A PERSUASÃO
Estratégias para uma comunicação influente
(tese de mestrado em Ciências da Comunicação)

Américo de Sousa,Universidade da Beira Interior

Março de 2000


(Introdução; I Parte; II Parte; III Parte; Bibliografia)


CONCLUSÃO



A comunicação persuasiva não é uma segunda comunicação, muito menos, uma comunicação de segunda. Estudar a persuasão é, essencialmente, estudar a comunicação do ponto de vista dos seus efeitos persuasivos. E nem a persuasão se mostra incompatível com a dimensão ético-filosófica da comunicação, nem o imperativo da discutibilidade crítica condena, a priori, o recurso ao elemento persuasivo. A comunicação afirma-se pela eficácia com que cumpre os seus objectivos. Sem eficácia, não passa de um simulacro. Sem persuasão, não se cumpre. Estas são, pelo menos, algumas das primeiras conclusões que julgamos poder extrair de um estudo onde tivemos como principal preocupação compreender os diferentes modos pelos quais a persuasão discursiva se manifesta no processo comunicacional. Persuasão que, estando no centro da argumentação, da arte de bem raciocinar, não prescinde igualmente da figuratividade e do estilo. A retórica é, portanto, o seu lugar de privilégio, pelo que não surpreenderá que a tenhamos colocado no centro da nossa reflexão. Dos alvores de uma oratória marcadamente empírica à retórica dos sofistas tão severamente condenada por Platão, da solução de compromisso em que, à época, terá consistido a codificação aristotélica até à sua posterior degradação secular, trilhamos os caminhos históricos - nem sempre muito claros - de uma retórica, que como vimos, só viria a reassumir a sua anterior dignidade argumentativa com Chaim Perelman. Expurgada do estigma que consistira na sua restrição à praça pública mais ou menos ignorante, vê o seu campo de acção alargar-se agora a todo o discurso persuasivo, seja qual for o auditório a que o orador se dirija, incluindo, o do seu foro íntimo. Para trás ficam também os exageros de forma, a proliferação adornística que a reduzia a mera técnica de expressão de um pensamento inquestionado. O que, aliado à formulação de uma nova racionalidade legitimadora do mundo das opiniões postas à prova e da livre discutibilidade como, respectivamente, fonte e método de conhecimento, veio a constituir aquilo que, em nossa opinião, foram as três mais significativas inovações introduzidas pelo pai da nova retórica, no âmbito da sua Teoria da argumentação. O mesmo não se pode dizer quanto à sua tentativa de distinguir entre persuasão e convencimento com base num auditório universal puramente ficcionado pelo orador. Dir-se-á que, aí, na ânsia de conferir a maior objectividade possível ao processo de argumentação, Perelman acaba por fazer regressar à retórica a evidência racional cuja recusa tinha figurado como núcleo duro da sua impiedosa crítica à razão cartesiana. Tal não invalida, porém que, conforme na devida altura sublinhamos, se reconheça a atitude ética que subjaz a esta intenção de verdade no pensamento retórico perelmaniano. Mas a intenção do orador não pode deixar de nos remeter para além da própria techné retórica, ou seja, quer para o seu enquadramenteo filosófico quer para as condições concretas do seu exercício. Foi isso que nos levou a iniciar a III PARTE deste trabalho com uma análise à questão dos “usos da retórica”. O reconhecimento de que as estruturas taxionómicas e definicionais de Perelman correspondem, sobretudo, a uma visão acentuadamente lógica da argumentação que de modo algum permite captar tanto a sua dinâmica interaccional como as marcas afectivo-emocionais que nela deixam os respectivos intervenientes, motivou-nos para um aprofundamento da relação retórica também a partir dos próprios sujeitos que são a sua razão de ser, que lhe conferem vida e lhe dão cor. Fomos assim conduzidos a um novo cenário retórico onde os actores, ao invés de se limitarem a debitar os seus papéis com o único propósito de obter a aprovação geral do auditório, tomam antes consciência do carácter problemático do seu discurso e estimulam o público presente a participar na própria representação, que assim se constitui como enriquecedora instância de questionamento. Com efeito, tal como propõe Meyer, a procura do consenso para que se orienta a retórica pode ser vista como um processo de questionação, plural e contraditório, que visa essencialmente a negociação da distância entre os sujeitos. Uma distância que tem a sua raiz na problematicidade inerente à condição humana, às suas paixões, à sua razão, ao seu discurso e que dita a presença de uma interrogatividade em contínuo nas diferentes fases do processo de argumentação. É nesta racionalidade interrogativa que Meyer se apoia, não apenas para caracterizar o logos próprio da argumentação, como também para distinguir os diferentes usos da retórica, conforme o orador vise uma aprovação lúcida e crítica ou pretenda manipular o auditório para obter, a todo o custo, o vencimento das suas teses. Assim, o discurso será tanto mais manipulador, quanto mais ele suprimir ou esconder a interrogatividade das suas propostas, com o evidente propósito de se furtar à sua crítica e discussão. Pela nossa parte, aludimos, aliás, a outros critérios ou