo seus índices de venda e de leitura aumentados, os divulga com destaque:

Em 7 de março de 1993, uma pesquisa do Data-Folha mereceu as duas páginas centrais do jornal (24, 25), que são reproduzidas nas próximas duas páginas.

Em outubro de 1993, o jornal trazia o título: Zero Hora Detém o Maior Índice de Crescimento do País, seguido de um destaque: “O IVC constatou que a circulação de ZH cresceu 20,73%, alcançando a melhor performance entre jornais de todo o Brasil”. E a notícia:

Zero Hora foi o jornal que mais cresceu em agosto e setembro deste ano comparando com o mesmo período de 1992. Dados do Instituto Verificador de Circulação (IVC) indicam que ZH teve um crescimento de 20,73% em circulação no mês de setembro deste ano, em comparação com o mesmo mês no ano passado. Com uma tiragem de 140 mil exemplares nas edições semanais e de 250 mil nas dominicais, Zero Hora assume assim a posição de 5.º maior jornal do Brasil, superando o Jornal do Brasil.

“É o resultado de campanhas maciças de divulgação na área de assinaturas e de investimentos editoriais em novos produtos”, explica Christiano Nygaard, diretor executivo de ZH. Só neste ano, surgiram três novos cadernos: Donna, Informática e Gastronomia [...] (26 out. 1993, p.37)

No dia dois de janeiro de 1994 (p.24) outra página inteira informa que ZH é o Jornal que Mais Cresce nas Capitais. Os gráficos ali divulgados constam da página 82 deste trabalho.

2.2.3.2 As notícias enaltecem

Às formas tradicionais de auto-referência como “afirmou para ZH” ou “falou com exclusividade para a Zero Hora”, acrescentam-se outras, que podem ser consideradas de auto-referência “elogiosa”:

Assim como a maior feira agropecuária do Brasil não se restringe aos limites do parque de Esteio, a conquista da Copa Libertadores da América pelo Grêmio transcende as fronteiras do Rio Grande do Sul - a reconquista da América foi assunto em jornais, rádios e TVs de todo o mundo. ZH soube estar à altura deste momento: investiu pesadamente em viagens e espaços editoriais para traduzir o espectro de emoções envolvido na disputa [...] Por semanas e coberturas como estas, os últimos dias estarão embalados para a posteridade com a marca do êxito do Rio Grande do Sul devidamente espelhado pelas páginas de ZH. (Rech, 2 set. 1995, p.17) (grifo nosso)

Para falar da informatização da redação: “Os jornais que olham o futuro sem medo, como Zero Hora, vão ganhando paulatinamente o aspecto de salas de foguetes”. (Rech, 24 jun. 1995 , p.19)

O essencial é que a informação seja correta. Esse é o caminho fixado por Zero Hora. Candidatos que tentam impor-lhe desvios à custa de denúncias implausíveis apenas perdem seu tempo. (Nunes, 20 ago. 1994, p.11)

Ou, ainda:

Zero Hora se insere na classificação de grande e bom   jornal,   preocupado permanentemente em se renovar, aperfeiçoar se e  prever mutações. Os principais beneficiários deste condicionamento aplicado ao dia-a-dia serão sempre os seus leitores de hoje e do futuro. (Rech, 6 ago. 1994, p.15)

Em matéria com o título Festival Promove Talentos Artísticos, também as preocupações com o bem-estar dos funcionários, são apresentadas:

O patrimônio de uma empresa não se restringe aos bens que possui e produz. É representado, principalmente, pelo talento das pessoas que nela trabalham. Partindo desse princípio, Zero Hora, promove desde 1992, o Festival Prata da Casa [...] O festival, que tem como objetivo divulgar os talentos artísticos dos funcionários e promover a integração entre estes, seus familiares e amigos, foi aberto [...]. (3 jul. 1995, p.47)

Em outras, o elogio se dá pelo reconhecimento da intervenção social do jornal, ou seja na repercussão de uma notícia. Citamos dois casos:

Encorajada pela repercussão das reportagens publicadas por Zero Hora sobre os desaparecidos durante o regime militar, a viúva de Vlado está disposta a voltar à Justiça. (Milman, 6 ago. 1995, p.6)

Sobre o mesmo tema, no dia seguinte:

Clarice Herzog, hoje com 54 anos, resolveu estudar a reabertura do processo sobre a morte de seu marido depois da publicação por Zero Hora de série de reportagens sobre os desaparecidos políticos no Brasil. (Milman, 7 ago. 1995, p.8)

Em uma notícia sobre a discussão das atribuições do Tribunal de Contas do Estado, o outro exemplo: “Até a divulgação da lista, publicada em Zero Hora, o Tribunal limitava-se a examinar a legalidade dos projetos municipais aprovados pela câmara [...]”. (27 jun. 1995, p.18)

O lançamento do Manual de Redação, na feira do livro de 1994, mereceu capa do Segundo Caderno, com o seguinte texto:

Apesar de concebido para resolver na prática dúvidas e problemas enfrentados cotidianamente pelos jornalistas de Zero Hora, o livro destina-se também a todos os interessados no domínio da precisão e da elegância vocabular. Bons e abrangentes manuais de redação de jornais têm servido, no Brasil e no Exterior, como complementos modernos e atualizados para as gramáticas tradicionais. O Manual ZH, além desta função natural, apresenta uma significativa diferença em relação a obras similares: um capítulo exclusivamente dedicado à ética profissional do jornalista. “Nenhuma outra atividade lida diariamente com tamanha quantidade e diversidade de problemas éticos quanto o jornalismo” diz o editor-chefe de ZH, Marcelo Rech [...] Rech foi responsável pela supervisão geral do projeto de edição do Manual ZH. Mas o autor do livro é a Redação de ZH, ressalva. “Todos contribuíram com sugestões.” (7 nov. 1994)

A segunda edição, deu matéria de domingo, na Geral.

