A PERSUASÃO
Estratégias para uma comunicação influente
(tese de mestrado em Ciências da Comunicação)

Américo de Sousa,Universidade da Beira Interior

Março de 2000


(Introdução; I Parte; III Parte; Conclusão; Bibliografia)


II  PARTE

A NOVA RETÓRICA

 

 

1.  Crítica do racionalismo clássico

O renascimento do interesse pela retórica muito deve à chamada "Escola de Bruxelas" 1, onde - não obstante as diferentes perspectivas de análise - três dos seus maiores representantes, Dupréel, Perelman e Meyer, convergiam num ponto fundamental: a crítica ao racionalismo clássico. É justamente a partir dessa ruptura com uma razão necessária, evidente e universal que Perelman vai elaborar a “filosofia do razoável” com que, epistemológica e eticamente, recobre a sua nova retórica,  propondo um novo conceito de racionalidade extensivo ao raciocínio prático, mais compatível com a vivência pluralista e a liberdade humana do que o consentiria a respectiva noção cartesiana de conhecimento. Sabe-se, com efeito, como ao fazer da evidência o supremo critério da razão, Descartes "não quis considerar como racionais senão as demonstrações que a partir de ideias claras e distintas, propagariam, com a ajuda de provas apodícticas, a evidência dos axiomas a todos os teoremas" 2. O que surgisse ao espírito do homem como evidente, seria necessariamente verdadeiro e imediatamente reconhecível como tal. Por princípio e por método, não se deveria conceder qualquer crença quando se trate de ciência, da qual, afirma Descartes, cumpre eliminar a menor dúvida. É, de resto, nesta linha de pensamento que surge a sua conhecida tese de que a cada vez que sobre o mesmo assunto dois cientistas tenham um parecer diferente "é certo que um dos dois está enganado; e até nenhum deles, parece, possuiu a ciência, pois, se as razões de um fossem certas e evidentes, ele poderia expô-las ao outro de uma tal maneira que acabaria por convencê-lo por sua vez" 3.  Mas, como sublinha Perelman, a questão não reside no método cartesiano em sim mesmo, mas sim, no desmesurado âmbito da sua aplicação, que relembremos, seria o de "todas as coisas que podem cair no conhecimento dos homens" 4. É que Descartes tão pouco quis limitar as suas regras ao discurso matemático, antes se propôs fundar uma filosofia verdadeiramente racional e é aí, como acentua Perelman, que ele dá "...um passo aventureiro, que o conduz a uma filosofia contestável, quando se lembra de misturar uma imaginação propriamente filosófica com as suas análises matemáticas, transformando as regras inspiradas pelos geómetras em regras universalmente válidas" 5.

A sua filosofia teria assim como finalidade a descoberta da verdade e como fundamento a evidência. Seria uma filosofia inteiramente nova, uma verdadeira ciência que progrediria de evidência em evidência. Apenas enquanto não se alcançasse por este método o conhecimento da verdade seria necessário deitar mão a uma moral provisória cuja necessidade Descartes justifica do seguinte modo: "para não ficar irresoluto na minha conduta, enquanto a razão me obrigasse a sê-lo nos meus juízos, e, para não deixar de viver, desde então, o mais felizmente possível, formei para mim próprio uma moral provisória constituída somente por três ou quatro máximas...." 6.

Há aqui, como bem observa Rui Grácio, uma nítida distinção entre os domínios da teoria e da prática e o implícito reconhecimento das dificuldades que o recurso à epoché sempre coloca quando se trate de articular a razão com a acção. É que se "teoricamente, é possível permanecer-se irresoluto, sendo mesmo, como Descartes pensa, indispensável esse momento de purificadora suspensão para que o espírito se purgue de todo o tipo de preconceitos e para que as opiniões possam ser ajustadas 'ao nível da razão', já no domínio da acção o mesmo não se passa, pois estamos sempre, irremediavelmente in media res, incontornavelmente inseridos em contextos e situações, apegados a valores, convicções e normas ou, para o dizer abreviadamente, indissociavelmente ligados a uma ordem prévia determinante das possibilidades de sentido para a nossa acção" 7. Daqui decorre o diferente estatuto que o cartesianismo confere a todo o conhecimento anterior. No plano teórico, tudo o que é prévio surge como não confiável, como potencial fonte de erro e obstáculo à clareza e distinção de uma razão que se crê portadora de uma garantia divina e que por isso mesmo contém em si própria o critério para distinguir o verdadeiro do falso. No plano prático, porém, o prévio impõe-se como indispensável sob pena de se ficar condenado a uma total arbitrariedade. É o que Descartes reconhece quando depois de ter formulado os seus preceitos morais provisórios, atribui a estes um fundamento que não vai além da utilidade instrumental de que se revestem: "as três máximas precedentes [as regras da sua moral provisória] outro fundamento não tinham senão o propósito de continuar a instruir-me...." 8.

Ficam assim evidenciadas as duas principais aporias da teoria do conhecimento cartesiana, por um lado, o carácter associal e an-histórico do saber e por outro, a nítida separação entre teoria e prática, aporias que irão ser, de resto, o principal alvo da vigorosa crítica de Perelman. Com efeito, no dizer do "pai da nova retórica",  Descartes elaborou uma teoria do conhecimento não humano, mas divino, de um espírito único e perfeito, sem iniciação e sem formação, sem educação e sem tradição. E deste ponto de vista, a história do conhecimento seria unicamente a dos seus crescimentos e nunca a das suas modificações sucessivas, pois "se, para chegar ao conhecimento, é mister libertar-se dos preconceitos pessoais e dos erros, estes não deixam nenhum vestígio no saber enfim purificado" 9. Por outro lado, a separação clara e absoluta entre a teoria e a prática, faz com que, quando se trate, não da contemplação da verdade mas do uso da vida, na qual a urgência da acção exige decisões rápidas, o método cartesiano não nos sirva para nada. 

Mas Perelman não poderia estar em maior oposição à tese cartesiana. Rejeitando a possibilidade de acedermos ao absoluto, vai condicionar a qualificação de conhecimento à dimensão probatória do saber afirmado: "enquanto a intuição evidente, único fundamento de todo o conhecimento, num Descartes ou num Locke, não tem a menor necessidade de prova e não é susceptível de demonstração alguma, qualificamos de conhecimento uma opinião posta à prova, que conseguiu resistir às críticas e objecções e da qual se espera com confiança, mas sem uma certeza absoluta, que resistirá aos exames futuros. Não cremos na existência de um critério absoluto, que seja o fiador de sua própria infalibilidade; cremos, em contrapartida, em intuições e em convicções, às quais concedemos nossa confiança, até prova em contrário" 10. Já se antevê o relevo que a prova vai ter na sua concepção de saber e, em especial, na recuperação do mundo das opiniões para a esfera da racionalidade, uma racionalidade assim alargada, que não se confinando mais aos estreitos limites da verdade ou certeza absoluta, opera igualmente e com não menor eficácia nos domínios da razoabilidade onde o critério qualificador do racional será o acordo ou consenso e já não a evidência cartesiana. Para isso, é necessário afastar do espírito qualquer ideia de uma razão impessoal e absoluta. E é o que Perelman faz, quando rejeita a identificação do racional com o necessário e do não-necessário com o irracional, no reconhecimento de que há entre esses dois extremos absolutos todo um imenso campo em que a nossa actividade racional se exerce enquanto instância da razoabilidade. Analisando sobretudo as características do raciocínio prático, ele propõe-se mostrar como a razão é apta a lidar também com valores, a ordenar as nossas preferências ou convicções, logo, a determinar, com razoabilidade, as nossas decisões. Esse é o campo da argumentação que ele identifica com a retórica e por cuja reabilitação e renovação se bate ao fundar a sua teoria da argumentação numa filosofia do razoável. Desse modo, a razão humaniza-se e ganha um novo rosto: a racionalidade argumentativa.

 

2.  Por uma lógica do preferível: demonstração versus argumentação

 

Sabe-se como Perelman foi conduzido à retórica. Inicialmente interessado na investigação de uma hipotética lógica de juízos de valor que permitisse demonstrar que uma certa acção seria preferível a outra, acabou por retirar desse estudo duas inesperadas conclusões: primeiro, que não existia, afinal, uma lógica específica dos juízos de valor e, segundo, que aquilo que procurava "tinha sido desenvolvido numa disciplina muito antiga, actualmente esquecida e menosprezada, a saber, a retórica, a antiga arte de persuadir e de convencer" 11. Confessa, aliás, que foi da leitura e estudo da retórica de Aristóteles e de toda a tradição greco-latina da retórica e dos tópicos que lhe surgiu a surpreendente revelação de que "nos domínios em que se trata de estabelecer aquilo que é preferível, o que é aceitável e razoável, os raciocínios não são nem deduções formalmente correctas nem induções do particular para o geral, mas argumentações de toda a espécie, visando ganhar a adesão dos espíritos às teses que se apresentam ao seu assentimento" 12.  Daí que parta igualmente da distinção aristotélica entre duas espécies de raciocínio - os raciocínios analíticos e os raciocínios dialécticos - para evidenciar a estreita conexão destes últimos (os dialécticos) com a argumentação. Percebe-se que Perelman quer deixar bem clara a diferença entre estas duas espécies de raciocínio, porque, além do mais, a análise dessa diferença serve na perfeição para ilustrar a indispensabilidade da retórica. Para o efeito socorre-se dos Analíticos onde Aristóteles estuda formas de inferência válida, especialmente o silogismo, que permitem inferir uma conclusão de forma necessária, sublinhando o facto de a inferência ser válida independentemente da verdade ou da falsidade das premissas, ao contrário da conclusão que só será verdadeira se as premissas forem verdadeiras. Assim, a afirmação “se todos os A são B e se todos os B são C, daí resulta necessariamente que todos os A são C”, traduz uma inferência que é puramente formal por duas razões:  é válida seja qual for o conteúdo dos termos A, B e C (na condição de que cada letra seja substituída pelo mesmo valor sempre que ela se apresente) e estabelece uma relação entre a verdade das premissas e a da conclusão. Naturalmente que se a verdade é uma propriedade das proposições, independentemente da opinião dos homens, o raciocínio analítico só pode ser demonstrativo e impessoal. Esse não é, porém, o caso do raciocínio dialéctico, que Aristóteles define como sendo aquele em que as premissas se constituem de opiniões geralmente aceites, por todos, pela maioria ou pelos mais esclarecidos (o verosímil será então aquilo que for geralmente aceite, cabendo aqui referir, no entanto, que, para Perelman a expressão “geralmente aceite” não deve ser confundida com uma probabilidade calculável, por ser portadora de um aspecto qualitativo que a aproxima mais do termo "razoável" do que do termo "provável"). Mas se o raciocínio dialéctico parte do que é aceite, com o fim de fazer admitir outras teses que são ou podem ser controversas, é porque tem o propósito de persuadir ou convencer, de ser apreciado pela sua acção sobre outro espírito, numa palavra, é porque não é impessoal, como o raciocínio analítico. Pode então fazer-se a distinção entre os raciocínios analíticos e os raciocínios dialécticos com base no facto dos primeiros incidirem sobre a verdade e os segundos sobre a opinião. É que, como diz Perelman, seria “...tão ridículo contentarmo-nos com argumentações razoáveis por parte de um matemático como exigir provas científicas a um orador" 13.

