Cláudio Cardoso de Paiva1
Resumo
Nas linhas que se seguem procuramos apontar alguns elementos pertinentes para uma reflexão sobre o ``campo híbrido'', formado pelas Ciências da Informação e da Comunicação. Esperamos assim contribuir para a aproximação das fronteiras destas duas áreas do conhecimento que têm partilhado, há algum tempo, as dúvidas, questionamentos e apostas, concorrendo juntas para um conhecimento aproximado de questões específicas da mídia, em suas conexões com os temas da cultura e sociedade. Assim, seguindo as pistas de um percurso metodológico e epistemológico que se mostra fecundo acerca dos problemas da informação e da comunicação, colocamos em perspectiva as empiricidades demarcadas pelas imagens da ficção seriada televisiva, prestigiadas pelo público e crítica do Brasil e do Exterior.
Definimos o termo ``midiático'' como expressão dos processos físicos e imateriais geradores de informações por meio de diferentes suportes que abrangem, por exemplo, o jornal, o livro, o cinema, a televisão e a Internet; neste processo o corpo social é irradiado pelos meios de informação e de comunicação e reciprocamente, a irradiação da energia social se dissemina nos espaços midiáticos. Por sua vez, a noção de ``informacional'' especifica o processo pelo qual os indivíduos e grupos são informados na sociedade das redes e telas, e simultaneamente, como estes in-formam a ambiência constituída pelos meios de informação e comunicação. Enfim, o termo ``comunicacional'' distingue, especificamente, a modalidade dos vínculos, das trocas e da agregação coletiva, através de uma experiência comum de partilha, em sua forma mais orgânica e vitalista; ou seja, por meio de ações e discursos intercambiados, a partir dos quais os sujeitos asseguram um princípio comunitário que confere sentido à sua existência cotidiana.
O campo transdisciplinar formado pelas Ciências da Informação e da Comunicação é resultado de uma conjunção entre os vários procedimentos metodológicos e diferentes enfoques epistemológicos, voltados para o conhecimento dos processos midiáticos e das práticas informacionais e comunicacionais. Tendo se esboçado passo a passo ao longo do século XX, este campo consiste num domínio que foi se definindo com mais clareza após a segunda guerra mundial e face à ``explosão da informação'', no século XXI, tem experimentado o concurso de novos paradigmas de análise.2 Na medida em que as tecnologias audiovisuais se incorporaram ao cotidiano dos indivíduos, estas áreas conexas do conhecimento se expandiram de modo vigoroso e no que respeita à especificidade do seu objeto, verificamos que este ainda não se formalizou consensualmente através de uma identidade, que nos permitisse delimitar suas fronteiras e o seu poder de alcance.3O caráter interdisciplinar do trabalho do comunicólogo, do pesquisador da comunicação e do cientista da informação demonstra a natureza de sua contingência, ou seja, marcada pelo pluralismo das práticas e habilitações. Trata-se de uma experiência que se realiza no contato com os vários campos da ação pragmática (trabalho, vida, sociedade). Deste modo, é compreensível que o feixe de reflexões teóricas sobre a informação e a comunicação dificilmente se deixe apreender nos limites de um campo homogêneo; as chamadas ``Ciências da Informação e da Comunicação'' se definem antes enquanto um domínio do conhecimento que abrange diferentes enfoques.
Compreendemos que a natureza dos fenômenos da informação e da comunicação é polifônica e pluralista; o seu campo do saber se nutre das diferentes empiricidades da vida cotidiana, e com o apoio da antropologia, sociologia, psicologia, ciências da linguagem concorre para a decifração das redes de sentido que organizam a realidade material e simbólica.
Em nosso enfoque sobre televisão e cultura, enfrentamos o desafio de fazer um mapeamento seletivo de algumas séries de imagens de ficção na TV, à guisa de interpretação, com base em diversos suportes epistemológicos; em nossas investigações sobre mídia e cultura, encontramos um porto seguro para as nossas análises a partir de uma iniciação no campo da Hermenêutica, ou seja, das ``Ciências da Interpretação''. Numa abstração filosófica mais rigorosa, os chamados filósofos da Interpretação, Cassirer, Ricoeur, Gadamer, entre outros, têm sinalizado direções precisas para compreendermos o sentido dos símbolos, das mitologias e suas repercussões na imaginação coletiva; apesar da altura e profundidade de suas especulações filosóficas, os hermeneutas, ocupados com as questões da realidade, representação, verdade e sentido se orientam nos domínios de uma apurada ``imaginação filosófica'', o que exige um nível de abstração mais complexo, entretanto contribuem para o exercício de interpretação das culturas, também no contexto da dita ``sociedade da informação''.4
Neste sentido concorrem também as obras situadas em domínios específicos, como a antropologia que mantém afinidade com os estudos hermenêuticos, empenhando-se em decifrar o sentido das culturas através de uma etnografia que, em última instância, abrange também os produtos de comunicação de massa e sua recepção pelos indivíduos e grupos sociais com referências históricas e culturais diferentes. Neste sentido, relembramos Clifford Geertz, ``A Interpretação das Culturas'' (1973), Berger & Luckmann, ``A Construção Social da Realidade'' (1985) e Edgar Morin, ``O Método'' (1977-1991) cujas investigações podem levar às formas de compreensão do Mesmo e do Outro, das identidades, alteridades e complexidades, rompendo as amarras do etnocentrismo, no exame dos símbolos que cimentam as culturas. O concurso dessa antropologia, em suas formulações simbólica, compreensiva, interpretativa pode despertar a percepção para a especificidade das culturas antigas ou mais recentes, lançando luzes sobre o significado das experiências materiais e simbólicas do cotidiano.footnote GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Petrópolis: Vozes, 1988 (1973); __ saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Vozes, 1997 (1983); BERGER, R; LUCKMAN, T. A construção social da realidade. Petrópolis: Vozes, 1995; MORIN, E. La Méthode, vol. I, La Nature de la nature. Paris: Seuil, 1971; __ O Método, vol. II, A vida da vida. Portugal: Europa-América, 1980; Vol.III, O conhecimento do conhecimento. POA, Sulina, 1999; __ Vol. IV, ``As Idéias, Habitat, vida, costumes, organização''. P. Alegre: Sulina, 1998 (1991).
