O Repórter de Tv foi atropelado. Discurso, mediação e construção da notícia.

Felipe Pena1

Universidade Estácio de Sá

1999

Resumo

Este artigo tem como objetivo estudar alguns processos de produção do discurso jornalístico, revelando estratégias narrativas que se ocultam por trás da construção da notícia e da aparente neutralidade da veiculação mediática. Utilizando os referenciais teóricos da escola francesa dos Annales, o texto busca aproximar as narrativas da história e do jornalismo, por meio da análise de um evento comum que, reelaborado a partir de estratégias retóricas, converte-se em ``notícia''.

``Um jornal é um instrumento incapaz de discernir entre uma queda de bicicleta e o colapso da civilização''(Bernard Shaw)

``Primeiro, apure os fatos. Depois, pode distorcê-los à vontade.''(Mark Twain)

Discurso, mediação e construção da notícia

Rio de Janeiro, esquina das ruas Barata Ribeiro e Bolívar, em Copacabana. Sete horas da manhã do dia primeiro de janeiro de 2018. Um ônibus atropela uma jovem de 22 anos, depois de receber uma fechada de um carro de luxo. Os paramédicos são chamados e não demoram em chegar ao local. O estado da jovem é grave, mas ela ainda respira. A ambulância leva-a ao hospital Souza Aguiar, onde é constatada a morte cerebral. Estamos no primeiro dia da nova lei de doação de órgãos no Brasil, pela qual todos são doadores , a menos que manifestem seu desejo em contrário na carteira de identidade. A assessora de imprensa do hospital liga para uma emissora de TV. Pode ser um ``fato histórico'': o primeiro transplante, sob a égide da nova lei.

Nove horas da manhã. O pauteiro, jornalista especializado em dizer o que os repórteres devem fazer, escreve um texto com um resumo do fato e sugere que seja feita uma reportagem. Ele já é a quinta pessoa a fazer uma construção do acontecimento. A primeira foi uma testemunha ocular, que fez o relato para o paramédico. Este ainda contou para o cirurgião do hospital, que, por sua vez, avisou à assessora de imprensa. Mas o processo não pára por aí.

O produtor do telejornal da emissora faz um relatório para o chefe de reportagem e marca o roteiro a ser seguido pelo repórter, que já é a oitava pessoa envolvida na construção da estória. Na rua, o repórter determina ao cinegrafista as imagens que devem ser feitas para ilustrar a reportagem. Elas mostram as marcas de sangue no asfalto, o ônibus parado e um movimento de câmera que supõe reconstituir o trajeto feito pelo veículo. De volta à redação, ele escreve um texto para apresentar ao editor da reportagem, que considera as imagens insuficientes e determina ao editor de arte que faça uma reconstituição no computador. Mas antes de a matéria ir ao ar, o editor-chefe ainda faz algumas modificações no texto que será lido pelo apresentador, o décimo terceiro intérprete do acontecimento.

Não é difícil perceber que nenhum relato é imediato, salvo aquele absorvido pelo filho da tricoutese, conforme descreve Jean Lacouture2. Se usamos diversos meios para relatar um acontecimento, a imediação em si já é um paradoxo incontornável. E no caso da TV, o meio pode se confundir com o relato, ser a própria mensagem, como propõe Mac Luhan. No exemplo proposto, o acontecimento assume as diversas cores que os diversos intérpretes dão a ele. Conforme a hipótese construtivista de Paul Veyne, o acontecimento é o que fazemos ele ser.

Na TV, como em outros mass media, a chave para a construção do fato é o espetáculo. Se o editor de arte do telejornal resolve usar recursos de computação gráfica para reconstituir um atropelamento em Copacabana, seu objetivo está em proporcionar ao telespectador uma visão superprojetada do fait diver, transformando-o em acontecimento, com grau de importância medido pela capacidade de consumo que ele desperta. A realidade é projetada pela imagem e pela palavra de forma teatralizada, moldada em ilhas de edição, onde os cortes e as sequências de plano são orientados pelo critério da supervalorização.