Constata-se assim uma nítida preocupação de revalorizar os raciocínios dialécticos, sem contudo pôr em causa a operatividade dos raciocínios analíticos. O que Perelmam denuncia é a suposta "purificação" feita pela lógica moderna, especialmente depois de Kant e dos lógicos matemáticos terem identificado a lógica, não com a  dialéctica, mas com a lógica formal, acolhendo os raciocínios analíticos, enquanto os raciocínios dialécticos eram pura e simplesmente considerados como estranhos à lógica. Essa denúncia assenta basicamente na constatação de que se a lógica formal e as matemáticas se prestam a operações e ao cálculo, é também inegável que continuamos a raciocinar mesmo quando não calculamos, no decorrer de uma deliberação íntima ou de uma discussão pública, ou seja, quando apresentamos argumentos a favor ou contra uma tese ou ainda quando criticamos ou refutamos uma crítica. Em todos estes casos, não se demonstra (como nas matemáticas), argumenta-se. Daí que Perelman conclua: "É pois normal, se se concebe a lógica como estudo do raciocínio sob todas as formas, completar a teoria da demonstração, desenvolvida pela lógica formal, com uma teoria da argumentação, estudando os raciocínios dialécticos de Aristóteles" 14.

No âmbito da nova retórica, porém, o estudo da argumentação, visando a aceitação ou a rejeição duma tese em debate, bem como as condições da sua apresentação, não se limita à recuperação e revalorização da retórica de Aristóteles. Comprova-o, desde logo, o facto de Perelman assumir um diferente posicionamento quanto à relação entre a retórica e a dialéctica. Recordemos que nos seus Tópicos, Aristóteles concebe a retórica como oposta à dialéctica, chegando a considerá-la mesmo como o reverso desta última. Essa oposição, contudo, é fortemente tributária da distinção que o velho filósofo fazia entre uma e outra: a dialéctica como estudo dos argumentos utilizados numa controvérsia ou discussão com um único interlocutor e a retórica, como dizendo respeito às técnicas do orador "dirigindo-se a uma turba reunida na praça pública, a qual não possui nenhum saber especializado e que é incapaz de seguir um raciocínio um pouco mais elaborado" 15. Mas a nova retórica vem romper totalmente com essa distinção, na medida em que passa a dizer respeito aos discursos dirigidos a todas as espécies de auditórios, quer se trate de reuniões públicas, de um grupo fechado, de um único indivíduo ou até, de nós mesmos (deliberação íntima). Essa é, aliás, uma das novidades da nova retórica em que Perelman põe mais ênfase e para a qual apresenta a seguinte justificação: "Considerando que o seu objecto é o estudo do discurso não-demonstrativo, a análise dos raciocínios que não se limitam a inferências formalmente correctas, a cálculos mais ou menos mecanizados, a teoria da argumentação concebida como uma nova retórica (ou uma nova dialéctica) cobre todo o campo discursivo que visa convencer ou persuadir, seja qual for o auditório a que se dirige e a matéria a que se refere" 16.  Quando muito, Perelman admite que se possa completar o estudo geral da argumentação com metodologias especializadas em função do tipo de auditório e o género da disciplina, o que levaria à elaboração, por exemplo, de uma lógica jurídica ou de uma lógica filosófica, as quais mais não seriam do que aplicações particulares da nova retórica ao direito e à filosofia. Nesta afirmação poderemos surpreender uma outra inovação no seu pensamento retórico, pois dela decorre, como ele próprio assume, uma subordinação da filosofia à retórica, ao menos, no momento em que se trate de  verificar  se as teses da primeira merecem ou não ser acolhidas.  A questão é esta: ou se admite que se pode fundar teses filosóficas com base no critério da evidência e, nesse caso,  a filosofia bastar-se-á a si própria, não só quanto à sua elaboração mas também no tocante à sua demonstração ou não se admite que se possa fundar teses filosóficas sobre intuições evidentes e será preciso recorrer a técnicas argumentativas para as fazer prevalecer. Como já vimos, Perelman toma partido por esta segunda hipótese, o que o leva a considerar a nova retórica como um instrumento indispensável à filosofia, na convicção de que "todos os que crêem na existência de escolhas razoáveis, precedidas por uma deliberação ou por discussões, nas quais as diferentes soluções são confrontadas umas com as outras, não poderão dispensar, se desejam adquirir uma consciência clara dos métodos intelectuais utilizados, uma teoria da argumentação tal como a nova retórica a apresenta” 17. Vislumbram-se aqui os primeiros alicerces fundacionais daquilo a que, numa das suas obras,  virá a chamar “O império retórico” e que se tornam ainda mais visíveis quando afirma que a nova retórica “não se limitará, aliás, ao domínio prático, mas estará no âmago dos problemas teóricos para aquele que tem consciência do papel que a escolha de definições, de modelos e de analogias, e, de forma mais geral, a elaboração duma linguagem adequada, adaptada ao campo das nossas investigações, desempenham nas nossas teorias” 18.

Torna-se pois imperioso distinguir entre demonstração e argumentação, o que Perelman faz com assinalável clareza, começando por salientar que, em princípio, a demonstração é desprovida de ambiguidade (ou, pelo menos, assim é entendida) enquanto a argumentação, decorre no seio de uma língua natural, cuja ambiguidade não pode ser previamente excluída. Além disso, a demonstração - que se processa em conformidade com regras explicitadas em sistemas formalizados - parte de axiomas e princípios cujo estatuto é distinto do que se observa na argumentação. Enquanto numa demonstração matemática, tais axiomas não estão em discussão, sejam eles evidentes, verdadeiros ou meras hipóteses, e por isso mesmo não dependem também de qualquer aceitação do auditório, na argumentação, a discutibilidade está sempre presente, já que o seu fim "não é deduzir consequências de certas premissas mas provocar ou aumentar a adesão de um auditório às teses que se apresentam ao seu assentimento" 19. Pode então dizer-se que, no quadro do pensamento perelmaniano, a diferença entre demonstração e argumentação surge umbilicalmente ligada ao modo como nele se distingue a lógica tradicional da retórica. Não surpreende, por isso, que a própria noção de prova tenha que ser significativamente mais lata do que na lógica tradicional e nas concepções clássicas de prova pois a necessidade e a evidência não se coadunam com a natureza da argumentação e da deliberação. Nem se delibera quando a solução é necessária, nem se argumenta contra a evidência. Daí que Perelman venha dizer-nos que ao lado da prova para a lógica tradicional, dedutiva ou indutiva, impõe-se considerar também outro tipo de argumentos, os dialécticos ou retóricos. Este alargamento da noção de prova, mostra-se, aliás, em perfeita harmonia com o já referido alargamento da própria noção de razão. Organizada por um conjunto de processos  que tendem a enfatizar a plausibilidade da tese que se defende, a prova retórica manifesta-se pela força do melhor argumento, que se mostrará mais forte ou mais fraco, mais ou menos pertinente ou mais ou menos convincente, mas que, pela sua natureza, afasta, à partida, qualquer possibilidade de poder ser justificado como correcto ou incorrecto. Além disso, o acto de provar fica assim indissociavelmente ligado a uma dimensão referencial que implica a consideração das condições concretas do uso da linguagem natural e da ambiguidade sempre presente nas noções vagas e confusas que integram aquela. Do que se trata agora é de realizar uma prova nas e para as situações concretas em que se elabora e face às quais se apresenta como justificação razoável de uma opção, pois, como diz Perelman, “a possibilidade de conferir a uma mesma expressão sentidos múltiplos, por vezes inteiramente novos, de recorrer a metáforas, a interpretações controversas, está ligada às condições de emprego da linguagem natural. O facto desta recorrer frequentemente a noções confusas, que dão lugar a interpretações múltiplas, a definições variadas, obriga-nos muito frequentemente a efectuar escolhas, decisões, não necessariamente coincidentes. Donde a obrigação, bem frequente, de justificar esta escolha, de motivar  estas decisões” 20. Rui Grácio assinala aqui uma deslocação fundamental na noção de prova, no sentido da sua desdogmatização, sem que, contudo, se tenha de cair no cepticismo radical. O que se passa é que as exigencias de rigor e certeza deixam de se cingir à polaridade certeza absoluta-dúvida absoluta, passando a ser apreciadas à luz de uma lógica do preferível (ou informal) que já não visa a verdade abstracta, categórica ou hipotética, mas tão somente o consenso e a adesão. Abre-se assim espaço a um livre confronto de opiniões e argumentos que permite “dimensionar criticamente o acto de provar, ajustando-o às possibilidades e limites da condição humana (ligação com o passado, historicidade, impossibilidade de uma linguagem pura  ou de um grau zero do pensamento) e mostrar que a própria exigência de provar só tem verdadeiramente um sentido humano quando nela se vêem implicadas a nossa responsabilidade e a nossa liberdade" 21. É que se o raciocínio teórico, onde a conclusão decorre das premissas de uma forma impessoal, permite elaborar uma lógica da demonstração puramente formal, de aplicação necessária, o raciocínio prático, pelo contrário, ao recorrer a técnicas de argumentação, implica sempre um determinado poder de decisão, ou seja, a liberdade de quem julga a tese, para a ela aderir ou não. O fim do raciocínio prático não é já o de demonstrar a verdade, mas sim, mostrar em cada caso concreto, que a decisão não é arbitrária, ilegal, imoral ou inoportuna, numa palavra,  persuadir que ela é motivada pelas razões indicadas.