As Ciências da Informação e da Comunicação têm recorrido a um ponto de vista interdisciplinar, ou seja, predispõem-se ao diálogo com outros domínios do conhecimento, e isto influi efetivamente na construção das suas metodologias, na definição dos seus fundamentos científicos e das suas bases epistemológicas. Encontramos alguns autores e textos nos domínios da antropologia, sociologia, pedagogia, história, cujos métodos têm servido de apoio para o trabalho no campo híbrido da informação e da comunicação .5 Podemos observar igualmente que os atos informativos e comunicativos se realizam em estreita proximidade com as experiências da ética, da religião, da estética e das artes, e tudo isso circunscreve as noções de juízo, afeto, beleza e transcendência. Consiste num desafio para as novas gerações decifrar os modos de codificação e decodificação dessas experiências na época da televisão; neste sentido, encontramos diversos estudiosos que têm propiciado um exame das culturas à luz de uma antropologia da informação e da comunicação. Os trabalhos de Vatimo ``A sociedade transparente'' (1990) e de Maffesoli ``O tempo das tribos'' (1987), entre outros, contribuem para uma análise das maneiras como o corpo social aparece (e desaparece) na ``transparência'' dos vidros da televisão e podem nos levar a entender como os novos modos de ``tribalização'', em seus diversos matizes de ternura e brutalidade, invadem o espaço das ``máquinas de visão''6
É preciso, entretanto, indicar um certo recorte e delimitação; assim, como ponto de partida, situamos as experiências da informação e da comunicabilidade como um tipo de repetição que sinaliza o encontro cotidiano das diferenças, e percebemos que o ato da informação, no sentido análogo à comunicação, afirma sempre uma experiência que assegura a realização de encontros, conexões e partilhas. A informação enquanto vetor de comunicabilidade, desta maneira, inscreve-se como uma faculdade de permuta, de troca e de mutualidade, implicando no ritual de aproximação de um ``espírito comum''; essa perspectiva aparece, por exemplo, em Maffesoli, ``O Conhecimento Comum'' (1988), Raquel Paiva, ``O Espírito Comum'' (1998) e Muniz Sodré, ``Antropológica do espelho'', 20027. O que está em jogo aqui é apreender como se constroem e se desconstroem as formas da atração (e dis-tração) social em torno das imagens da televisão, e ao mesmo tempo, como os modos de agregação ou segregação coletivas se expressam na ``signagem eletrônica'' da TV; interessa-nos verificar, no plano real e simbólico, como se revelam os sentidos do ``estar-junto'' na vida cotidiana; isto define o horizonte do nosso tema e o alcance de uma incursão nos interstícios da informação, comunicação, cultura e sociedade.
O nosso trabalho se orienta pelas experiências da informação e comunicabilidade em estreita aproximação com a noção de ``sociabilidade'', isto é, enquanto uma prática preocupada com as formas de exclusão e de interação social; logo, absorve, as sugestões de Michel Maffesoli (que de modo instigante usa o termo ``socialidade'') em obras como ``A Conquista do Presente'' (1979), ``O Tempo das Tribos'' (1987) e ``No Fundo das Aparências'' (1989). No que concerne às Ciências da Informação e da Comunicação, particularmente, isto se mostra evidente nos estudos de Marcos Palácios, dentre os quais, ``O Medo do Vazio: comunicação, socialidade e novas tribos'' (1995). Encontramos essa perspectiva também nos textos de Adriano Rodrigues, em trabalhos como ``Estratégias da Comunicação'' (1990) e de Albino Rubim, ``Comunicação e Sociabilidade nas Culturas Contemporâneas'', 2000.8
Diversos estudos têm contribuído para contemplarmos as imagens da televisão enquanto vetores de uma politização do cotidiano, como expressões do erotismo sem preconceitos ou intervenções críticas e sensíveis do marketing social e cultural, enfim, a mídia pode realizar uma deflagração de sentido numa dimensão afirmativa; isto nos estimula a interpretar e compreender ficções inquietantes como ``Anarquistas graças a deus'' (1984), ``Presença de Anita'' (2001) e ``O Quinto dos Infernos'' (2002).
Optamos por uma revisão bibliográfica comentando as obras e os textos, primeiramente para apontar as idéias, conjecturas, equívocos e acertos na construção de uma epistemologia da informação e da comunicação; depois para resgatar os trabalhos vistos como ``clássicos'' na confluência destas áreas e também para apreciar os mais recentes, que embora tendo interesses e afinidades aparentemente estranhos entre si, têm instigado a fundamentação da pesquisa nos projetos experimentais, de iniciação e capacitação científica; enfim, revisitar os autores e textos, mesmo aqueles mais distantes da nossa área de interesse, mostra-se relevante para demonstrar o rigor dos procedimentos teórico-metodológicos que têm consolidado as competências no campo das Ciências da Informação e da Comunicação.
O nosso argumento sobre a televisão na sociedade brasileira se apóia numa estratégia metodológica, que coloca as telenovelas em perspectiva para uma interpretação no plural da cultura brasileira. Vistas de longe, a imagens de ficção nos parecem janelas para uma contemplação e compreensão das imagens do Brasil; portanto, apostamos na idéia de que a contemplação dessas imagens pode despertar um conjunto de percepções, favorecendo um conhecimento aproximado do imaginário coletivo brasileiro.