A segunda edição de Zero Hora - Manual de Ética, Redação e Estilo, revista e atualizada, já está nas livrarias [...] Recentemente, professores do curso de Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) resolveram adotá-lo como guia para os alunos de Jornalismo [...] Além de orientações sobre redação e estilo jornalístico, o manual de ZH traz uma novidade em relação aos publicados por outros grandes jornais do país: oferece aos leitores, em forma de livro, um guia de conduta ética para seus profissionais. (12 mar. 1995, p.42)

É na Carta ao Leitor, publicada aos sábados que o editor Augusto Nunes, apresenta os jornalistas que estão em destaque.

Imparcial, serena e independente - eis aí três adjetivos que inevitavelmente ocorrem a quem pretende compor o perfil de Rosane de Oliveira, 32 anos, editora de Política de Zero Hora. Gaúcha de Campos Borges, Rosane chegou à redação há apenas 90 dias. Nesse período, em nenhuma noite voltou para casa a tempo de encontrar acordado o filho Eduardo, de 1 ano e 8 meses. (14 nov. 1992, p.4)

Ao falar do curso de Jornalismo Aplicado oferecido pela Zero Hora, ele afirma:

“Três vezes por semana, eles estarão trabalhando na Redação de ZH, recebendo pautas, indo para a rua, redigindo textos e sendo pessoalmente avaliados tanto na informação que trouxeram como no texto redigido,” explica Eunice Jacques, editora de Opinião de ZH e coordenadora-geral do curso. Com talento de sobra para transferir aos alunos, Eunice montou uma equipe formada pelos editores Bete Duarte, Clóvis Malta e Eleone Prestes [...] Se depender da dedicação da equipe do curso e do talento dos professores, dentro de alguns meses a redação de ZH comecará a ser revitalizada por jornalistas equipados com um inquestionável certificado de qualidade. À espera dos novos companheiros estarão dezenas de profissionais que frequentaram as edições anteriores do curso e hoje ocupam posições de destaque na Redação. (Nunes, 12 ago. 1995, p.17)

No Festival de Cinema de Gramado, a Carta ao Leitor, disse:

Um festival de cinema é sempre um festim de excessos - excesso de expectativa, de filmes razoáveis beirando o medíocre, de vaidade e brilho, de olhares indiscretos, de jovens (e nem tão jovens), belas mulheres, de encontros insólitos, de noites em claro, de bebidas e de bebedeiras. Mas talvez seja sobretudo um excesso de paradoxos. Diante desta constatação, a editora do Segundo Caderno, Sandra Simon, se viu confrontada com um desafio ao montar a equipe encarregada de transmitir aos leitores de ZH todos os pecados e virtudes do Festival de Cinema de Gramado.

“Escalar uma equipe para a cobertura jornalística de um evento assim significa dizer: fiquem atentos para os paradoxos”, explica Sandra Simon, nascida em Caxias do Sul há 27 anos. “No fim das contas, os paradoxos são sempre o que de mais rico e estimulante se pode recolher para uma boa reportagem.”

A escalação da editora provou-se absolutamente correta. Em nome da paradoxal diversidade do festival, subiu a Serra o editor-executivo Eduardo Peninha Bueno, um porto-alegrense de 37 anos, desde 1992 demonstrando nas páginas de ZH por que é um dos mais exuberantes e criativos contadores de histórias da imprensa brasileira. Em um festival de contrastes, o editor-executivo Juremir Machado da Silva, nascido há 33 anos em Santana do Livramento, correspondente de ZH em Paris até junho passado, encontra um amplo terreno para exercitar-se como implacável polemista. Tuio Becker, 52 anos, natural de Santa Cruz do Sul, une-se à equipe como crítico titular de ZH, munido de sua enciclopédica memória cinematográfica, colocada a serviço do jornal desde 1992. A  editora Cláudia Laitano, porto-alegrense de 29 anos, desde 1987 em ZH, empresta à cobertura sua ironia de ferina observadora dos bastidores de Gramado. O fotógrafo Carlos Rodrigues, 50 anos, nascido em Encruzilhada do Sul e no jornal desde fevereiro deste ano, experiente retratista de estrelas, starlets e personalidades, completa a equipe. (Nunes, 19 ago. 1995, p.17)

Para contar um fato apurado pela editoria de Polícia, Augusto Nunes fez esta associação:

Os editores de Zero Hora ouvem Bach quase diariamente na hora do crepúsculo, durante a reunião destinada à escolha dos assuntos que merecem espaço na capa do jornal. As pautas são ouvidas com a atenção de quem não quer perder passagens surpreendentes e retumbâncias singulares. Quando executadas com especial eficácia, seguem-se ao silêncio da platéia, profundo como o registrado nos melhores recitais, ruidosas manifestações de entusiasmo.