 

3.  A adesão como critério da comunicação persuasiva

 

3.1. O duplo efeito da adesão

 

Que a retórica visa persuadir e que a adesão é, simultaneamente, o fim e o critério da comunicação persuasiva, é ponto assente. Mas qual a natureza e extensão dessa adesão?  Quando se pode afirmar que há ou não adesão? Bastará para tanto que o interlocutor ou o auditório passem a comungar da mesma ideia que o orador? Poder-se-á falar de adesão passiva e adesão activa? Mais: será possível estabelecer alguma distinção entre adesão e convencimento? Santo Agostinho vem ao encontro deste conjunto de questões quando considera que o auditório só será verdadeiramente persuadido "se conduzido pelas vossas promessas e aterrorizado pelas vossas ameaças, se rejeita o que condenais e abraça o que recomendais; se ele se lamenta diante do que apresentais como lamentável e se rejubila com o que apresentais como rejubilante; se se apieda diante daqueles que apresentais como dignos de piedade e se afasta daqueles que apresentais como homens a temer e a evitar" 22. Dele nos diz Perelman que, falando aos fiéis para que acabassem com as guerras intestinas, não se contentou com os aplausos e falou até que vertessem lágrimas, testemunhando assim, que estavam preparados para mudar de atitude. Evidentemente que não podemos, hoje em dia, aceitar integralmente as ideias retóricas de Santo Agostinho, nomeadamente quando nos fala de "verdades práticas" e preconiza o aterrorizar do auditório. O que interessa aqui destacar é a sua visível preocupação por aquilo a que podemos chamar de "adesão activa", ou seja, a ideia de que em muitos casos, ao orador não bastará levar o auditório a concordar com a sua tese - o que em si mesmo se traduziria pelo mero assentimento ou disposição de a aceitar - antes terá de se certificar que  a adesão obtida configura também a acção ou a predisposição de a realizar. Ora a nova retórica contempla igualmente esse duplo efeito da adesão, já que "(...) a argumentação não tem unicamente como finalidade a adesão puramente intelectual. Ela visa, muito frequentemente, incitar à acção ou, pelo menos, criar uma disposição para a acção. É essencial que a disposição assim criada seja suficientemente forte para superar os eventuais obstáculos" 23. Um discurso argumentativo será então eficaz se obtiver êxito num dos dois objectivos possíveis: ou conseguir do auditório um efeito puramente intelectual, ou seja, uma disposição para admitir a plausibilidade de uma tese (quando a tal se limite a intenção do orador) ou provocar uma acção a realizar imediata ou posteriormente. Logo, com base no critério da tendência para a acção, poderemos configurar o primeiro dos efeitos como "adesão passiva"  e o segundo, como "adesão activa". Num e noutro caso, porém, sempre está em causa a competência argumentativa do orador,  os metódos e as técnicas retóricas a que recorre e, de um modo muito especial, o tipo de auditório sobre o qual quer agir. 



 

3.2. Persuasão e convencimento: do auditório particular ao auditório universal


Segundo Perelman, é justamente pela análise dos diversos tipos de auditório possíveis que poderemos tomar posição quanto à distinção clássica entre convencimento e persuasão, no âmbito da qual se concebem os meios de convencer como racionais, logo, dirigidos ao entendimento e os meios de persuasão como irracionais, actuando directamente sobre a vontade. A persuasão seria pois a consequência natural de uma acção sobre a vontade (irracional) e o convencimento, o resultado ou efeito do acto de convencer (racional). Mas se, como sugere Perelman, analisarmos a questão pela óptica dos diversos meios de obter a adesão das mentes, forçoso será constatar que esta última é normalmente conseguida “por uma diversidade de procedimentos de prova que não podem reduzir-se nem aos meios utilizados em lógica formal nem à simples sugestão” 24. É o caso da educação, dos juízos de valor, das normas e de muitos outros domínios onde se julga impossível recorrer apenas aos meios de prova “puramente” racionais. Além disso, afigura-se igualmente muito problemática a possibilidade de determinar à partida quais os meios de prova convincentes e aqueles que o não são, segundo se dirijam ao entendimento ou à vontade, pois que, como se sabe, o homem não é constituído por faculdades completamente separadas. Acresce que “Aquele que argumenta não se dirige ao que consideramos como faculdades, como a razão, as emoções, a vontade. O orador dirige-se ao homem todo...” 25. Daí que a distinção entre persuasão e convencimento, quando centrada nos índices de confiabilidade e validação inerentes ao par racional/irracional, pareça nada poder vir a acrescentar à compreensão do acto retórico. Estará mesmo contra-indicada pois “os critérios pelos quais se julga poder separar convicção e persuasão são sempre fundamentados numa decisão que pretende isolar de um conjunto – conjunto de procedimentos, conjunto de faculdades – certos elementos considerados racionais” 26. Surpreendentemente, porém, eis que Perelman submete essa mesma distinção a uma reciclagem conceptual e dela se serve não já para validar racionalmente os meios utilizados ou as faculdades às quais o orador se dirige, nem tão pouco para precisar o que se deve entender  por persuasão e por convicção mas para estabelecer uma polémica diferenciação entre duas intencionalidades discursivas, que poderíamos prefigurar como intencionalidade técnica e intencionalidade filosófica, conforme se vise unicamente a adesão do auditório particular ou uma aprovação universal. O que, a nosso ver, se traduz numa diferente forma de perspectivar o convencimento fazendo-o convergir agora, do ponto de vista da argumentação, mais com a potência do que com o acto, mais com o que deve ser do que com o que é, mais com a intenção do orador do que com a adesão do auditório. A essa constatação nos reconduz a natural anterioridade de toda a intenção relativamente à apresentação e recepção efectivas de cada argumento. Reconheça-se, por isso, que, da concepção clássica de uma convicção fundada na verdade do seu objecto, já pouco resta neste modo perelmaniano de distinguir a persuasão do convencimento. A resposta de Perelman, mais do que solucionar, parece “matar” o problema. Da inicial pretensão à verdade, fica apenas uma intenção de verdade e um método para a retórica tendencialmente dela se aproximar, método esse que desde logo se vislumbra no modo como estabelece a diferença entre argumentação persuasiva e argumentação convincente quando se propõe “chamar persuasiva a uma argumentação que pretende valer só para um auditório particular e chamar convincente àquela que deveria obter a adesão de todo o ser racional” 27. Notemos aqui, antes de mais, que as expressões pretende valer e deveria valer são certamente suficientes para afirmar uma intenção de se chegar à persuasão ou à convicção mas nunca  para definirem o que seja uma ou outra. Logo, são os meios de obter a adesão das mentes  que ficam definidos e não a persuasão nem a convicção. Ou seja, é principalmente a atitude do orador e o seu modo de argumentar que estão em causa. Resta saber o que pode ser entendido por uma argumentação “que deveria obter a adesão de todo o ser racional”. É aqui que entra a controversa noção de auditório universal perelmaniano.