Absorvendo as sugestões da sociologia compreensiva (em autores como Durkheim, Simmel e Maffesoli) e da antropologia simbólica (com Jung, Bachelard e Gilbert Durand) organizamos as nossas bases interpretativas para compreender alguns fenômenos da ``comunicação de massa'', que se prestam ao estudo de uma ``antropossociologia da informação e da comunicação''; isto é, um olhar sobre os homens, seus símbolos e suas tribos nos contextos locais e globais. Neste sentido, observando a ficção na TV e o seu séqüito de seres imaginários, percebemos que além do lado matemático, performativo e funcional dessa ``máquina de visão'', pulsa a organicidade das relações afetivas, que simbolicamente e semioticamente, gera modos de vinculação e de sociabilidade. Neste sentido, aliamos as contribuições advindas de várias áreas do conhecimento, para decifrar o sentido das imagens televisuais, o que define antes uma postura hermenêutica, interpretativa, do que uma metodologia legitimada a priori pela função crítica e espírito de negação.
É importante aqui fazer algumas inferências sobre os estudos da televisão que têm norteado grande parte das pesquisas de informação, comunicação e áreas afins, no Brasil e no Exterior. Primeiramente para situar o leitor nos rastros de uma trajetória das Teorias da Informação e da Comunicação, mostrando as possibilidades de tratamento da informação e da comunicação como um campo interdisciplinar dotado de rigor científico; depois, para indicar os atropelos, iluminações, erros e conquistas desse campo do saber que, por sua vez podem engendrar novas curiosidades e descobertas. Mesmo correndo o risco de tornar o texto inflacionado pelas citações excessivas, optamos pelo trabalho paciente de resgatar autores, textos e referências que podem estimular a persistência na investigação científica ou mesmo uma atualização crítica desses estudos, principalmente para as jovens gerações de pesquisadores.
De saída, como de praxe em nosso campo, observamos que se inscrevem de maneira pioneira os estudos funcionalistas, marcados pelas pesquisas empíricas, de cunho estatístico e quantitativo, voltadas para as análises de conteúdo (com base nas epistemes da sociologia positivista, psicologia do comportamento e ciência política). Ali o que está em jogo são as causas, os efeitos, a utilidade e funcionalidade de um espírito científico ocupado com as enquetes eleitorais, pesquisas de opinião e mercadologia. Verificamos, então, que o funcionalismo mostra-se etnocêntrico e moralista, ou seja, prescreve um modelo de como ``as coisas devem ser'', sem aceitar as dinâmicas transformações que ocorrem no mundo vivido; parte de uma visão de mundo fechada e narcisista, deduzindo que a sociedade e a cultura podem ser explicadas a partir de um único paradigma científico. Entretanto, julgamos interessante revisitar essa ``escola'' primeiramente porque muitas vezes as técnicas e métodos inovadores, ``ingenuamente'' ou ``equivocadamente'', mantêm-se funcionalistas, apesar das intenções críticas ou compreensivas; depois porque implica num modelo de informação e comunicação que ainda tem estabelecido as regras para o saber-fazer em Jornalismo, Radialismo, Relações Públicas, Biblioteconomia, Turismo, Ciência da Informação, dentre outros cursos e habilitações.
Na gênese dessa abordagem encontramos os textos clássicos de Lasswell, Katz e Lazarsfeld, entre outros, que prepararam os ingredientes, construíram os modelos, e definiram caminhos e direções, elaborando as premissas teóricas e metodológicas do que viria a ser mais tarde, o paradigma clássico da Comunicação. Muitos desses textos foram compilados por Gabriel Cohn, na antologia ``Comunicação e Indústria Cultural'' (1977) e por Luiz Costa Lima, na coletânea ``Teoria da Cultura de Massa'' (1982), e têm apoiado a pesquisa no Brasil por várias décadas, mas percebemos que precisam ser relativizados9. São trabalhos que se orientam a partir de uma apologia da persuasão, dos efeitos e das influências comportamentais, enfatizando a hegemonia do emissor ou do meio sobre os receptores. Ou seja, é conformista e cúmplice na manutenção do ``status quo'', das regras excludentes do sistema político prevalente e acrítico face às engrenagens recessivas do (neo)liberalismo; ou seja, demonstra-se frágil ante à complexidade do real histórico. Essa perspectiva, também citada como uma ``Teoria dos Efeitos'', se apóia num prisma teórico indiferente à participação ativa do público e às interações sociais; além disso, suas experiências e seus recursos teórico-metodológicos não podem distinguir o ``midiático'' (o lógico, mecânico e performativo), o informacional (o capilar, intertextual e interconectivo), e o ``comunicacional'' (o afetivo, orgânico e interagente).
Numa perspectiva oposta, o tema das interações sociais, ou seja, o enfoque das convergências e confrontos no âmbito da informação-comunicação e processos socioculturais, é algo que, em solo norte-americano, faz parte dos estudos do ``interacionismo simbólico'', e se expressa na chamada ``Escola de Chicago'', representada, sobretudo, por autores como Herbert Mead, na obra ``Mind, Self e Society'' (1934) e Herbert Blummer, na obra ``Symbolic Interactionism'' (1969). Num amplo projeto que se dedica a entender as formas de sensibilidade e os estilos das mentalidades, os ``interacionistas simbólicos'' procuraram analisar as ``nervuras do real'' histórico, considerando os diversos segmentos culturais.
