CAMPOS EM CONFRONTO: JORNALISMO E MOVIMENTOS SOCIAIS

AS RELAÇÕES ENTRE O MOVIMENTO SEM TERRA E A ZERO HORA


Tese de Doutorado na ECA, USP - Maio de 1996


Christa Liselote Berger Kuschick, Universidade Federal do Rio Grande do Sul


(Introdução; Capítulo I; Capítulo II; Capítulo III; Conclusão)




Quarto Capítulo


A Cena Discursiva: O MST na/da Zero Hora

A realidade não se reduz ao que pode ser visto. Identifica-se também ao que pode ser dito.
Paul Ricouer

A linguagem é mais poderosa como experiência das coisas do que a experiência das coisas. Os signos são experiências mais potentes do que tudo o mais e, por isso, quando se lida com as coisas que realmente importam, então se lida com palavras. Elas têm uma realidade que excede, em muito, as coisas a que designam.
William Glass


Deslindado o lugar da produção dos acontecimentos - o MST - e o lugar da produção das notícias - o jornal Zero Hora - podemos desvendar o lugar de encontro destas duas instâncias representativas do Campo Político e do Campo Midiático. Os acontecimentos vividos pelos sem-terra e apreendidos pelos jornalistas conduzem a terceira margem, originando a Cena Discursiva em que o MST enunciado na Zero Hora constrói um MST da Zero Hora. Na aparente descrição do acontecimento imediato, há a estruturação de um saber mais profundo sobre ele, reiterando, assim, o ponto de vista (político e social) não apenas de um movimento social, mas, da interpretação do mundo.

Com o estudo do discurso de Zero Hora sobre o Movimento Sem Terra, pretendemos exemplificar o ponto de partida deste trabalho: o jornalismo não representa o real, mas o constrói pela linguagem, obedecendo a uma “gramática de produção” própria do contexto e da instituição na qual ele (o discurso) é produzido.

Condições de Produção e Polifonia são as duas noções que sustentam esta interpretação. Entendemos condições de produção, primeiro, pela tradição marxista que a define como a infra-estrutura econômica na qual as mercadorias são produzidas. A empresa jornalística representa a infra-estrutura econômica que dá o suporte material para a produção das notícias e lhe solicita retorno enquanto mercadoria. E, condições de produção, quando se trata dos discursos, abarca, além da produção, a sua circulação e o seu consumo. Mas, condições de produção significa, também, conforme Milton José Pinto, “as cristalizações que conduzem as falas de um diálogo verbal a se estruturar, conforme a finalidade que possuem e a eficácia dos efeitos obtidos.” (1995, p.6)

As condições de produção, portanto, deixam traços na superfície textual informando a situação que gerou o discurso e o destinatário a quem se dirige.

Como todo discurso, mas, de modo ainda mais evidente, o jornalístico carrega uma tensão entre o texto e o contexto, ou seja, o sujeito jornalista convive em tensão com suas fontes, com a empresa jornalística e com os leitores, confirmando que as condições, incluem a produção, a circulação e o reconhecimento e que, estas, formatam e moldam o modo de dizer as coisas do mundo. Tais condições acham-se, portanto, não do lado de fora do texto, mas, absolutamente inseridas nele.

Aliada do conceito de condições de produção é a noção de polifonia (Bakhtin, 1990) pois enfatiza a coexistência em qualquer situação textual de uma pluralidade de vozes que não se fundem em uma consciência única, mas, ao contrário, em diálogo e em confronto, geram algo além delas próprias. As vozes que compartilham um território textual provêm de sujeitos, socialmente constituídos e inseridos em condições de produção concretas. É este o sentido plural e negociado do discurso jornalístico que se encontra ancorado na especificidade de sua condição de produção.

Reconhecendo nas matérias sobre o MST o sujeito da enunciação (a combinação da voz do dono com a voz dos jornalistas), o sujeito do enunciado (aquele que o jornalista faz falar) e o sujeito destinatário (com quem o enunciador quer falar), em relação, têm-se uma aproximação às leis da gramática de produção, pois, segundo Fausto Neto: “os processos de linguagem não são apenas suportes a serviço da vontade do sujeito, mas ‘campos de forças’, ‘ambiente tensionado’, lugar exclusivo de onde se pode construir o real”. (1991, p.35)

É pelo processo de nomeação e valoração “das coisas acontecidas” e pelo lugar destinado ao leitor que ingressamos no modo próprio de dizer da Zero Hora. Em todo processo de comunicação há, sempre, alguém que fala para um outro alguém, alguma coisa, expondo, assim, o convívio dos sujeitos buscando adesões, conivências e confrontos.

Estudar o MST na e da ZH possibilita, portanto, conhecer a “imagem construída” especificamente sobre os sem-terra (através dos signos que os nomeiam) mas, também, do MST como uma construção acerca dos movimentos políticos que se opõem ao sistema/governo. Observando as conexões entre a linguagem e o mundo, na situação das vozes em disputa pelo poder de nomear, diferenciamos os enunciadores/proprietários dos enunciadores/jornalistas que, no ofício da enunciação desnudam-se e manifestam sua condição de sujeitos.

A definição do corpus apropriado para checar a hipótese teórica parte da definição de Michel Pêcheux de que corpo discursivo:

[...] é um conjunto de seqüências discursivas estruturadas segundo um plano definido em referência a um certo estado de condições de produção do discurso. A constituição de um corpo discursivo é um efeito, uma operação que consiste em realizar por um dispositivo as hipóteses dentro da definição dos objetivos de uma pesquisa. (1969, p.58)

Buscando dar conta desta compreensão, delimitamos o corpus da seguinte maneira: a) recolhendo os títulos sobre os sem-terra de 1990 a 1993 para considerar as designações do percurso das 18 ocupações de terra acontecidas neste período; b) verificando as “modalidades do dizer” numa notícia de rotina - a invasão da Fazenda Bom Retiro e, c) comparando com as “modalidades do dizer” em uma notícia de exceção - “a morte de um soldado”.

Partindo do reconhecimento das condições de produção do Discurso Jornalístico, buscamos determinar seqüências discursivas representativas no tempo. O primeiro recorte situou o período de estudo entre 1990 e 1993, porque necessitávamos um tempo suficientemente “grande” para observar um número significativo de ocupações em seus enunciados e, assim, constatar os modos de dizê-las no processo de repetição. Neste período, foram 18 invasões reconhecidas pelos dispositivos que construíram seus títulos. Escolhemos uma - a da Fazenda Bom Retiro - sabendo que esta contém, na essência, as demais, pois as ocupações e as suas coberturas, repetem-se, adequadas, apenas, aos contextos políticos. Por fim, queríamos localizar uma situação de destaque, fora das ocupações, ou seja, quando outra circunstância determina a enunciação e, então, comparar com os modos de dizer a anterior. Escolhemos a morte do soldado como esta situação ímpar da cobertura dos sem-terra. A Figura 4, possibilita visualizar a amostra no tempo:

Figura 4 – Amostra no Tempo

1978

1990 (Fazenda Bom Retiro)

1993 (Morte do Soldado)

24 ocupações

18 ocupações


Consideramos conter, neste conjunto, uma representatividade que possibilita estudar os sem-terra da Zero Hora enquanto um corpo discursivo, que contém a unidade do discurso jornalístico sobre um MS e a pluralidade das vozes que o constituem e lhe dão condições de existir.

Assim, o nosso corpus contará com a seqüência de títulos das 18 invasões; de 23 matérias sobre a ocupação da Fazenda Bom Retiro e de um conjunto diversificado de textos sobre a morte do soldado Valdeci, em 8 de agosto de 1990.

A justificativa para trabalhar os títulos é que eles anunciam uma intenção de leitura. Para Fausto Neto, “o título é o lugar da nomeação onde se dá início à própria identidade do acontecimento.” (1990, p.40) E Adriano Rodrigues não só afirma que “os títulos podem com justeza ser considerados o grande dispositivo de nomeação do mundo moderno”, como ainda confirma a importância de estudá-los:

[...] por isso, o estudo dos títulos da imprensa reveste-se de particular importância para a compreensão dos mecanismos discursivos que intervêm na elaboração de um sentido único que se autolegitima pela sua própria enunciação [...]. (1990, p.109)

No caso do MST, a manchete e o título constituem, para muitos leitores, a única informação pois, conflitos em torno da posse da terra, não dizem respeito, diretamente, a quem não é proprietário de terra; não emocionam como uma desgraça; não mobilizam como uma tragédia e não se enquadram na informação indispensável à vida urbana/cotidiana. Logo, raramente vendem jornal e são lidos pelo que se salienta do texto: títulos, negritos, legendas e fotos.

O recorte das notícias - rotina e exceção - justifica-se porque a invasão é o primeiro item no critério sobre a noticiabilidade do MST. Assim, é na notícia rotineira, freqüente e redundante que se produz a “visão de fundo” do movimento. Escolhemos aleatoriamente entre as matérias do corpus da pesquisa (1990-1993), a Invasão da Fazenda Bom Retiro, ocorrida no dia 09 de março de 1993, cujo desfecho aconteceu no dia 23. Esta é uma ocupação de curta duração, que mereceu 23 matérias distribuídas em 12 dias.

O recorte à Morte do Soldado - um acontecimento raro porque inverte o potencial de possibilidade de mortes no conflito (neste período morreram 52 colonos no Brasil) - permite estudar os dispositivos que constroem a exceção. Onde, pelo excesso (a violência exacerbada) confirma-se a rotina (as invasões são violentas) e, conseqüentemente, desenha-se o perfil violento do Movimento. O dia 9 de agosto de 1990 - dia da morte enunciada - pode ser demarcado como um acontecimento singular para a Zero Hora, porque constou do circuito informativo nacional e pelos interesses políticos (é período eleitoral) que orientaram sua feitura.

Observamos, também, que este acontecimento desdobrou-se em 68 dias de notícias durante os três anos pesquisados e segue servindo de exemplo quando um confronto se aproxima de um desfecho violento.

Antes de passar ao estudo específico dos três recortes, apresentamos exemplos em que a Zero Hora utiliza as notícias produzidas por ela sobre os sem-terra. Ora para contextualizar um novo acontecimento; ora para enaltecer a sua posição na cobertura; ou para denegrir o Movimento.


4.1 Contando Outra Vez

Nosso compromisso maior é com a verdade, como o mais eficaz instrumento da liberdade, da liberdade com responsa-bilidade.
Maurício Sirotsky Sobrinho


A história dos conflitos pela terra no Rio Grande do Sul recomeçou em 1978, conforme consta no item 2 do capítulo 3 (Do Popular), com a ocupa-ção da Fazenda Annoni. Estas ocupações estrearam o MST na Zero Hora (antes de 64 o Movimento chamava se “Master” e o jornal Última Hora).

Desde então as ações do Movimento merecem cobertura do jornal e, muitas vezes, na perspectiva de contextualizar um acontecimento novo - ocupação, caminhada, manifestação na cidade - a história é contada outra vez. Inserida no texto, separada em um box ou em comentários de colunistas, ações anteriores dos sem-terra retornam, para reiterar pelo discurso, a repetição das lutas e a sua interpretação.

Augusto Nunes, por exemplo, situa o início da relação MST/ZH em uma Carta ao Leitor:

Em 1979, profissionais da Redação de Zero Hora foram deslocados para um trecho do solo gaúcho cujo nome só era familiar aos nativos: Encruzilhada Natalino. Naquele lugar, surgira virtualmente do nada um acampamento de colonos sem terra. Quase todos descendiam de antigos militantes do Master, sigla que servira de braço rural do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e, antes da tempestade de 1964, exibira boa musculatura, especialmente na região de Sarandi. Os tempos haviam mudado, outra geração entrara em cena, mas a bandeira desfraldada tinha as mesmas cores, o mesmo desenho, os mesmos dísticos dos anos 50: a pequena multidão reunida no acampamento clamava por uma reforma agrária que tornasse menos dilaceradamente injusto o sistema de ocupação das terras no Brasil. (23 set 95, p.17)

Na época o jornal não foi tão “compreensivo” com o Movimento classificando-o como “fora da lei”, optando por denominar a ação dos sem terra de invasão quando havia, também, a possibilidade de designá-la por ocupação. A opção por uma ou outra expressão não é gratuita e se explica pela proposição de sentido nela embutida. As palavras carregam consigo um conteúdo e uma vivência.

Em estudo sobre a retórica da manipulação, Maria Aparecida Baccega, considera que os:

[...] pares opositivos invadir e ocupar fixam situações lingüisticamente significativas daquilo que chamamos relação retórica-manipulação. Efetivamente, os lexemas invadir e ocupar promovem conotações completamente diferentes sobre o sentido da ação dos sem-terra. Invadir carrega semas como “tomar aquilo que não nos pertence”; já o lexema ocupar nos indica semas como “estar em lugar devoluto”. Assim poderíamos ter de, retoricamente, partir de um mesmo pressuposto, espécie de lexema de anterioridade, determinado por um elemento espacial, a terra e pelos pontos de vista ideológicos sobre ela.


TERRA

espacialidade + ideologia

invadir

ocupar

s1. existe um obstáculo (legal, no caso)

s1. não há obstáculo

s2. este obstáculo é vencido

s2. trata-se de algo devoluto

s3. vencer, significa, aqui, transgredir

s3. não há transgressão

s4. a transgressão permite punição

s4. não pode haver punição

s5. o ato (invadir) é ilegal

s5. o ato é legal


Portanto os semas legalidade e ilegalidade, que estão na base do confronto entre as posições conservadoras e progres-sistas, são trabalhados segundo cânones persuasivos que visam a transacionar, através do plano ilocucional, certas crenças que se deseja fazer passar pragmaticamente à população...

Assim os lexemas invadir e ocupar serão utilizados como expedientes retóricos asseguradores de visões de mundo e concepções de organização da sociedade. (1989, p.25)

Ou seja, o enunciador ao optar por invadir faz a escolha de um signo que preserva o conceito de propriedade privada, em que o sujeito do enunciado encontra-se na ilegalidade e ao destinatário é oferecida uma pista de leitura em que a transgressão tem permissão para ser punida. Caso optasse por ocupar, ele estaria sustentado pelo conceito de propriedade social da terra e a ilegalidade se encontraria na ação da repressão.

Um exemplo esclarecedor de que a ZH conduz a interpretação pública do Movimento pela via da propriedade privada/ilegalidade, aconteceu na cobertura da eleição para governador do Estado em 1994. Estamos no segundo turno da campanha, quando os candidatos Antonio Britto (PMDB) e Olívio Dutra (PT), em disputa acirrada, são entrevistados pelo jornal para a edição de domingo. Nesta noite do dia 6 de novembro, o único debate entre os candidatos será realizado pela RBS TV.

A seqüência de intervenções da RBS sobre a questão da terra para o candidato do PT é ilustrativa da importância do MST no Rio Grande do Sul e de que a posição em relação à propriedade da terra contribui para a definição de uma eleição.

Na entrevista realizada individualmente com cada um dos candidatos e publicada sob o título O Duelo de Novembro, as perguntas pessoais foram semelhantes, bem como o tema educação e a relação com os funcionários públicos. Ao final, uma pergunta definidora apenas para Olívio Dutra.

ZH: Se for eleito governador, o senhor certamente se defrontará com a ocupação de terras. Qual seria a sua posição neste caso? O Estado mobilizaria a Brigada Militar para providenciar a desocupação?