Já deixamos antever  que  para Perelman a questão do convencimento é indissociável da natureza do auditório. Ora este pode ser  representado como “o conjunto daqueles que o orador quer influenciar pela sua argumentação” 28, o que é algo mais do que circunscrevê-lo ao número de  pessoas física e directamente presentes ao orador. O deputado que discursa na Assembleia da República, será aqui um bom exemplo. Embora se dirija formalmente ao Presidente da Mesa, ele fala, não só para os restantes deputados que integram o Parlamento como também, frequentemente, para o conjunto de cidadãos que o irão ouvir, em suas casas, na reportagem do telejornal. Pode mesmo falar para todos os portugueses se a causa que defende a todos respeita e até para os europeus ou, ainda, no limite, para todo o mundo, no caso do respectivo interesse nacional de alguma forma ser dimensionável ao nível da globalização. Teremos aqui o primeiro afloramento do que seja um auditório universal, no sentido que Perelman lhe atribui? Obviamente que não, pois a sua noção de auditório universal não se funda numa qualificação numérica ou espacial, em função da quantidade e localização dos destinatários de uma dada argumentação. Além disso, o auditório do exemplo que acabamos de referir insere-se na própria realidade, enquanto que o auditório universal de Perelman pura e simplesmente não existe, não se oferece a qualquer observação física, é uma pura construção ideal do orador. Nâo é pois nem uma universalidade concreta e delimitável, nem tão pouco uma universalidade teórico-abstracta autónoma e invariável que pudesse servir de garantia ou padrão qualificativo da argumentação convincente. Neste sentido, é perfeitamente compreensível a advertência de Perelman: “Em vez de se crer na existência de um auditório universal, análogo ao do espírito divino que tem de dar o seu consentimento à ‘verdade’, poder-se-ia, com mais razão, caracterizar cada orador pela imagem que ele próprio forma do auditório universal que busca conquistar para as suas opiniões. O auditório universal é constituído por cada qual a partir do que sabe de seus semelhantes...” 29.  Mas daqui não decorre que seja convincente toda a argumentação que obedeça ao que cada uma das pessoas, num dado auditório, entenda como real, verdadeiro e objectivamente válido (de resto, tarefa impossível), e sim,  a argumentação em que o orador crê que “todos os que compreenderem suas razões terão de aderir às suas conclusões” 30.  Pode então deduzir-se que, de algum modo, o orador fica cometido de uma importante função prospectiva: a de avaliar antecipadamente o que os destinatários da sua argumentação devem (ou deveriam)  pensar e concluir  quanto às razões que ele próprio lhes irá apresentar.  Mas ocorre perguntar se, nestas condições, estaremos ainda face a uma situação retórica. Até que ponto esta “convicção prévia” do orador sobre o carácter racional (logo, inatacável...) dos seus argumentos não irá dificultar ou até mesmo violar a livre discutibilidade a que aquela não pode nunca eximir-se? E de que poder ou faculdade tão especial dispõe quem argumenta para definir, à partida, o que os seus auditores deveriam entender como racionalmente válido? Pensamos que nesta sua concepção de auditório universal Perelman não resistiu ao “assédio” da razão objectiva (ainda que numa versão fortemente mitigada) que tanto critica em Descartes. Basta atentar nesta breve passagem do seu Tratado  da argumentação: “É por se afirmar o que é conforme a um facto objectivo, o que constitui uma asserção verdadeira e mesmo necessária, que se conta com a adesão daqueles que se submetem aos dados da experiência ou às luzes da razão” 31. Facto objectivo? Que  valor de universalidade pode ser atribuído a este conceito ao mesmo tempo que se reconhece que “não contamos com nenhum critério que nos possibilite, em qualquer circunstância e independentemente da atitude dos ouvintes, afirmar que alguma coisa é um facto”? 32  Luzes da razão?  Mas quem apela à razão, como diz Thomas Nagel, “...propõe-se descobrir uma fonte de autoridade em si mesmo que não é meramente pessoal ou social, mas antes universal -  e que deverá também persuadir outras pessoas que estejam na disposição de a ouvir” 33. Ora este modo de descrever a razão, como o reconhece o próprio Nagel, é de nítida inspiração cartesiana ou platónica 34. O mínimo que se pode dizer, portanto, é que Perelman não explicitou com suficiente clareza esta sua noção de auditório universal, quer enquanto instância normativa da argumentação, quer como critério do discurso convincente. Tal como a apresenta, quer no Tratado da argumentação, quer no Império retórico ou na Retóricas, fica-nos, aliás, a impressão de que, movido pela louvável preocupação de  conferir à retórica um cunho marcadamente filosófico, dela terá exigido mais do que a mesma poderia dar.  É certo que “toda a argumentação que visa somente a um auditório particular oferece um inconveniente, o de que o orador, precisamente na medida em que se adapta ao modo de ver dos seus ouvintes, arrisca-se a apoiar-se em teses que são estranhas, ou mesmo francamente opostas, ao que admitem outras pessoas que não aquelas a que, naquele momento, ele se dirige” 35. Mas não é o próprio Perelman quem, sem qualquer reserva, afirma que “é , de facto, ao auditório que cabe o papel principal para determinar a qualidade da argumentação e o comportamento dos oradores”? 36 E como conciliar a imposição racional do auditório universal 37 com a tolerância de situações em que a adesão do auditório se fica a dever à utilização de premissas cuja validade não é reconhecida pelo orador? Ainda que pareça algo estranho e incoerente, é o que Perelman faz quando refere, a certa altura, na sua obra Retóricas: “É possível, de facto, que o orador procure obter a adesão com base em premissas cuja validade ele próprio não admite. Isto não implica hipocrisia, pois o orador pode ter sido convencido por argumentos diferentes daqueles que poderão convencer as pessoas a quem se dirige” 38. Será que, no entender de Perelman, a função normativa do auditório universal exerce-se quanto aos fins mas já não quanto aos meios da argumentação? Não estaríamos aqui perante um sério atropelo às preocupações ético-filosóficas na base das quais Perelman formula a própria intenção de universalidade que deve animar o orador? É provável que estas contradições ou ambiguidades em que a sua noção de auditório universal parece mergulhar e até mesmo o pendor universalista que a caracteriza, fiquem a dever-se, em grande parte, ao proposionalismo e correspondente acento lógico-intelectual da própria concepção perelmaniana de retórica (ou argumentação). Recordemos que esta remete-nos para o “estudo das técnicas discursivas que permitem provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses que se lhes apresentam ao assentimento39. Mas Meyer (a quem voltaremos na III Parte deste estudo) veio mostrar como “a retórica não fala de uma tese, de uma resposta-premissa que não corresponde a nada, mas da problematicidade que afecta a condição humana, tanto nas suas paixões como na sua razão e no seu discurso” 40. E, na medida em que, segundo este mesmo autor, “a relação retórica consagra sempre uma distância social, psicológica, intelectual, que é contingente e de circunstância, que é estrutural porque, entre outras coisas, se manifesta por argumentos ou por sedução” 41, já não se vê razões para que a negociação dessa distância (em que se traduz toda a situação retórica) deva fazer-se sob a imperatividade de qualquer  generalização prévia exterior ao próprio confronto de opiniões e, muito menos, quando tal generalização tenha lugar apenas na cabeça do orador (como preconiza Perelman), por muito qualificado e honesto que ele seja. A ideia de auditório universal que surge em Perelman algo nebulosamente identificada com  a razão, parece assim desprovida de qualquer valor operatório enquanto critério ou método de aproximação à verdade. Surpreende, aliás, que depois de recusar o auditório íntimo como encarnação plena do auditório universal, sob o argumento de que não se pode confiar na sinceridade do sujeito que delibera para consigo mesmo, dado que “a psicologia das profundezas ensinou-nos a desconfiar até do que parece indubitável à nossa própria consciência” 42, Perelman tenha acabado por tão confiadamente fazer depender a racionalidade argumentativa “...de uma universalidade e de uma unanimidade que o orador imagina...”  43. Concluindo, o auditório universal pode não corresponder à fórmula mais feliz de satisfazer a exigência de sinceridade e lucidez que se impõe a todo o orador, enquanto “ser para o outro”, mas é, sem dúvida, uma afirmação do ideal ético que o deve nortear. O que não parece admissível é ver nele o (único) critério para se classificar um discurso como convincente ou “apenas” persuasivo, conforme a  intenção  do orador seja a de obter a adesão de todo o ser de razão ou só de alguns 44. Porque a intenção de convencer não é ainda o convencer, nem a convicção do orador se propaga automaticamente ao seu próprio discurso ou àqueles a quem este se dirige. De resto, quando situada no plano comunicacional, a convicção, como assinala Mellor, não se limita ao que pretendemos comunicar. “Há também a convicção que temos de qual seja essa nossa convicção, que é a que vai determinar que a digamos. E, finalmente, há, claro, a nossa convicção de que quem nos ouvir ficará convencido do que dizemos” 45. Quem decide, em última análise, se o discurso é ou não convincente é o auditório, de acordo com a maior ou menor intensidade da sua adesão. E ainda que se admita que um discurso convincente é aquele cujas premissas e argumentos são universalizáveis, no sentido de aceitáveis, em princípio, por todos os membros do auditório universal (como o faz Perelman), não se pode retirar ao auditório o seu direito de sancionar ou não tal generalização ou universalidade. No seio da retórica crítica, tão reiteradamente defendida pelo próprio Perelman, faria algum sentido intrometer um orador “iluminado” com a transcendente função de estabelecer à partida o que é válido para todo o ser racional? Uma coisa é a convicção com que o orador argumenta, outra, que pode ser bem diferente, é a convicção com que o auditório cimenta as suas crenças, os seus valores ou a que nele se forma sobre a pertinência e adequação dos argumentos que lhe são apresentados. Ora esta última terá sido praticamente ignorada por Perelman, facto tanto estranho quanto se tenha presente a sua própria recomendação de que o orador deve adaptar-se ao auditório (como veremos no capítulo seguinte). É que implicando tal adaptação uma prévia selecção das premissas já aceites para a partir delas se justificar uma proposta ou conclusão, bem como a constante atenção do orador às sucessivas reacções daqueles a quem se dirige, como permanecer alheio à convicção com que o auditório perfilha tais crenças e valores ou até mesmo ao convencimento que nele se produz durante o desenvolvimento da argumentação? Cremos, por isso, que, ao nível do respectivo processo de comunicação, Perelman deu o maior relevo à convicção do emissor, mas descurou sistematicamente o papel que a convicção do receptor exerce na orientação e sentido do próprio acto de adesão.





4.  Estratégias de persuasão e técnicas argumentativas 

 

4.1. A escolha das premissas

 

O principal objectivo de um orador é conseguir a adesão às suas propostas. Logo, como observa Perelman, deve antes de mais saber adaptar-se ao seu auditório, sob pena de ver seriamente afectada a eficácia do seu discurso. Essa adaptação consiste, essencialmente, no reconhecimento de que só pode escolher como ponto de partida do seu raciocínio, teses já admitidas por aqueles a quem se dirige, mesmo que lhe pareçam inverosímeis. Já vimos que a finalidade da argumentação - ao contrário da demonstração - não é provar a verdade da conclusão a partir da verdade das premissas, mas sim, como lembra Perelman, "transferir para as conclusões a adesão concedida às premissas" 46. Não se preocupar com a adesão do auditório às premissas do seu discurso, levaria o orador a cometer a mais grave das faltas - a petição de princípio - ou seja, apresentar uma tese como já aceite pelo auditório, sem cuidar primeiramente de confirmar se ela beneficia previamente de uma suficiente adesão. A argumentação, como o seu próprio nome sugere, corresponde a um encadear de argumentos intimamente solidários entre si, com o fim de mostrar a plausibilidade das conclusões. Se uma das premissas do raciocínio argumentativo for  contestada, quebra-se essa cadeia de solidariedade, independentemente do valor intrínseco da tese apresentada pelo orador. É que uma coisa é a verdade da tese, outra é a adesão que ela suscita, pois "mesmo que a tese fosse verdadeira, supô-la admitida, quando é controversa, constitui uma petição de princípio característica” 47. E porque a adesão pressupõe consenso, o orador  deve recorrer aos possíveis objectos de acordo para neles fixar o ponto de partida da sua argumentação. Neste ponto, Perelman faz uma distinção entre os objectos de acordo que incidem sobre o real, sejam factos, verdades ou presunções e aqueles que recaem sobre o preferível, tais como valores, hierarquias e lugares, após o que procura explicitar cada um deles no quadro da nova retórica. Analisando o estatuto retórico dos factos e das verdades que a linguagem e o senso comum  associam a elementos objectivos e oponíveis a todos salienta que, do ponto de vista argumentativo não podem, contudo, ser  desligados da atitude do auditório a seu respeito. É que se concebemos  os factos ou as verdades como algo de objectivo, esse estatuto impor-se-á a todos, ou seja, será em princípio admitido pelo auditório universal, logo, o orador  não precisará, neste domínio, de reforçar a adesão do auditório. Mas quando um facto ou uma verdade são contestados pelo auditório, o orador já não pode valer-se deles, excepto se mostrar que o oponente se engana ou que não há razão para  atender à sua contestação. Nesse caso, estaríamos numa situação característica de desqualificação do oponente, retirando-lhe - no contexto argumentativo - a qualidade de interlocutor competente e razoável.

Tanto basta para que se tenha de reconhecer que no campo da argumentação, um facto ou uma verdade nunca têm o seu estatuto definitivamente assegurado, excepto quando se admita a existência de uma autoridade infalível ou divina. Sem a garantia absoluta que decorreria desta última, todos os factos e verdades poderão então ser postos em causa, independentemente de serem admitidos como tais pela opinião comum ou pela opinião de especialistas. Sublinhe-se, contudo, que, "se o acordo a seu respeito for suficientemente geral, ninguém os pode ignorar sem se tornar ridículo, a menos que forneça razões capazes de justificar o cepticismo a seu propósito" 48. Nesse caso, ao oponente não resta outra posição que não seja a de tentar desqualificar os factos ou verdades apresentadas pelo orador mas que não merecem a sua aprovação. E a forma mais eficaz de desqualificar um facto ou uma verdade é, segundo Perelman, "mostrar a sua incompatibilidade com outros factos e verdades que se afiguram mais seguras, e mesmo, de preferência, com um feixe de factos ou de verdades que não se está preparado para abandonar" 49. Mas para além dos factos e das verdades, o orador recorre também às chamadas presunções, que não apresentando a mesma garantia que aqueles, ainda assim, permitem fundar uma convicção razoável. Em certas situações retóricas serão mesmo um recurso argumentativo indispensável. Estão ligadas à experiência comum, ao senso comum, são elas que nos permitem orientar na vida. Fundam-se numa certa constatação estatística e assentam na convicção de que o que acontece habitualmente em cada situação de vida, é o normal. É neste contexto que poderemos, por exemplo, considerar as presunções de credibilidade natural, de ligação acto-pessoa e ad hominem, como praticamente omnipresentes em todas as situações retóricas. Com duas reservas, porém: primeiramente, a presunção tem sempre um carácter provisório,  podendo vir a ser contraditada pelos factos; depois, como a noção de normal que está subjacente a toda a presunção é sempre mais ou menos ambígua, logo que sejam dados a conhecer os factos e a causa, a presunção pode vir a ser considerada não aplicável na ocorrência. Estaremos então perante  uma tentativa de inverter a presunção que favorece a tese do adversário, tirando partido do efeito mais imediato de uma presunção, que é o de impor que sejam apresentadas provas àquele que se opõe à sua aplicação. 