No fim das contas, verificamos que não há um bloco teórico-metodológico unificado nos estudos norte-americanos; ou seja, não obstante, o método funcionalista permanecer hegemônico, a ``Escola de Chicago'', assim como a ``Escola de Iowa'', e a ``Escola de Palo Alto'', também preocupadas com o problema das interações sociais, simultaneamente persistiram nas ``análises qualitativas'' propiciando enfoques menos generalistas e mais específicos dos processos informacionais e comunicacionais.10
Conviria apontar a distinção da ``Teoria da Informação'' (Norbert Wiener, 1950), caldatária do ``paradigma clássico'' e apoiada num construto teórico das ciências exatas, que busca quantificar e regular os fluxos de informação, eliminando o ``ruído'' e a ``entropia'', assegurando o ``feed back'' no processo da comunicação; essa perspectiva que se define a rigor a partir de uma ``Teoria Matemática da Comunicação'' (Shannon & Weaver, 1948), é fundamental para a compreensão das relações entre ``Cibernética e Sociedade'', ou seja, as ligações entre o corpo social e as suas extensões ou próteses tecnológicas, que têm dado o tom nos debates da comunicação e sociedade do século XXI.11 Tendo evoluído no campo das chamadas ``ciências duras'' a cibernética teve papel fundamental no desenvolvimento tecnológico, gerando as aparências de um mundo modernizado, mas que contém fissuras e fragmentações. Nesse contexto, a noção de ``cibernética social'', confiante nos dispositivos técnico-instrumentais como vetores de desenvolvimento social, esbarra numa série de entraves como a verticalidade das estruturas do poder econômico, político e cultural. Em todo o caso, fertilizou o campo da comunicação utilizando noções como o ``feed back'' (ou ``retroalimentação''), que serviriam futuramente como uma alavanca metodológica para os estudos de mediação na recepção das mensagens.
Luis Beltrán, no conhecido texto ``Adeus Aristóteles'', critica o paradigma clássico, visto como um modelo de (informação e) ``comunicação vertical'', enquanto uma prática autoritária, elitista unidimensional, e propõe um modelo utópico de (informação e) ``comunicação horizontal'', democrática, popular e comutativa; a perspectiva de Beltrán, entusiasta, por exemplo, das idéias do pedagogo Paulo Freire, é voltada para a interação social.12Logo, percebemos que a dimensão ``interativa'' dos processos de informação e comunicação é um ideal perseguido pelos mais variados estudiosos, desde a aurora das primeiras pesquisas. Não é à toa que os autores da recepção irão retomar as leituras de um autor cioso do poder do emissor, como Lasswell. Tampouco é de se espantar as utilizações feitas por um pensador crítico e inventivo, como Edgar Morin, que retoma a ``teoria da informação'' (stricto sensu) na construção da sua ``teoria da complexidade''. Hoje, com o advento das novas tecnologias (Internet, celulares, TVs interativas), alguns autores como Pierre Lévy, acenam para a tese de que a utopia estaria em vias de realização, com o advento da ``interatividade''; outros, mais céticos, como Paul Virilio, enxergam ali, apenas novas modalidades de controle e de alienação; contudo, isto é algo que se presta ainda a muitas controvérsias e exigiria um exame mais detido.13 No momento, estudando a televisão e a ficção seriada, a noção da ``interatividade'', estimulada pelas tecnologias da informação, serve-nos como dispositivo metodológico para examinarmos os níveis de experiências éticas e estéticas geradas, por exemplo, pela chamada ``ficção interativa''.14 Fazemos uso da noção de ``ruído'', tomando-a de empréstimo da ``Ciência da Informação'', mas a empregamos aqui num sentido particular, observando os modos de efervescência e vitalismo social; partimos do pressuposto que o ``ruído'' do social possui uma dimensão afirmativa, na medida em que discute e critica a hegemonia dos poderes estabelecidos e promove as atividades de informação, de comunicabilidade e de sociabilidade; aliás, essa é uma das premissas que mobiliza a nossa argumentação. Relembramos, por exemplo, que no episódio do ``impeachement'', o ruído provocado pelos jovens ``cara pintadas'', tanto na concretude do cotidiano quanto no simulacro da minissérie ``Anos Rebeldes'' (1992), foi algo que, em última instância, serviu de estímulo tanto para o resgate do princípio comunitário quanto para a construção da cidadania. Num outro registro, relembramos que as passeatas das mulheres unidas nas ruas contra a violência sexual, tanto na ``vida real'' como na vida imaginária da minissérie ``Quem ama não mata'' (1982), são signos de um ruído afirmativo. De maneira similar, o ruído provocado pelo personagem do Senador Caxias, encarnado na pele do ator Carlos Vereza, na o; aqui também, esse ruído tem uma função positiva. Assim, invertendo os termos da Teoria (tradicional) da Informação, onde o ``ruído'' emperra a comunicação telefônica, uma perspectiva compreensiva concebe o ``ruído'' positivamente, como um vetor de evolução das formas de participação social.