Olívio: Primeiro nós evitaríamos esta situação, estabele-cendo uma relação de respeito, transparência e negociação com o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra, com o movimento dos pequenos produtores rurais. A partir desta relação de transparência, nós iríamos evitar qualquer situação extrema. Mas certamente não iríamos colocar a polícia lá, só porque recebemos uma ordem e está na Constituição. (Jornal da Eleição, 6 nov.1994, p.5)

No debate, realizado à noite deste domingo, pela emissora de tevê do mesmo grupo do jornal, no primeiro bloco em que os candidatos perguntavam entre si, Britto indagou à Olívio se este admitia “desrespeitar uma ordem judicial que obrigasse o Governo a desocupar uma fazenda invadida por colonos sem-terra”, citando como fonte a Zero Hora. Olívio negou a declaração e Britto insistiu: “O senhor não respondeu se acata medida judicial ou não em caso de invasão de terras. É verdade ou não?” E, Olívio respondeu: “Não é verdade. É uma versão. O deputado é especialista em versões. Se dependesse de suas versões, nós até hoje não saberíamos do que morreu o presidente Tancredo Neves.”

Na verdade o candidato petista não respondeu à pergunta e não explicou a que se referia quando falava em versão. Para os telespectadores esta foi uma resposta cifrada. Misturavam-se duas questões - a relação com um Movimento Social e a relação com a Imprensa - difíceis de serem esclarecidas por um partido de esquerda, em vésperas de eleição, com possibilidade de vitória.

Após o intervalo, o colunista e editor de política José Barrionuevo entregou diante das camêras a transcrição da entrevista, dizendo ser esta a reprodução integral de suas respostas à Zero Hora. Olívio as tomou, não as conferiu e depositou junto com outros papéis sem esclarecer a situação ao telespectador. Na sua vez de perguntar, o jornalista voltou à questão - terra, invasão, cumprimento da lei - recebendo uma resposta pouco consistente e o próximo jornalista, Lasier Martins, repetiu a pergunta, justificando-a pela importância do ouvinte conhecer realmente a posição do candidato sobre um dos temas mais importantes para a sociedade gaúcha. Irritado o candidato respondeu: “Está com medo de que invadam a RBS?”

Neste momento criou-se uma situação embaraçosa e o diretor de redação da ZH, Augusto Nunes, interviu mudando de assunto.

No Jornal da Eleição de segunda-feira, o primeiro parágrafo da matéria sobre o debate, ao se referir à tensão entre os dois candidatos, deu como exemplo o constrangimento de Olívio Dutra ao responder sobre o cumprimento da ordem judicial em caso de invasão.

No dia seguinte quando o debate foi comentado mais amplamente em duas páginas do jornal, a questão apareceu em um box com o título A Declaração que Olívio Esqueceu, contando no olho a seqüência do fato e, por fim:

Leia, a seguir a reprodução literal do que Olívio disse ter sido “uma versão”.

Zero Hora: Os últimos quatro ou cinco governadores enfrentaram uma situação comum. Agricultores sem-terra invadem uma fazenda, a Justiça determina a retirada e o Governo do Estado precisa mobilizar a Brigada Militar para providenciar a desocupação. Qual seria a sua posição neste caso?

Olívio: Eu sei que tu não queres que eu dê a resposta que nós gostaríamos de dar. Primeiro, nós evitaríamos esta situação-limite estabelecendo uma relação de respeito, de transparência e de negociação com o movimento dos trabalhadores sem-terra, com o movimento dos pequenos produtores rurais, que também estão na iminência de ficar sem terra. E através desta relação de transparência e de negociação, nós iríamos evitar qualquer situação-limite como esta. Mas digamos, é essa a questão? Uma situação-limite desta contém poderes constituídos, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Nós não iríamos de antemão jogar a polícia lá, só porque recebemos uma ordem e porque está na Constituição. O que está na Constituição também estabelece a possibilidade de negociação, de relações transparentes e sérias, contínuas e permanentes entre os poderes. Vamos ver se nós juntos não podemos, naquela situação-limite, distensionar as coisas, estabelecer campo e espaço para a negociação. A Brigada e a Polícia Civil não têm que ser instrumento para resolver problemas sociais. Para problemas sociais nós temos que ter políticas públicas, políticas sociais - a reforma agrária, a política agrícola têm que andar juntas.

ZH: Mas neste caso, com uma determinação judicial, como houve dezenas...

Olívio: Olha, nós não vamos ser os primeiros a dizer que essa determinação pode ser retrabalhada. Eu me lembro que o governo do Paraná, se não me engano, questionou uma decisão do Judiciário, parece que no mesmo sentido e nem por isso a terra veio abaixo e nem por isso se desencadeou um processo revolucionário.

ZH: Houve uma intervenção no Estado.

Olívio: Nós não queremos isso e nem vamos trabalhar com isso na cabeça. Mas é estabelecer primeiro transparência, desejo de sempre encontrar soluções negociadas, construídas solidariamente. O respeito entre os poderes não significa submissão de nenhum deles sobre o outro, é fundamentalmente levar para o cidadão a segurança de que ele tem um governo que aposta sempre na solução negociada. (08 nov. 1994)

Neste mesmo dia, a coluna de Barrionuevo comentou o episódio em duas notas entre fotos dos candidatos. A primeira, diz:

Cacoete Autoritário

No debate de domingo à noite na RBS TV, Olívio Dutra cometeu quatro erros que são graves partindo de alguém que está próximo de conquistar o Governo do Rio Grande do Sul:

1. Faltou-lhe honestidade intelectual para reconhecer o que declarou à Zero Hora sobre invasão de terras e o respeito à lei.

2. Não foi suficientemente incisivo no que diz respeito ao cumprimento da Constituição, jogando temor sobre o comportamento de um governo que poderá estar sob o controle da esquerda radical. Deixou escapar uma interpretação subjetiva defendida pelos xiitas, da predominância do que imagina ser justo sobre o legal, que inspira governos autoritários.

3. Não foi suficientemente convincente na defesa da propriedade privada.

4. Foi gratuito seu ataque ao jornalista Lasier Martins que, de forma elegante, repetiu a questão sobre as invasões, desejoso de obter mais clareza. A resposta, pouco séria: Está com medo de que invadam a RBS?

A segunda nota, com o título, Invasores, diz:

Os moradores do bairro Guarujá ficaram especialmente preocupados com as hesitações de Olívio Dutra a respeito de invasões de propriedades: há quase duas semanas, várias famílias ocupam uma área próxima ao Parque Di Primo Beck, sem que a prefeitura encontre uma solução para o problema. A vereadora Maria do Rosário (do PCdoB, partido que integra a Frente Popular) está dando uma força. Para os sem-teto. (8 nov.1994, p.6)

Ainda neste mesmo dia, uma das colunas mais populares do jornal, cujo responsável, Paulo Santana, participou do debate, também discorreu sobre o tema a partir da perspectiva do telespectador que, para ele, sempre considera ter a melhor resposta para os momentos difíceis do seu candidato. Citou como exemplo para Britto, que poderia ter respondido frente às críticas de Olívio ao Governo Simon:

Quando terminado seu governo, Pedro Simon se candidatou ao Senado. E foi eleito consagradoramente. Este foi um sinal categórico de que o povo gaúcho aprovou o seu governo. Angustiou-me que Britto não tivesse sacado esta. Da mesma forma com Olívio. Não compreendi - e entrei em desespero intelectual por isso - que ele tivesse hesitado tanto em responder que irá respeitar a Constituição e os mandamentos (?) da Justiça no caso das invasões de terras. Ele não poderia ter vacilado tanto. Na primeira inquisição tinha que ter a resposta pronta: Vou ser um servo da lei na execução de seus mandados. Até mesmo porque, se terras forem invadidas e a Justiça mandar que os invasores sejam retirados pela força pública, num eventual governo de Olívio, se ele se recusar a cumprir as ordens judiciais, haverá intervenção federal em sua gestão. Ora, se é inevitável cumprir, porque vacilar em dizer que vai cumprir? Nem o patrulhamento ideológico tinha força para evitar que Olívio declarasse isso. (08 nov. 1994, p.67)

É importante observar que, entre a segunda e a terça-feira, os programas eleitorais gratuitos na televisão tiveram como fonte principal o debate. Este é, sempre, o caso mais evidente da possibilidade de dar versões sobre os fatos através do processo de edição. Uma mesma entrevista (assistida por poucos no horário tardio) é reproduzida por cada partido desde o seu ponto de vista (que é, por princípio, contrário ao outro), transformando-se em “verdade” para os partidários de uma ou outra versão.

Neste caso, ambos usaram esta parte do debate: o PMDB reproduzindo várias vezes a resposta de Olívio, identificando-o como alguém propenso a “desrespeitar a lei”. Já o PT recontou a história, buscando relacionar a manipulação da ZH com os interesses do adversário. Iniciava o programa chamando a atenção para a gravidade do que acontecera e, então, utilizando os recursos da computação gráfica, demonstrava a edição da pergunta e da resposta de Olívio (cuja voz no gravador confirmava a veracidade da versão). Na tela o texto ia sendo escrito ao som da voz do candidato para, em seguida, desaparecerem frases e palavras serem substituídas, formando a resposta publicada em ZH. Uma aula sobre produção de texto e construção de versões. Ou, como diz Maria Helena Weber, em artigo sobre a relação entre mídia e eleições: “Numa surpresa moral e estética de cunho pedagógico, o programa mostrava a forma de edição tendenciosa que mutilara a resposta de Olívio e, como se fosse uma borracha foi apagando partes e palavras mostrando a mutilação do texto.” (1995, p.20)

Da pergunta inicial do jornal ao re-aproveitamento dela pelo jornalista candidato e pelos demais jornalistas no debate da televisão, à cobertura posterior nas edições dos dois dias seguintes e sua edição pelo programa político do PMDB, todas as intervenções têm um mesmo conceito a orientá las: a defesa da propriedade privada e a ameaça que um partido que não se compromete em defendê-la representa para a sociedade. A segunda observação evidente deste fato são as relações entre a ZH - imprensa - e o PMDB - poder - que elevaram suas vozes em um mesmo tom e ritmo, encenando uma diferença, que os gestos e as entrelinhas do debate desmentiram.

Por outro lado, o PT mostrou, no tratamento das duas questões, os limites que um partido de esquerda têm de expor seu programa em relação à propriedade social da terra e ao monopólio da imprensa, quando quer chegar ao poder através do voto.

Às vezes o discurso jornalístico da repetição sobre os sem-terra, assume, também, a “forma didática de contar”. A história do Movimento aparece, através de quadros que sintetizam informações passadas. Durante a cobertura de uma ocupação em 1991, a ZH publicou o resumo, reproduzido a seguir, com a cronologia das  “grandes” ocupações. (Geral, 01 ago 91, p.33)


História das ocupações

Local

Data

Município

Fazenda Sarandi

01/07/78

Sarandi

Granja Macali

01/09/79

Ronda Alta

Fazenda Annoni

29/10/85

Sarandi

Fazenda São Pedro

17/05/87

Guaíba

Fazenda Buriti

25/07/88

Entre Santiago e Santo Ãngelo

Fazenda Ramada

03/02/89

Júlio de Castilhos


E, três anos depois, outro, com as áreas invadidas na década de 90. (Geral, 23 maio 94, p.39). (nas próximas duas páginas)

Temos, assim, pela história da Zero Hora, 24 invasões entre 1978 e 1993. E, conforme o MST, este número se eleva para 40 ocupações.

OCUPAÇÕES

N.°

Local

Município

Ano

Período

Quem

Res.

Observações

00

Annoni

Sarandi

1974


Novo

Despejo


01

Macali

Ronda Alta

1979


Novo

Vitória


02

Brilhante

Ronda Alta

1979


Novo

V


03

Annoni

Sarandi

1980


Novo

D


04

Estação Experimental

Sto.Augusto

1984

29/08

Novo

D

Acamp.Erval Seco

05

Annoni

Sarandi

1985

29/10-

Novo

V


06

São Juvenal

Cruz Alta

1987

/07-

Annoni

d


07

Etel (3x)

Guaíba

1987

/07 -

Annoni

v


08

Estação Experimental

Rondinha

1987

12/10

Annoni

d


09

Estação Experimental

Nova Prata

1987

12/10

Annoni

d


10

Estação Experimental

Tupanciretã

1987

12/10

Annoni

d


11

Estação Experimental

J.Castilhos

1987

12/10

Annoni

d


12

Plínio Dutra - Salso

Pal.Missões

1987

25/11

Novo

d

G.Vargas - Barra

13

Itati

Pirapó

1987

25/11

Novo

d

Caaró - Barra

14

Palma

Pelotas

1987

25/11

Annoni

d


15

Itapuí - Meridional

Canoas

1987

/12

Annoni

v


16

Buriti

S. Miguel

1988

24/07

Barra

d

Tupanciretã - S. Jacuí

17

Ramada

J.Castilhos

1989

/02

Annoni

d - v


18

Santa Elmira

Salto Jacuí

1989

09/03-11/03

Salto

d

Salto

19

Arvoredo


1989


Annoni

d


20

Bacaraí

Cruz Alta

1989

18/09

Novo

d

Boa Vista do Incra

21

Santa Fé

Cruz Alta

1990

18/02

Boa Vista

d

Boa Vista

22

Capela

Capela

1990

30/05

Salto

d


23

Parque Estadual

Rondinha

1990

08/08


d


24

São Pedro

Bagé

1991

08/04


d


25

Remanso

Canguçu

1991

02/07


d


26

Boa Vista

P. Missões

1991

31/07-11/08

Novo

d

FEBEM

27

EMBRAPA

Bagé

1991

07/10


d


28

Pelágio

São Miguel



Acap.Caaró

d



OCUPAÇÕES - continuação

N.°

Local

Município

Ano

Período

Quem

Res.

Observações

29

Estação Experimental

Bagé

1992

10/01


d


30

Centro Rural

Carazinho

1992

22/02


v


31

Posto Agropecuário 2x

Não-me-Toque


1992


12/03


FEBEM


V


32

Palma

Pelotas

1992

12/03


v


33

Estação Experimental

Sarandi

1992

12/03

Annoni

d


34

Granja dos Bombeiros

Sta.Maria

1992

12/03


d


35

Santa Bárbara

S.Miguel

1992

10/11


d


36

Agropecuária Kist

G.Loureiros

1992

18/11


v


37

Santa Tereza

Butiá

1993

03/03


v


38

Bom Retiro

J.Castilhos

1993

08/03


d


39

Capela

C.Santana

1993

16/09


v


40

EMBRAPA

Capão do Leão

1993

24/11


v




A terceira forma de o jornal referir-se ao Movimento, fora da cobertura do dia, relacionando o acontecimento com cenas do passado, é através dos colunistas em seus espaços assinados. Como é o caso do comentário da Página 10, onde novamente a foto símbolo da morte do soldado foi reproduzida para ilustrar a seguinte nota. O título, diz: Avivando a Memória e o texto, continua:

A radicalização no movimento dos sem-terra, com a exploração ideológica da miséria de agricultores deste Estado, pode terminar em tragédia. É tudo o que segmentos radicais desejam na busca de mártires para o movimento. Esse também é o desejo de quem não deseja a reforma agrária.

Vale lembrar o conflito em Porto Alegre. A Praça da Matriz foi transformada em praça de guerra, no dia 8 de agosto de 1990. O saldo do conflito, um soldado degolado de forma violenta, 72 pessoas feridas e uma população em pânico no centro de Porto Alegre. Só um milagre impediu uma tragédia maior.

Alguns profissionais do movimento deixaram Porto Alegre frustrados por não terem conseguido um mártir para o movimento. (Barrionuevo, 23 jan 96, p.10)

Na Zero Hora, a este colunista cabe o papel de “provocador” do Movimento, trazendo pequenas observações que desmerecem/ desqualificam/desvalorizam os sem-terra e sua luta e que não cabem como informação na página de notícia.

Mais alguns exemplos de notas da Página 10:

1 Petista Arrenda Terras de Colonos Reassentados Quatro colonos do movimento dos sem-terra reassentados na Fazenda Ramada, em Júlio de Castilhos, arrendaram suas terras por dois anos ininterruptos, através de um contrato particular. O nome dos arrendadores: Jairo Marcon dos Santos, José Olinto Piovezan, Pedrinho Fronquetti e Vilson Angelo Lorenzeti. Ao todo são 113 hectares arrendados, de um total de 512 da área denominada Nova Ramada II, comprados pelo Secretário da Agricultura Marcos Palombini, no Governo Simon, após uma série de invasões de terras na região em 1990.