Antes que alguns leitores imaginem os editores de ZH entretidos com sinfonias e sonatas, esclareça-se que não é Johann Sebastian, e sim Alexandre, o prenome do Bach incorporado à rotina da redação. Alexandre Bach, 29 anos, há seis em ZH, também tem ancestrais germânicos - e é até possível que entre eles figure o grande compositor. Mas esse gaúcho de Osório não dispõe de tempo para investigar a própria árvore genealógica. Um editor de Polícia tem investigações mais urgentes a fazer, seus dias são bastante movimentados. Às vezes, movimentados demais. (7 out. 1995, p.19)

Outro jornalista que mereceu destaque é Carlos Wagner:

Ao longo de 58 dias, uma equipe de reportagem formada por três tarimbados profissionais de Zero Hora - o fotógrafo Ronaldo Bernardi, 32 anos, o motorista Dorli Fagundes, 39, e o repórter Carlos Wagner, 44 - percorreu 30 mil quilômetros de estradas, entregue a um fascinante esforço jornalístico: contar a história dos agricultores que, nas últimas décadas deixaram o Rio Grande do Sul sem abdicar da condição de gaúcho.

O incansável e talentoso Ronaldo Bernardi documentou a maratona com 3.600 fotos. O motorista Dorli Fagundes consumiu quatro pneus, um jogo de pastilhas de freio e algumas toneladas de paciência no duelo com estradas esburacadas (além de ter justificado, sempre que necessário, o sugestivo apelido de Faísca). Carlos Wagner incorporou a seu brilhante currículo mais uma proeza: ele agora conhece o interior de todos os Estados brasileiros. Com o entusiasmo de principiante que marca a linhagem dos repórteres puro-sangue, Wagner fala da viagem: [...] (18 mar.1995, p.15)

O prestígio do repórter é confirmado por outra Carta, alguns meses depois, quando o tema é o MST. “É o caso de Carlos Wagner. Hoje com 45 anos, só em 1984 o talentoso e incansável repórter de ZH passaria a acompanhar sistematicamente conflitos gerados pela posse da terra.” (23 set.1995, p.17)

Todas estas Cartas ao Leitor são acompanhadas da fotografia do profissional destacado. E confirmam como o jornal pode criar acontecimentos pela linguagem. Absolutamente restritos à sua economia interna, esses passam a figurar como notícia. Ou seja, notícia de si mesmo.

2.2.3.3 Os prêmios confirmam

Há muitas premiações no jornalismo - fotografia, reportagens específicas, crônicas, charges, oferecidas por diferentes instituições regionais e nacionais e Zero Hora recebe muitos prêmios. Pelo menos é o que se sabe através de suas páginas, pois os outros premiados ou prêmios em que ela não figura não são informados. O Manual de Redação, no capítulo sobre ética, se refere a prêmios e concursos.

Para Zero Hora, prêmios jornalísticos representam importante estímulo a trabalhos bem executados. Mas o jornal não produz reportagens com o objetivo de encaminhá-las a determinados concursos. A execução de qualquer reportagem está condicionada exclusivamente ao interesse editorial. Os prêmios devem ser mera conseqüência da qualidade do trabalho. (1994, p.19)

O nome do premiado com a reprodução da foto ou o resumo da matéria são destacados, tanto no jornal com títulos salientes, como na Carta ao Leitor. Por exemplo: ZH Ganha Prêmios de Direitos Humanos, é o título para informar que a matéria Juventude Assassinada e a foto Onde Estão os Meus Direitos? foram as primeiras colocadas. “Na seqüência são citados os diversos prêmios e menções honrosas recebidas” e a foto com a legenda: “Premiação: a foto Onde estão os meus direitos? Tirou o primeiro lugar. (10 dez.1993, p.54)

Um título semelhante informa, dois anos depois, a vitória em outro concurso: ZH Conquista Prêmio de Direitos Humanos - Série Os Arrependidos Ganhou o 1.º Lugar. A notícia, diz:

O repórter Nilson Mariano, de Zero Hora, conquistou o XVII Prêmio Vladimir Herzog de Jornalismo na categoria texto publicado na imprensa com a série de reportagem Os Arrependidos [...]

O prêmio Vladimir Herzog foi criado em 1979 em homenagem ao jornalista preso, torturado e morto nas dependências militares do DOI-CODI em 1975 [...] Publicada entre os dias 23 e 27 de abril, a série Os Arrependidos contou o drama dos 19 guerrilheiros que, no início dos anos 70, foram levados à televisão para renunciar à luta armada e elogiar o governo militar [...] (17 out.1995, p.39)

Na Carta ao Leitor, da semana seguinte, o prêmio motiva uma explicação para Zero Hora tratar destes temas.

Sem rancores, sem ressentimentos, sem maniqueísmos, mas também sem medos, sem truques eufemísticos, sem omissões espertas, Zero Hora tem vasculhado metodicamente recentes e relevantes episódios da saga brasileira [...] A primeira seqüência de reportagens descreveu o limbo onde sobrevivem os chamados “arrependidos”, antigos prisioneiros políticos forçados por tortura-dores a renegar suas crenças em constrangedoras aparições na TV.

O trabalho do jornalista Nilson Mariano acaba de ser contem-plado com o Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos, oferecido por um grupo de entidades interessadas no combate a quaisquer manifestações de intolerância ideológica. A premiação, por sinal, reafirma que notícias inéditas continuam importantes mesmo se publicadas anos depois da ocorrência dos fatos [...]