Seria pertinente ainda, mencionar os desdobramentos das teorias e práticas advindas da Teoria da Informação e da Cibernética, remontando ao espírito anárquico-criativo dos jovens cientistas norte-americanos, que possibilitaram o advento dos ``computadores pessoais'', as experiências da ``cibercultura'' e da ``interatividade''; ou seja, virando do avesso o maquinário conceitual e operacional, aqueles jovens da Califórnia revolucionaram os conceitos de informação e comunicação, resgatando-os de sua circulação restrita aos acadêmicos e militares, e oferecendo-os à utilização pública, como demonstra Manuel Castells, em ``A sociedade em rede'', primeiro volume da trilogia ``A era da Informação - Economia, Sociedade e Cultura''.15
Desde o fim da segunda guerra mundial, podemos detectar no filão das pesquisas em Ciências Sociais (como base para as Ciências da Informação e da Comunicação.), a chamada ``Teoria do Desenvolvimento'', que nasceu com matizes funcionalistas, sob os auspícios do Estado norte-americano, como expressam os trabalhos de Daniel Lerner e Evereth Rogers, respectivamente, ``The Passing of Traditional Society - Modernization in the Middle East'' (1958) e ``Mass Media and interpersonal communication'', 1973 .16 Em linhas gerais, essa teoria originalmente visava habilitar os recursos humanos na transferência, difusão ou extensão de informações nas áreas urbanas e rurais. Assim, tinha por objetivo a adaptação das populações carentes ao mundo urbano e industrializado, considerando os efeitos ``benéficos'' dos meios de comunicação.17 As perspectivas do ``extensionismo'' e do ``difusionismo'' forneceram as bases para a implementação de vários cursos de Mestrado em Comunicação no Brasil, inclusive o da Universidade de Brasília, em 1974, com a área de concentração criada sob a rubrica de ``Comunicação e Desenvolvimento''. O enfoque da Informação, Comunicação e Desenvolvimento persiste como um eixo temático que se mostra pertinente; mas a sua atualização perpassa necessariamente por uma autocrítica de sua postura, cuja gênese contém traços fortemente etnocêntricos, centralizadores e positivistas.18 Hoje, a práxis teórica da informação e da comunicação voltada para o desenvolvimento sustentável, atualiza a sua mirada epistemológica nutrindo-se das inovações nos terrenos da história, linguagem e cultura, sem esquecer as bases da economia, política e sociedade .19 No que respeita ao estudo das ``imagens da TV'', essa perspectiva pode estimular uma discussão sobre os paradoxos do desenvolvimento no contexto das culturas globalizadas, o sentido da modernização cultural das sociedades em desenvolvimento e as modulações do neoliberalismo face aos estilos de desenvolvimento regional. É interessante observar que as imagens da realidade histórica caracterizada pelos desníveis socioeconômicos e políticos ou pelos abismos que separam a ``modernidade cultural'' e o ``atraso social'', aparecem sob a forma dos simulacros nas ficções seriadas, e podem ser reveladoras das tensões e conflitos também no terreno da cultura; ver, por exemplo, as minisséries como ``O Pagador de Promessas'' (Dias Gomes, 1988), ``O Bem Amado'' (Gomes, 1983) ``Lampião e Maria Bonita'' (Aguinaldo Silva & Doc Comparato, 1982) e também em telenovelas como ``Pecado Capital'' (1976), ``Tieta'' (Aguinaldo Silva, 1989/90) e ``O Rei do Gado'' (Benedito Ruy Barbosa, 1996/97).
Encontramos um repertório significativo de textos advindos de outras escolas e autores, cujas noções e conceitos se orientam a partir de uma avaliação crítica, considerando a modulação das formas ideológicas encarnadas pelo Estado, pelo sistema econômico ou pela razão tecnológica; em sintonia com esse filão epistemológico, são formuladas as críticas do ``imperialismo'', dos diversos tipos de ``colonização'' (nos níveis externo e interno) e de ``dependência cultural''. No campo das Ciências da Informação e da Comunicação, a chamada ``Teoria da Dependência'', derivada dos estudos de economia, política e sociedade, principalmente nos anos 70, estabeleceu-se como uma referência importante para as pesquisas; essa perspectiva de análise não é homogênea e se orienta com base em diversas vertentes científicas: leituras de Marx, Althusser, Gramsci, Lukàcs serviram de base para os estudos sociais dos produtos culturais e foram aproveitados pelas pesquisas de (informação e) comunicação. Seja como denúncia do Estado autoritário, seja como suspeita do sistema econômico ou como crítica das disparidades socioeconômicas e socioculturais, partindo de prismas distintos, esses estudos estrategicamente definiram uma área de interesse, conhecida sob a rubrica de ``Comunicação & Política'' ´'.20 No que concerne ao nosso trabalho, a preocupação com as relações entre cultura e política não se coloca aqui de maneira explícita; tratamos do tema em nossa dissertação de mestrado: `` Trama Cultural dos anos 80: um estudo da produção cultural antes, durante e após o AI-5'' (1984). Agora, apreciando a televisão e alguns matizes da cultura brasileira, examinamos as representações do poder e suas ramificações no cotidiano, pelo viés da desconstrução, carnavalização e sátira política através dos ``simulacros'' da teledramaturgia, o que aparece com evidência, em produtos como ``Roque Santeiro'' (1985), ``O Rei do Gado'' (1996) ou ``Porto dos Milagres'' (2001).