procedimentos que favorecem a detecção dos usos abusivos da retórica, embora deixando bem vincada a nossa convicção de que o melhor antídoto ainda será a atenção, a prudência e a capacidade crítica que os respectivos destinatários souberem e puderem exercer em cada situação concreta. Mas porque consideramos que são as acusações de que a retórica não passa de um instrumento de engano e manipulação que mais têm contribuído para o generalizado descrédito em que a mesma ainda se encontra, entendemos que a questão justificava uma atenção muito especial neste nosso trabalho. E a principal ideia que formamos foi a de que a retórica, mais do que uma prática discursiva especialmente favorável para induzir o outro ao engano, constitui, isso sim, um espaço de discutibilidade e afirmação das subjectividades em presença que, por si só, garante ao auditor a possibilidade de dizer não e, inclusivamente, de justificar a sua recusa. Para tanto, basta que a competência argumentativa não seja um exclusivo do orador e se estenda igualmente ao auditório a quem se dirige, pois também só nessa condição se poderá verdadeiramente falar de uma situação retórica, no sentido perelmaniano. Sem a competência argumentativa é a própria ética da discutibilidade que perde todo o sentido. Sem a discutibilidade não há sequer argumentação, nem tão pouco seria precisa. Neste caso, o destinatário da mensagem, pura e simplesmente, passa de receptor a mero receptáculo. Foi neste entendimento que procedemos a uma análise da manipulação “retórica” não focalizada unicamente sobre o orador, como é corrente acontecer, mas, mais exactamente, sobre o par manipulador-manipulado, no pressuposto de que este último é sempre co-responsável pelo engano de que possa ser alvo. Numa palavra, à eventual mentira do orador não tem que, necessariamente, seguir-se o engano do auditor. O manipulado não pode ser visto como autómato ou presa fácil de um qualquer orador menos escrupuloso, sob pena disso ofender a sua própria dignidade de ser humano. É o exercício da sua autonomia e liberdade de formação pessoal que o constitui como responsável pelos seus actos. E o acto retórico corresponde apenas a uma entre tantas outras situações do seu percurso existencial, em que igualmente é chamado a compreender o que se passa à sua volta, a avaliar e a tomar decisões. Mas seria talvez muito ingénuo fundar os abusos retóricos exclusivamente na ignorância de quem escuta, traduzida esta última por um desconhecimento temático que abriria as portas ao abuso de confiança do orador. Quisemos, por isso, analisar também os efeitos da sugestão, da sedução e, de um modo geral, de todos os meios persuasivos que, dir-se-ia, apelam mais à emoção do que à razão. Verificar até que ponto a capacidade crítica e a competência argumentativa dos destinatários da retórica podem, na esfera da decisão, vir a ser relegadas para um segundo plano, por uma palavra especialmente dirigida à sua sensibilidade. E procuramos ir tão longe quanto possível, face aos condicionalismos espácio-temporais deste estudo. Com Damásio, que, como vimos, procede à recuperação da emoção para a esfera cognitiva, percebemos como seria insustentável permanecer agarrados à clássica dicotomia razão-emoção, visualizando esta última apenas como fonte perturbadora do raciocínio. Como mostrou este insigne cientista português, a emoção é tão indissociável do acto de raciocinar que, quando dele ausente, fica comprometida a racionalidade da própria decisão, a sua adequação ao real. Ora a persuasão visa justamente levar o outro a tomar uma decisão. Logo, não se podendo já falar de modo distintivo da persuasão, ou seja, de persuasão racional, por um lado e de persuasão emotiva, por outro, a sugestão e a sedução surgem como modos particulares de persuadir tão legítimos como quaisquer outros numa retórica de pessoas concretas, olhadas pela totalidade da sua identidade intelectual, psicológica e social. Daí que, em homenagem a um pensamento vivo, não redutor, tenhamos ousado formular a proposta de um conceito de argumentação mais abrangente, que inclua o recurso a todos os meios persuasivos que se mostrem adequados à natureza da causa ou questão sobre a qual importa decidir. A persuasão, a sugestão e o próprio agrado ou sedução, são incindíveis do acto de convencer. “Essa ideia agrada-me...”, “gosto dessa solução...”, “inclino-me mais para esta hipótese...” são apenas três exemplos das numerosas expressões que podemos escutar regularmente a pessoas cuja competência intelectual não nos merece qualquer reserva. E no entanto, traduzem, sem sombra de dúvida, uma certa incapacidade de fundar racionalmente certas decisões, que nem por isso perdem valor ou deixam de ser seguidas por quem as profere. O que leva alguém a aderir a uma ideia, a uma proposta ou a determinada acção, parece assim ficar a dever-se a uma rede ou complexo interno de factores interactivos, que quando artificialmente isolados pouco ou nada explicam sobre o processo de decisão. Compreende-se, pois, que, como já demos conta na parte de desenvolvimento, as inúmeras investigações experimentais sobre a persuasão já realizadas no âmbito da psicologia social - onde é pacífica a ideia de que a modificação de