2 Presidente do PT. O arrendatário é o presidente do PT de Júlio de Castilhos, Valmor Zen, que teve forte atuação nas invasões de terra na região. Valmor Zen concorreu a prefeito de Júlio de Castilhos na última eleição, obtendo pouco mais de 800 votos de um colégio eleitoral de 13 mil.

3 Lei Proíbe Arrendamento. O termo autorização de uso da Secretaria da Agricultura assinado por Marcos Palombini, atual prefeito de Vacaria, proibe o arrendamento no item 3. Os autorizatários, com sua família, se obrigam, por si e seus sucessores, à exploração agrícola do imóvel, de forma pessoal e direta, ficando expressamente proibidos arrendamentos, parcerias ou quaisquer outros atos de transferência de uso do imóvel, seja a que título for.

O mesmo termo, assinado pelos quatro colonos e outros 14 agricultores do movimento sem-terra, observa que o descumprimento destas normas importará na extinção da presente autorização, revertendo ao Estado, de pleno direito e sem qualquer ônus. (Barrionuevo, 12 maio 93, p.10)

Esta informação não foi perseguida pelo jornal, como devem ser fatos com este teor. Ficou na insinuação do colunista, sem reportagem onde os sujeitos do enunciado falam e o leitor, recebe, pelo menos, alguns argumentos dos dois lados.

Outro comentarista - Rogério Mendelski - cujo programa de rádio faz a cobertura das ocupações, representando os grandes proprietários, teve uma página - Hora Zero - que durou poucas edições. O suficiente, no entanto, para incluir os sem-terra em seus comentários, com a mesma intenção de seu colega José Barrionuevo. Vejamos suas notas:

a) Guevara e os sem terra

Entre os objetos encontrados pelos brigadianos no rescaldo da operação que desalojou os invasores da fazenda Bom Princípio, foram encontradas cartilhas e planilhas. As cartilhas tratavam da tomada do poder pelas armas, da organização camponesa diante da questão fundiária e também da fidelidade à pátria, à classe operária, ao socialismo e ao internacionalismo proletário.

As planilhas catalogavam as mulheres grávidas do acampamento e a distribuição de anticoncepcionais entre a população feminina. Neovlar foi a pílula mais consumida pelas invasoras. O interessante é que a Igreja Católica, tão atuante neste segmento social, não faz qualquer observação sobre a anticoncepção no meio dos sem-terra.

Que diabo estavam fazendo lá as cartilhas de Che Guevara pregando a luta armada e narrando o modelo cubano de revolução. (24 mar. 1993, p.3)

No dia seguinte, novamente uma provocação:

b) Anel de Osso

Eles são apenas 40 em todo o Brasil e suas posições hierárquicas se identificam pelo anel de osso que usam no dedo anular direito.

O anel de osso confere ao seu dono o posto de general no organograma do Movimento dos Agricultores Sem-Terra. Só pode usar esse anel quem fez curso de guerrilha na Nicarágua. (25 mar. 1993, p.3)

E, por fim:

c) Ainda o anel de osso

O leitor Antonio Mesquita Galvão escreve dizendo que o uso de um anel de osso, de cor preta, não é “uniforme” nem “divisa” dos sem-terra com curso de guerrilha. Trata-se, diz ele, de um sinal que os teólogos da América Latina passaram a usar depois da Conferência de Puebla (México, 1979) como a simbolizar a opção da Igreja pelos pobres, “a grande massa em nosso continente”.

Já o frei Sérgio Görgen, interrompeu a sua greve de fome para passar um fax à Zero Hora. Ele diz que a nota sobre o anel de osso é um exercício de imaginação fantástico e que o colunista ainda será um excelente ficcionista.

Quanto aos pendores ficcionais do responsável por esta página, a culpa, em parte, é do prezado frei Sérgio Görgen. Seus livros de ficção sobre a luta agrária no Brasil estão fazendo escola. (27 mar. 1993, p.3)

Com estes exemplos, extraídos ao acaso (a coluna de Mendelski não durou muito tempo e a de Barrionuevo segue prestigiada), pretendemos mostrar as múltiplas vozes que integram a cobertura de Zero Hora sobre o MST.

O primeiro contato com o material em estudo permite constatar que a notícia conta as ações do MST. O repórter, ao descrever a cronologia do acontecido, dá lugar às diversas vozes presentes, conferindo veracidade a seu relato; já os títulos e fotos inclinam o leitor a uma posição contrária ao Movimento enfatizando a visão da lei; enquanto os colunistas desabonam suas lutas e, como vimos, ironizam os componentes do Movimento. As posições não são apresentadas com argumentos que opõem o capitalismo e o socialismo e seus respectivos projetos em relação à propriedade da terra, esclarecendo o lugar da crítica, e, assim a opção por invadir ao invés de ocupar. Ao contrário, as posições são construídas com artifícios da retórica da manipulação, que jogam o MST na ilegalidade ou no folclórico, ridicularizando-o e a seus aliados.

Portanto, os enunciadores, ainda que jornalistas e exercendo sua função de “expositores do real” no mesmo local da enunciação - a Zero Hora - respaldados, pela mesma gramática de produção, não produzem um discurso uníssono. Ao contrário, são exemplo do campo de forças que é a sala de redação e da tensão inerente ao discurso jornalístico que, por ser social e mercadológico, deve ser reconhecido pelos múltiplos sujeitos/ leitores que compõem a pluralidade dos interesses sociais.


4.2 Os Títulos das Invasões

Tivesse meu pai conseguido me comprar terra, eu não tava ali. Tivesse conseguido viver bem em terra arrendada, eu não tava ali. Tivessem me pagado bem onde trabalhei como peão, eu teria ficado lá. Tivessem os deputados aprovado a Reforma Agrária... Tivesse o Governo cumprido as promessas... Tivessem negociado com nós lá na praça.
Colono Sem-Terra


Iniciamos, aqui, o trabalho de análise dos títulos considerando-os o primeiro contato do leitor com o acontecimento. E, também, o lugar da página impressa mais próxima da voz oficial. Ainda que o repórter sugira o título, este só é publicado se aprovado pelo editor e, enquanto síntese do relato do acontecimento, são privilegiados aqueles elementos que representam o ponto de vista da empresa jornalística. Através dos títulos queremos observar os modos de dizer o processo das (des)ocupações, buscando identificar as leis que regem sua enunciação.

No manual de Zero Hora, encontra-se no capítulo Estilo, uma recomendação em relação aos títulos:

Os títulos são o cartão de visita de uma notícia ou reportagem. Elabore-os com cuidado extremado para que sejam a expressão fiel do texto. Jamais faça um título extraído de opinião ou com o sentido da declaração expressa por alguém no texto, à exceção das entrevistas em pingue-pongue. Nunca use “este” ou similares em títulos, que devem compor uma unidade independente de informação.

Repórteres e redatores são obrigados a entregar suas matérias com sugestões de títulos. Todo título de abertura de página deve conter um verbo de ligação. Títulos com trocadilhos ou que lembrem nomes de filmes são uma fórmula desgastada. (1994, p.71)

Para fins deste estudo recolhemos todos os títulos e manchetes de Zero Hora referentes ao MST entre 1990 e 1993 que, estão assim distribuídos:


Ano

Manchetes

Títulos

Box

TOTAL

1990

16

283

1

300

1991

38

418

8

464

1992

8

296

5

309

1993

3

151

-

154

total

65

1148

14

1227


Destes, separamos os enunciados do percurso das 18 ocupações acontecidas - da primeira ação a seu desfecho - ou seja, a seqüência discursiva que constrói a “imagem de uma invasão”. Entendemos por seqüência discursiva o conjunto de títulos que relatam cada invasão, para, depois, formar o conjunto de títulos das invasões e, assim, verificar se existe um modo de nomeação.

Nos títulos, buscamos, portanto, reconhecer a palavra-senha de identificação do MST na invasão e elencar os sujeitos que movimentam e definem as ações. Inicialmente, identificamos, neste trajeto, três situações básicas que se repetem, se assemelham, se confundem e podem ser representadas assim:

Primeiro Ato Þ Invasão

Segundo Ato Þ Negociação

Terceiro Ato Þ Desocupação

Diferentes lugares (Cruz Alta, Palmeira das Missões, Sarandi, Não-me-Toque), mesma situação (acampamento, ocupação, ameaça, desocupação); diferentes indivíduos (nome, sobrenome, idade, filiação), mesmos sujeitos (colonos sem terra); na Zero Hora outro acontecimento, mesma enunciação: outra foto, mesma cena; outro título, mesmas palavras; outros nomes, mesmos sujeitos. Numa espécie de dialética/estética da repetição: da história das ocupações e do enunciado das invasões.

Se o acontecimento se repete porque não há solução política para o problema social e a ocupação configura-se no gesto do MST de trazer à tona suas reivindicações, na Zero Hora o elemento permanente e redundante é o ponto de vista sobre a problemática social que gera os sem-terra e as ocupações.

Os títulos da ocupação e do desfecho são apresentados na mesma linha para propiciar comparações e o número corresponde, também, à “invasão” apresentada no quadro de Zero Hora, das páginas 216 e 217 deste trabalho.


títulos ocupações/desocupações

N.°

Ocupações

Data

Desocupações

Data

01

Colonos invadem Fazenda Santa Fé Manchete: Fazenda invadida em Cruz Alta

20/02/90

Colonos deixam Cruz Alta. Sem violência
Manchete: Sem-terras desfazem acampamentos

16/06/90

02

Colonos reiniciam as invasões de terra Manchete: Invadida Fazenda de Capela de Santana

01/06/90

Colonos saem da Capela e ganham alimentos do governo

26/06/90

03

Famílias da Fazenda Annoni ocupam parque em Rondinha

09/08/90

Sem-terras deixam o parque de Rondinha dentro do prazo

29/08/90

04

Morte no confronto entre colonos e brigadianos
Manchete: Confronto entre colonos e tropas

09/04/91

Colonos começam a desocupar a São Pedro
Manchete: Colonos desocupam fazenda Desocupação deve terminar hoje
Brigadada ocupa a São Pedro

27/05/91


28/05/91
29/05/91

05

Colonos invadem a Fazenda Remanso

03/07/91

Colonos deixam Fazenda Remanso

18/07/91

06

Colonos Sem-Terra invadem outra fazenda

01/08/91

Sem-terra deixam Boa Vista

12/08/91

07

Colonos ocupam área em Bagé

11/01/92

Não identificada


08

Colonos invadem outra área no Estado

24/02/92

Não identificada


09

Sem-Terra invadem quatro áreas no Estado - Sarandi

13/03/92

Não identificada


10

Pelotas


UFPEL aprova assentamento na Fazenda de Palma

25/11/92

11

Santa Maria


Não identificada


12

Não-me-Toque*


Não identificada


13

Dois mil acampados invadem fazenda

11/11/92

Colonos deixam fazenda ocupada durante 30 dias

10/12/92

14

Nova invasão em Granada dos Loureiros

19/11/92

Governo compra os 600 hectares da Kist

11/05/93

15

Sem-terras invadem área de assentamento

04/03/93

Não identificada


16

Reforma Agrária - Tensão aumenta na fazenda invadida

09/03/93

Maior ocupação da Brigada acaba em paz
Colonos não tiveram tempo de reagir
Manchete: Final Pacífico



22/03/93

17

Justiça manda desocupar fazenda invadida

17/09/93

Não identificada


18

Famílias ocupam área da Embrapa em Capão do Leão

25/11/93

Não identificada


* As ocupações 9, 10, 11 e 12, que ocorreram no mesmo dia, receberam um só título mas foram identificadas na matéria.

Enquanto a cena inicial é claramente identificada pois é uma ação abrupta ou inesperada, que se manifesta pela ocupação, o desfecho vai sendo anunciado, através de múltiplas vozes que se enfrentam pelas palavras, caracterizando a negociação. A desocupação é enunciada quando acontece na seqüência da negociação mas, o registro dela perde-se quando ultrapassa um tempo já não memorizável pelo leitor para associar com a cena de origem ou quando a área é desapropriada e se transforma em assentamento. E, então, não é notícia. É o caso das ocupações 8, 10, 12, 15 e 17 que, sabemos pelo quadro das “áreas invadidas”, “viraram” assentamento. A de número 14 informa a compra da área ocupada, logo, supõe-se que para assentamento, e a 18 prosseguiu em 1994, quando a pesquisa já estava encerrada.

O ato da negociação vai da ocupação à desocupação quando, cada uma delas, efetivamente, se diferencia das demais: pela durabilidade, pelos personagens que são incluídos e pela enunciação que merecem. Alguns exemplos de títulos, desta fase:

títulos Negociações

01

Cresce tensão na Fazenda Santa Fé
Comissão de deputados tenta uma negociação
Manchete: Feridos e presos no confronto dos sem-terra
Colonos vão resistir

21/02/90
22/02/90

15/06/90

02

Expectativa na Fazenda Capela
Governo comprará a Fazenda Capela
Colonos da Capela ganham mais prazo
Governo dá garantias de negociação

03/06/90
09/06/90
13/06/90
19/06/90

03

Colonos suspendem sorteio em Rondinha
Incra e Estado compram mil hectares
Fim de prazo para acampados

11/08/90
16/08/90
23/0890

04

Farsul condena “método de guerrilha”
Movimento culpa o Governo Federal
Cabrera não negocia durante confronto
Proprietários querem os sem-terra fora da área

10/04/91

11/04/91
12/04/91

05

Justiça manda invasores sairem da Remanso
Sem-terra invadem área do governo e roubam 500 galinhas

05/07/91
10/07/91

06

Ministro encaminha caso à polícia, e proíbe INCRA de negociar
Sem-terra recebem cobertores
Estado negocia a retirada dos invasores
Cabrera quer fim das invasões

02/08/91
04/08/91
05/08/91
10/08/91

07

Ação pede retirada de colonos
Colonos devem deixar estação em 15 dias
Cabrera manda Cr$ 1,3 Bi para colonos
Procurador pede a retirada dos colonos de Bagé

14/01/92
16/01/92
22/01/92
03/02/92

08

Carazinho - Estado garante terras para colonos
Carazinho - Produtores querem saída de colonos
Incra propõe comprar áreas do Estado para assentamento

25/02/92
26/02/92
08/03/92

09

Falta de alimentos é ameaça em Não-me-Toque

15/03/92

10

Governo suspende envio de alimentos

17/03/92

11

Federais e Brigada começam a expulsar colonos

27/03/92

12

Colonos de Não-me-Toque montam trincheiras e prometem resistir
Colonos vão usar abelhas para evitar despejo
Adiada saída dos colonos de Não-me-Toque
Justiça negocia saída dos colonos
Não-me-Toque - Fracassa tentativa de retirada pacífica

29/03/92
30/03/92
04/04/92
06/04/92
06/04/92

13

Juiz dá 13 dias para acerto entre governo e colonos
Acordo impede confronto na Santa Bárbara
Colonos deixam fazenda Santa Bárbara amanhã

13/11/92
01/12/92
08/12/92

14

Colono é morto na fazenda ocupada
Brigada pronta para desocupar a área
Justiça manda colonos devolver maquinário

21/11/92
23/11/92
11/01/93

15

Governo tenta evitar conflito
Reforma Agrária - Justiça ordena retirada de colonos
Reforma Agrária - Impasse judicial adia a desocupação
Oficiais temem confronto direto

16/03/93

19/03/93

16

Fazenda Bom Retiro - Negociação do despejo termina em tumulto
As mulheres recusam a oferta para sair antes

20/03/93

17

Incra espera que colonos deixem a fazenda Capela até domingo
Exército poder agir para desocupar fazenda Capela
Colonos prometem resistir à desocupação
Acordo tenta impedir despejo de amanhã

21/09/93
27/09/93
29/09/93
06/10/93

18

Famílias pedem prazo para sair da área ocupada
Estado promete nova área para assentar colonos

26/11/93
09/12/93


Os sujeitos do I Ato são sempre os colonos, denominados também, de acampados ou sem-terra, na ação de invadir (1, 2, 5, 6, 8, 9, 13, 14, 15, 16, 18). Eles ocupam a área três vezes (3, 7, 18); na primeira, coincide com o dia do enterro do soldado morto em Porto Alegre, quando o Movimento já está marcadamente identificado com a violência ou a ilegalidade. As outras duas, são áreas do Estado - a Estação Fitotécnica de Bagé (7) e a Embrapa em Capão do Leão (18). Ou seja, as fazendas são invadidas, as áreas do Estado ocupadas. E, somente, uma morte durante a invasão substitui a própria invasão no título (4). A outra situação é quando a Justiça manda desocupá-la, antes mesmo do anúncio da invasão, o que prova a sua eficiência. (17)

O sujeito e o verbo são constantes, a informação nova é a identificação da localização, que pode vir no título (1, 2, 3, 4, 5, 14, 18) ou complementando-o, com o nome da cidade ou da fazenda sobre o título - como cartola - ou em destaque na legenda da fotografia.