No que concerne à Informação e à Comunicação, especificamente à televisão, encontramos na maioria dos estudos críticos, característicos dos anos 70/80, uma tendência para analisar os produtos desse meio em expansão sem assistir os programas, e genericamente, observamos que tais abordagens tendem a colocar os meios de informação e comunicação sob suspeita; esses estudos são pioneiros e naturalmente absorveram o ``espírito do tempo'' que os tornou possíveis, portanto, vêem a televisão em seu aspecto de alienação e massificação, mas permanecem como referências fundamentais no estudo da informação, da comunicação e da sociedade. 21Contudo, novas perspectivas têm-se esboçado, buscando enxergar as relações entre informação, comunicação, política, cultura e sociedade por outros prismas.22
Há trabalhos que, muito embora sejam voltados para outros objetos, como as Histórias em Quadrinhos, serviram bastante como matrizes dos estudos sobre outros produtos culturais, principalmente nos anos 70/80 e hoje são pertinentes, em primeiro lugar porque permitem-nos enxergar ``deslocamentos'' e ``rupturas'' importantes no campo da comunicação e cultura; depois porque inspiram um diálogo fecundo a partir de perspectivas bem distintas, e finalmente porque já mostram a germinação de enfoques específicos num campo do saber em amadurecimento; dentre os quais, destacamos Dorfman & Mattelart, ``Para ler o Pato Donald'' (1980); Miranda, ``Tio Patinhas e os Mitos da Comunicação'' (1976); Lins da Silva, ``Muito além do Jardim Botânico''1985.23
Ainda no solo de uma epistemologia crítica, com matizes diferentes, a Escola de Frankfurt, particularmente através das teses de Adorno e Horkheimer, engendrou uma série de dispositivos teórico-metodológicos visando denunciar as formas de ``alienação'' disseminadas pela chamada ``indústria cultural .24 Nesse contexto caberia chamar a atenção para a singularidade de Walter Benjamin, muito apressadamente incluído nessa classificação frankfurtiana, mas que apresenta análises dialéticas, muito estimulantes para observarmos, por exemplo, os personagens e as figuras no cenário caótico da modernização industrial e seus agenciamentos que asseguram estilos autônomos de subjetividade e de sociabilidade, numa cultura que mesmo tendo perdido a sua ``aura'' clássica, romântica, religiosa, experimenta o gozo estético num cotidiano audiovisual em dinâmica transformação. Em nossas investigações, utilizamos principalmente os textos ``A Obra de Arte na época de sua reprodutibilidade técnica'' (1936), ``A modernidade'' (1968), ``Haxixe em Marselha'' (1935) e ``Paris, capitale du XIXème siècle'', 1939 . 25Hoje, alguns epígonos buscam atualizar a ``Teoria Crítica'', por meio, principalmente, dos trabalhos de Habermas; suas idéias nos são valiosas também para delimitar as distinções entre o ``espaço público'' e o ``espaço privado'' no contexto da chamada ``idade mídia'', em que as fronteiras entre a intimidade e a publicidade parecem se confundir, como demonstra o trabalho ``Mudança Estrutural na Esfera Pública'' (1962). O rigor das teses propostas por Habermas, apresenta os conceitos de ``razão comunicativa'', ``agir comunicacional'' e ``competência comunicativa'', como elementos de uma consciência crítica para estabelecer um ``consenso'' que fizesse face às desordens do capitalismo tardio, sob a forma do neoliberalismo.26 Entretanto o esforço de recuperar um projeto iluminista que pudesse desatar os ``nós'' da chamada pós-modernidade nos parece problemático. O esquema genérico que procura reestabelecer a unidade do espírito iluminista parece difícil de se sustentar num mundo caracterizado pelos princípios hedonistas da sociedade de consumo; além do que, a idéia do ``consenso'' apreciado por Habermas, remete invariavelmente às formas autoritárias que em nome do esclarecimento propiciou diversas formas de barbárie. Mas, nesse sentido, caberia apontar os esforços de Richard Sennet, leitor de Habermas, no livro ``O declínio do homem público, As tiranias da intimidade'' (1988); esse enfoque é pertinente, entre outros motivos, porque nos permite dialetizar as relações entre o individual e o coletivo, o intimista e o publicitário, o subjetivo e o consensual .27 A dimensão crítica permanece essencial e necessária no campo híbrido da informação e da comunicação; às vezes, aparece ressentida, como no livro de Bourdieu, ``Sobre a Televisão'' (1997), outras vezes, mostra-se mais perspicaz e vigorosa, como nos estudos sociológicos de André Akoun, como ``A Ilusão Social'', 1989 e nos textos filosóficos de Henri-Pierre Jeudy: ``Os ardis da comunicação, a eutanásia dos sábios'' (1990), ``A comunicação sem sujeito'' (1994) e ``A ironia da comunicação'', 1996.28
É importante situar aqui os trabalhos controversos do canadense Marshall McLuhan, que de início se mostrou crítico em relação às tecnologias, no livro ``A noiva mecânica, o folclore do homem industrial'' (1951), em seguida passou à apologia principalmente nos trabalhos ``A Galáxia de Gutemberg'' (1972) e ``Os Meios de Comunicação como Extensões do Homem'', 1974.29 Para os mais céticos, McLuhan exagera no fascínio pela ``vida tecnológica'', mas é inegável a empatia que provoca sobre gerações mais jovens; McLuhan fala a linguagem que a juventude gosta de escutar; mas a sua postura acrítica e conformista terminou servindo para enquadrá-lo no time dos ``integrados'', conforme escreve Umberto Eco; aliás, o próprio Eco lhe dedicou um artigo com título em latim, `` cogito interruptus'' (1973), empenhado na denúncia do discurso fragmentado do teórico canadense .30 De fato, McLuhan sempre gozou de prestígio nos EUA, sendo preterido pelos europeus; no Brasil, despertou muitas suspeitas, dentre as quais a de Gabriel Cohn, que apresenta uma leitura crítica do teórico canadense, no artigo ``A análise estrutural da mensagem'', 1977.31 Mais recentemente, Arlindo Machado, retoma os termos de uma discussão crítica sobre as idéias de McLuhan, em ``Televisão levada a sério'', 2000. ECO, U. ``O cogito interruptus''. In: Viagem na Irrealidade Cotidiana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. Por sua vez, Maffesoli parece se inspirar nas idéias de McLuhan para construir as suas teses sobre a ``tribalização do mundo'' e as novas gerações de pesquisadores atraídos pela performatividade das novas tecnologias, encontram em McLuhan ``insights'' valiosos para as suas análises; percebendo o caráter performativo da mídia que cria os ambientes interativos; citamos, por exemplo, Marcos Palácios ``Memória do Aquário: Comunicação e Sociabilidade em McLuhan para uso e abuso dos comunicólogos'' (1992) e André Lemos que, preocupado com os temas da cibercultura, tem utilizado, de modo fértil, as sugestões mcluhanianas, em trabalhos como ``As Estruturas Antropológicas da Cibercultura'' (1995) e ``Anjos interativos e retribalização do mundo'', 1998.32 Algumas das idéias de McLuhan nos têm sido úteis para repensarmos a modalidade de sinergia gerada pelas imagens eletrônicas, na observação dos ícones da TV como extensões dos afetos, emoções e sentimentos, e no exame dos produtos de ficção, como objetos estéticos e tecnológicos.