Admitindo-se que brasileiros de outros tempos tenham demonstrado pouco apreço pelo passado, sobram evidências de que são bem diferentes os jovens deste fim do milênio. A repercussão das reportagens sobre capítulos da história recente do Brasil confirma a emergência de uma geração saudavelmente curiosa, interessada em escavações jornalísticas do gênero, decidida a assimilar lições que ajudem a evitar a reprise de trágicos equívocos. Os jovens querem saber. Cabe à imprensa contar. (Nunes, 28 out.1995, p.15)

Também premiado pela Sociedade Interamericana de Imprensa - um conjunto de editoriais sobre a corrupção política do país - foi destaque em mais de uma edição. No domingo, a premiação mereceu a página inteira, que ficou assim:

Os prêmios às matérias de denúncia política ou de crítica ao sistema são uma fonte de prova de que o jornal não é porta-voz do poder. Por isso são festejadas quando reconhecidas. As manifestações de cumplicidade com o poder estão nas entrelinhas dos textos, nas colunas assinadas e na editoração do jornal; são mais permanentes, freqüentes e, também, mais discretas. E devem ser ocultadas, se possível, até, negadas.

2.2.3.4 As coberturas ditas imparciais

Há também diversos exemplos em que o jornal trata das suas coberturas. A mais esclarecedora da intenção de provar sua imparcialidade é a que se refere à campanha eleitoral para a prefeitura de Porto Alegre, em 1992, repetida em 1994, quando da eleição para governador.

Nesse período, foram oferecidos aos leitores 2.423 centímetros de texto, repartidos em partes iguais entre os dois blocos envolvidos na disputa pela prefeitura da capital gaúcha. Para ilustrar essa montanha de palavras, ZH utilizou, além de charges e gráficos, 58 fotos. Em cinco, os candidatos estavam juntos. Tarso Genro apareceu sozinho em 26 fotos e César Schirmer em 27 [...]

Essas cifras representam uma espécie de confirmação aritmética da imparcialidade permanentemente perseguida por ZH - virtude tanto mais louvável quando se trata de campanhas eleitorais assombradas pela polarização ideológica [...]

Previsivelmente, não foi possível a ZH escapar a algumas lamentações formuladas pelos candidatos (e encampadas de imediato por militantes partidários). (Nunes, 14 nov. 1992, p.4)

Conforme o colunista, estas reclamações foram poucas e também acabaram em empate numérico, o que só viria a confirmar, junto com os centímetros e a contabilidade das fotos, a imparcialidade da cobertura. Ele pode, então concluir: “Mais importante ainda, nenhum leitor fez qualquer reparo ao desempenho do seu jornal. Não parece pretensioso, portanto, afirmar que, seja qual for o resultado, ZH foi vitoriosa no segundo turno em Porto Alegre.” (ibidem)

Assim como a descrição da relação com a política pretende demonstrar o esforço do jornal em se manter neutro e imparcial, o exemplo seguinte - relação com o anunciante - quer provar a independência. O texto a seguir está saudando o Prêmio SIP (Sociedade Interamericana de Imprensa), pela “série de editoriais sobre a corrupção política no país e o resgate da ética na vida pública brasileira.” (Nunes, 23 jul. 1994, p.15)

Na mesma edição, o prêmio é comentado por Lauro Schirmer:

Zero Hora começou a se fazer forte a partir de sua integração à RBS, em 1970. Desde então, até hoje vem dando saltos de qualidade em todas as áreas. A par de avanços na forma e no conteúdo, vem aumentando suas tiragens, diversificando seus anunciantes e ampliando seu quadro de leitores cativos, os assinantes. Um dos marcos importantes nessa história foi o sucesso do lançamento, em 1979, do seu caderno de Classificados que, em pouco tempo, suplantou o concorrente e ajudou a quebrar a hegemonia do velho e poderoso Correio do Povo. A conquista do anunciante de classificados, porém, tem um significado mais transcendente, porque boa parte da receita do jornal passa a ser diluída entre milhares, dezenas de milhares de pequenos anunciantes. Razão porque se diz que quanto mais classificados tem, mais independente pode ser um jornal.

Houve tempos – que felizmente vão longe – em que o peso de alguns anunciantes podia gerar tentativas de pressão em determinados momentos. Hoje, o maior cliente de Zero Hora representa menos de 1% da receita total do jornal, que graças à sua fortaleza segue fiel aos princípios definidos pelo Ideário RBS, mantendo clara separação entre a linha editorial e as áreas comerciais. (Schirmer, 24 jul. 1994, p.19)

Poucas semanas depois, a questão da relação com o anunciante veio à tona, novamente, agora em conflito com o presidente da Agas – Associação Gaúcha de Supermercados. Este, sentindo-se constrangido pelas reportagens que identificavam nos supermercados os responsáveis pela inflação e os acusavam de vilões do Plano Real, suspendeu os anúncios comerciais. Após cinco semanas de ausência de anúncios deste setor, a Carta ao Leitor denunciou o boicote e o justificou.

Enfim, ZH mostrou aos leitores o que ocorria e ofereceu-lhes as informações necessárias para que chegassem a alguma conclusão. É o que desejam (e merecem) os leitores interessados no conhecimento dos fatos.