O ato da negociação é mais rico em personagens e em ações. Há dois grupos de atores sociais em confronto que agem, esperam a repercussão, medem as conseqüências, avaliam as forças e, então, protagonizam o desfecho.

De um lado, o governo, os proprietários, o Incra, a Justiça, a Brigada e Ministros; do outro, os colonos e, eventualmente, um aliado (no caso de uma greve de fome, por exemplo). Aqui o contexto semântico é de disputa.

O sentido é de que os primeiros buscam a ordem, garantem a lei e sua ação corresponde à sua função. Na primeira cena do II Ato a negociação é pacífica: os deputados buscam acordo (1), o governo dá garantias (2, 15), a Farsul condena (4), o Incra compra terras (3) a Justiça dá prazo (7, 13), o Ministro quer fim das invasões (6) ou manda dinheiro (7). E os colonos pedem e esperam.

Em seguida, a disputa semântica se acirra: o ministro não negocia (4), a Justiça manda sair (5, 14), o governo suspende envio de alimentos (10) e Polícia Federal, Brigada Militar e Exército expulsam (11, 14, 17). Enquanto isto os colonos roubam galinhas (5), montam trincheiras (12), ameaçam com abelhas (12) e as mulheres recusam oferta para sair (16). Eles resistem.

No ato final, os colonos voltam como sujeitos, agora derrotados - eles deixam (1, 3, 5, 6, 13), saem (2) e desocupam (4) a cidade ou a área, mas fica subentendido que a decisão não partiu deles, na verdade, eles são saídos e o que merece destaque é que o fizeram sem violência (1), dentro do prazo (3) ou não tiveram tempo de reagir (16).

No início, os colonos são caracterizados pela ação de pedir, o que está justificado pela própria nomeação do movimento. A carência os autoriza a pedir terra, mais prazo, solução, remédios, providências e negociação. Em seguida, a ação é de enfrentamento, a falta não preenchida os torna ameaçadores. Os colonos descumprem acordo, fazem marcha, greve de fome, vão à Justiça, reiniciam invasões, resistem, definem forças de pressão. E os outros sujeitos dos títulos - governo, secretário, ministro, comissão de deputados, muitas vezes nomeados pelo nome próprio buscam formas de resolver o problema, encontrar soluções mas, também, ameaçam.

Collares recebe colonos/Cabrera promete solução para a Reforma Agrária/ Collares corta o diálogo com os colonos/Cabrera quer a retirada.

O desfecho, na seqüência dos embates, é de tensão. Os atores estão em confronto. Há ameaça de expulsão e ameaça de resistência. Então, surge um novo personagem - com legitimidade para o uso da força física - o Exército e/ou a Brigada Militar, para intervir. E a desocupação tem estatuto para ingressar na negociação interna pelo espaço no jornal (se for excessivamente violenta ou, ao contrário, pacífica, e não houver outro acontecimento maior a concorrer na reunião de fechamento da primeira página) pela manchete do dia. Como a desocupação da Fazenda Bom Retiro que terminou na capa de Zero Hora com um Final Pacífico. Depois do ponto (aparentemente final) há promessas: do governo, de reforma agrária; dos colonos, de novas ocupações.

O itinerário dos três atos pode ser sintetizado através da palavra/senha que indica, no título, em qual dos estágios o Movimento se encontra, bem como, a proposição de sentido oferecida ao leitor.

Estas seqüências discursivas permitem, em primeiro lugar, constatar o caráter informativo que os títulos acerca das ocupações recebem na Zero Hora. De estrutura simples, eles:

  1. nomeiam a fazenda ou a localidade invadida, dando-lhe uma imagem de identificação: o nome situa-se sobre o título, ou é impresso em letra maiúscula reduzida, para entrar no espaço designado para o título. Esta marca de identificação acompanha a cobertura até o fim.

  2. os sujeitos do enunciado revezam-se entre colonos, governo, justiça, proprietários e Brigada que, acompanhados do verbo, servem como segundo localizador: qual o estágio da ocupação?


1.° ato:

eles invadem


2.° ato:

governo busca solução

colonos pedem prazo

proprietários condenam invasões

justiça manda desocupar

Brigada desocupa

3.° ato

colonos saem


Os sujeitos dos títulos dialogam entre si. Hoje a Justiça manda desocupar, amanhã é a Brigada quem manda desocupar, os proprietários sempre querem a desocupação, enquanto os colonos só desocupam à força. À ação ilegal dos colonos (eles invadem) corresponde uma ação legal da Brigada (fazer desocupar). Logo, a suposição é de que o leitor conheça a hierarquia e as funções dos diversos setores que administram o Estado. Neste sentido, os títulos reforçam o mapa de atividades com as respectivas funções: Governo Federal, Estadual, Secretaria da Agricultura, Ministério da Agricultura, Incra, Embrapa; e, distinguem, a partir da relação com a propriedade, quem está contra e quem está a favor da lei. A atitude em relação à terra, à propriedade e à lei é um divisor entre os Movimentos Sociais e o Estado Burguês. Os títulos simples e informativos de Zero Hora, sobre as ocupações do Movimento Sem-Terra, avaliam as ações praticadas, avalizando a lei que protege a posse da terra.

A contraposição dos títulos dos 18 processos de ocupação causa espanto pela mesmice e pela falta de impacto. No entanto, quando publicados, sabemos que não passam desapercebidos. Onde reside, então, a diferença?

Acreditamos que quando ingressam na página os dispositivos visuais que complementam o texto. É o tipo de letra, é o lugar na edição da página, é a foto que respalda o título que, juntos, constroem a “imagem da invasão” e, estes, em conjunto, estruturam e organizam a leitura e estabelecem as normas para o tipo específico de contrato com os sujeitos destinatários.


4.3 O acontecimento de rotina

Enquanto os colonos amargavama derrota, os brigadianos não escondiam a felicidade pela operação bem sucedida.
Zero Hora, 22 de março de 93

A ocupação é a manifestação mais contundente dos sem-terra, pois indica para o governo que o Movimento conhece as áreas improdutivas, seleciona as de sua preferência e é capaz de mobilizar pessoas para lutar por elas. Por outro lado, o MST sabe que uma ocupação é quase garantia de constar na mídia, pois a invasão passa pela seleção de primeiro grau - o critério de noticiabilidade - dos jornais.

Das 40 ocupações reivindicadas pelo MST no RGS entre 1978 e 1993, 24 foram noticiadas pela Zero Hora. Destas, 18 encontram-se no período de 1990 a 1993, demonstrando, também, que a atenção ao Movimento vem aumentando.

Escolhemos entre as ocupações do corpus da pesquisa, Invasão da Fazenda Bom Retiro, ocorrida no dia 9 de março de 1993, cujo desfecho aconteceu no dia 23, para estudar uma notícia de rotina do MST. Esta é uma ocupação de curta duração, que mereceu 23 matérias distribuídas em 12 dias. (Anexo 4) Ela é ao mesmo tempo única - ocorreu em um lugar e em um tempo determinado - e semelhante, pelo contexto semântico, às outras dezessete, pois, os signos que as nomeiam e os espaços que ocupam na Zero Hora lhes confere uma mesma identidade.

Se a primeira notícia é imprevista - a ocupação não pode ser alardeada, pois a surpresa faz parte da estratégia - a seqüência dela segue a ordem do previsível: tanto pelo desenvolvimento dos fatos, (semelhante a outras invasões) como pelos dispositivos que trabalham o acontecimento (elas são identificadas por uma cartola, nas páginas da Geral, onde o cotidiano é a matéria-prima).

Os produtos comunicativos, como Martin Serrano1 designa as notícias, servem para referendar uma determinada visão de mundo. O  jornalista/mediador deve sugerir uma interpretação do que acontece a partir do repertório de representações que o leitor possui e a função mediadora entre o inesperado e o estável, entre o novo e o permanente, se reflete tanto nas expressões gráficas quanto no conteúdo.

O que acontece adquire sentido social quando a situação é descrita, de tal forma, que pode ser interpretada à luz de algum princípio reconhecível pelos receptores. Já vimos (p.74) que a primeira operação mediadora, associa a ocupação (razão da notícia) ao tema/conceito Propriedade Privada e, assim, o cumprimento da lei serve tanto para acusar os colonos pela invasão, como para justificar sua expulsão.

A Mediação Institucional (que permite observar o trânsito do universo do acontecimento ao universo do conhecimento) vem acompanhada da Mediação Estrutural que se refere ao lugar da notícia no corpo do jornal e da Mediação Cognitiva que reconhece a ação e os personagens envolvidos.

Os respectivos modelos, conforme Serrano, são:


Modelo canonico para el analisis de la mediacion estructural.
Estudio de la presentacion material de los productos comunicativos
en la prensa y en la television.

Difundido en






Prensa

En textos
y/o

con imágenes estáticas

ocupando una superficie (es-pacio)

ubicado en de-terminada pá-gina

bajo la rúbrica de determina-do gênero

Televisión

En imágenes diácronas o sin-crónicas (dibu-jadas o en ima-gen real)

y/o con textos (hablados y/o escritos)

entreteniendo un tiempo

emitido en de-terminada po-sición horaria dentro de una programación

bajo la rúbrica de determina-do gênero



Modelo canonico para el analisis de la mediacion cognitiva.
Estudio de los datos de referencia propuestos en los relatos



en interación con
otros personajes




Algún Emisor expreso en el relato, men-ciona a algún

PERSONAJE

quien de-sempeña roles

llevando a cabo actos

en función la prosecución de objetivos.

que concluyen con el logro o el fracaso.

para algún Receptor expre-so en el relato.



­ dotados de atributos

­sirviéndose de instrumentos




­
Personaje actuación evaluados
positiva o negativamente por la invocación
de normas generales,
mencionadas por el propio Personaje
otro Personaje o el Emisor



O indicador da Mediação Estrutural é a localização das notícias no interior do jornal e proporciona a descrição do tratamento expressivo e material dos acontecimentos. Apresentamos, a seguir, a Invasão da Fazenda Bom Retiro, no quadro da Mediação Estrutural do jornal Zero Hora. (próximas duas páginas)

Na descrição do espaço ocupado, observamos que as notícias desta invasão estão localizadas em torno da página quarenta, assinadas por um correspondente, na parte superior da página, e acompanhadas por uma ou duas fotografias. Até o dia 17, ou seja, até a negociação estar nas mãos da Justiça, por uma repórter mulher - Angela Fillipi; quando o título indica a possibilidade de violência - Oficiais Temem Confronto Direto - e o desenlace se aproxima, esta é substituída pelo repórter Carlos Wagner,

considerado um especialista em MST do jornal e com livro publicado sobre o tema. Outra observação que a descrição propicia é a confirmação de que o MST não é informação para o jornal de domingo (o Movimento considera-o na elaboração de suas estratégias). Assim, o fato acontecido no sábado só constará no jornal de segunda-feira. É quando a rotina de trabalho determina a seleção de primeiro grau.

Complementando a Mediação Estrutural, o autor sugere observar a Mediação Cognitiva, ou seja, as inter-relações entre os personagens e suas ações e o princípio que as sustentam e que dão sentido à informação. Já vimos que o princípio que organiza a informação acerca do MST na Zero Hora é o cumprimento da lei que é orientado pelo conceito de Propriedade Privada. Assim, os personagens e as ações se desenrolam tendo como referência a defesa da propriedade.

Aqui resumimos a notícia do primeiro dia da ocupação para aplicar o modelo da Mediação Cognitiva. O título diz: Tensão Aumenta na Fazenda Invadida.

Fazenda Bom Retiro invadida por 520 famílias de sem-terra, vindos dos acampamentos de Bagé e Não-me-Toque. Os cerca de 800 colonos viajaram em oito caminhões e dois ônibus. Os sem-terra e a Brigada afirmam que houve disparos de tiros mas ninguém foi ferido. Os colonos reivindicam o assentamento das famílias na fazenda ou em outro local do Estado e afirmam que não saem da fazenda sem uma solução concreta.

A fazenda invadida pertence a um condomínio da família Marçal, que entrou ontem à tarde com um pedido de reintegração de posse. O MST afirma que a intenção é pressionar os governos estadual e federal a liberar terras em território gaúcho. O presidente regional da UDR criticou o governo estadual e as autoridades policiais. Ele comanda pessoalmente piquetes de ruralistas que mantêm os invasores à distância da sede da fazenda.

A aplicação do modelo, fica, assim:


Mediação Cognitiva: A invasão da Fazenda Bom Retiro

O narrador:

Angela Fillipi narra a invasão para os leitores de Zero Hora

O personagem principal:

a) 520 famílias/800 colonos

b) MST

Na ação de:

a) Invadir e abater 4 reses

E no papel de:

a) Reivindicar o assentamento das famílias na fazenda ou em outro local do Estado ;

b) afirmar que a fazenda tem 4 mil hectares

Em interação com:

Outros personagens
– na ação de:




a) Brigada Militar – afirma que foram 10 reses

b) Família Marçal – não fala com a imprensa

c) Governador Collares - aguarda decisão da justiça

d) Presidente regional da UDR – critica go-verno de "imobilismo" comparando com as invasões urbanas onde a retirada é automática

e) Ruralistas – afirmam que foram 18 reses

f) Amigos da família Marçal – afirmam que a área da fazenda é de 1.180 hec.

Todos ouviram tiros; ninguém assume os disparos.


Esta é a notícia do primeiro dia, portanto contém a informação da invasão, mas a negociação já está presente, inclusive com muitos dos personagens que vão sendo integrados, aos poucos, em outras ocupações/narrações. O acontecimento jornalístico remete a um conteúdo sócio-político mas, remete, também, a uma experiência de jogo (ganhar/perder) e de guerra (lutar/morrer). Os personagens - sujeitos do enunciado - estão em disputa e em confronto.

De um lado os colonos e o MST, cúmplices, porém não iguais; aos primeiros cabe a ação de invadir e reivindicar, enquanto o Movimento explica a ação - pressionar os governos estadual e federal a liberar terras em território gaúcho - e fornece números.

Do outro, o governador, a Justiça, a Brigada Militar, representando de dife-rentes formas a lei e, por fim, os proprietários da fazenda, os amigos da família e o presidente regional da UDR. Estes defendem a fazenda e criticam o governo.