No longo itinerário das pesquisas sobre televisão encontramos as contribuições das ``Ciências da Linguagem'', cujas noções e conceitos servem de alavancas metodológicas consistentes para examinar as estruturas e o funcionamento deste meio eletrônico. Antes de qualquer coisa, gostaríamos de avançar a nossa apreciação deste enfoque que seduz pela beleza do estilo, mas que se distingue, sobretudo, pelas rupturas e deslocamentos que realiza na esfera dos saberes da informação e da comunicação: a Linguagem aqui deixa de ser um mero instrumento de falas e discursos, e passa a se constituir como a condição para a entrada do Ser na ordem da cultura. As chamadas ``Teorias da Significação'' nos alertam para o fato de que as imagens da televisão possuem condições de ``vizibilidade'' e de ``dizibilidade'': elas nos falam e nos vêem, ao mesmo tempo em que as vemos e falamos (com e) sobre elas. Isto tem repercussões profundas na compreensão das relações recíprocas entre o sujeito de experiência (no caso, o telespectador) e o seu objeto virtual (as narrativas de ficção).
Em seus diversos matizes, sejam hermenêuticos, analítico-interpretativos, de cunho mais formal ou estruturalista, as várias vertentes, distintamente, têm gerado estudos conseqüentes, (desde a semiologia estrutural, com Saussure, Barthes, Benveniste, Jakobson, Verón, etc.) até as análises semióticas mais recentes, dos textos de Umberto Eco e os estudos lusitanos, como os de Adriano Rodrigues, ``Introdução à Semiótica'' (1991), António Fidalgo, ``Semiótica, A Lógica da Comunicação'' (2000) e Paulo Serra, ``Informação e Sentido'', 1999 .33 Observamos que grande parte dos semioticistas, mesmo educados conforme as regras da semiologia orientada pela Lingüística (como Eco e Verón), absorvem as sugestões da Semiótica (informada pela lógica matemática) segundo os postulados de Peirce, estabelecidos em obras como ``Collected Papers'' (1868); ``Écrits sur le Signe'' (1978), ``Semiótica'' (1977) e ``Como tornar claras as nossas idéias'', 1878.34 Diferentemente de outros pensadores, que trataram da ``Filosofia da Linguagem'', a obra de Peirce permanece ``esotérica, prisioneira de uma terminologia fatigante e portadora de uma abstração extrema''; entretanto, tem servido de base para fundamentar as pesquisas de informação e comunicação. Em nosso trabalho, assimilamos as influências dos estudos de linguagem por outro viés epistemológico; porém, mencionamos a contribuição de Peirce, com respeito para com o domínio de um saber legítimo, que tem gerado trabalhos fecundos no campo das Ciências da Informação e da Comunicação, podendo, portanto, ser consultados no exercício da interpretação.35
Colocando em discussão os códigos, os signos, as formas simbólicas, as cadeias de significação, os modos de produção de sentido, os estudos de linguagem nos permitem compreender as montagens e desmontagens dos significados formalizados pelos meios de informação e de comunicação, e simultaneamente, de modo pragmático, podem revelam os mecanismos discursivos que gerando atuações eficientes dos processos informacionais e comunicacionais. As contribuições da Filosofia da Linguagem foram efetivas, em nossa análise, para o entendimento da produção, circulação e recepção das imagens de ficção, em seus diferentes estágios, para o trabalho de interpretação da forma e sentido dos produtos culturais, e para desvendarmos os estilos de subjetividade e de sociabilidade presentes nas narrativas; além disso, as noções de ``discurso'' e de ``argumentação'' (e as formas de sua ``aplicabilidade'') parecem-nos dispositivos competentes para o acesso à interpretação das culturas. Especificamente, apontamos alguns autores e obras que nos permitiram enxergar as relações de linguagem e sentido no corpo da ficção seriada, como Maingueneau (1989), Todorov (1981), Ducrot (1987), Pêcheux (1988), Foucault (1973) e Bakhtin.36
Encontramos inúmeras pesquisas brasileiras, de cunho qualitativo, realizadas no âmbito da ``Análise de Discurso'', cuja persistência tem definido uma linha evolutiva nos estudos da área; dentre os quais destacamos o trabalho rigoroso de Antonio Fausto Neto. 37Numa perspectiva análoga, os textos de José Luiz Braga nos parecem instigantes, principalmente pelo rigor na construção lógica do sentido e pelo refinamento na elaboração da linguagem; no que concerne aos produtos culturais, a sua perspicácia na avaliação crítica e postura compreensiva têm nos orientado no trabalho de interpretação.38
Lembraríamos aqui, das pesquisas de Maria Aparecida Baccega que tem experimentado o concurso de saberes distintos tais quais ``Comunicação, Educação e Linguagem'', interessando-se ainda pelos estudos de ficção televisiva seriada, sobre o que tem dedicado trabalhos relevantes apoiando-se no campo das ``teorias da recepção''39
Embora a nossa conduta na pesquisa não siga necessariamente a linha investigativa fertilizada pelos estudos de ``Informação, Comunicação e Linguagem'', este enfoque nos iluminou o caminho permitindo-nos perceber as relações de sentido produzidas no encontro-confronto entre a mídia e a sociedade, o simbólico e o semiótico, o desejo e a representação.