``Os media transformam em atos aquilo que não teria sido senão palavra no ar, dão ao discurso, à declaração, à conferência de imprensa a solene eficácia do gesto irreversível.''3

Em uma metrópole como o Rio de Janeiro, atropelamentos são comuns, não merecem destaque por parte da imprensa. Mas passam a ser acontecimento quando a vítima torna-se um doador de órgãos no primeiro dia em que entra em vigor uma nova lei sobre o tema. Se não fosse este detalhe, ele passaria em branco, como uma fait diver qualquer. E é claro que a reportagem vai explorar ainda mais a dramaticidade do tema, procurando as pessoas que receberão os órgãos do doador. Autópsia sentimental do telespectador é o que se quer. ``Sobre qualquer acontecimento, o imaginário da massa quer enxertar qualquer coisa do fato cotidiano: seu drama,... seu poder de identificação, o sentimento de fatalidade que o acompanha.''4

A proximidade temporal e o envolvimento material fazem do jornalista praticante e reflexo do acontecimento. Isto aproxima-o da concepção de ``história imediata'' elaborada por Jean Lacouture, em que pesquisadores e relatores desempenham simultaneamente o papel de agentes. Para Lacouture, apesar das relações conflituosas entre jornalismo e história, as duas disciplinas tendem a convergir5, enfrentando problemas comuns aos ``imediatistas'', como, por exemplo, o desconhecimento do final da história, o excesso de informações, a falta de confiabilidade das fontes e a impossibilidade de acesso a alguns arquivos.

Mas relacionar a operação histórica e a jornalística ainda é uma tarefa árdua, com prejuízo inevitável para a última, sempre no cerne das maiores críticas. Talvez a chave para o problema esteja na volta do acontecimento, conforme proposta por Pierre Nora. O que certamente abre um caminho mais esclarecedor do que a opção dicotômica de Mark Kravetz, para quem o jornalismo se divide em sensacionalista e analítico 6, sem, no entanto, deixar claro os pressupostos para esta diferenciação.

Também parece bastante reducionista atribuir o estudo do passado aos historiadores e a interpretação do presente aos jornalistas. Aproximados e diferenciados, é na abordagem dos integrantes da Nova História que esta dicotomia é melhor enfrentada, com a conclusão de que ambos devem se pautar pela escolha consciente de seus objetos, assumindo que dão significação aos dados que possuem e que têm interesses e formações específicas para a análise do objeto. Como sentencia Lacouture: ``o jornalista-camundongo rói gulosamente suas avelãs. O historiador-esquilo as acumula. O imediatista acumula roendo.''7

O movimento de aproximação também encontra eco em Jacques Le Goff, para quem o historiador deve dirigir-se aos mass media na avaliação das posições em relação ao acontecimento. A mídia influencia o ideário coletivo, que não se reduz ao significado intelectual, sendo também estritamente ligado a nuanças emocionais. O que ``a realidade propõe, o imaginário dispõe.''8, analisa Pierre Nora, tomando como exemplo o suicídio de Marilyn Monroe, que, para tornar-se um acontecimento, precisou que milhões de pessoas vissem nele o drama do star system e a tragédia da beleza interrompida.

Os acontecimentos da atualidade juntam as forças da informação e da mudança, agregando o fato cotidiano e o evento, o real e o ficcional. São construídos pelos meios de comunicação, mas também os constróem. Um duplo movimento, que só faz aumentar a crise epistemológica da história.

Cada vez mais tênue, a fronteira entre o imaginário e o real caminha para a dissolução, forçando o pesquisador a pensar em formas alternativas de representação do acontecimento. Como coloca Hayden White, é preciso ``produzir novos critérios sobre o lugar de suspensão entre a história e a ficção''.9 Devemos repensar conceitos éticos e estéticos, refletindo sobre as forças simbólicas de condução e construção dos eventos, e sobre suas próprias demandas. A representação trágica de um atropelamento e a autópsia sentimental da doação de órgãos, feitas através de imagens sensacionalistas e cortes na ilha de edição, não são situações isoladas, não se produzem sozinhas. São, na verdade, aspirações da própria sociedade, ávida por consumir este tipo de produto. Este sim é um movimento perigoso, em que o consumo determina o produto e o produto determina o consumo, em um ciclo vicioso interminável.