Vimos já que aos juízos que se supõe exprimirem o real conhecido ou presumido, podem opôr-se os que exprimem uma preferência - valores e hierarquias – e os que indicam o que é preferível - lugares do preferível. Perelmam vai buscar a Louis Lavelle um conceito operatório de valor: "pode dizer-se que o termo valor se aplica sempre que tenhamos de proceder a uma ruptura da indiferença ou da igualdade entre as coisas, sempre que uma delas deva ser posta antes ou acima de outra, sempre que ela é julgada superior e lhe mereça ser preferida" 50.  Este conceito de valor parece adequar-se sobretudo às hierarquias, onde os elementos hierarquizados estão expressamente indicados. Mas lembra Perelman que, com muita frequência, os valores positivos ou negativos, traduzem também uma atitude favorável ou desfavorável sobre determinado acto ou objecto, sem qualquer intenção comparativa, como quando se qualifica (valorizando) algo de justo, belo, verdadeiro, real ou  (desvalorizando) como mau, injusto, feio ou falso. Sendo controversos, os juízos de valor foram considerados pelos positivistas como não possuindo qualquer objectividade, ao contrário do juízos de realidade, onde a experiência e a verificação permitiria o acordo de todos.  Mas Perelman entende que há valores universais, admitidos por todos, tais como o verdadeiro, o bom, o belo e o justo, embora reconheça que essa sua universalidade se fica a dever ao facto de permanecerem indeterminados. Uma vez que  se tente precisá-los, aplicando-os a uma situação concreta, aí, sim, surgirão imediatamente os desacordos. Os valores universais serão pois um importante instrumento de persuasão, no dizer de E. Dupréel, uma “espécie de utensílios espirituais totalmente separáveis da matéria que permitem moldar, anteriores ao momento do seu uso, e ficando intactos depois de terem servido, disponíveis, como antes, para outras ocasiões” 51. Além disso, permitirão representar os valores particulares como um aspecto mais determinado dos valores universais. 

Mas o estudo da argumentação centrada nos valores, leva-nos a considerar  igualmente a distinção entre valor concreto e valor abstracto, conforme o mesmo se refira ou não a um ser particular, a um objecto, a um grupo ou instituição, com acentuação no seu carácter único. Por isso Perelman dá exemplos de comportamentos ou virtudes que só se podem compreender em relação a tais valores concretos - a fidelidade, a lealdade, a solidariedade, a honra - e enuncia, como valores abstractos (muito caros ao racionalismo) as regras válidas para todos e em todas as circunstâncias: a justiça, a veracidade, o amor à humanidade, o imperativo categórico de Kant em que a moral é definida pelo universalizável e o princípio do utilitarismo de Bentham que define o bem como aquilo que é mais útil à maioria.  Tanto os valores concretos como os valores abstractos são indispensáveis na argumentação, mas surgem sempre numa relação de subordinação de uns aos outros, subordinação que parece oscilar, por vezes, radicalmente, ao longo da história. Para Aristóteles, por exemplo, o amor à verdade (valor abstracto) prevalece sobre a amizade a Platão (valor concreto). Já Erasmo defende que é preferível uma paz injusta (valor concreto) à justiça (valor abstracto). De um modo geral, sustenta Perelman, “os raciocínios fundados sobre valores concretos parecem característicos das sociedades conservadoras. Ao invés, os valores abstractos servem mais facilmente a crítica e estarão ligados à justificação da mudança, ao espírito revolucionário” 52. 

A argumentação apoia-se ainda sobre hierarquias, tanto abstractas como concretas, sejam elas homogéneas ou heterogéneas. Exemplo de uma hierarquia concreta são os raciocínios que partem da ideia de que os homens são superiores aos animais e os deuses aos homens. Mas há também as hierarquias abstractas, como a superioridade do justo sobre o útil ou da causa sobre o efeito. Estas hierarquias por outro lado, tanto podem ser heterogéneas quando relacionam entre si valores diferentes (a verdade acima da amizade de Platão, no caso de Aristóteles)  como homogéneas, quando se baseiam numa diferença de quantidade (uma dor mais fraca é preferível a uma dor mais forte). De salientar, porém, que, contrariamente ao que se passa com o que se opõe ao real ou ao verdadeiro, que só pode ser aparência, ilusão ou erro, no conflito de valores não se opera nunca a desqualificação do valor sacrificado pois como diz Perelman “um valor menor permanece, apesar de tudo, um valor” 53. E esta é uma ideia que não pode deixar de estar presente na discutibilidade argumentativa, como referência básica do respeito pela liberdade do outro. Quanto aos lugares do preferível, estes desempenham na argumentação um papel análogo ao das presunções. Aristóteles dividiu-os em lugares comuns e lugares específicos. Os primeiros correspondendo a afirmações muito gerais sobre o que se presume valer mais seja em que domínio for e os segundos, que se identificam com o que é preferível em domínios particulares. No elenco de lugares possíveis descritos por  Perelman, o destaque vai para os mais usuais: o lugar de quantidade, pelo qual se enuncia aquilo que é mais útil para a maioria ou nas situações mais diversas e o lugar de qualidade, quando a preferência de algo é fundada no facto de ser único ou raro.


 

4.2. As figuras de retórica na criação do efeito de presença

  

O facto do orador ter que colher as premissas da sua argumentação entre as teses já admitidas pelo auditório, para além de implicar uma escolha de factos e valores, faz surgir a necessidade de se decidir previamente sobre a melhor forma de os descrever, que tipo de linguagem deverá utilizar, qual a insistência com que o fará, tudo isso, em função da importância que lhes atribui. Naturalmente que a essa escolha de factos e valores seguir-se-á o recurso a adequadas técnicas de apresentação no intuito de os trazer para o primeiro plano da consciência, conferir-lhes uma visibilidade ou presença que torne quase impossível ignorá-los. É este efeito de presença que Perelman resolve ilustrar com uma curiosa narrativa chinesa já citada por Mencius: 

Um rei vê passar um boi que deve ser sacrificado. Tem piedade dele e ordena que seja substituído por um carneiro. Confessa que tal lhe aconteceu por ter visto o boi e não ter visto o carneiro 54.  

Reconhecendo que a presença actua directamente sobre a nossa sensibilidade, Perelman põe, porém, algumas reservas à apresentação efectiva de um objecto com o intuito de comover ou seduzir o auditório, pois daí poderão decorrer também alguns efeitos perversos, tais como distrair os participantes ou orientá-los numa direcção não desejada pelo orador. Diz, aliás, que as técnicas de apresentação, criadoras da presença, são sobretudo essenciais quando se trata de evocar realidades afastadas no tempo e no espaço. O que está aqui em causa, portanto, não é tanto uma presença efectiva mas antes uma presença para a nossa consciência. Estamos pois em sede dos efeitos de linguagem e da sua capacidade de evocação que pode oscilar entre uma retórica concebida como arte de persuadir e uma retórica como técnica de expressão literária. E se Perelman critica o reducionismo desta última enquanto definição do que seja a retórica, não deixa, simultaneamente, de reconhecer a operatividade do recurso às figuras, nomeadamente quando o orador visa criar o aludido efeito de presença. Importa, por isso, reconhecer que “(...) o esforço do orador é meritório quando ele consegue, graças ao seu talento de apresentação, que os acontecimentos, que sem a sua intervenção teriam sido negligenciados, venham ocupar o centro da nossa atenção” 55. Dividir o todo nas suas partes (amplificação) ou terminar com uma síntese destas últimas (conglomeração), repetir a mesma ideia por outras palavras (sinonímia), descrever as coisas de modo a que pareçam passar-se sob os nossos olhos (hipotipose)  insistir em certos tópicos apesar de já entendidos pelo auditório (repetição) ou perguntar sobre algo quando já se conhece a resposta (interrogação), são apenas alguns dos modos pelos quais se pode criar um efeito de presença potenciador da própria argumentatividade. Mas, como destaca Perelman, é somente quando a figura de estilo desempenha também uma função argumentativa que ela se torna uma figura de retórica. De contrário, permanecerá no discurso como mero ornamento de linguagem.

 

4.3.  Técnicas e estruturas argumentativas

  

Tomando por base o mesmo critério que permite a distinção entre figuras de retórica e figuras de ornamento ou de estilo da linguagem, poderemos então afirmar que, em geral, os meios de que se serve o orador só serão considerados como retóricos na medida em que se mostrem interconexionados e idóneos à obtenção da adesão. Estão nesse caso, em primeiro lugar, os próprios argumentos, quer quando servem de ligação para transferir para a conclusão a adesão concedida às premissas, quer quando revestem a forma de dissociação, para separar os elementos que a linguagem ou uma tradição reconhecida tinham anteriormente ligado entre si.  

É conhecida a classificação dos argumentos elaborada por Perelman, em função do específico tipo de ligação (ou dissociação) para que remetem: argumentos quase lógicos, argumentos fundados na estrutura do real e aqueles que fundam essa estrutura. Da minuciosa caracterização que o autor nos faz de cada um destes três grupos de esquemas argumentativos 56 interessa-nos, porém, reter apenas aqueles aspectos que nos parecem mais ilustrativos da força persuasiva que determinadas figuras ou procedimentos discursivos podem imprimir, num ou noutro sentido, ao processo global da argumentação. Naturalmente que sempre sem perder de vista, como aliás o próprio  Perelman  adverte, que a compreensão última do sentido e alcance de um argumento isolado só é possível na sua estreita relação com a totalidade do respectivo discurso, com o contexto e a situação em que se insere. 

No caso dos argumentos quase lógicos, a primeira coisa que salta à vista é a sua falta de rigor e precisão relativamente ao que se observa na demonstração. Mas as razões que o orador invoca e desenvolve para tentar ganhar a adesão do seu auditório são, efectivamente, de outra natureza. Não se  trata já  de uma  demonstração  correcta ou  incorrecta, falsa  ou  verdadeira, mas de um encadeamento de argumentos mais ou menos fortes, mais ou menos plausíveis, que visam estabelecer um acordo, uma adesão. Argumentos que são “quase lógicos” precisamente pela aparência demonstrativa que lhes advém do facto de apelarem para estruturas lógicas tais como contradição, identidade e transitividade ou para relações matemáticas como a relação da parte com o todo, do menor com o maior e a relação de frequência. Só que, enquanto num sistema formal o aparecimento de uma contradição o fere de morte, tornando-o incoerente e inútil, o mesmo já não sucede na linguagem corrente, onde a contradição joga um papel completamente diferente. Perelman cita a famosa expressão de Heráclito “entramos e não entramos duas vezes no mesmo rio”  para mostrar como vemos nela apenas uma contradição aparente que logo desaparecerá, ao interpretarmos de duas formas diferentes a expressão “o mesmo rio”, ou seja, como podendo significar as duas margens (sempre as mesmas) e as águas que nele correm (sempre diferentes). A contradição só leva ao absurdo quando a univocidade dos signos  não deixa em aberto qualquer hipótese de lhe escapar, o que não sucede com as expressões formuladas numa língua natural, sempre que se possa presumir que aquele que nos fala não diz coisas absurdas. É por isso que Perelman sustenta que na argumentação nunca nos encontramos perante uma contradição propriamente dita, mas sim, perante uma incompatibilidade, quando uma tese sustentada em determinado caso, entra em conflito com uma outra, já afirmada anteriormente ou geralmente admitida e à qual é suposto o auditório aderir. É que, ao contrário da contradição que nos levaria ao absurdo, a incompatibilidade apenas nos obriga a escolher uma das teses em conflito e a abandonar a outra ou restringir-lhe o alcance. 