atitudes está na base da modificação do comportamento - não tenham até à data ido muito além de uma sumária caracterização dos mecanismos de persuasão. Ainda assim, vimos como a discriminação dos factores e motivos que parecem estar na base da modificação das atitudes seja ao nível da fonte, da mensagem ou do receptor, bem como as diversas teorias a que deram lugar, são já elementos fundamentais para uma aproximação compreensiva ao acto persuasivo. Uma coisa é certa: a adesão de um auditório não pode ser explicada exclusivamente pela conexão lógica ou quase lógica dos argumentos apresentados pelo orador. Terá sido essa intuição que levou Aristóteles a dedicar ao estudo das paixões os capítulos II a XI do Livro II da sua Retórica, prenunciando assim, aquilo que hoje em dia se pode entender como necessidade de uma abordagem interdisciplinar do discurso persuasivo. Foi também nessa perspectiva que decidimos fazer, por último, uma incursão à comunicação hipnótica, tendo em vista a sua aparente homologia processual com a comunicação retórica. Adoptando uma metodologia comparativa, pudemos então constatar a presença de inúmeros elementos comuns à retórica e à hipnose, não só no plano conceptual e descritivo – “atenção modificada”, “modificação de consciência”, etc. – como nos atributos, critérios e meios de actuação mobilizados – credibilidade do orador, adesão do destinatário, linguagem figurativa, efeito de presença, entre outros. Mas foram principalmente as similitudes funcionais que detectamos no uso da metáfora e da chamada focalização da atenção que nos levaram a concluir que entre a retórica e a indução hipnótica há sobretudo uma diferença de grau ou intensidade, no sentido de que os mesmos instrumentos de persuasão são nelas utilizados de acordo com o diferente nível dos efeitos sensoriais pretendidos. E se a hipnose não estabelece, praticamente, qualquer limite à sua intensidade, já na retórica, é necessário encontrar um ponto de equilíbrio, que assegure a predisposição ao agrado sem pôr em causa o livre raciocínio dos sujeitos. Tarefa particularmente delicada quando se esteja em presença de pessoas com elevado índice de susceptibilidade hipnótica. Porque é somente na recepção que a mensagem conhece o seu destino, a palavra que nuns põe em marcha a formação de um juízo sereno, pode ser a mesma que noutros provoque o riso ou faça chorar. Da retórica se dirá, por isso, que não fracciona os sujeitos, antes compromete-os em toda a sua grandeza e fragilidade, pelo que, retirar-lhe a sua dimensão psicológica e vivencial seria desinseri-la do próprio terreno em que se manifesta e da condição humana que a determina. É neste contexto que, como esperamos ter mostrado, o estudo da indução hipnótica por sugestão verbal constitui, tanto para o orador como para o investigador retórico, porventura, a melhor forma de apreender, com outra amplitude e rigor, os níveis de persuasão, de sugestão ou encantamento de cada prática discursiva, bem como a especificidade dos efeitos a que ela pode conduzir. Porque a retórica crítica depende da intenção ética dos seus agentes, da sinceridade com que apresentam o que julgam ser as melhores razões, da problematicidade que reconhecem ao seu próprio discurso, da abertura à discutibilidade mas também, do seu conhecimento sobre a natureza e intensidade dos efeitos extra-lógicos que cada argumento ou recurso persuasivo pode provocar nos respectivos destinatários. Teremos assim, não só uma retórica dos sujeitos mas também para os sujeitos. Sujeitos que por ela procuram afirmar ou superar as suas diferenças em direcção a um consenso que lhes permita ultrapassar os obstáculos próprios de uma caminhada feita de vida em comum. Pelo confronto de opiniões, pela discussão e escolha dos valores que possam merecer o acordo do outro ou da respectiva comunidade, a retórica promove o entendimento entre os homens, engendra e modela novas formas de sociabilidade. É esse seu regime de liberdade que, afastando o recurso quer à violência quer ao poder ditatorial, lhe pode conferir um lugar proeminente no exercício da própria cidadania. Mas para isso, seria necessário que a retórica deixasse de ser um exclusivo de alguns, dos homens de marketing, das vendas, da publicidade, da política ou dos media e passasse a integrar a competência argumentativa dos seus próprios destinatários. Numa cultura democrática as diferentes opções de cada qual pressupõem uma igualdade de acesso à compreensão dos saberes, nomeadamente, dos que respeitem ao acto comunicativo. E, deste ponto de vista, o conhecimento retórico não pode nem deve constituir-se como excepção. A chamada “face negra” da retórica não se inscreve nela própria mas sim num elemento que lhe é exterior: a ignorância ou má-fé de quem dela se serve ou com ela se confronta. Seria por isso desejável que o actual recrudescimento do interesse teórico pela retórica pudesse servir de plataforma para a sua divulgação e estudo teórico-prático mais generalizado, a começar, no interior do próprio sistema de ensino oficial. Pode acontecer que esta sugestão, como de resto todo o texto do estudo que acabamos de apresentar, não passem de retórica. Mas sabemos agora que a nada mais poderíamos aspirar.