O caso Tim Lopes: o mito da ``mídia cidadã''

Sylvia Moretzsohn
Universidade Federal Fluminense


Índice

Introdução

O assassinato do repórter Tim Lopes, no início de junho de 2002, foi desses casos trágicos capazes de subitamente pôr em xeque alguns dos fundamentos que orientam a atuação da grande imprensa brasileira: de um lado, os limites e os métodos da profissão, envolvendo especialmente o uso da câmera oculta, e de outro o tratamento comumente dispensado às pautas voltadas para o que se poderia chamar genericamente de ``marginalidade social''.

Entre jornalistas, porém, à parte raras iniciativas questionadoras do uso desse método, o ``caso Tim'' provocou sobretudo uma esperada reação corporativa, centrada principalmente num conflituoso debate sobre a segurança no exercício da profissão, realizado em seminários e publicações eletrônicas especializadas, com não raras acusações de negligência e autoritarismo à Rede Globo, onde o repórter trabalhava.

Para o público em geral, o caso prestou-se acima de tudo para reiterar a enorme mistificação que esta mesma imprensa promove em torno de si própria, contribuindo especialmente para sedimentar a imagem da maior rede de televisão do país como defensora - e, no limite, até mesmo a verdadeira expressão - dos valores e direitos da cidadania, evidentemente vinculados aos sagrados ideais do jornalismo. A classificação do assassinato como um atentado à liberdade de imprensa e a elevação do repórter à condição de mártir, a ponto de passar a figurar num - como se verá - igualmente mistificador memorial erguido nos EUA para homenagear aqueles que morreram supostamente em nome do direito de informar, são aspectos significativos desse embuste.

Finalmente, do ponto de vista da cobertura, o caso seria mais uma expressão da velha dicotomia que a imprensa ajuda a plasmar em sua pauta cotidiana: a divisão entre ``bandidos'' e ``homens de bem'', entre ``eles'' e ``nós'', no contexto de solidariedade entre mídia e sistema penal apontado por Nilo Batista1. Com uma particularidade fundamental, pois nesse caso a imprensa atua explicitamente como personagem.

A abrangência da mídia

Comecemos pela primeira ordem de questões. A discussão sobre os limites do jornalismo relaciona-se à discussão sobre os métodos e é certamente a mais complicada. Isso porque as definições clássicas de jornalismo vão se diluindo nessa era das grandes corporações de comunicação, que se ocupam tanto do que se entende por informação noticiosa quanto de espetáculos e entretenimento. Talvez por isso, hoje, se fale menos em imprensa do que em mídia, esse termo difuso, impreciso e abrangente que implica a apreciação de diversas formas de comunicação, desde o noticiário tradicional a shows de variedades que investem pesadamente na exposição de dramas populares e procuram intermediar soluções para eles (ou mesmo apresentar as próprias soluções) a título de ``prestação de serviço'', passando por novelas que abraçam causas ``sociais'' e são aplaudidas por certos intelectuais, juristas e pelo próprio poder público como importantes instrumentos em defesa dessas causas (desde a ``denúncia social'' à sempre incentivada ``busca de soluções''), como a campanha em favor da busca de crianças desaparecidas ou, mais recentemente, a luta contra as drogas. A propósito, está aí a imagem do presidente da República na capa da edição do Globo de 20 de junho de 2002, homenageando autora e atores da mais recente novela, e por extensão a própria Rede Globo, pela relevância dos serviços prestados.

A Globo, aliás, dedicou um bloco inteiro de uma edição de maio do Jornal Nacional para demonstrar o comprometimento social de sua dramaturgia. Para quem consegue ver, é claro o entrelaçamento entre realidade e ficção que se estabelece, seja em aspectos da própria trama (a presença do senador Eduardo Suplicy no enterro do senador Caxias, personagem de Carlos Vereza, o angustiado - et pour cause - defensor da reforma agrária em ``O Rei do Gado''; a inserção de depoimentos ``da vida real'' de ex-viciados cortando as cenas conflituosas protagonizadas pelos atores que representavam o papel de viciados em ``O Clone''), seja, mais claramente ainda, no caso exemplar em que o noticiário da morte de uma atriz foi incorporado pela novela em que ela atuava, enquanto, inversamente, o Jornal Nacional incorporava as cenas da novela para romancear as informações sobre o crime, num continuum em que se embaralhavam o real e o ficcional, mas de extrema eficácia para o resultado (este, muito real) que se pretendia: o assassinato de Daniela Perez, filha da autora da novela, foi elemento decisivo para a aprovação de uma ampliação da Lei de Crimes Hediondos.

Dessa forma, demarcar os limites do jornalismo não tem tanta importância assim para o público, pois o processo de produção de sentido se dá nesse contexto de inter-relação das diversas formas comunicativas que compõem o campo da mídia.

No entanto, discutir os limites do jornalismo é algo crucial não só para quem exerce a profissão como para quem entende a questão da comunicação como decisiva para qualquer projeto de intervenção social. Mesmo porque, não é difícil verificar como os postulados clássicos da imprensa como serviço público se estendem à atividade da mídia de maneira geral, e esta não é uma influência menor: definir os limites do jornalismo significa precisar o alcance dessa ``prestação de serviço'', o que pode interferir positivamente nas várias outras manifestações da mídia. Daí a ressalva acima, para deixar clara a necessidade de se tomar o jornalismo sempre na perspectiva de sua relação com o público, se desejarmos uma discussão conseqüente.