No cotidiano de uma redação jornalística, o espaço para reflexão é mínimo. Espremido pelos deadlines e pela busca incessante do furo de reportagem, o jornalista é mais uma peça da engrenagem produtiva. O evento é sua matéria-prima e o tempo curto seu campo de atuação. Uma visão falaciosa, como afirma Fernand Braudel, para quem ``o tempo curto é a mais caprichosa, a mais enganadora das durações.''10 Para Braudel, em oposição a esta narrativa de fôlego curto, dramática e precipitada, está uma ``história longa, de respiração contida e de amplitude secular.''11

O que Braudel quer nos trazer não é o fim do evento, mas a idéia de que ele anexa um tempo muito superior à sua própria duração. Para ele, a história é a soma de todas as histórias e de todos os tempos possíveis e todas as ciências são contaminadas umas pelas outras, sendo, portanto, impossível prescindir de qualquer uma delas. Braudel desconfia da história puramente factualista e defende a longa duração como a linha mais útil para a reflexão comum às ciências sociais.

O que parece claro na abordagem da Nova História e talvez possa ser o elemento mais proveitoso para a atividade jornalística é a implementação de uma nova atitude em relação ao evento. Acredito que a principal lição a ser aprendida obriga o jornalista a ler não a partir do evento, mas a partir dos pressupostos de formação do evento. E isto quer dizer definir métodos, reavaliar fontes, escolher unidades de observação, estabelecer relações entre os elementos e chegar a modelos de estudo, sem, entretanto, deixar de considerar as múltiplas variáveis.

Jean lacouture aponta a ruína das fontes como um dos principais problemas do historiador do presente. Ao mesmo tempo que o computador é capaz de, quase instantaneamente, fornecer ao editor de um jornal tudo que já foi publicado sobre determinado assunto, a diversidade das fontes torna o resultado final pouco confiável. Ao multiplicar as possibilidades, a informática multiplica também os riscos. E mesmo quando a fonte é testemunhal, é preciso estar atento aos interesses e pressupostos que a norteiam. ``Não há grupo, personagem, instituição que não tenha seus segredos a preservar e que não responda à revelação intempestiva com a ocultação defintiva.''12

Michel de Certeau, em debate com outros integrantes da Nova História, também chama a atenção para a necessidade de refletir sobre a produção dos fatos, alertando que a metodologia histórica sempre ``insistiu mais no inventário, na classificação e no tratamento das fontes do que na construção do discurso.''13 Para Certau, a história é a arte da encenação, uma operação que compreende a relação entre o lugar do discurso, os procedimentos de análise e a construção de um texto. Ou seja, ``a combinação de um lugar social, de práticas `científicas' e de uma escrita''14

A história, assim como o jornalismo, não reconstitui a verdade, como queria fazer crer um modelo positivista objetivo ligado a uma filosofia obsoleta. Certeau defende o modelo subjetivo, pelo qual toda interpretação histórica depende de um sistema de referência. E o lugar de onde se fala está no centro das discussões. Mais do que o público, são os pares do historiador os destinatários da obra. Uma prática ligada a métodos que protegem um determinado grupo de letrados. O saber está ligado ao lugar e deve submeter-se às suas imposições, à lei do grupo. Para Certeau, é impossível analisar o discurso histórico fora da instituição em torno da qual ele se organiza.

Neste sentido, a operação jornalística traça um caminho contrário, já que é destinada ao grande público, mas suas leis também são regidas por um grupo, que se organiza em preceitos epistemológicos e padroniza o trabalho em manuais de redação e códigos entre os pares. Só que em ambas as operações, histórica e jornalística, fica patente a natureza lacunar do discurso. Não podemos ignorar o que ignoramos do passado. A história é o que ainda podemos saber dela, nada além disso. É incoerente e ilógica na medida em que o historiador...