A quantidade de páginas com informações comerciais, sabemos todos, é um poderoso indicador da musculatura de uma empresa jornalística: jornais sem anúncios não terão longa vida. Mas as empresas anunciam porque a propaganda é o seu oxigênio e um bom jornal, seu pulmão. Em resumo: o jornal e o anunciante nasceram um para o outro, mas, como todos os demais, o casamento só será feliz e profícuo se houver respeito mútuo. (Nunes, 30 jul. 1994, p.15)

E, assim, o jornal comprova numericamente que não apoiou nenhum candidato e, através de um caso concreto que não é influenciado pelo anuncian-te. Logo, ele merece credibilidade. Ainda mais que seu único dono é o leitor.

2.2.3.5 Você (leitor) é quem manda

O consumo é a modalidade que configura a sociedade contemporânea, caracterizando a civilização industrial. O consumo não é, conforme Jean Baudrillard o “processo de satisfação das necessidades [...] mas, um modo ativo de relação, um modo de atividade sistemática e de resposta global no qual se funda todo nosso sistema cultural.” (1973, p.206)

Para a concepção deste autor não são os produtos materiais o objeto de consumo, eles são apenas objeto da necessidade e da satisfação. Assim, o que é consumido não são as mercadorias mas a própria relação, é a “idéia de relação que se consome na série de objetos que a deixa visível”. (ibidem, p.207)

Gramsci considera os leitores como elementos ideológicos “filosoficamente transformáveis” e, como elementos econômicos, capazes de adquirir as publicações. “Na verdade, estes dois elementos não sempre podem separar-se, pois o elemento ideológico é um estímulo para o ato econômico da aquisição e da difusão.” (1968, p.87)

O leitor de jornal inscreve-se numa relação de consumo onde estão presentes elementos ideológicos e econômicos. Ao comprar seu exemplar, ele busca suprir a necessidade (de informação) e encontrar a satisfação de “saber das coisas” para “estar no mundo das relações”.

A Zero Hora lançou uma campanha que interpela o leitor como proprietário. - “Seja você dono do seu jornal” - invertendo os tradicionais papéis que envolvem uma transação econômica. O leitor que “compra” o jornal, passou a ser chamado de dono. No anúncio e também no texto jornalístico impondo-se pela redundância, se não como verdade, ao menos como argumento de verdade da Zero Hora.

Alguns exemplos da afirmação de que os leitores são os donos. O texto que solicita o preenchimento de uma pesquisa de opinião, enviada aos assinantes, diz:

Para a Zero Hora, você é o dono do jornal e o nosso compromisso é manter a sua satisfação no mais alto nível. Para isso, seria importante conhecer a sua opinião sobre a experiência que já teve com nossos serviços. Dessa forma, poderemos aperfeiçoá-los cada vez mais.

O anúncio de página inteira afirma:

Lendo a Zero Hora você encontra aquelas informações que o 102 não dá. O jornalismo investigativo de Zero Hora está sempre descobrindo coisas que todo mundo quer saber. Foi assim no caso dos dólares no Uruguai, dos carros importados ilegalmente, da CPI da propina e muitos outros. E o melhor é que essa vocação também funciona a favor do leitor até naquelas coisas em que ele se sente perdido, como na hora de comprar ou vender um telefone. Por isso, até pra ser dono de um telefone sem engano, é melhor ser antes dono de um jornal. (27 nov. 1993, p.47)

A reprodução da página 53 da edição do dia 31 de agosto de 1994 está a seguir:

A carta redigida por Augusto Nunes, e incluída no exemplar do assinante, também chama o leitor de dono:

Os leitores de Zero Hora têm constatado que, entre o começo e o final do período da assinatura, o jornal sempre se modifica, e se modifica para melhor.

A criação de novos cadernos, a incorporação de suplementos especiais à edição normal, o aperfeiçoamento visual de alguma seção, a publicação de um pôster - tudo isso contribui para que o jornal de hoje seja melhor que o de ontem, mas não tão bom quanto o de amanhã. Os assinantes merecem, porque são eles, não custa repetir, os verdadeiros donos de Zero Hora.

O que os donos querem, o jornal faz... Sempre que possível, ZH se antecipa à manifestação da vontade dos donos para premiá-los com brindes jornalísticos. Um bom exemplo foi a série de suplementos sobre a Colônia do Sacramento. Outro bom exemplo será a coleção de publicações especiais que circularão entre janeiro e maio de 1994, quando ZH estará completando 30 anos de vida [...]

Teremos outras atividades a oferecer aos leitores, e delas trataremos nas próximas Cartas ao Assinante. Esta correspondência direta com os assinantes foi concebida para informá-los detalhadamente sobre o que está acontecendo no seu jornal. É um dever de ZH. É, acima de tudo, um direito de quem é seu verdadeiro dono.

Um abraço

Augusto Nunes (out. 1993)

No corpo informativo do jornal a expressão dono também vai sendo incorporada. Por exemplo:

Com a paginação eletrônica, os verdadeiros donos do jornal terão em mãos exemplares com acabamento gráfico de altíssimo padrão [...] (31 ago.1994, p.19)

E paremos por aqui, porque o telefone acaba de tocar. Algum leitor quer alguma informação. E é ele o dono do jornal. (30 set. 1995, p.15)

Ao colocar o Manual à disposição dos leitores, os verdadeiros donos do jornal, Zero Hora está na vanguarda desta discussão no Brasil. (7 nov. 1994, p.1 Segundo Caderno)

A ZH nesta campanha confirma a natureza de relação ativa que o consumo adquiriu na atualidade (é, de fato, uma relação na qual se funda o sistema cultural) mesclando duas noções:

  1. Você leitor é quem manda. Aqui o contexto de propriedade advêm do poder de mando. Desejos atendidos são privilégio de quem manda. E quem detém o poder de mando é, de fato, o proprietário.