O carácter quase lógico de que este tipo de argumentos se reveste, traduz-se, portanto, num recurso à configuração representacional de operações tradicionalmente tidas como estritamente lógicas, mas sem que delas se possa necessariamente extrair o mesmo tipo de consequências que ocorrem no seio da lógica formal. É o caso, por exemplo, da identidade e definição. Como se sabe, uma identidade puramente formal ou se funda na evidência ou é estabelecida convencionalmente. Logo, não é susceptível de controvérsia. Mas esse não é o caso das identificações que têm lugar na linguagem corrente. No caso da definição, ao pretender-se identificar o “definiens” com o “definiendum”, está-se a fazer um uso argumentativo da identidade, já que as definições tratam o termo definido e a expressão que o define, como intermutáveis. Diz Perelman que os lógicos tendem a considerar as definições como arbitrárias mas que isso só é válido num sistema formal no qual se supõe não terem os signos outro sentido do que aquele que lhes é convencionalmente atribuído, pois numa língua natural já tal não acontece, a menos que se trate de termos técnicos nela introduzidos com o sentido próprio que lhes impõe. “Se o termo já existe, ele é solidário, na linguagem, de classificações prévias, de juízos de valor que à partida lhes conferem uma coloração afectiva, positiva ou negativa, já não podendo a definição do termo ser considerada arbitrária” 57. Ora os valores, sendo controversos, devem ser justificados através de uma argumentação que leve ao reconhecimento do argumento quase lógico com base no qual se justifica aderir à definição. Por isso, ou uma noção pode ser definida de várias maneiras e terá de se efectuar uma escolha, o que pressupõe a sua discussão, ou essa noção orienta o raciocínio, como no caso de uma definição legal e deverá ser justificada, excepto se se dispuser da autoridade do legislador. 

Também a regra da justiça e a reciprocidade que lhe é inerente, fundadas no tão proclamado princípio de igualdade de tratamento perante a lei são, como nos lembra Perelman,  a expressão de uma regra de justiça de natureza formal, segundo a qual “os seres de uma mesma categoria essencial devem ser tratados da mesma forma” 58. O recurso ao precedente e o costume não são mais do que aplicações dessa regra e correspondem à crença de que é razoável reagir da mesma forma que anteriormente, em situações análogas, se não tivermos razões suficientemente fortes para o lamentar. Uma forma de agir será então injusta se se traduzir por um comportamento diferente face a duas situações semelhantes. Perelman dá-nos como exemplo de utilização argumentativa desta regra de justiça, uma breve passagem de um sermão de Demóstenes: “Pretenderão eles, por acaso, que uma convenção, se contrária à nossa cidade, seja válida, recusando-se, no entanto, a reconhecê-la se lhe servir de garantia? É isso o que vos parece justo?” 59. Estas palavras de Demóstenes confirmam como importante instrumento de persuasão, o argumento de reciprocidade, que consiste na assimilação de dois seres ou duas situações, com o objectivo de mostrar que os termos correlativos numa relação devem ser tratados da mesma forma. Sabendo-se que em lógica formal, os termos a e b, antecedente e consequente de uma relação R, podem ser invertidos sem inconveniente, desde que tal relação seja simétrica, tudo o que é necessário fazer no campo argumentativo é mostrar que entre esses dois seres ou duas situações, há uma simetria essencial. Provada esta, torna-se possível aplicar o princípio da igualdade de tratamento. A regra de ouro, “não faças aos outros o que não queres que te façam a ti” é talvez a mais famosa aplicação da regra de justiça a situações que se pretendem simétricas. 

Argumentos quase lógicos são também os que aparentemente se estruturam com base em propriedades lógico-formais como a transitividade e a inclusão,  onde as relações puramente formais “igual a” “incluído em”, “maior que” ou “o todo é maior que cada uma das suas partes”  conferem uma acentuada persuasividade ao que é afirmado, mesmo quando tal ligação lógica seja susceptível de ser desmentida pela experiência ou dependa de prévios juízos de valor.  O mesmo se diga da propriedade de divisão, quando se tende a mostrar que só resta uma alternativa e que esta consiste em escolher a parte que constitui o mal menor, ou seja, quando a questão é apresentada sob a forma de um dilema constringente.  

Também a comparação pode constituir um argumento quase lógico, quando na argumentação se utiliza um sistema de pesos e medidas sem que dê lugar a uma pesagem ou medição efectiva. O efeito persuasivo da comparação só se realiza, contudo, por haver a convicção de que se pode validá-la por uma operação de controlo. Dizer “as suas faces são vermelhas como maçãs” ou “é mais rico do que Cresus” são dois dos exemplos avançados por Perelman, em que parece exprimir-se um juízo controlável. Esse efeito persuasivo é de natureza variável, em função do termo de comparação que for escolhido. Assim, afirmar que um escritor é inferior a um reputado mestre ou considerá-lo superior a uma nulidade patente, é, segundo Perelman, “exprimir, em qualquer dos casos, um juízo defensável, mas cujo alcance é bem diferente” 60. Numa pesagem ou medição real, a escala de medida é neutra e invariável. Mas na argumentação quase lógica, é muito raro que o termo de comparação seja determinado de forma rígida. Aqui o objectivo é mais impressionar do que informar e por isso mesmo, a indicação de uma grandeza relativa pode ser mais eficaz do que a indicação de uma grandeza absoluta, desde que o termo de comparação seja bem escolhido. Como diz Perelman, “para realçar a imensidão de um país, será mais útil dizer, em Paris, que ele é nove vezes maior que a França do que indicar que  cobre metade do Brasil”  61.   

Quanto aos argumentos fundados no real, eles fazem apelo a dois tipos de ligação de inegável importância persuasiva: as ligações de sucessão, como a relação causa e efeito e as ligações de coexistência,  centradas na relação entre a pessoa e os seus actos. Se nas ligações de sucessão, o que se relaciona são fenómenos de nível idêntico, já as ligações de coexistência, apoiam-se em termos de nível desigual, como por exemplo, entre a essência e as suas manifestações.  No caso das ligações de sucessão, a ideia de que existe um vínculo causal entre fenómenos, permite à argumentação dirigir-se em três direcções: para a procura das causas (e dos motivos, no caso dos actos intencionais), para a determinação dos efeitos e para a apreciação das consequências. E com base nas correlações, nas leis naturais e no princípio de que as mesmas causas produzem os mesmos efeitos, é possível formular hipóteses numa dada situação e submetê-las ao controlo de apropriadas investigações. Vão neste sentido, os dois exemplos adiantados  por Perelman: aquele que num jogo de sorte ganha excessivas vezes poderá tornar-se suspeito de trapaça, pois uma tal suspeita torna a sua façanha mais compreensível e no tribunal, se várias testemunhas concordam na descrição de um certo acontecimento, sem que antes se tenham previamente entendido, o juiz tenderá a concluir que todas assistiram a esse mesmo acontecimento, cuja realidade atestam. 

Ao contrário das ligações de sucessão que unem elementos da mesma natureza, com base num vínculo de causalidade, as ligações de coexistência estabelecem um vínculo entre realidades de nível desigual, em que uma é apresentada como expressão ou manifestação da outra. Estão neste caso as relações entre a pessoa e os seus actos, os seus juízos ou as suas obras. Com efeito, tudo o que se diz sobre uma pessoa, diz-se em função das suas manifestações e tem por base a unidade e a estabilidade observáveis no conjunto dos seus actos. Presumimos essa estabilidade quando interpretamos o acto em função da pessoa. Se alguém age no desrespeito dessa estabilidade, acusamo-la de incoerência ou de mudança injustificada. É o carácter de uma pessoa que confere sentido e delimita o alcance do seu comportamento, mas são também as sua manifestações que nos permitem formar uma ideia sobre qual seja o seu carácter. Donde se pode concluir que a ideia que se faz da pessoa e a maneira de compreender os seus actos estão em constante interacção. É certo que, como refere Perelman, não se pode encarar a pessoa apenas no quadro da sua estabilidade, pois a sua liberdade e espontaneidade estão sempre associadas à possibilidade de mudança e adaptação, quer por iniciativa própria, quer por imposição do real. Reconhecer-se-á por isso a natureza ambígua das ligações de coexistência que se estabelecem entre as pessoas e os actos que praticam. Mas dado que só se conhecem as pessoas através das suas manifestações, são os actos que influenciam, sem dúvida, a nossa concepção sobre esta ou aquela pessoa. Uma concepção que, no entanto, mantém sempre uma certa relatividade, pois como salienta Perelman, “todo o acto é considerado menos como índice de uma natureza invariável do que como uma contribuição para a construção da pessoa que apenas termina com a sua morte” 62.  Feita essa reserva, é imperioso reconhecer que os actos passados contribuem para a boa ou má reputação. O prestígio de que se goza pode ser visto como um capital que se incorpora na pessoa, passando a constituir um activo a que é legítimo recorrer em caso de necessidade. E é nesse contexto que se cria um preconceito favorável ou desfavorável que irá influenciar a interpretação dos actos, conferindo-lhes uma dada intenção em conformidade com a ideia que se faz da pessoa em causa. Dito de outro modo, o prestígio de uma pessoa exerce uma determinada influência na maneira como são interpretados e acolhidos os seus actos. Daí o papel muito importante que o argumento de autoridade pode assumir na argumentação. É que, como diz Perelman, se nenhuma autoridade pode prevalecer sobre uma verdade demonstrável, o mesmo já não se passa quando se trata de opiniões ou juízos de valor. Aliás, na dinâmica argumentativa, muitas vezes nem é o argumento de autoridade que se põe em questão mas sim a autoridade que concretamente foi invocada. Neste sentido, o orador tenderá a enfatizar a autoridade que está de acordo com a sua tese e a desvalorizar a autoridade em que se apoiam os que sustentam uma tese contrária. Entendemos, porém, que a importância da ligação acto-pessoa não se limita à esfera de credibilização ou descredibilização das autoridades invocadas pelo orador, antes se assume também como indicador da sinceridade ou insinceridade com que ele próprio se dirige ao auditório. Porque um orador pode ser dotado de uma excepcional competência argumentativa, pode mesmo aliar à técnica de raciocínio e expressão um natural encanto ou sedução pessoal, mas  dificilmente conquistará a adesão do auditório se este o associar a um passado de actos tão reprováveis que infundam o legítimo receio de manipulação.