``adivinha a localização das lacunas mal remendadas, não ignora que o número de páginas que o autor concede aos diferentes momentos e aos diversos aspectos do passado é uma média entre a importância que têm esses aspectos aos seus olhos e a abundância da documentação'' 15

Vamos, então, voltar ao acontecimento relatado no início deste artigo. Uma jovem morre depois de ser atropelada por um caminhão que levou uma fechada de um carro de luxo. Toda a reportagem é pautada pela nova lei de órgãos e a possibilidade de se registrar o primeiro transplante sob a tutela da nova lei. O enfoque foi determinado e seguido com rigor dentro do que os jornalistas chamam de ``gancho'' da matéria, sem o qual o atropelamento nem seria registrado. Não é necessário aprofundar-se muito para verificar as lacunas do assunto. Vamos propor duas: quem seria o motorista do carro de luxo e que motivos o levariam a dar uma fechada no ônibus. Se fosse, por exemplo, o ministro dos transportes, ou o secretário estadual de justiça ? A ``história'' seria outra, e os desdobramentos também. Mas seria necessário o acaso de um jornalista com um faro um pouco mais apurado para ver além do "gancho'' da matéria, que era a nova lei de doação de órgãos. Um acaso parecido com o que levou dois jornalistas de plantão a dar uma valor excessivo a um certo arrombamento em um prédio chamado Watergate.

O que chamamos de realidade constitui-se fundamentalmente de construções possíveis em formas infinitas e variáveis. O próprio indivíduo é co-construtor da realidade em que vive e que, às vezes, quer modificar. O projeto científico-positivista naufragou, destruindo os grandes sistemas de crenças políticas ligadas ao ideal da modernidade, demandando novas representações para as aspirações do indivíduo.

Diversas vozes e múltiplos olhares constituem o acontecimento. Para Peter Burke16, a apresentação seqüencial dos eventos toma de empréstimo técnicas da literatura e do cinema, como, por exemplo, a ênfase sobre estruturas narrativas e construções de visibilidades. A montagem parece ser a linguagem mais adequada, com suas inúmeras possibilidades, entre as quais a própria subversão da cronologia.

Novamente, voltamos para a ilha de edição da emissora de TV. O atropelamento é reconstituído pela editoria de arte, através do computador, depois de serem escaneadas imagens feitas pelo cinegrafista horas depois do acidente. A montagem está clara, mas esta informação não será passada ao telespectador, que vai consumir a reportagem como expressão fiel da realidade.

Não são os processos mediáticos que devem ser criticados na operação jornalística, mas sim a crença de que eles não interferem na construção da realidade. O jornalismo é um dos principais agentes da comunicação de massas, mas parece perdido diante das mudanças paradigmáticas das diversas disciplinas da atualidade, que, entre outros fatores, rediscutem ``a fidelidade aos fatos'', tão apregoada pelos manuais de redação.

A operação jornalística parte de um instrumental obsoleto, com compromissos epistemológicos anacrônicos. O que começa nas próprias cerimônias de formatura das escolas de Comunicação Social , com o juramento dos jornalistas de `` exercer a profissão com respeito à verdade e ao homem, desenvolvendo no jornalismo a atitude crítica de responsabilidade para com o meu país, com o mundo e com os homens.''

Se o ônibus que atropelou a jovem em Copacabana tivesse um nome, ele seria ``revolução epistemológica''. E se o repórter tivesse tempo de descobrir a profissão da moça, verificaria estar diante de uma colega de trabalho. A revolução epistemológica atropela o jornalista, pálido e inerte diante das profundas modificações nas representações do mundo.

Bibliografia

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WHITE, Hayden. Meta-história. São Paulo. Edusp. 1992.



Notas de rodapé

... Pena1
Jornalista, doutor em Letras pela PUC/RJ, professor de Telejornalismo e sub-Reitor da Universidade Estácio de Sá
... Lacouture2
Lacouture, pág. 215.
... irreversível.''3
Nora, pág. 182.
... acompanha.''4
Nora, pág. 184.
... convergir5
Lacouture, pág. 218.
...itico 6
Kravetz, pág. 88.
... roendo.''7
Lacouture, pág. 231.
...oe.''8
Nora, pág. 184.
...ao''.9
White, pág. 20.
...oes.''10
Braudel, pág. 46.
... secular.''11
Idem
... defintiva.''12
Lacouture, pág. 228.
... discurso.''13
Mesa redonda, Certeau, pág.20.
... escrita''14
Certeau, pág. 66
... 15
Veyne, pág. 28.
... Burke16
``A escrita da História''