  2. Você leitor é o dono. Aqui a propriedade do exemplar é que conta. Você deve lê-lo, vagarosamente, privadamente, sem ter o vizinho de assento a espiar ou o colega de trabalho para dividí-lo.

Nos dois entendimentos, o apelo é para a gratificação que advém da posse ou do desejo de posse satisfeito. Mas, também, nos dois casos, as palavras jogam com os sentidos. Dono equivale à propriedade e, no capitalismo, esta corresponde à acumulação do capital e, portanto, não da satisfação advinda de prêmios ou ingressos mais baratos e, tampouco, da aquisição de um exemplar. Dono da Zero Hora é a família Sirotsky que é proprietária dos meios de produção da informação massiva. Os leitores são consumidores do exemplar e das informações. E isto lhes basta, pois é aí que reside sua satisfação de consumidor.

De outro modo, mas confirmando que o jornal e seus jornalistas também são notícia, encontramos um exemplo que comprova ainda que o jornal é composto de várias vozes. Aqui, explicitadas na disputa pela concepção de imparcialidade, se confrontam Augusto Nunes e Luiz Fernando Verissimo.

O começo é uma nota de Verissimo, em sua página dominical na Revista ZH, sobre as eleições presidenciais.

As pessoas confundem imparcialidade com justiça. Quem pensa não pode ser imparcial, nem deve. Quem ganha a vida escrevendo o que pensa tem a obrigação de ser parcial, mesmo que sua parcialidade seja pela indefinição. De um comentarista de futebol não se pede que não torça, só que reconheça quando foi pênalti contra o seu time. O ideal de uma imprensa “isenta”, além de ser irrealista e inalcançável, é duvidoso. Posto como compromisso, obriga a imprensa a ser parcial da pior forma, que é a parcialidade disfarçada. Jornais como The New York Times declaram formalmente quem é seu candidato nas eleições e depois estão liberados para fazer o que quiserem, até para serem justos.

Quem tem um espaço assinado no jornal não deve fazer proselitismo político - mesmo porque o espaço não lhe pertence, é uma concessão, e uma concessão precária - mas não deve ser menos subjetivo tratando de política do que é tratando de um escalope. “Objetivo” também não é sinônimo de ético. Pelo contrário, a ética é uma escolha, nada mais subjetivo do que uma decisão pessoal, e assinada, do que é correto (no velho sentido da palavra) e não é. O objetivismo pode ser o último refúgio do calhorda, como o falso objetivismo é o túmulo da ética jornalística.

Declarei que vou votar no Lula na certeza que - como disse o Chico Buarque - só num governo Lula gente como Fernando Henrique poderá ser bem aproveitada, porque se ganhar o Fernando Henrique o PFL toma conta. E na certeza que esta minha declaração de voto não surpreende, não influencia e provavelmente nem interessa a ninguém. Eu só não quero é que no futuro me acusem de ter sido objetivo. Logo numa hora destas.

E se estivermos errados, sempre sobrará a contribuição. (11 set. 1994, p.16)

Na Carta ao Leitor, da semana seguinte Nunes discorre sobre a questão sem se referir à nota. Vou transcrever todo o texto:

A objetividade jornalística é possível? Não, porque a ninguém é dado subtrair-se a sentimentos e emoções inseparáveis da condição humana. Profissionais de imprensa, como o restante da espécie, amam e odeiam, cultivam amizades e antipatias, têm preferências e idiossincrasias, protagonizam tanto histórias de medo quanto de coragem. São, substantivamente e antes de mais nada, homens.

A imparcialidade jornalística é possível? Sim, porque nenhum fator subjetivo pode sobrepor-se ao dever de informar corretamente. Para agir com isenção, não é preciso reduzir-se a uma espécie de máquina que fabrica palavras. Basta ser provido de independência intelectual, e recusar a falácia segundo a qual existiria a verdade de cada um. A verdade factual é uma só: trata-se do contrário da mentira.

O Aurélio define com rigorosa limpidez, em seus dois sentidos, o termo imparcial. Primeiro: “que julga desapaixonadamente; reto, justo”. Segundo: “que não sacrifica a sua opinião à própria conveniência, nem às de outrem”. O mesmo Aurélio resume o significado de parcial: “que não julga ou não opina com isenção; injusto, partidário, apaixonado”. Os dicionaristas, por sinal, configuram um bom exemplo de que é possível ser imparcial ao lidar com palavras.

Jornalistas imparciais recorrem aos critérios de bom senso e da honestidade, além de normas técnicas [subtítulo]

A virtude da isenção, ressalve-se, não vale como antídoto para todos os tipos de erro - apenas para os que resultam da má-fé. Jornalistas imparciais procuram, essencialmente, contar o caso como o caso foi. E recorrem aos critérios do bom senso e da honestidade, além de normas técnicas que vêm sendo aperfeiçoadas desde Gutenberg, no esforço para selecionar informações, distribuí-las hierarquicamente pelas páginas e apresentá-las ao leitor de forma atraente. Mas não são imunes a equívocos, até pela interferência inevitável de fatores subjetivos.