Caracterizada por Perelman como “uma relação de participação, assente numa visão mítica ou especulativa de um todo do qual símbolo e simbolizado  fazem igualmente parte” 63, a ligação simbólica é uma outra estrutura argumentativa fundada no real de forte potencial persuasivo. Basta atentar no sentido injurioso de que geralmente se reveste o acto de queimar em público a bandeira de determinado país. Como o são igualmente os argumentos de dupla hierarquia, tanto de natureza  quantitativa como qualitativa. As primeiras estarão presentes quando, por exemplo, do “facto de um homem ser maior do que outro se conclui que as suas pernas são também mais compridas” 64 e as segundas, que Perelman considera serem as mais interessantes, têm lugar quando da superioridade de um fim se conclui pela superioridade do meio que o permite realizar. É o que se passa quando a superioridade do adulto sobre a criança leva a que esta seja confrontada muitas vezes com a recomendação: “porta-te como um adulto!”. Não negligenciável dentro deste tipo de argumentos é ainda a distinção entre diferenças de natureza ou de ordem e as simples diferenças de grau. Põe-se aqui a questão de saber quando é que uma diferença quantitativa se torna uma diferença qualitativa. Perelman dá-nos um exemplo sugestivo: “quantos cabelos é preciso arrancar a um cabeludo para que ele se torne careca?” 65. A resposta a esta questão exige sempre uma tomada de posição que permita transformar uma inicial diferença de grau numa posterior diferença de natureza (a passagem de cabeludo a careca). Pode ser muito útil, por exemplo, quando se pretenda defender que dois fenómenos não são tão distintos como parece à primeira vista. É, aliás, a um argumento de simples diferença de grau que recorreremos na parte final deste nosso estudo para mostrar a proximidade que nos parece existir entre a retórica e a hipnose, ao nível dos respectivos processos de comunicação. 

Uma terceira espécie de ligações argumentativas, são aquelas que, no dizer de  Perelman, fundamentam a estrutura do real. Englobam a fundamentação através de um caso particular (exemplo, ilustração, modelo e anti-modelo) mas também o raciocínio por analogia, onde se situa a própria metáfora enquanto analogia condensada. O exemplo, que, como se sabe,  permite a passagem do caso particular para uma generalização, mostra-se um recurso mais ambicioso do que a ilustração com a qual se espera, sobretudo, impressionar. Já com o modelo, o que se pretende é a pura imitação do caso particular. E na medida em que no argumento pelo modelo o que se pretende seja imitado já não é uma acção mas uma pessoa, é possível, segundo Perelman, descobrir-lhe uma grande afinidade com o argumento de autoridade, já que, num e noutro, o prestígio da pessoa que se pretende imitar surge como elemento persuasivo e caucionador da própria acção visada. Quanto à analogia, Perelman começa por apresentá-la como “uma similitude de estruturas cuja fórmula mais genérica seria: A está para B assim como C está para D” 66, após o que - depois de designar por tema o conjunto dos termos A e B (sobre os quais recai a conclusão) e por foro o conjunto dos termos C e D (que estribam o raciocínio) - faz incidir a sua força probatória no pressuposto (nem sempre confirmado) de que, “normalmente, o foro é mais bem conhecido que o tema cuja estrutura ele deve esclarecer ou estabelecer o valor, seja valor de conjunto seja valor respectivo dos termos” 67. Mas como diz Paul Grenet, citado por Perelman, “o que faz a originalidade da analogia e o que a distingue de uma identidade parcial, ou seja, da noção um tanto corriqueira de semelhança, é que em vez de ser uma relação de semelhança, ela é uma semelhança de relação” 68. Semelhança, portanto, da relação existente entre os termos A e B (do tema) com a relação em que se encontram os termos C e D (do foro). E é precisamente esta semelhança das duas relações que permite a transferência de valor do foro para o tema e do valor relativo dos dois termos do foro para o valor relativo dos dois termos do tema. O raciocínio por analogia obedece, pois, a uma forma mais ou menos estável que permite a ligação da relação anterior (já admitida) com a relação posterior (que se quer mostrar), forma essa que assenta no recurso aos termos de ligação “assim como...” e “também...” que antecederão a descrição de uma e outra. Condição essencial é que se proceda a uma criteriosa escolha do foro, sob pena de se obter um efeito contrário ao pretendido e, em certos casos, cair até no ridículo. Dizer, por exemplo, que um respeitável rei merece a coroa, como um ladrão a corda, adverte Perelman, pode exprimir o mais nobre espírito de justiça, mas é certamente uma forma extremamente infeliz, se não mesmo, rísivel, de a afirmar, dado o despropósito de uma tal aproximação. Idêntica precaução deve guiar-nos na escolha da metáfora mais eficaz do ponto de vista persuasivo, tanto mais que, quando integrada no processo de persuasão, ela pode ser vista como uma analogia condensada por fusão de um elemento do foro com um elemento do tema. Como descreve Perelman,  “a partir da analogia A está para B assim como C está para D, a metáfora assumiria uma das formas “A de D”, “C de B”, “A é C”. A partir da analogia “a velhice está para a vida assim como a noite para o dia”, derivar-se-ão as metáforas “a velhice do dia”, “ o anoitecer da vida” ou “a velhice é uma noite” 69. Dessas três formas possíveis, as metáforas do tipo “A é C” serão certamente as mais falaciosas, por se tender a ver nelas uma identificação, quando apenas se pode compreendê-las adequadamente através da reconstrução da analogia. Acresce o facto desta espécie de metáforas surgirem por vezes ainda mais condensadas quando resultam da confrontação de uma qualificação com a realidade à qual se aplicam. É o que sucede se para descrever as façanhas de um guerreiro utilizamos a expressão “este leão arremeteu” querendo com isso dizer que ele é, em relação aos outros homens como o leão em relação aos outros animais.  Com efeito, dizer que um homem é um leão ou um cordeiro, é descrever metaforicamente o seu carácter ou comportamento, com base na ideia que se tem do comportamento desta ou daquela espécie animal. É a chamada fusão metafórica do foro (animal) com o tema (homem). Dada a importância da metáfora no discurso persuasivo, a ela voltaremos, nomeadamente, para destacar a sua “mais valia” em termos de inteligibilidade e persuasão, face à correspondente expressão literal.

 

5.  Amplitude da argumentação e força dos argumentos

 

Para o sucesso de um orador  muito poucas coisas serão tão decisivas como o saber em que momento deve pôr fim à acumulação dos argumentos. O problema da amplitude da argumentação está pois intimamente relacionado com o número e a extensão dos argumentos necessários para que o auditório dê assentimento às teses que lhe são propostas. Ainda que muito esquematicamente, as tarefas ou etapas da argumentação que todo o orador deve percorrer, podem ser escalonadas do seguinte modo:

 

1º. Assegurar-se que as premissas são admitidas pelo auditório

2º. Reforçar, se for caso disso, a sua presença no espírito dos auditores

3º. Precisar o seu sentido e alcance

4º. Extrair os argumentos em favor da tese que defende

 

Ora, sabendo-se que no discurso retórico nenhum argumento é constringente, antes contribui para reforçar a apresentação no seu conjunto, poder-se-ia supor que a eficácia de tal discurso depende do número de argumentos utilizados. Nesse sentido, quanto maior fosse a acumulação de argumentos, mais consolidada ficaria a adesão do auditório. Mas Perelman vem lembar que há boas razões para rejeitar essa visão tão linear e optimista, já que:

 

1º.   Um argumento que não esteja adequado ao auditório pode suscitar uma reacção negativa junto dos auditores. E, parecendo um argumento, irá afectar não só o conjunto do discurso como também a imagem do próprio orador. 

2º.   Apresentar razões em favor de uma tese é sempre, por outro lado, admitir que ela não é evidente, que não se impõe a todos. 

3º.   Há limites psicológicos que impedem uma ampliação não considerada dos argumentos. Se se trata de um discurso, a atenção e a paciência de quem escuta tem limites que é perigoso ultrapassar. Se se trata de um diálogo, não se pode esquecer que o tempo tomado por um orador é tirado àquele de que os outros disporiam.

 

Daí que o orador tenha todo o interesse em obter os melhores efeitos persuasivos com a maior economia de discurso possível, o que implica uma cuidadosa escolha dos argumentos, em função da sua respectiva força persuasiva. Mas o que é um argumento forte? Para Perelman, a apreciação da força de um argumento, parecendo marcadamente intuitiva, requer, contudo, a prévia separação entre duas qualidades: eficácia e validade. Uma coisa seria o argumento que persuade efectivamente, outra, o argumento que deve convencer todo o espírito razoável. Dito de outro modo, a eficácia de um argumento estaria para o auditório a que concretamente é apresentado, como a validade para um auditório competente, em última análise, para o auditório universal. Pela nossa parte, contudo, retomando as reservas que já colocamos ao auditório universal, entendemos que não se deve associar a validade à força dos argumentos.  Aliás, os próprios termos aqui utilizados por Perelman, força e validade, sugerem diferentes níveis de apreciação de um argumento, o primeiro, mais adequado à argumentação (retórica) e o segundo, próprio da demonstração (lógica). Porque se a metáfora da força  parece uma expressão feliz para figurar a intensidade da persuasão talvez já não faça sentido falar de força da validade. A validade revela-se, é evidente, impõe-se por si mesma, sem precisar de qualquer “empurrão” argumentativo exterior. É certo que a retórica recorre às verdades lógicas como bases de sustentação ou de inferência para fazer acolher um argumento. Mas não é quando convoca os valores lógicos que ela verdadeiramente se exerce pois só se pode argumentar no terreno das opções. Logo, o orador tem que avaliar a força dos argumentos em função do auditório, das suas convicções, das suas tradições, dos métodos de raciocínio que lhe são próprios. Contudo, uma coisa é descobrir a força de um argumento, outra é conseguir transmiti-la ao auditório. Neste campo, o sucesso do orador dependerá não somente da sua particular intuição comunicativa mas também do recurso a certas práticas ou procedimentos argumentativos susceptíveis de aumentar (ou preservar) a força dos argumentos. Em situações pontuais pode até ser prudente restringir voluntariamente o alcance da argumentação, ficando aquém das conclusões que delas se poderiam retirar, para melhor reforçar no auditório a predisposição à confiança. São porém conhecidas diversas técnicas específicas para favorecer a aceitação dos argumentos, tais como elogiar o adversário, realçando a sua habilidade ou talento como orador, o que tenderá a diminuir na mesma proporção a força dos seus próprios argumentos, pois quanto mais se enaltece as suas qualidades oratórias, mais se insinua que por trás da aparente eficácia do seu discurso se esconde uma insuficiente argumentação; preferir o argumento original por ter, regra geral, mais força que o argumento já conhecido; pegar no argumento do adversário para o voltar contra ele, já que este, depois de o ter utilizado e reconhecido a sua força, fica sem qualquer possibilidade de o rejeitar, sem cair no descrédito geral; fazer uma convergência de argumentos, para obter o mesmo resultado através de métodos diferentes ou então, mostrar como vários testemunhos, independentes uns dos outros, coincidem no essencial e por último, perante a dúvida sobre qual o argumento que será mais eficaz, recorrer a várias argumentações, complementares ou até incompatíveis, seja uma segunda argumentação que vem apoiar e reforçar a primeira, seja a chamada dupla defesa, muito usada nos tribunais, quando, por exemplo, o advogado de defesa começa por sustentar que o facto supostamente ilícito não ocorreu, mas logo em seguida, afirma que, ainda que tivesse ocorrido, tal facto não configuraria qualquer ilicitude.  Mas em última análise forçoso é concluir que tanto a determinação da amplitude da argumentação como a selecção das técnicas de apresentação que visem reforçar a persuasividade dos respectivos argumentos,  devem obedecer às particulares circunstâncias concretas de cada situação argumentativa.