A fotografia que acompanha a primeira notícia, não tem função informativa específica à esta ocupação, ilustra mais uma vez a cena da instalação, onde a imagem do campo e homens erguendo a infra-estrutura das barracas confirma o início da ocupação e comprova a presença da imprensa, funcionando como um expediente de prova para os leitores.

No título, a palavra tensão acrescida do signo aumenta cria suspense e prevê continuação para o dia seguinte. O olho fala em tiros (confirmados pelos colonos e pela Brigada) e a matéria em “abateram reses” e “piquetes para manter os invasores à distância”. Ou seja, está montado o cenário da violência anunciada.

Por outro lado, o leitor é instado a recordar. Estes sem-terra estão na luta há muito, eles vêm da área ocupada da Embrapa, (onde estavam há dois anos) e do posto Agropecuário, (de um acampamento de três anos), porque só querem terras em território gaúcho, (ou seja, se aceitassem ir para outro lugar já estariam instalados).

A notícia traz todos os personagens envolvidos na cena e todos são sujeitos, pelo discurso, dialogando entre si, em conflito. Por exemplo, os colonos dizem que “abateram 4 reses”, os brigadianos “afirmam que foram 10” e os pecuaristas “garantem que foram 18”. Ou, “todos ouviram tiros”, “ninguém assume a autoria dos disparos”. E a jornalista, completa: “ninguém foi ferido”.

Ao mesmo tempo, através destes personagens, os diferentes destinatários foram incorporados, Pois o discurso dos colonos e do MST está legitimado da mesma forma que o do governador, o do proprietário da fazenda e o da UDR, permitindo apropriações identificadas por diferentes leitores.

No primeiro dia o sujeito da enunciação deixou os sujeitos do enunciado falarem sem discriminação avisando aos leitores que, por muitos dias, haveria espaço no jornal para mais este conflito em torno da reforma agrária.

A análise que segue não descreverá cada dia/notícia como foi feito com a primeira. Elas serão tratadas respeitando a cronologia, como uma unidade da qual se destacará o enunciado - Colonos Invadem - na sua relação com a Justiça, os proprietários (UDR) e a Brigada. Considerando-se, também, a presença dos destinatários no texto.

No dia seguinte o Tiro Fere Um Invasor. Ele tem nome, idade, foi atingido no rosto e é levado ao hospital. O tiro, no entanto, continua sem autoria.

A segunda informação é de que a juíza, (Marta Ramos), “concedeu a reintegração de posse da área aos proprietários e deu um prazo de 15 dias para os colonos deixarem a fazenda”. O clima continua tenso, diz a repórter, que não tem acesso ao acampamento, porque não foi permitida a entrada aos jornalistas. Nem do deputado Adão Pretto (PT), o que confirma que ninguém podia entrar mesmo.

A próxima informação diz que “integrantes da UDR de várias regiões do Estado estão concentrados na sede da estância” e o presidente do Sindicato Rural de Júlio de Castilhos (Silvio Menegassi), “calcula que 300 proprietários estão na cidade.” E os “colonos começaram a cavar trincheiras em torno do acampamento”.

O final da matéria repete as informações do dia anterior e encerra, com: “Os colonos exigem ser assentados em áreas desapropriadas pelo governo do Estado ou Federal.”

A voz oficial (o governo) é excluída do texto, colonos e UDR estão igual-mente em posição de luta mas, a Justiça, ao dar parecer positivo ao proprietário, ratifica a noção de Propriedade Privada. E os colonos exigem, logo, eles são intransigentes. A foto deste dia mostra carros no campo. A legenda é ancoragem para entender que eles “montam guarda na área do conflito.”

No terceiro dia (sexta-feira,12), os Colonos Decidem Recorrer à Justiça, e acusam a Brigada Militar de permitir a entrada de armas e a UDR, pelos tiros, enquanto a direção do MST pede a substituição dos superintendentes regionais do Incra.

Os proprietários aguardam a resposta da juíza para diminuir o prazo de permanência dos colonos na área e a retirada das crianças. Neste dia surge o advogado dos colonos, a advogada dos proprietários e o advogado da Farsul. Há duas fotos ilustrando a página; da juíza e de colonas com crianças posando para o fotógrafo.

No sábado, Família Tenta Apressar Saída dos Colonos é o título que informa a entrada dos sem-terra na Justiça com um mandado de segurança, enquanto os proprietários tentam apressar sua saída. A juíza nega o pedido e, novamente, os advogados falam pelos colonos e pela família. A foto traz uma mulher em primeiro plano, tendo o acampamento ao fundo.

No domingo e na segunda-feira nada consta no jornal e na terça, o título - Justiça Ordena Retirada dos Colonos, vem acompanhado por uma foto de três brigadianos com a legenda: Brigada Militar terá mais 400 policiais para retirar os invasores. E outra maior com brigadianos acompanhando colonos em fila, onde diz: Os sem-terra vão conversar com a juíza e reafirmam que não saem da área.” A notícia principal apenas resume o acontecido nos dias anteriores. E, sob o título Governo Tenta Evitar Conflito - há o encontro marcado entre o governador e os sem-terra, mas o chefe da Casa Civil “alertou que dificilmente poderá mudar a situação já que a decisão da Justiça deve ser respeitada.”

A voz do Direito que até aqui dominou, evidencia-se assim:

[...] a reintegração da posse imediata foi concedida pelo juiz de plantão do Tribunal de Alçada, Salvador Horácio Vizzotto. Ele deu liminar ao mandado de segurança impetrado pelos proprietários da fazenda Júlio de Castilhos. A ação foi ajuizada pela advogada Maria do Carmo Lorenzi. O Tribunal de Alçada comunicou o despacho do juiz Salvador Vizzotto à juíza de Júlio de Castilhos, Marta Ramos, ontem mesmo. (Geral, 16 mar. 1993, p.34)

No dia 17, cria-se um impasse - a justiça mandou sair, deu prazo, a expectativa era de que os colonos se retirassem, saindo de madrugada, mas eles não obedecem, por isso - Espera Aumenta a Tensão na Fazenda - é o título que, junto com os signos apreensão, medo e tragédia completam a construção do universo lingüístico deste dia. O presidente do Tribunal de Alçada “admite flexibilidade no prazo”. O governador “demonstrou interesse em encontrar uma saída” e telefona para o presidente do Incra “na tentativa de conseguir uma área para assentamento”. Na foto, os colonos com foices e paus encenam a resistência, anunciando a tragédia que está por vir.

A partir do dia 18, a cobertura é do jornalista Carlos Wagner e a Justiça continua submetendo as outras vozes. O impasse judicial adia a desocupação traz advogados, juíza, Tribunal de Alçada e forum envolvidos em ordens e leis. O jornalista qualifica o impasse de “perigoso” e dá destaque aos representantes da força física - Brigada e coronel da PM. Este analisa a situação “a indefinição da Justiça incentiva o confronto direto entre a UDR e o MST.” No que ele não aposta: ele acredita em uma solução pacífica. Inclusive classificou o dia anterior como a “hora da diplomacia”, quando falou com todas as partes envolvidas. Se isto falhar, o despejo transforma-se em uma simples operação militar, adverte o coronel. “Ninguém quer isto. Mas também não vamos sair de mãos abanando, fala o colono Darci Chiarelli.”

Neste dia a voz da lei é questionada, pois nela também há conflitos e o uso da força física vai sendo naturalizado.

O que fica ainda mais evidente na notícia do dia seguinte. Enfim, Justiça Determina o Despejo Imediato. Agora não tem mais negociação mas, sim, o cumprimento da lei, ainda que os colonos ameacem resistir. “Nós vamos usar mais de 800 homens na operação de despejo [comentou o militar]. As autoridades da área de saúde fizeram contatos com médicos e hospitais da região para prevení-los no caso de acontecer um enfrentamento entre brigadianos e colonos.” A autoridade passou para a Brigada que explica a ação da desocupação:

Há uma possibilidade de que todo o aparato necessário para o despejo dos colonos esteja pronto até as primeiras horas da tarde de hoje. Se isto não se confirmar, é provável que o despejo aconteça só na manhã de sábado, porque os estrategistas da Brigada Militar explicam que são necessárias dez horas para completar operação de despejo e por isso recomendam que ela seja começada pela manhã. No final da tarde de ontem havia um grande número de fazendeiros visitando o quartel da Brigada Militar em Júlio de Castilhos. Eles estavam pressionando os militares para que a operação de despejo aconteça o mais rápido possível.

Enquanto a possibilidade do uso da violência pela polícia é justificada para o destinatário do texto, o mesmo não acontece com o uso da violência pelos proprietários.

No final da tarde de ontem, um fazendeiro encapuzado com uma arma calibre 12 cano serrado numa mão ameaçou os fotógrafos que estavam trabalhando na área do conflito, tentando evitar que fosse fotografado. Este fazendeiro integrava um grupo de proprietários de terra integrantes da UDR que observavam o acampamento dos colonos de uma coxilha próxima.

A foto deste fazendeiro com a arma em uma mão e o outro braço fazendo o gesto da expulsão, confirmam a versão.

O final da matéria não deixa dúvidas que está terminada mais esta invasão, a incógnita é apenas de como será o desfecho. “O que irá acontecer na hora do despejo foi decidido ontem à noite, quando aconteceram várias reuniões entre os líderes dos sem-terra, políticos, governo e brigadianos.” Logo, tudo está definido e acertado, só falta acontecer e o leitor, então, ficar sabendo.

Apesar da notícia de sexta encerrar acenando para o acordo, no sábado o leitor atento percebeu que o jornalista encerrou a notícia antes do término da reunião, pois o título informa: Negociação do Despejo Termina em Tumulto. Na verdade, o encontro no forum da cidade, contava com a presença de deputados e do bispo de Santa Maria, que “tentavam negociar a saída pacífica dos 800 colonos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-terra [...]”. O texto segue:

A reunião ainda não tinha começado quando os fazendeiros cercaram o prédio [...] Os fazendeiros invadiram os corredores do Forum, afugentando dois brigadianos que estavam ali para escoltar a juíza Marta Ramos. No meio do tumulto, Dom Ivo saiu em direção ao estacionamento. Os ruralistas fizeram um cerco como um “corredor polonês” na frente do forum [...] Ele ouviu insultos, palavrões e ameaças de agressão física. Dom Ivo saiu em silêncio, aparentando tranquilidade [...]

Mas foi impedido de sair de carro pois estava barrado pelos carros dos fazendeiros. “A situação só se acalmou com a chegada do coronel Barros acompanhado de vários oficiais e alguns soldados.” As duas fotos mostram o bispo - na saída do forum e com os colonos no acampamento.

Neste dia, os fazendeiros foram os sujeitos do conflito - eles cercaram, invadiram, tumultuaram, vaiaram. E foram derrotados pela tranqüilidade do bispo e a eficiência da Brigada. E a cartola Reforma Agrária foi substituída por Fazenda Bom Retiro que permaneceu até segunda-feira.

No domingo, não há fotos mas o título em corpo 18 informa: Sem-Terra Não Resistem e Saem Pacificamente. Lemos a notícia na íntegra:

As 520 famílias de sem-terra que ocuparam a fazenda Bom Retiro, em Júlio de Castilhos, retiraram-se ontem, pacificamente, da propriedade. A movimentação de saída dos colonos começou por volta da 9h30min e só foi finalizada à tarde. O grupo partiu para Não-Me-Toque em 10 ônibus enviados na sexta-feira para o local. A fazenda, propriedade da família Marçal, foi invadida no dia 8 de março. Um permanente clima de tensão marcou os 14 dias da ocupação, principalmente diante da intenção dos colonos de resistirem à ordem de despejo decretada pela Justiça.

A retirada foi acompanhada por 750 policiais militares de vários municípios da região. O Pelotão de Choque de Porto Alegre também foi enviado a Júlio de Castilhos, as famílias começaram a arrumar seus pertences no começo da manhã. O único momento de tensão foi quando uma mulher do grupo sofreu um ataque epilético. Não foi permitida a aproximação da União Democrática Ruralista (UDR).

Um novo título afirma: Assentados Vão Receber Verba Para Dar Início à Produção. Uma notícia que só se justifica para amainar a semana de conflitos, pois não traz informação que mereça ser noticiada neste dia. Os recursos anunciados não têm data para chegar, portanto não entraria no circuito informativo se não tivesse uma razão externa a lhe orientar.

Quanto à retirada dos colonos, o destaque é para o não-cumprimento da sua ameaça. Eles anunciaram a resistência, mas não resistiram. Eles mostraram foices e paus, mas saíram pacificamente. E o leitor é convidado a perceber que a saída “em paz” só aconteceu porque os fazendeiros foram mantidos à distância. Sem terra e com-terra encenaram a luta, mas foram impedidos de realizá-la pelos que detêm o domínio da guerra: a Brigada Militar. E os personagens da lei defenderam uns e outros, mas a Justiça ficou ao lado do proprietário. O governo e o governador tentaram garantir seu lugar na negociação, mas ficaram com um papel tão secundário que desapareceram e, a Igreja, chegando na etapa final, correspondeu à imagem da igreja dos pobres, humilde e solidária.

Os sem-terra saíram da Fazenda Bom Retiro no sábado e o jornal de domingo fecha sua edição na tarde de sábado para ser distribuído ainda neste dia. Os leitores do jornal de domingo não viram fotos, nem souberam detalhes da desocupação mas souberam que ela aconteceu.

Na segunda-feira, enfim, ela veio para a primeira página, confirmando o já sabido - FINAL PACÍFICO - e com a ilustração de uma foto de Cenas Épicas: (como diz a legenda) a Brigada retirou os colonos da fazenda Júlio de Castilhos na maior operação em 30 anos. Se o enunciado afirma o final pacífico, a foto remete para cenas de guerra: soldados, cavalos, armas, em direção aos desarmados/oprimidos que, perseguidos, saem, mas não fogem. O campo e o terreno em declive servem de cenário convincente de que a luta era possível pois, os leitores já assistiram a uma cena assim, de guerra acontecida, no cinema.

Em duas páginas, o desfecho é narrado por um mediador sensível à luta dos sem-terra. Sobraram, no texto, os colonos e os brigadianos. Há derrotados e vitoriosos, mas não há bandidos e mocinhos. Os vitoriosos estão ao lado do poder, eles são 1.100 soldados, com dois aviões, 46 veículos, 30 cavalos, 18 cães de ataque, 29 rádios, sofisticados armamentos norte-americanos, um hospital de campanha e 45 agentes secretos. Os derrotados - lutam por terra - são 250 crianças, 200 mulheres e 400 homens, “sendo que 50% deles tinham entre 19 e 25 anos. Estes homens jovens ocupavam os pontos-chaves de defesa dos sem-terra.” Suas armas são paus, facões, pedras, foices e bodoques.

Do meio dos soldados surgiram o coronel e o oficial de Justiça. Perguntaram se os colonos saíam pacificamente. Eles pediram dez minutos para decidir. Foram dez longos e nervosos minutos, quando os oficiais lembraram aos soldados que só seriam disparados tiros com ordens diretas deles. Nesse tempo o Choque permaneceu a menos de oito metros da entrada do acampamento.

Em assembléia decidiram resistir e deram um prazo para quem quisesse se retirar - foram 23.

Então os líderes começaram a gritar palavras de ordem para incentivar a resistência. Mas isso não adiantou de nada. Os agricultores não tiveram tempo nem de tomar coragem para enfrentar os brigadianos, porque em menos de dois minutos os soldados do Batalhão de Choque já estavam praticamente dentro do acampamento. A única resistência foi deitarem-se no chão.