Feita a ressalva, tome-se como exemplo o comportamento dos correspondentes da cadeia de TV americana CNN que estavam no Iraque quando explodiu a Guerra do Golfo. É certo que sentiram medo ao contemplar, da janela do hotel Al-Rashid, em Bagdá, a apavorante chuva de bombas promovida por aviões americanos. É certo que todos torceram por algum dos três epílogos possíveis: a vitória dos EUA, o triunfo do Iraque ou alguma trégua. É certo que nutriam algum tipo de sentimento por Saddam Hussein. De todo modo, esses inevitáveis componentes subjetivos não os impediram de descrever com imparcialidade o que ocorria.

As lições oferecidas pelos repórteres da Guerra do Golfo são aplicáveis à batalha eleitoral no Brasil [subtítulo]

Os repórteres deslocados para a frente de Bagdá deram uma aula notável, ao vivo e em cores, de como agir com isenção mesmo durante uma guerra. São lições perfeitamente aplicáveis à batalha eleitoral em curso no Brasil. Ainda que considerem Fernando Henrique Cardoso o melhor entre os candidatos, jornalistas imparciais não invocam a presença de representantes do PC do B no palanque do PT para sustentar a versão de que Lula é comunista. Ainda que considerem Lula o melhor entre os candidatos, jornalistas imparciais não podem invocar a presença de antigos partidários de Fernando Collor no palanque do PSDB para sustentar a versão de que Fernando Henrique é uma reedição disfarçada do presidente deposto pelo Congresso.

Acreditar que é impossível ser imparcial equivale a decretar a morte da honestidade intelectual. (17 set. 1994, p.11)

Na seqüência Luiz Fernando responde em forma de carta:

Carta ao Editor

Prezado Augusto: Obrigado pela sua carta de 17/9, que passo a responder. Nossa espécie se desentende tanto porque se comunica com palavras, ao contrário das formigas (que usam a química), das abelhas (mímica) e dos políticos nordestinos (hipérbole). As palavras são imprecisas e ambíguas, às vezes tribíguas. Veja o nosso caso. Eu sustento que honestidade intelectual é um jornal ser parcial (no sentido de ter parte, lado) e nem por isso ser injusto, você diz que a honestidade intelectual está na imparcialidade, que eu digo que não é nem possível nem desejável e fatalmente acaba em pseudo imparcialidade. Você admira a objetividade dos jornalistas da CNN diante do bombardeio de Bagdá, eu acho que quem mantém a objetividade diante de uma cidade bombardeada pode ser um bom jornalista mas é um péssimo ser humano. A Guerra do Golfo, aliás, não me parece um bom exemplo para qualquer jornalista, imparcial ou não. A objetividade de Peter Arnett acabou sendo chamada de subjetividade, e de traição, no Congresso americano, porque ele mostrou que o bombardeio “cirúrgico” de Bagdá estava matando gente. Depois disso a CNN maneirou e rapidamente acrescentou um pseudo à sua imparcialidade. A sempre admirável imprensa americana teve um dos seus piores momentos na Guerra do Golfo. Acabou noticiando só o que o Pentágono queria, e está até hoje debatendo se fez o certo submetendo-se à subjetividade alheia. Você diz, com razão, que nem os comunistas no palanque do Lula provam que ele é comunista nem os aliados de ex-governos (no caso do Marco Maciel, de qualquer governo) no palanque do Éfe Agá provam que ele é um novo Collor. Pois eu reconheço os malucos no palanque do Lula e concordo que Éfe Agá está longe de ser Collor e mesmo assim assumo minha parcialidade diante desse bombardeio. Tenho notícia do que os comedores de criancinhas fizeram em outros países, mas os crimes da oligarquia brasileira eu conheço de primeira mão. O que eles fazem com as criancinhas eu sei. Vejo todos os dias. No fim, nossa opção (a não ser, é claro, para quem vai votar no Enéas) é entre duas traições: Lula teria que trair seus radicais para governar, Éfe Agá terá que escolher entre trair seu passado e trair seu palanque. A diferença é que acomodar os xiitas seria sopa, contrariar o PFL e etc significa ameaçar toda essa estrutura de poder e cumplicidade assentada sobre nós há anos como uma grande bosta seca, da qual Éfe Agá aceitou ser o ornamento. Já que toda esta conversa é acadêmica, pois o Éfe Agá está eleito, só nos resta esperar que ele escolha a traição certa, e seja parcial à maioria. (Enquanto isso, eu preciso urgentemente arranjar uma causa vencedora. Se pelo menos o Internacional estivesse bem!). Sem mais, e com recomendações para a Luzia e as meninas, subscrevo-me, atenciosamente. Um Leitor. PS: Feliz aniversário. (25 set. 1994, p.16)

Um esclarecimento, a pedido. Há duas semanas publiquei aqui uma carta aberta ao Augusto Nunes, editor da ZH. Era em resposta a uma “Carta ao Leitor” dele que saíra publicada duas semanas antes, na página editorial do jornal, como todos os sábados. O Augusto discordava de um ponto de vista meu, sem me citar, e eu respondi como um dos presumíveis leitores a que ele se dirigia. Quem não leu a “Carta ao Leitor” pensou que eu estivesse respondendo, em público, a uma carta pessoal e particular do Augusto, de quem jamais recebi qualquer censura, recomendação ou cara feia por qualquer coisa publicada neste espaço. Quanto ao assunto das nossas cartas, ele envolve uma coisa que deve nos preocupar a todos e ser discutida sem parar: a credibilidade de grandes jornais (e, claro, dos seus colaboradores) e os riscos que ela corre com as paixões ou as conveniências de um momento. (9 out. 1994, p.16)