  

 

6.  A ordem dos argumentos no discurso

 

Desde sempre foi reconhecida a necessidade de se ordenar as matérias a tratar a fim de mais facilmente se obter a adesão do auditório. Uma primeira forma de ordenação consiste em proceder à divisão do discurso em partes, segundo a específica função que cada uma delas nele exerce. Compreende-se assim que o discurso retórico tenha chegado a ser dividido em cinco partes: exórdio, narração, prova, refutação e recapitulação. Aristóteles, porém, fazendo notar que uma divisão tão pormenorizada seria válida apenas para um ou outro género oratório mas nunca para todos, considera que há somente duas partes que são indispensáveis: o enunciado da tese e os meios de a provar.  Perelman, que parece acolher esta divisão de Aristóteles, recorre uma vez mais ao confronto com a demonstração para justificar a importância que se deve atribuir à ordenação dos argumentos. “Notemos, desde já, que numa demonstração puramente formal a ordem não tem importância; trata-se, com efeito, graças a uma inferência correcta, de transferir para os teoremas o valor da verdade, atribuída por hipótese, aos axiomas. Ao invés, quando se trata de argumentar, tendo em vista obter a adesão de um auditório, a ordem é importante. Com efeito, a ordem de apresentação dos argumentos modifica as condições da sua aceitação” 70.  Mas o facto de se olhar a divisão do discurso em duas partes verdadeiramente essenciais, não significa que a primeira das divisões aqui citada – exórdio, narração, prova, refutação, recapitulação – se revele totalmente inútil em termos de ordenação dos argumentos, mas tão só, que não é susceptível de uma aplicação taxativa a todos os géneros oratórios. O exórdio, por exemplo, ainda que em princípio o seu objecto seja estranho à discussão propriamente dita, tem uma finalidade funcional muito precisa: suscitar a benevolência e o interesse do auditório e criar neste uma predisposição favorável ao respectivo orador. Simplesmente, o exórdio pode ser suprimido, por exemplo, se o orador já é bem conhecido do seu auditório, ou, como é cada vez mais vulgar, quando a sua apresentação seja confiada a outra pessoa, que poderá ser até o próprio presidente da sessão. De qualquer modo, sempre que tenha lugar, o exórdio incidirá sobre o orador, o auditório, o tema ou sobre o adversário. No que respeita ao orador e ao adversário, Aristóteles  diz que, consoante os casos, o exórdio visa fazer desaparecer um preconceito desfavorável ao orador ou criar um preconceito desfavorável ao adversário. No primeiro caso, é indispensável que o orador comece por aí, pois não se escuta de bom grado alguém que se considera hostil ou desprezível; no segundo caso, ou seja, quando se trata de enfraquecer o adversário, “o orador deve colocar os seus argumentos no fim do discurso, de modo a que os juizes se lembrem claramente da peroração” 71. O lugar de um argumento deverá pois ser determinado em função da sua finalidade  e do meio mais eficaz de a alcançar. Se a narração dos factos é indispensável no processo judicial, já não o é muita vezes num discurso deliberativo, quando os ditos factos são perfeitamente conhecidos do auditório. Com efeito, seria totalmente contra-indicado proceder a uma exaustiva e enfadonha descrição de situações que o auditório já domina, quando se reconhece que o interesse e a atenção dos auditores é essencial para se obter a sua adesão às teses do orador. Também no discurso epidíctico, quer esteja em causa um elogio ou uma censura, a narração só se tornará indispensável se tais factos forem ainda desconhecidos do público a que o discurso se dirige. Mas a opção ou não pela narração dos factos pode depender também de outras razões. No caso do processo judicial, por exemplo, enquanto o acusador recorrerá  a uma narração pormenorizada que dê aos factos uma presença tal que faça com que o juiz não mais os perca de vista, o defensor, em princípio, procurará opor-se à narração do adversário, detendo-se especialmente sobre o que o justifica ou desculpa. Não se pode por isso estabelecer à partida uma divisão do discurso demasiado apertada ou muito rígida, já que nem todos os discursos têm a mesma estrutura. Esta, dependerá sempre da concreta situação retórica a que o discurso se aplica, particularmente do seu objecto, do auditório e do tempo de que se dispõe.

Qualquer que seja a divisão do discurso escolhida, subsistirá sempre a questão de se determinar, mesmo no interior de cada uma das partes, qual a ordem pela qual se devem apresentar os diversos argumentos. Tomando por base a força de cada argumento, Perelman analisa as três ordens que têm sido preconizadas: a ordem da força crescente, a ordem da força decrescente e a ordem nestoriana, em que se começa e acaba com argumentos fortes, deixando os restantes para o meio da argumentação. Qual delas será a mais eficaz? Parece que as três apresentam vantagens e inconvenientes. Na ordem crescente, o facto de se começar pelos argumentos mais fracos pode instalar uma certa letargia no auditório e, principalmente, induzir neste uma imagem menos favorável do orador, o que fatalmente irá esmorecer o seu prestígio e a atenção que lhe é dispensada. Na ordem decrescente, ao terminar o discurso com os argumentos mais fracos, o orador deixa no auditório uma impressão igualmente fraca, que, por ser a última, pode muito bem ser a única de que os auditores se vão lembrar. A ordem nestoriana, não apresenta nenhum desses dois inconvenientes, na medida em que começa e acaba com argumentos fortes, mas tem contra si o facto de pressupor a força dos argumentos como uma grandeza imutável, isto é, não leva em linha de conta que a força de um argumento varia sempre em função do auditório e que este, por sua vez, também muda com o desenrolar do próprio discurso. É o que Perelman  pretende mostrar quando afirma: “(...) se a argumentação do adversário impressionou o auditório, interessa refutá-la de início, em aplanar, por assim dizer, o terreno, antes de se apresentar os próprios argumentos. Ao invés, quando se fala em primeiro lugar, a refutação dos eventuais argumentos do adversário nunca precederá a prova da tese que se defende. Haverá muitas vezes, aliás, interesse em não as evocar para não dar aos argumentos do adversário um peso e uma presença que a sua evocação antecipada acaba, quase sempre por reforçar” 72. O que é importante é não perder de vista que a eficácia do discurso muda com o seu próprio desenrolar e que por isso mesmo, cada argumento deve surgir no momento em que possa exercer mais efeito e mostrar-se devidamente ajustado ao modo como os respectivos factos vão sendo interpretados. Se a finalidade do discurso é persuadir o auditório, então a ordem dos argumentos não pode deixar de ser constantemente adaptada a tal finalidade.



1 Cf. Grácio, R., Racionalidade argumentativa, Porto: Edições ASA, 1993, p. 14 

2 Perelman, C., De l’évidence en métaphysique, in Le Champ de L’argumentation, Presses Universitaires de Bruxelles, 1970, p. 236

3 Descartes, Oeuvres, ed. de la Pléiade, Paris, 1952, p. 40 cit in Perelman, C., Retóricas, S. Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 211

4 Descartes, R., Discurso do Método, Porto: Porto Editora, 1988, p. 73

5 Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993, p. 163

6 Descartes, R., Discurso do Método, Porto: Porto Editora, 1988, p. 78

7 Grácio, R., Racionalidade argumentativa, Porto: Edições ASA, 1993, p. 18

8 Descartes, R., Discurso do Método, Porto: Porto Editora, 1988, p. 82 

 9 Perelman, C., Retóricas, S. Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 159

10 Ibidem, p. 160 

11 Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993,  p. 15

12 Ibidem

13 Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993,  p. 22

14 Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993,  p. 24 

16 Perelman, C., O império retórico. Porto: Edições ASA, 1993,  p. 24

17 Ibidem, p. 27

18 Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993,  p. 27 

19 Ibidem p. 29

20 Perelman, C., cit. in Grácio, R., Racionalidade argumentativa, Porto: Edições ASA, 1993, p. 79 

21 Grácio, R., Racionalidade argumentativa, Porto: Edições ASA, 1993, p. 80

22 Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993,  p. 32 

23 Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993,  p. 31 

24 Perelman, C., Retóricas, S. Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 63 

25 Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993,  p. 32

26 Perelman, C. e Olbrechts-Tyteca , L., Tratado da argumentação, S. Paulo: Martins Fontes, 1999,  p. 30

27 Ibidem, p. 31 

28 Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993,  p. 33

29 Perelman, C. e Olbrechts-Tyteca , L., Tratado da argumentação, S. Paulo: Martins Fontes, 1999,  p. 37

30 Ibidem, p. 35

31 Ibidem  

32 Perelman, C. e Olbrechts-Tyteca , L., Tratado da argumentação, S. Paulo: Martins Fontes, 1999,  p. 76

33 Nagel, T., A última palavra, Lisboa: Gradiva-Publicações, Lda, 1999, p. 12

34 Cf. Ibidem

35 Perelman, C. e Olbrechts-Tyteca , L., Tratado da argumentação, S. Paulo: Martins Fontes, 1999,  p. 34

36 Ibidem, p. 27

37 Ou do modo como o orador o imagina

38 Perelman, C., Retóricas, S. Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 71

39 Perelman, C. e Olbrechts-Tyteca , L., Tratado da argumentação, S. Paulo: Martins Fontes, 1999,  p. 4

40 Meyer, M., Questões de retórica: linguagem, razão e sedução, Lisboa: Edições 70, Lda., 1998, p. 31

41 Ibidem, p. 26

42 Perelman, C., Tratado da argumentação, S. Paulo: Martins Fontes, 1999,  p. 46

43 Ibidem, p. 35 

44 Cf. Perelman, C., O império retórico,  Porto: Edições ASA, 1993,  p. 37

45 Mellor, D., Falar verdade, in Mellor, D., (Org), Formas de comunicação, Lisboa: Editora Teorema, 1995, p. 97

46 Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993,  p. 41

47 Ibidem, p. 42 

48 Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993,  p. 44

49 Ibidem

50 Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993,  p. 45 

51 Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993,  p. 46

52 Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993,  p. 48

53 Ibidem 

54 Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993,  p. 55

55 Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993,  p. 56

56 Perelman, C. e Olbrechts-Tyteca , L., Tratado da argumentação, S. Paulo: Martins Fontes, 1999,  p. 219

57 Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993,  p.80

58 Ibidem, p. 84

59 Ibidem, p. 85

60 Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993,  p. 93

61 Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993,  p. 94

62 Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993,  p. 107

63 Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993,  p. 115 

64 Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993,  p. 116

65 Ibidem, p. 117

66 Perelman, C. e Olbrechts-Tyteca , L., Tratado da argumentação, S. Paulo: Martins Fontes, 1999,  p. 424

67 Ibidem68

68 In ibidem 

69 Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993,  p. 133 

70 Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993,  p. 159

71 Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993,  p. 160 

72 Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993,  p. 161