Examinando as experiências da informação e da comunicação enquanto atividades relacionadas diretamente com os efeitos de sentido gerados pelas imagens da televisão, percebemos como essa ``máquina de visão'' celebra constantemente a simulação do consenso, como se todos coubessem num ``padrão global''; mas, enquanto isso, no pólo da recepção, a experiência dos telespectadores nos leva a pensar sobre o caráter diferencial de ``mediação'' dos processos informacionais e comunicacionais. Como sugerem, por exemplo, os estudos de recepção das mediações culturais, propostos por Martín-Barbero, em livros como ``Dos meios às mediações'' (1989) e ``Os exercícios do ver'' (2001), os atos informativo e comunicativo perfazem-se, sobretudo, à base de acordos, permutas e negociações; ou seja, através de distintas formas de apropriação.40 Ou seja, por um lado, a mídia fabrica sistematicamente as noções de tempo, espaço, cotidiano e realidade, que se irradiam na esfera social; mas, por outro, os processos midiáticos não se limitam às estruturas técnicas e instrumentais; realizam-se, sobretudo, no calor dos procedimentos informativo-comunicacionais, o que inclui os agenciamentos humanos, individuais e coletivos, com seus vínculos, conexões, sangue, suor e vitalidade.
Não podemos deixar de perceber as influências recíprocas entre a mídia e a sociedade durante o episódio do ``impeachment'' do Presidente Collor e a exibição da série ``Anos Rebeldes'' (Gilberto Braga, 1995) e por fim, relembramos as inúmeras campanhas de ``marketing social'' promovidas em conjunto por diversas ficções. Rememoramos, a propósito, as ficções de ``Brilhante'' (Braga, 1981/82), ``Vale Tudo'' (G. Braga, 1988/89), ``Por Amor'' (Manoel Carlos, 1997/98) e ``O Clone'' (Glória Perez, 2002), alertando para os problemas do alcoolismo; ``Dancing Days'' (Braga, 1978), contra os malefícios do cigarro; ``Explode Coração'' (Perez, 1995/96), na denúncia das crianças desaparecidas; ``Sinal de Alerta'' (Dias Gomes, 1974), no que concerne à preocupação ecológica e a minissérie ``Quem Ama não Mata'' (Euclydes Marinho, 1982), com relação à resistência das mulheres contra a violência. Os exemplos se multiplicam diariamente e servem para mostrar como os laços que reúnem a produção e o consumo das imagens são mais fortes do que se imagina.
O desafio que se apresenta para o pesquisador, face à fabricação das imagens, símbolos e simulacros da TV, é distinguir os estilos de informação, comunicabilidade e sociabilidade que a mídia eletrônica propicia; ou seja, entender de que maneira a mídia estimula ou inibe as formas tradicionais da atração social, como traduz de modo fidedigno as novas modulações dos laços comunitários e em que medida incorpora os discursos capazes de desvelar os jogos de linguagem entre os indivíduos e grupos na dita ``era da informação'' tornando o receptor ativo no processo midiático. Nesta empresa, convém, considerar simultaneamente as formas do sonho e as formas de vigília que animam o cotidiano dos indivíduos, apreciando as imagens em sua dimensão afirmativa, como poéticas tecnológicas que participam ativamente na economia de trocas simbólicas.
Não podemos esquecer que a evolução dos estudos de recepção se deve bastante às influências dos estetas da recepção, que imprimiram inovações importantes na crítica literária e nos estudos culturais, em geral.41
O ``interacionismo simbólico'', guardadas suas especificidades, aparece-nos em convergência com alguns eixos temáticos revisitados pelos chamados ``cultural studies''; esses estudos anglo-saxônicos que se inscrevem em áreas distintas no tempo e no espaço, são representados por autores bem diferentes, mas podem contribuir vigoramente nos estudos de informação e comunicação. São obras que se deslocam desde os trabalhos de Raymond Williams, como ``Los médios de comunicación social'' (1976)``Marxismo e Literatura'' (1979) e ``Cultura'' (1992) até as leituras diversas do chamado ``pós-colonialismo'', como as de Jamelson, ``Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio'' (1996) Said, ``O Orientalismo'' (1998) e Featherstone, em títulos como ``Cultura de consumo e pós-modernismo'' (1995) e ``O desmanche da cultura: Globalização, Pós-Modernismo e Identidade'', 1997.42
A idéia de ``cultura'', em sua pluralidade e diversidade, como um fenômeno da representação, como educação, ilustração e esclarecimento, em vigor desde a Grécia antiga até o Renascimento, cede lugar a uma outra acepção, que marca uma autonomia e uma diferença, exprimindo-se como algo em permanente elaboração na construção social do cotidiano; o diálogo virtual entre essas tribos de autores diferentes pode contribuir para entendermos como gradativamente o campo híbrido da informação e da comunicação foi se formando, através de uma elucidação das distintas maneiras do pensar, dizer e agir informativo-comunicacionais.
Encontramos muitas afinidades com a ``teoria da recepção'' (particularmente, nas vozes de Barbéro, Canclini e Orozco) e com a ``sociologia compreensiva'' (principalmente em Simmel e Maffesoli). A preocupação com as mediações, os hibridismos, o reconhecimento das formas orgânicas e vitalistas traduzindo formas de subjetividade e de sociabilidade, fornecem as substâncias conceituais para a redefinição do campo misto da informação e comunicação iluminado pelo ``espírito comum'', que acolhe leituras as mais variadas. Assim, esse feixe de linhas teóricas, de certo modo, tem nos auxiliado a perceber arestas específicas das ``culturas locais'' e os seus problemas de ``identidade''. A recorrência que fazemos aqui aos diferentes autores e textos permitem-nos verificar a diversidade dos saberes e fazeres locais (e globais) em suas feições urbanas, periféricas, regionais e universais. Essas referências concorrem aqui também para um entendimento do modo como se realizam as modalidades específicas de recepção das imagens da TV, de acordo com os códigos regionais e as particularidades históricas, econômicas, políticas e culturais.