Ou seja, a subjetividade também consta do jornal de referência dominante compondo, inclusive, um quadro de conflito. Não esquecemos, é claro, que o conflito é entre a estrela dos colunistas, (Luis Fernando Verissimo é o único que tem prestígio nacional com origem na Zero Hora) e o diretor de redação Augusto Nunes, com passagens nacionais que o prestigiam no Sul.

Assim, buscamos apresentar a Zero Hora com as palavras com que ela se apresenta e se constrói ao leitor gaúcho, com a intenção de conquistá-lo e garantir sua fidelidade.

1 No Brasil é Fausto Neto quem explora esta possibilidade de análise, principalmente no artigo A Sentença dos Media: O Discurso Antecipatório do Impeachment de Collor. (1994, p.329)

2 Nelson Traquina em As Notícias (1993, p.167) reflete sobre as situações em que a inversão (notícia/acontecimento) se dá e Jean Baudrillard observa criticamente as implicações desta inversão. Ele diz: “O fato de já não ser o acontecimento a produzir a informação, mas sim o contrário, tem conseqüências incalculáveis.” (1992, p.30)

3 Unabomber (junção de University e Airline Bomber) é o apelido de Theodore Kaczynski de 53 anos, ex-professor de matemática que, desde 1978, enviou 16 pacotes-bombas que mataram três pessoas e feriram 23. Em 1995, ele prometeu que não faria novos atentados se os jornais New York Times e Washington Post publicassem um texto de 35 mil palavras em que criticava a ciência e a tecnologia e fazia um chamado à revolução mundial contra o “sistema tecnológico industrial”. Os dois jornais publicaram o manifesto. Ele foi preso em 3 de abril de 1996, em uma cabana próxima de Helena, capital de Montana. Informação divulgada no dia 4 de abril na imprensa brasileira.

4 O modelo para interpretar a Zero Hora como jornal de referência dominante provém de uma pesquisa sobre Comunicação e Produção da Realidade, proposta pelo Comitê Internacional de Sociologia, iniciada em 1981, em 12 países. São análises sócio-semióticas de jornais que têm em comum funcionarem como “referência” em seus países. Os textos encontram-se no livro EL País, o la Referencia Dominante, de Gerard Imbert e José Vidal Beneyto (1986), e em Métodos de Analisis de la Prensa (1987).

5 Uma interessante análise dos mecanismos que moldam o Campo do Jornalismo é realizada por Pierre Bourdieu em L`Emprise du Journalisme. (1994)

6 Partimos da definição de Enzensberger: “Etimologicamente, o termo manipulação vem a significar uma consciente intervenção técnica em um material dado. Se a intervenção é de uma importância social imediata, a manipulação constitui um ato político. Assim, pois, toda utilização dos meios pressupõe uma manipulação. Os mais elementares processos de produção, desde a escolha do próprio meio, passando pela gravação, o corte, a sincronização e a mixagem, até chegar à distribuição, constituem intervenções no material existente. Portanto, escrever, filmar ou emitir sem manipulação não existe. Por conseguinte, a questão não é se os meios são manipulados ou não, mas quem manipula os meios.” (1978, p.25)

7 A seqüência dos “três graus de seleção” é proposta por Miquel Rodrigo Alsina em La Construcción de la Notícia. (1989, p.131)

8 “Constrangimento Organizacional” é a expressão usada para referir-se aos modos de as empresas jornalísticas controlarem o fluxo da informação e se relacionam às práticas profissionais, às rotinas de trabalho e à cultura sobre a função de informar. Estes estudos fazem parte da sociologia dos emissores e se encontram em Wolf (1987), Alsina (1989), Tuchman (1978) e Traquina (1993).

9 Jornaledor é a expressão usada por Carlos Drummond de Andrade no poema Diamundo (24 h de informação na vida do jornaledor). (1974, p.8)

10 Ao contar os bastidores da Empresa Jornalística Caldas Júnior (que dominou o cenário da imprensa no RGS) Walter Galvani afirma que Breno Caldas recebeu a Zero Hora como mais um “daqueles que surgiram ao longo dos tempos com o objetivo de quebrar o Breno”, o que nunca acontecia. (1995)

11 Os dados são oficiais da RBS, divulgados no documento História Sem Fim, de Maria da Graça Aikin (30 ago. 1991).

12 Esta classificação obedece à tipologia que Landowski propôs para estudar jornais franceses. Ele diz “Do mesmo modo que Le Monde, sempre privilegiando o enunciado narrativo objetivado, também dá lugar ao discurso (normativo) do vivido, só que mantendo-o de certa forma à margem; simetricamente, Liberátion, que privilegia globalmente uma solicitude intimista voltada para as subjetividades, não renuncia de vez ao ponto de vista objetivante que requer a construção de uma visão global do fato político.” (1992, p.123)

13 As informações para escrever a Rotina de Zero Hora foram fornecidas pela editora de política, Rosane de Oliveira.