Eles foram desarmados, revistados e cadastrados. Suas vozes estão na matéria. “Pensamos que só havia a cavalaria, e quando vimos surgiu do lado do acampamento o Choque. Eram muitos e estavam muito perto para lutarmos. Não tínhamos muito a fazer.” Observando tudo estava uma mulher, dona Ema Moura, 52 anos e nove filhos. “Este governo tem uma laje de pedra no lugar do coração. Não faz a reforma agrária, e nós ficamos rolando de um lado para outro. Somos pessoas de bem, não merecemos isso, disse chorando. ” Esta mulher aparece na foto, secando com uma mão as lágrimas. Na outra foto, uma grande fileira de colonos carregando seus pertences, com a cabeça voltada para o chão. Novamente, a cena já foi vista e os leitores já optaram frente a outras situações semelhantes, por sensibilizar-se ou não frente a ela.

No meio da tarde, os colonos subiram uma coxilha e entraram nos 11 ônibus que os levaram até Não-Me-Toque [...] Na fazenda, a advogada dos proprietários afirmou estar contente por ver tudo resolvido. O coronel Barros dizia-se satisfeito pelo resultado da operação. Ninguém foi preso, afirmou o capitão Alberto Zaycki. Entre as brigadianas, que pela primeira vez participaram de uma operação deste tipo, a alegria de voltar para casa era enorme. “Um banho quente e uma cama fofa é tudo o que eu quero”, comentou uma delas.

O que será que definiu que os sonhos da dona Ema e da policial sejam tão diferentes? pode perguntar-se o leitor sensível às questões sociais.

O Final Pacífico que supõe um desfecho feliz na manchete de Zero Hora não é verdadeiro para o destinatário não comprometido com o olhar dos proprietários ou da lei. As fotos dos colonos não lembram um final pacífico. Será que o fotógrafo foi consultado? O texto do sujeito da enunciação reconhece o desejo de resistir dos colonos e sua derrota frente à desigualdade das armas. Eles foram revistados, desarmados, expulsos. Será que o jornalista sugeriu o título como o Zero Hora - Manual de Ética, Redação e Estilo prevê, pode perguntar-se o leitor arguto.

No dia seguinte, os sem-terra voltam ao jornal pelo editorial - Invasões Improdutivas - que comemora o fim da invasão à Fazenda Bom Retiro, elogiando a “competente operação da Brigada Militar” e criticando os líderes do MST, “é tempo de terminar com tal tipo de expediente que a nada leva, a não ser à exaustão dos agricultores transformados em nômades, ao desgaste de suas reivindicações e a impasses frequentes [...] Não podem ser esses os objetivos das articuladas lideranças daquelas massas humanas.”

Reconhece o editorialista que:

[...] a bandeira desfraldada é justa e que não existe pessoa com um nível mínimo de informação que não apóie a Reforma Agrária nesse país, possuidor de grandes extensões de terras virgens e milhares de glebas improdutivas, e um contingente de agricultores que sonha em possuir o próprio solo para plantar e colher.

E, então, apresenta as razões que inviabilizam a reforma agrária: escassas áreas improdutivas no Estado, o governo estadual continua sustentando os acampados com alimentos, o governo não tem recursos para promover o amplo reassentamento que o Movimento ambiciona. Mas, acima de todos, o argumento que mobiliza a opinião pública e foi transformado em consenso que unifica e identifica uma fala de oposição ao MST.

De outro lado, a simples distribuição de terras não representa uma reforma agrária, e a venda de lotes a terceiros por colonos contemplados é uma evidência de que há necessidade de suportes técnico e financeiro para que as áreas de reassentados se tornem efetivamente lugares de produção agrícola e de vida qualificada às famílias que nela trabalham.

Para concluir: “É oportuno que os líderes do MST deixem a passionalidade de posicionamentos ideológicos em troca da objetividade tão distante do estardalhaço que ainda acreditam estar promovendo.”

Quando os colonos já retornaram ao seu (nenhum) lugar, a Brigada Militar aos quartéis e os jornalistas às redações, o editorial da Zero Hora, encerra, de fato, a invasão (re)dizendo o acontecido e afirmando o ponto de vista que, até então, era sugerido pela edição.

Não há dúvida, a empresa jornalística, na sua função retórica, opina contra o MST e sua forma de encaminhar a luta pela terra, bem como de mobilizar os colonos (eles são apresentados como sem opinião, manipulados); e a favor da Brigada que, representando o Estado, cumpriu sua vocação - proteger a propriedade.

Neste dia, a notícia, agora com a cartola SEM-TERRA, dá a seqüência do acontecimento; donos de fazenda invadida pedem indenização. Volta a advogada que dá os valores do prejuízo e informa os dois procedimentos que realizará em nome da família: “um contra o Governo do Estado, por ter permitido a ocupação e demorado para retirar os colonos, e outro contra o MST.”

Podemos proceder em relação ao discurso da invasão, observando os modos pelos quais os sujeitos do enunciado afirmam a ocupação quando são falados pelos diferentes enunciadores, pois a enunciação é resultado da voz dos jornalistas combinada com a voz dos proprietários.

No conjunto das notícias há um modo de dizer a ocupação que provém dos colonos e do MST (com a aquiescência do bispo/Igreja e dos sindicalistas que entram em greve) que é avalizado pelo mediador/jornalista ao elevá-los a sujeitos oprimidos, logo, autorizados no enunciado, a lutar. O jornalista Carlos Wagner, no ofício de produzir sentidos, solidariza-se com os colonos e, ao comprometer-se com eles, ainda que involuntariamente, conta a própria história e, ao tê-los como destinatários-cúmplices, os assegura como sua fonte de informação subseqüente. O que lhe garante, também, o estatuto de repórter especialista em sem-terra.

A Justiça, como discurso legitimado pelo domínio da interpretação da lei, é falada pela diversidade de vozes que a compõem (inclusive o advogado do MST) e pela burocracia. A lei é interpretável, ensina a invasão da fazenda Bom Retiro e é através dela que as partes negociam. A Justiça ordenou (no primeiro sentido da palavra - mandou retirar) e demonstrou que, se a negociação é permitida, a vitória final está definida: vencem os que produziram as leis.

Mas a vitória da lei não garante, por si, a vitória da desocupação. A Justiça é feita de leis, papéis, palavras: podem ser cumpridas ou não. O enunciador Carlos Wagner reconhece a legitimidade desta voz mas não se solidariza com ela.

A Brigada Militar foi a terceira voz falada. Ela ordenou (no segundo sentido da palavra - organizou o cumprimento da lei), legitimando-se ao protagonizar a ação do despejo e completar a negociação. Nesta ocupação/desocupação foi falada pela coerência, como responsável pela vitória/sucesso do desfecho. Ainda que autorizada a usar a força física e, conseqüentemente, agir com violência, tudo fez para evitá-la. Logo, o destinatário que apóia a desocupação, mas não a violência, teve motivos para aplaudí-la. O enunciador Carlos Wagner reconheceu nela uma competência.

A última voz constante no noticiário foi a dos proprietários. Legitimados por serem as vítimas e, assim, naturalmente, do lado oposto dos colonos, justificando a presença da Justiça e da Brigada, foram desautorizados por sua ação. Eles “transgrediram” a lei - deram tiros, armaram-se, tumultuaram. “Invadiram” a Brigada e a Justiça ao não esperar pelos tempos e ritmos da lei e da força. O enunciador Carlos Wagner não desconheceu a voz dos proprietários mas a rechaçou, buscando a adesão dos destinatários.

Pela divisão social do trabalho jornalístico, não cabe ao repórter a edição final da matéria, a opinião nas colunas ou a versão do editorial. Na coluna Informe Especial do dia 17, durante a ocupação da fazenda Bom Retiro, o enunciador (a coluna não é assinada) em uma nota, diz do cansaço da opinião pública:

[...]diante das repetidas invasões articuladas pelos MST em busca de uma reforma agrária que vem sendo feita pela metade e que dá guarida a acampamentos onde impera a ociosidade mantida com auxílio direto do próprio governo. É preciso não esquecer que uma democracia é sustentada por leis e quando articuladores de um Movimento anunciam claro desacato à Justiça, ultrapassam os limites tolerados por uma sociedade democrática.

O leitor da Zero Hora encontra, portanto, várias possibilidades de se identificar com o sujeito/destinatário construído no texto. Na notícia, tem amparo para ler a ocupação através das diferentes vozes que a compõem e encontrar subsídios para argumentar sua preferência pelos Colonos, pelos Proprietários, pela Brigada ou pela Justiça.

As fotos enunciam a presença da guerra e o olhar é convidado a fixar-se na desigualdade das armas. Os títulos elevam a Justiça à personagem determinante, e a saída vitoriosa para os proprietários é o que organiza a seqüência informativa. A página Opinião não esconde o ponto de vista que alia os proprietários da imprensa aos proprietários da terra e, ambos, à justiça dos proprietários.

A invasão é uma notícia política, a cartola que a identifica diz Reforma Agrária e, esta, é uma questão política. No entanto, ela não cabe nas páginas de política nacional ou local, ou junto às questões econômicas ou agrícolas, mas, depois da cultura e antes da polícia, junto dos acidentes e das tragédias. Por isso, às vezes, o tratamento a este problema político se assemelha ao tratamento de um fait divers. Este designa a rubrica sob a qual os jornais publicam os acidentes, os pequenos escândalos e toda informação cuja estrutura de funcionamento, entre outros elementos, desloca a causalidade para outro lugar.2

A estrutura que construiu esta invasão, sem dispensar o contexto político e, referendado no conceito de Propriedade Privada, ao investir na lógica do jogo e da guerra foi deslocando a causa real que a explica para causas secundárias que a justificam. A desocupação é causa da invasão; a violência dos proprietários é causa da violência dos colonos; a ação da Justiça responde a uma ação do MST e a Brigada com seu arsenal de guerra é necessária para garantir a ordem. A estrutura de funcionamento que construiu esta invasão fez deslizar o sentido político da ocupação para um sentido jurídico, confirmando que as opções de linguagem identificam-na como uma ação ilegal.

Preenchendo com causas secundárias o corpo do acontecimento, vão se perdendo as pistas que poderiam esclarecer as razões da ação fundante. Paralisada sobre o texto - é a cartola - ornamentando-o, está a senha para ingressar na causalidade real - Reforma Agrária - que, pela ausência de conteúdo histórico e repetição do signo foi esvaziada de sentido. Sem permissão para costurar as causas apresentadas e lhes dar sentido político, espia de fora, sem autorização para tocar na Propriedade - do texto e da terra.


4.4 Um Acontecimento Singular

Foi um show de não-jornalismo. Os manuais profissionais atirados pela janela, os da ética pela latrina e as velhas orientações de imparcialidade esperta-mente esquecidas. Poucas vezes a imprensa brasileira conseguiu ser tão parcial e dirigida como no episódio do confronto entre os Sem-Terra e a Brigada Militar em Porto Alegre. Há diversas fórmulas de manipulação, mas a tragédia de 8 de agosto acabou se prestando para uma lição e tanto.
Sindicato dos Jornalistas

Se, com a ocupação, observamos o modo de construir o discurso da invasão, com a morte do soldado a ênfase recai para as relações do contexto com o texto. A proximidade da eleição para governador e deputados, partidos concorrentes governando o Estado (PMDB) e a prefeitura de Porto Alegre (PT), direcionaram a cobertura da Invasão da Praça da Matriz e moldaram a notícia sobre a morte do soldado.

Entre 1990 e 1993 morreram 52 colonos em enfrentamentos pela terra no Brasil. Nenhum mereceu manchete, nome no título ou fotografia na Zero Hora. Neste mesmo período, em um confronto nas ruas de Porto Alegre, morreu o soldado Valdeci de Abreu Lopes e esta morte transtornou o calendário político da eleição estadual e transcendeu as páginas da imprensa local entrando no circuito informativo nacional.

No dia oito de agosto de 1990, chegam a Porto Alegre, vindos de diversos acampamentos, cerca de seiscentos colonos, para acampar na Praça da Matriz. Neste local já acamparam inúmeras vezes, assim como professores ou categorias em greve. Vieram para cobrar dos governos federal e estadual o cumprimento da decisão sobre um assentamento definitivo. Querem uma audiência com o governador Synval Guazelli e, para isto, deputados de diversos partidos negociam no Palácio Piratini.

A Praça da Matriz fica no centro do poder, entre os prédios que abrigam o Legislativo, o Executivo, o Judiciário e o Eclesiástico. A Brigada Militar chega às 9h e se coloca entre o Palácio e a Praça. Está armada de bombas de gás, metralhadoras, escudos e capacetes, os soldados montados em cavalos e acompanhados de cães. Os colonos trazem suas barracas, mantimentos, utensílios e ferramentas de trabalho (foices, enxadas e facões). Ao meio-dia, o clima está tenso e há um enfrentamento armado entre colonos e soldados. Um grupo de colonos abre o cerco e foge, estendendo a batalha pelas ruas da cidade. Alguns descem pela avenida Borges de Medeiros até a Esquina Democrática e se encontram com o PM Valdeci. Do enfrentamento, resultam três tiros que ferem um colono na perna e uma colona no abdômen. E a morte do soldado, atingido por uma foice no pescoço.

Durante a tarde, o Pronto Socorro recebe os colonos feridos e os demais buscam refúgio na Prefeitura Municipal, quando o prefeito entra em contato com os órgãos de segurança do Estado, para buscar uma saída ao impasse.

Naquela noite, na televisão, o noticiário confundiu-se com o horário eleitoral gratuito e os telespectadores atentos tiveram uma aula sobre a impossibilidade do acontecimento entrar para dentro da notícia sem fraturas. Emissoras, comentaristas, partidos, cada um privilegiando preferencialmente alguma das múltiplas vozes presentes no conflito: poder estadual, municipal, oposição, Brigada Militar, colonos.

Os jornais do dia nove em todo o país estamparam na primeira página o acontecido em Porto Alegre.

As revistas Veja e Isto É Senhor do dia 15 também veicularam o fato com destaque: na revista Veja, a capa traz a fotografia (tornada oficial do confronto) do tamanho da página, colorida, com os títulos VIOLÊNCIA (em letras grandes e vermelhas) A Escalada da Selvageria Assusta o País (em letras menores e pretas). Abaixo, uma legenda pequena e em preto - “Porto Alegre, 8 de agosto de 1990; em conflito com os sem-terra um policial é degolado a foice.” A cobertura obteve seis páginas, iniciando com o título A Jornada das Foices. E mereceu nove fotos.

A revista Isto É não faz referência ao fato na capa, mas lhe dedica as páginas 21 e 22, iniciando com Praça de Guerra, duas fotos, com as legendas: a) “Choque no centro de Porto Alegre mata um policial e fere colonos gravemente”; b) “A Brigada Militar deteve inúmeros lavradores que não conseguiram refugiar-se na sede da prefeitura”.

Todos estes jornais bem como as revistas publicaram a mesma fotografia que parece ter obtido o consenso dos editores quanto à sua qualidade, seu significado informativo e seu grau de representação do Dia Oito. Foi premiada e transformada em fato jornalístico e, em diversas outras situações que envolvem os sem-terra, volta a ser aproveitada na edição.

Ela é descrita assim:

Esta foto foi tirada com uma objetiva grande angular, que proporciona grande profundidade de campo, quer dizer, quase toda foto fica nítida e com foco razoável. Dá um amplo ângulo de visão, permitindo visualizar o cenário onde a ação da foto se desenrola, no caso a Praça da Matriz. Aparecem árvores, canteiros, banco típico de praça e barracas que evidenciam a ação junto ao acampamento. Pela sombra das pessoas dá para perceber que era um dia de sol forte e que não era meio-dia. Reconhecendo os prédios ao fundo, seria possível até, pela direção e tamanho das sombras, precisar o horário em que a foto foi tirada.

Ela é bastante informativa. No primeiro plano, aparece um homem de chapéu, trajes civis, de costas, com uma foice na mão. Obviamente um colono. No segundo plano, mais dois homens, equidistantes do primeiro, segurando foices na mão esquerda e com o braço direito em posição de movimento do tipo “atirando algo”. O homem da esquerda, pela posição do corpo deixa isso mais evidente. Um pouco à frente do homem em primeiro plano, há a sombra de outra pessoa que não aparece, provavelmente mais um colono. Ao fundo, num terceiro plano à esquerda, um grupo de policiais da Brigada de Choque, lado a lado, parte na sombra, formam uma espécie de cerca de pontas descontínuas, devido à posição dos braços em movimento, levantados, e alguns com escudos na frente. Mais ao centro ainda, no terceiro plano, alguns policiais correndo para trás curvados.3

A opção pela mesma fotografia é apenas o sinal mais evidente de que a cobertura deste acontecimento obteve unanimidade na imprensa. O conjunto de textos publicados compôs, pela redundância das verossimilhanças, a verdade acerca do acontecido: o MST invadiu a cidade de Porto Alegre, colonos mataram um soldado, existem testemunhas que reconhecem o colono assassino e, este, está preso.

Mais detalhadamente passamos a observar como o Dia Oito foi contado aos gaúchos, pela Zero Hora.


4.4.1 A Voz de Referência Gaúcha

O leitor de Zero Hora (informado pela televisão e pelo rádio) já sabia do que tratava a manchete que encontrou na manhã do Dia Nove: Tensão, Tumulto e Morte; Sem-Terras Ocupam Praça, Chocam-se com Brigada e Matam Soldado a Golpe de Foice. A foto publicada coincidia com a de todos os jornais. A legenda, dizia: “Batalha campal: colonos sem-terra e brigadianos enfrentaram-se na frente do Palácio Piratini no mais grave incidente da história do conflito agrário no Estado”. Abrindo o jornal, encontrava-se o editorial A Safra do Ódio e da Barbárie e, da página 36 à 46, informações detalhadas com cronograma dos acontecimentos, roteiro do trajeto do conflito, fotos, títulos e legendas.

Dos sujeitos do enunciado - colonos e brigadianos - ressaltava o soldado Valdeci. Os três poderes ganharam voz: o governo federal que detém a palavra final sobre a reforma agrária (reivindicação dos colonos); o estadual, a quem os colonos interpelaram (exigindo soluções) e o municipal, para onde eles se dirigiram em busca de proteção. Diferentes poderes governados por diferentes partidos, a dois meses da eleição para governador em que a reforma agrária - promessa de campanha nunca cumprida - era tema outra vez, formavam o conjunto de vozes para fazer sobressair o herói morto.

A morte atrai a mídia assim como atrai a política - até porque é tema que une os humanos - e a imprensa, ao defrontar-se com esta morte sobrecarregada de advertências, na sua função de produzir sentidos, construiu uma só versão, apagando as marcas dos sujeitos da enunciação que traziam outras inferências, garantindo que nenhum tom dissonante desafinasse à “verdade maquiada”.

Das múltiplas relações que o conflito apresentava neste dia, restou, para o jornal, a morte do soldado que, dramatizada pelo discurso (verbal e visual), metaforizou os instrumentos de trabalho em armas e compôs a tragédia da morte numa imagem de filme violento, tipo B: o soldado é degolado; golpe de foice mata o soldado; assassinato a sangue frio.

Neste dia, a empresa jornalística vendeu mais jornal e sedimentou nos leitores a opinião de que o MST não só prega a violência como a pratica, alcançando dois objetivos importantes do seu exercício.

O Dia Nove formulou-se como um típico fait divers na Zero Hora, pois, como ensina Roland Barthes, “no fait divers, toda causalidade é suspeita de acaso”. (1970, p.63). Dois tipos de relação articulam a estrutura do fait divers: a relação de causalidade e a relação de coincidência. Na morte do soldado, como as causas não podiam ser reveladas, apareceram acasos e coincidências. A “causa aberrante” da foice do colono que mata o soldado armado de revólver, conjuga se com a coincidência que, em última análise, é fruto do azar: os dois encontram-se fora da zona da luta e o soldado desprevenido é morto.

A causalidade da morte do soldado, que anularia sua condição de fait divers está no transcurso dos colonos, perceptível no relato de um participante do Dia Oito.

Arranjem terra pros colonos. Façam a Reforma Agrária. Repartam os latifúndios. Que eu garanto que não vai ter mais enxada, nem foice, nem colono, numa manhã de sol, no centro da capital. (Görgen, 1991, p.54)

Não está, portanto, na Praça da Matriz, nem no enfrentamento com o soldado, mas em outro lugar, em outro tempo, em outro discurso, que os quadros de contextualização do Movimento no jornal e os depoimentos oficiais não dão conta.

Se nós tiver terra, vamos ter serviço para nossas ferramentas. Vamos matar a fome. Vamos ter horizonte na nossa frente. Ninguém mais vai ver nós aqui na cidade grande. Ninguém mais vai ver enxadas nem foices longe da terra. (idem, p.55)

No dia seguinte, já havia um assassino, identificado com provas para ser preso (as coincidências substituíram a causalidade); e uma participante do conflito para contar as manipulações do Partido dos Trabalhadores, que pagou ônibus e comida e ofereceu dinheiro em troca de voto.

A morte do soldado é um assassinato político e, por definição, um assassinato político é uma informação parcial, pois, remete necessariamente a uma situação externa, que existe fora dele, ou seja, a política. A cobertura da morte do soldado transformou, no entanto, esta morte em um fait divers porque deslocou as relações de causalidade e de coincidência. Se o acontecimento é político, é uma informação vinculada a outros saberes e, portanto, não é um fait divers; mas o tratamento da Zero Hora (e da imprensa em geral) limitou-se ao horror da morte (não há fait divers sem espanto, diz Barthes). O tratamento deste assassinato político se assemelhou ao tratamento de uma morte qualquer, pois:

[...] no nível da leitura, tudo é dado num fait divers: suas circunstâncias, suas causas, seu passado, seu desenlace; sem duração e sem contexto, ele constitui um ser imediato, total, que não remete, pelo menos formalmente, a nada de implícito; é nisso que ele se aparenta com a novela e o conto, e não mais com o romance. É sua imanência que define o fait divers. (Barthes, 1970, p.58)

Por outro lado, a relação de causalidade foi deslocada. A relação esperada é a do policial que mata o colono. No entanto, é o colono quem mata o policial que, armado, é morto por uma foice, instrumento de trabalho no campo em pleno centro da capital. Este é um exemplo de combinação entre uma causalidade aleatória e uma coincidência ordenada e, assim, o assassinato político transformou-se em um assassinato qualquer.

Se, por um lado, o Dia Oito ficou marcado pela morte do soldado, (um fait divers), a morte do soldado (uma notícia política) serviu para recompor as forças que almejavam chegar ao poder. Por isso, o conflito não se restringiu aos colonos e à Brigada, ou aos que lutam a favor e contra a reforma agrária, portanto entre os que estão nos pólos opostos do Campo Político, mas, entre os protagonistas dominantes do campo que, através dos sem-terra, buscaram exercer sua hegemonia.

Na interpretação de Görgen, o coronel da Brigada responsável pela ação estava determinado a provocar um incidente com o MST. Ele sabia da movimentação dos acampados e premeditou a repressão. Para o setor da Brigada comandado por este coronel o MST é um “inimigo perigoso” além do mais, estava apostando na vitória da direita, cujo candidato Nelson Marchezan não era o mais cotado.

Por isso, não considero absurda a hipótese de que a repressão na Praça da Matriz foi provocada com o objetivo de favorecer o candidato do PDS na sucessão estadual. Senão vejamos:

- Naqueles dias, as pesquisas apontavam o crescimento de Fogaça, correndo o risco de termos no segundo turno Fogaça e Collares, ficando Marchezan de fora. Seria um desastre, na visão desse setor.

- Havia também um crescimento do candidato da Frente Popular (PT, PSB, PCB), Tarso Genro, considerado por este setor da Brigada, o pior de todos.

Ora, a repressão contra os colonos viria a desgastar o PMDB, pois este está no governo e seria responsabilizado. Fogaça despencaria nas pesquisas, o que se confirmou em seguida, e Marchezan estaria garantido no segundo turno. De quebra, acusa-se o PT de ter promovido a agitação.

Como a população teria a tendência de repulsa ao fato como um todo, os dois seriam prejudicados. Por isto, era importante que a Brigada fizesse a repressão de tal modo que os colonos reagissem e revidassem. Por isto, o cerco de toda a praça para que os colonos não tivessem por onde escapar, obrigando-os a se defenderem. Isto levaria fatalmente a ter soldados feridos, o que se jogaria contra os colonos e seus aliados. (Görgen, 1991, p.60)

Para completar esta argumentação acrescenta-se: a) que o Hospital de Pronto Socorro da cidade foi avisado às 10h da manhã de que receberia feridos (de um conflito que iniciou às 11h30); b) que o candidato do PDS ao se pronunciar no horário eleitoral, pediu que fossem “responsabilizados quem trouxe os sem-terra e quem comandou a repressão”, ou seja o PT e o PMDB; c) a descrição da morte do soldado oculta a seqüência dos fatos - ela diz que ele foi atacado pelas costas, quando fazia o patrulhamento de rotina. No entanto, a colona Elenir, que estava em estado grave na UTI, fora baleada por ele, que também atingiu mais três pessoas. Informações desaparecidas do noticiário.

Outra vez, as “causas de fundo” que podem ser catalogadas de dois tipos: a) as razões econômicas e sociais do empobrecimento dos trabalhadores rurais que os mobiliza e b) as razões políticas desta específica forma de repressão à mobilização, não constaram dos textos jornalísticos. Ao contrário, estas informações foram sonegadas para incluir os sem-terra na “onda de selvageria que assusta o país”, salientar o caráter violento do Movimento e a intransigência dos seus dirigentes. São bandidos e como tal devem ser tratados e rejeitados pelos leitores “de bem”.

Para efeito de comparação, vale a pena observar a cobertura da morte de um colono. No dia 10 de abril de 1991, morreria o primeiro colono no Rio Grande do Sul, após a morte do soldado. Ele levara um tiro na cabeça, durante a ocupação da fazenda São Pedro. Somente a Zero Hora noticiou no estado e no país. Em página interna, na Geral, com o título - Protestos Marcam Enterro do Agricultor, e uma foto do sepultamento, com a legenda - “Revolta: agricultores fizeram protesto no enterro do colono.”

Agora, a ênfase não é em quem matou, nem no como o fez, mas na morte como conseqüência de enfrentamentos e conflitos, cujos riscos os colonos conhecem quando reivindicam terra e lutam por ela. A matéria termina com a voz do pai do colono morto: “A gente não esperava, mas sabia que a luta por um pedaço de terra podia terminar nisso.” (Anexo 5)

É possível fazer uma analogia com a morte do soldado e imaginar a viúva fazendo uma declaração semelhante: “Eu não esperava, mas sabia que na profissão dele isto pode acontecer.” No entanto, é impensável uma afirmação desta natureza na construção do contexto de violência gratuita e “morte assassina” que a mídia produziu.

Como já demonstramos neste trabalho, esta é uma morte oportuna para os jornais, pois tanto a foto como a cena, são facilmente aproveitáveis para ilustrar outras situações em que o MST é uma ameaça.

Além de funcionar como exemplo para outras circunstâncias, a morte do soldado, enquanto morte politizável, permaneceu na Zero Hora durante três anos e mereceu 68 dias de noticiário, compreendendo a identificação dos assassinos, a prisão dos colonos, um julgamento simulado, o julgamento real, as comemorações do primeiro aniversário da morte, as homenagens e a inauguração da estátua ao soldado Valdeci. Os títulos destas matérias compõem o Anexo 6.

Aqui terminam normalmente os relatos sobre os acontecimentos cotidianos. Depois, quando importantes, a História os relê. No caso da morte do soldado, surgiram outros textos, que podem ser considerados vozes cúmplices dos colonos e que vão preenchendo o tempo que a voz da História necessita para deixar a emoção aplacar e, então, buscar desvendar o acontecido.


4.4.2 As Vozes Cúmplices

Se ao Jornalismo cabe a interpretação primeira, urgente e dramatizada dos fatos, a História se faz esperar. Quer distância dos acontecimentos, tempo para a pesquisa documental e o depoimento mais distanciado do envolvimento emocional, pois a ela cabe reinterpretar a interpretação primeira.

No caso do Dia Oito, a História ainda não foi escrita. Mas, outros textos, no intervalo entre o Jornalismo e a História pipocaram com intensidade, sugerindo vozes inconformadas com a versão primeira, necessitando expressar a sua verdade. São textos de enunciadores participantes do conflito, comprometidos com os colonos e cúmplices de suas lutas.

A cobertura jornalística do Dia Oito acabou sendo, pelas circunstâncias políticas descritas, a voz conservadora. Das múltiplas vozes presentes no acontecido só restou o viés autoritário que as transformou em uma mesma foto, uma mesma imagem textual (a morte pelo golpe de foice no pescoço), um mesmo sentido (os colonos invadiram a cidade, mataram um soldado, tomaram a prefeitura).

O que causa estranheza e merece registro é a rapidez com que os jornalistas reagiram à adulteração das suas matérias. Quase como mea culpa do que a mídia fez com os colonos, o Sindicato dos Jornalistas estreou seu Jornal n.° 0 - Versão dos Jornalistas - exclusivamente com as informações sem uso na grande imprensa, do material produzido sobre o Dia Oito. O editorial o apresenta assim:

É um equívoco supor que a batalha da Praça da Matriz gerou apenas uma baixa fatal. Além do assassinato do soldado Valdeci, morreu também - ao vivo, em cores, em AM e FM e através de muita tinta e papel - uma senhora chamada Verdade [...]. Ela foi tratada com requintes de perversidade e depois foi trucidada em rádios, TVs e jornais. Um espetáculo de ilusionismo que mesclou diversos ingredientes em um coquetel de má informação, arrivismo, ausência de ética e cegueira seletiva. [...] No combate de Porto Alegre, entre foices e slogans de um lado e bombas de gás lacrimogêneo e armas de fogo de outro, novamente a VERDADE colocou, ligeiro, o pé na cova. (ago.1990, s/p)

Este jornal, que buscou contextualizar a morte, recebeu o prêmio Direitos Humanos, categoria jornalismo do Movimento de Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul. O conjunto de fotos produzidas, mas não aproveitadas, transformou-se em uma exposição.

A segunda manifestação cúmplice que, também, causa perplexidade é a edição, no mês seguinte, da revista ADverso (da Associação dos Docentes da UFRGS). Normalmente pautada com muita antecedência, desta vez com agilidade incomum para a vida acadêmica, refletiu através de textos de professores de sociologia, economia e agronomia sobre os conflitos agrários a partir da ação do Movimento Sem-Terra no Dia Oito. E, trouxe, um comentário do jornalista Carlos Wagner, chamado Sem Terra e Sem Espaço na Mídia:

[...] até a Praça da Matriz, havia uma preocupação dos sem-terra em ocupar uma terra com uma enorme quantidade para ter mais força na resistência. Agora, eles sabem que houve um afunilamento na luta. E isso tem tornado mais difícil o acesso deles aos meios de comunicação. Graças a isso é que a morte do colono Neuroni Machado, na ocupação da Fazenda São Pedro, em Bagé ficou sem culpado. Mais ainda: o brigadiano que deu um tiro na cabeça do colono Ivo Lima ainda não foi punido. (jul/ago. 1990, p.14)

O terceiro texto que refaz o Dia Oito, desequilibrando a primeira versão, é o livro Uma Foice Longe da Terra, organizado pelo Frei Sérgio Görgen e editado pela Vozes. Na apresentação, o coordenador avisa:

Este livro traz o enfoque dos que vieram à praça buscar a terra a que têm direito. Mais do que reconstituir os fatos, buscamos mostrar a história, as causas, os motivos profundos, as esperanças dos que lutam pela terra, a insensibilidade dos governantes, a estrutura agrária caduca, que provoca tragédias como a do dia oito. [...] Os que escreveram este livro o fizeram na esperança de contribuir para despertar mais e mais consciências capazes de transformar este sonho em realidade. (1991, p.8)

Ao contar, outra vez, os acontecimentos da Praça da Matriz, frei Sérgio dialoga com o relato da imprensa, desfazendo as explicações para ir ao encontro da causalidade. Agora, o fato é produzido como uma notícia política e não mais um fait divers. As causas são esclarecidas e o ponto de vista político admitido e tornado visível. Por exemplo:

A violência começara na Praça da Matriz. Assim se afirmava nas notícias. Começou bem antes, afirmavam os colonos. Com a fome, o desespero e as doenças nos acampamentos e por todos os cantos do meio rural brasileiro. Aí já começam a se diferenciar duas formas de encarar o mesmo fato.

As imagens da Praça da Matriz são fortes. A polícia ataca os colonos. Estes reagem. O tumulto se forma, como uma batalha campal. Os colonos apanham mais, muito mais. É desigual a luta. Uns treinados, armados e em ordem. Outros em confusão, correria, gritaria e desespero [...] As enxadas e foices são instrumento de defesa do corpo [...] Soldados e colonos são jogados à própria sorte, num salve-se quem puder. Há feridos de ambos os lados [...] A irracionalidade conduz os acontecimentos.

A Reforma Agrária volta às páginas dos grandes jornais, à agenda dos políticos e governantes, às rodas de conversas nas ruas e botecos, de uma forma inesperada e surpreendente: a morte de um soldado a golpe de foice.

As forças contrárias à Reforma Agrária esforçam-se por resumir tudo a este único fato, a este único momento trágico em que a foice do camponês atinge mortalmente o soldado Valdeci. (ibidem, p.15)

Görgen, ao buscar explicar o contexto da violência e argumentar a inocência conjuntural dos colonos, insiste na seqüência dos fatos que levaram à morte do soldado no sentido oposto ao descrito pela imprensa.

O soldado Valdeci não defrontou-se com um pequeno grupo de colonos fugindo da praça perseguidos por outros policiais. Defrontou-se, de arma em punho, querendo deter o que, talvez, pensou tratar-se de “baderneiros de rua”. Seu dever era detê-los. Ele não estava na praça, não participou do massacre. Talvez nem tivesse presente que se tratava dos colonos, talvez soubesse claramente. Pensou em cumprir seu dever. Mas estava se defrontando com o desespero de muitas vidas de gente simples como ele em busca de mais dignidade, em busca de pão, de um espaço para viver em paz. (ibidem, p.16)

A defesa dos sem-terra, no entanto, não naturaliza a morte do soldado, mas ela é inserida nas mortes acontecidas na luta pela reforma agrária.

Nada há que justifique uma morte. Seja de soldado, seja de quem for. Nossa luta é pela vida, de todos. Até por uma questão de fé e do mandado de Jesus. A não-realização da Reforma Agrária tem deixado atrás de si um espectro de sangue e mortes: de fome, de inanição, por doenças, pela violência e, agora, pela reação dos violentados. Até agora só têm morrido os pobres. É preciso que a terra seja distribuída para que a vida renasça e a violência sucumba. (ibidem, p.8)

Nas Universidades do Rio Grande do Sul, encontram-se monografias, projetos de pesquisa e teses buscando elucidar teórica e politicamente o acontecido. Antonio Cattani, ao recolher a produção sobre os trabalhadores do Campo publicado em A Ação Coletiva dos Trabalhadores, localizou pelo menos dez trabalhos sobre o tema. (1991, p.86)

Todos estes relatos são vozes cúmplices dos colonos, foram produzidos no intervalo entre a publicação jornalística e a pesquisa histórica e vão registrando múltiplas apropriações do fato. No futuro, quando o historiador estiver estudando os conflitos agrários, os movimentos sociais, a história, enfim, do Rio Grande do Sul, irá se defrontar com o Dia Oito de agosto de 1990 em que o centro da cidade de Porto Alegre assistiu a uma guerra na luta pela reforma agrária, quando foices transformaram-se em armas e um soldado morreu. Oxalá sua perplexidade provenha não da frase de Brecht - “Até naquele tempo?” mas da dificuldade em entender o que era a luta por um pedaço de terra, para sobreviver.

Por fim, o Dia Oito foi, também, ficcionalizado. Na verdade, a literatura no Rio Grande do Sul tem tradição de recontar sua História. Erico Verissimo ficcionaliza uma larga fatia dos feitos gaúchos; Josué Guimarães da chegada dos alemães, Antônio Assis Brasil do episódio dos Muckers e, Charles Kiefer, dos sem-terra, em Quem Faz Gemer a Terra.

Na Praça da Matriz, no centro de Porto Alegre, o colono Mateus mata um soldado com um golpe de foice e está preso. O núcleo da novela parte do acontecido e conhecido através do que a imprensa divulgou. Os personagens trocaram de nome, mas suas ações são reconhecidas. E, para a morte do soldado, há uma explicação histórica que o narrador/colono conta ao autor na prisão.

Cada vez que conto a minha história, vejo ela melhor. Contar clareia. E eu, quando conto, me vejo fora de mim: eu não sou eu, sou outro. Gosto do outro que eu me sou. Quem conta é o outro? Eu me sou no que ele conta? (1991, p.12)

Aqui as vozes se confundem, pois a ambos cabe esta questão. Misturando lembranças da infância e do acampamento, o acontecido vai recebendo uma versão.

Naquele tempo, o pai ainda tinha dezoito hectares de terra e nada na cabeça. Vendeu dez pra fazer a casa nova. Hoje, com os mesmos dez, construía dez daquelas. Com a sobra do dinheiro, comprou a aranha. (p.17)

Plantamos soja em toda a terra. Nesse tempo, meu pai não sabia nada de curva de nível, de conservação de solo, erosão, essas coisas. Com as chuvas, a roça ficou lavada, sem força. Tivemos de comprar adubo, calcário, semente selecionada. O pai emprestou dinheiro no banco, pra pagar na safra. Quem podia pensar que ia ser um ano de seca? Quatro meses sem chuva, a quebradeira foi tão grande, as vagens não granaram e a dívida ficou dependurada. Cada ano cresceu um pouco, os juros eram muito altos, não deu pra pagar. Daí, vendemos a terra. Ficamos sem nada nosso, mas pagamos o banco. Uma semana antes do pai entregar a terra pro novo dono, o Pedro veio com a história do acampamento que estava se formando pra diante de Pau d'Arco. (p.33)

As alternativas para quem perdeu a terra, também, são elencadas na novela.

Por causa das dívidas que ele tinha no banco, esse Muller se enforcou. Os filhos dele, o Ricardo e o Eduardo, moravam lá no acampamento também e participaram da guerra. (p.59)

Pro exército eu queria ir, sabia que lá se podia aprender uma profissão. O Leandro, meu primo, que é motorista de caminhão aprendeu a dirigir foi no quartel, tirou carteira e tudo. (p.31)

O soldado da novela é morto da mesma forma que o soldado Valdeci e o personagem Mateus faz associações:

O bicho parou. Não sabia se atravessava ou não. De repente, ele se veio. O que deu coragem pra ele foi o fogo. Veio pra cima de mim, com os dentes arreganhados, guinchando, pronto pra me dar uma mijada. Eu levantei a foice, mas o pai segurou ela no ar. (p.38)

É esta a sua primeira lembrança de erguer o braço com a foice na mão para machucar, mas ainda tem pai para interditar seu impulso, tal qual na história bíblica em que Deus segura a mão de Abraão que está por sacrificar o filho. Mateus conta a morte, assim:

Um dia que saiu da minha cabeça foi esse. O outro foi o dia em que matei o soldado. Eu dormi lá no degrau da escada e não sei direito o que veio depois. Era de manhã, eu lembro do sol alto batendo na foice. Eu tinha fugido da Praça da Matriz, onde a guerra começou e encontrei o soldado. Ele puxou o revólver, mas a foice estava na minha mão direita. Era uma foice de cortar açoita-cavalo, cipó, unha-de-gato, feita de mola de caminhão. Eu levantei a foice e vi o sol bater nela. (p.36)

O Mateus que perdeu a razão e matou o soldado já estava no menino que levantou a foice contra o gambá no incêndio do mato? Se estava, a miséria temperou o aço da lâmina, aguçou o fio e me preparou pro desatino? (p.112)

Além do episódio principal, outros três pertencem à “realidade” - a ocupação da Fazenda Santa Elmira; o acidente do trevo de Sarandi onde morreram três colonos; o avião que pulverizou o assentamento, matando quatro crianças - além de referências a ações de jornalistas, da geografia, e da cultura rural alemã.

Nesta pequena novela (são 114 páginas), encontramos o que Maria Teresa de Freitas, observou em relação ao romance de Malraux:

[...] a realidade histórica serviu-lhe como estrutura de base para a criação de uma realidade artística autônoma, que põe em cena não um sistema, mas a repercussão desse sistema sobre uma sensibilidade - pois é sempre pela mediação de uma consciência que a Literatura exprime a História - não uma verdade, mas o poder afetivo dessa verdade - pois, muito mais do que ao intelecto, é à emoção que a arte se dirige. (1986, p.92)

No nosso caso, três conjuntos de vozes falaram o Dia Oito, fazendo repercutir a linguagem em um gênero adequado, ainda, à condição de um sujeito, que produziu seu texto conformado pelas condições  de sua produção.

O discurso jornalístico tratou o acontecimento como um fait divers, em que as coincidências ocultaram a causalidade histórica; o “discurso do intervalo” buscou as causas amparado no compromisso político; e o discurso ficcional chegou às questões históricas pela sensibilidade. Parece que quanto mais se afiança o real, através da afirmação de que o texto é imparcial e neutro, mais ele é impedido de se manifestar; e, quanto mais se assume a impertinência de um “texto do real” mais a ficção pode torná-lo (o real) visível ou apreensível.

Esta é, na verdade, a base do argumento de Enzensberger quando afirma que a história da Alemanha nazista está registrada na reportagem literária da época.

Um romance não é um fait divers na medida em que “todo romance é ele próprio um longo saber do qual o acontecimento que se produz nunca é mais do que uma simples variante.” (Barthes, 1970, p.58)

O golpe de foice que matou o soldado, resumiu a informação jornalística, compôs o título do livro de “história” - Uma Foice Longe da Terra - e apareceu desvendado literariamente em Quem Faz Gemer a Terra. O mesmo enunciado adquiriu diferentes sentidos dependendo do lugar da enunciação. Que, também, propôs diferentes contratos de leitura com os destinatários. O leitor da Zero Hora (a maioria dos gaúchos) foi convidado a comprometer-se com a Brigada contra a violência do MST; o leitor do Frei Sérgio Görgen (quem compra livros e é simpatizante da esquerda) a indignar-se contra o poder e solidarizar-se com os colonos, reforçando sua consciência política e o leitor da novela (apreciador de ficção) a emocionar-se com uma história já conhecida e refletir com o narrador:

No fim, como era de se esperar, perdemos. Hoje entendo que vamos perder sempre, que o nosso tempo já passou. No fundo, é a luta do machado contra a motosserra, da enxada contra o trator, da foice contra o fuzil. Ficamos em banho maria, fervendo, pra explodir anos depois. (p.79)

Na busca pelo fio condutor da cobertura de ZH sobre o MST, percorremos três encenações de sentido - os títulos das 18 invasões, a ocupação da Fazenda Bom Retiro e a morte do soldado Valdeci - para aprender que elas não são máscaras do real, mas que o real é ali investido pelo discurso, produzindo o que chamamos de Cenas Discursivas.

A enunciação não é uma cena ilusória onde se manifestam conteúdos trazidos de outros lugares, “mas um dispositivo constitutivo da construção do sentido e dos sujeitos que ali se reconhecem.” (Maingueneau, 1989, p.5)

Sem dúvida, o discurso jornalístico só existe porque seu conteúdo provém de outros lugares, já que ele é um discurso de mediação dos Campos Sociais. Mediação, no entanto, não é passagem de um lado para outro, mas lugar de produção e proposição de sentidos e, assim, construção de determinado registro histórico.

No esforço de apreender o funcionamento do discurso de Zero Hora, confirmamos o caráter institucional da atividade discursiva jornalística, pois a divisão do trabalho, os comprometimentos ideológicos e a cultura do mundo da imprensa que lhe confere o estatuto de voz neutra e imparcial, impregna e marca os diferentes textos.

A página editada imprime, também, a divisão social do trabalho. O tom do texto da notícia não é o mesmo tom dos títulos, das legendas, da distribuição das notícias na página. E os sentidos para a ação do Movimento Sem Terra, são produzidos pelos acontecimentos aliados aos contextos. No texto, há, portanto, o contexto (interno) do processo institucional da produção da notícia e o contexto (externo) do processo político que forma o pano de fundo dos fatos sociais.

Basta exemplificar com a presença do signo invadir (nos títulos e editoriais) em oposição ao signo ocupar (na notícia), e a importância de uma ocupação dada pela disputa interna com outras notícias de outras editorias (se coincide com um dia de baixa freqüência de acontecimentos, pode chegar até a ser manchete), ou a construção grandiloqüente da morte do soldado induzida pelos interesses políticos pré-eleitorais.

Uma última observação diz respeito aos sujeitos do discurso, pois era intenção conhecer a posição ocupada pelos indivíduos que produzem o texto e os que atuam no seu interior. O gênero jornalístico supõe a existência da empresa jornalística e seus trabalhadores - repórter, redator, editor, fotógrafo - sujeitos da enunciação, por isso o discurso da imprensa é polifônico. E a matéria prima da notícia (a informação) provém de muitas fontes, ou seja, o texto é composto de muitas vozes - sujeitos do enunciado.

Assim, o discurso jornalístico é duplamente polifônico (composto de múltiplas vozes), indicando um potencial polissêmico (possibilidades plurais de sentido) que, no entanto, tende à paráfrase (ao mesmo), inscrevendo-se no tipo autoritário.

Por outro lado, a voz falada do receptor no discurso jornalístico, também, é plural, pois diferentes tipos de destinatários devem identificar-se na enunciação.

Em nosso estudo, a construção do sentido se fez pela combinação dos sem terra que invadem, resistem, degolam; o governo que busca soluções e a Justiça que julga. Como todo Movimento Social, o Movimento Sem Terra é intransigente e violento. Mas, sua luta, é, às vezes, justa em uma brecha do texto. A Figura 6 expressa a lógica que comanda as relações entre o texto e os contextos.



1Manuel Martin Serrano considera a mediação um fenômeno social contemporâneo e, ao mesmo tempo, propõe a mediação como modelo de análise. No livro La Mediación Social (1978), afirma que é a Teoria da Mediação quem legitima a Teoria da Comunicação. E no livro La Producción de Comunicación Social (1989), ele explica e aplica seu modelo. Há três operações mediadoras: a mediação institucional (quando os acontecimentos são selecionados), a mediação cognitiva ( que diz respeito aos relatos que oferecem modelos de representação do mundo) e a mediação estrutural (que se refere aos modelos de produção dos relatos e é onde a mediação cognitiva adquire consistência material).

2Fait divers é usado neste trabalho conforme Roland Barthes o conceitua. Não tem correspondente em português, mas é empregado como tal para designar um tipo de notícia cuja estrutura combina uma “causalidade aleatória com uma coincidência ordenada”. A expressão é explicada no texto A Estrutura da Notícia, in Crítica e Verdade.

3O autor da foto é Ronaldo Bernardi, de Zero Hora, e recebeu o Prêmio Esso de Fotojornalismo e o 2° lugar na premiação da Associação Riograndense de Imprensa. A descrição da fotografia é da aluna Cleionir Velleda Teixeira e faz parte do exercício por ela desenvolvido na disciplina Comunicação Comparada do Curso de Comunicação Social da UFRGS, no 2° semestre de 1990.