A invasão de espaços

Como se sabe, a atividade jornalística é tributária do projeto iluminista de ``esclarecer os cidadãos''. Trata-se, portanto, de tarefa eminentemente política, cujo caráter é freqüentemente escamoteado através de uma interpretação propositalmente restritiva do princípio do ``dever de informar'', que daí conclui pela necessidade de uma postura imparcial e distanciada, como se não houvesse intencionalidades no ato de selecionar os fatos que se tornarão notícia, ou como se a própria apreensão dos fatos já não fosse também uma interpretação2.

O reconhecimento do papel político do jornalismo, porém, obviamente não lhe confere o direito de substituir outras instituições. Apesar disso, é notório que a imprensa vem procurando exercer funções que ultrapassam de longe o seu dever fundamental, assumindo freqüentemente tarefas que caberiam à polícia ou à justiça. E essa invasão de espaços pode ser considerada justamente a partir de uma definição cara à imprensa: a qualificação de ``quarto poder'', que data do início do século XIX e lhe confere o status de guardiã da sociedade (contra os abusos do Estado), representante do público, voz dos que não têm voz. É certamente sustentada por essa visão mistificadora - porque encobridora dos interesses da empresa jornalística, desde sua constituição, há dois séculos, e especialmente agora na era das grandes corporações - que a imprensa se arroga o direito de penetrar em outras áreas.

Tal invasão busca legitimar a imprensa junto à opinião pública que ela mesma ajuda a formar, com a vantagem de atuar num reconhecido vácuo (a distância entre o aparelho judiciário e o homem comum, para ficar apenas no exemplo mais recorrente). Vicente Riccio chama a atenção para o fato de que as críticas usualmente feitas a essa invasão de espaços não consideram justamente a dificuldade, nada inocente ou casual, de acesso do homem comum à justiça3, mas peca por não perceber a mídia como ator do processo: talvez por isso considere que programas populares como o do Ratinho dão, de fato, voz ao público, esquecendo dos enquadramentos autoritários próprios a esses programas de variedades, que estão longe de ser um reconhecimento dos problemas e reivindicações populares4.

Programas que adotam o modelo de um tribunal não são propriamente novidade - recordem-se ``O homem do sapato branco'', de Jacintho Filgueiras Jr., entre os anos 60 e 70, e seu correlato ``Advogado do Diabo'', de Oswaldo Sargentelli, ou ``O povo na TV'', de Wilton Franco, entre fins dos 70 e início dos 80 -, e não deixam de ser uma forma de invadir um lugar reservado, em princípio, a outras instâncias decisórias. Mas uma análise mais ampliada dessa ocupação de espaços não pode ignorar que se trata de uma estratégia empresarial muito bem conduzida no contexto do neoliberalismo: a redução do tamanho do Estado é ``compensada'' pela ``responsabilidade social'' de ``empresas cidadãs'', de acordo com a formulação de uma ``nova ética de co-responsabilidade'' (entre Estado, empresas e sociedade civil) que mascara conflitos e valoriza indiscriminadamente iniciativas voltadas para ``fazer o bem''.

Francisco de Oliveira já sintetizou a crítica a esse conceito de ``empresa cidadã'' no tempo em que ele ainda não se havia disseminado, demonstrando, em artigo na Folha de S. Paulo, o absurdo de se investir de sentido político algo que é do domínio estritamente econômico. Mas o neoliberalismo trabalha competentemente a polissemia que ele próprio ajuda a dar à palavra ``cidadania'', de modo a diluir seu sentido político, para daí privatizá-lo5. A proliferação de organizações não-governamentais fundadas por empresas, destacando o sentido social de sua atividade, é uma demonstração do alcance desse trabalho permanente de produção de consenso.

Trata-se de uma formulação cujo detalhamento evidentemente excede este espaço, mas cabe ressaltar que, entre essas empresas, as Organizações Globo se destacam em pelo menos três frentes: no campo da educação, com o projeto Amigos da Escola, na assistência social, com o Criança Esperança, e na área jurídico-policial, com o programa ``Linha Direta''. Fazendo exemplarmente a propaganda de sua própria iniciativa, amparada pelo poder de maior rede de televisão do país, a Globo vai assim procurando consolidar-se como legítima substituta do Estado (isto é, como agente de privatização do Estado), com muitas vantagens sobre ele, pois livre do peso da burocracia, capaz de demonstrar eficiência em resultados visíveis e imediatos.

Detalhemos apenas o que ocorre no campo criminal: como Nilo Batista demonstrou exemplarmente, existe uma solidariedade entre mídia e sistema penal, absolutamente funcional ao neoliberalismo6: a sistemática produção da histeria punitiva na maneira escolhida para a exposição de crimes, casos de corrupção ou incivilidades variadas, mais ou menos corriqueiras, adicionando cada vez mais lenha à fogueira inquisitorial daquilo que Loïc Wacquant chamou de Estado penal, a substituir o Estado do bem-estar, incompatível com a lógica neoliberal.

Assim, ``o novo credo criminológico da mídia tem seu núcleo irradiador na própria idéia de pena'', e é a equação penal (se houve delito, tem de haver pena) ``a lente ideológica que se interpõe entre o olhar da mídia e a vida, privada ou pública''.

O discurso criminológico midiático pretende constituir-se em instrumento de análise dos conflitos sociais e das instituições públicas, e procura fundamentar-se numa ética simplista (a ``ética da paz'') e numa história ficcional (um passado urbano cordial; saudades do que nunca existiu, aquilo que Gizlene Neder chamou de ``utopias urbanas retrógradas''). O maior ganho tático de tal discurso está em poder exercer-se como discurso de lei e ordem com sabor ``politicamente correto''. (...) A pena já não interessa tanto como inflição de sofrimento ou mesmo fórmula desastrada de solução de conflitos: a pena interessa como recurso epistemológico, como instrumento de compreensão do mundo. Por outro lado, o desmonte do Estado encontra neste discurso uma eficiente picareta, capaz de exibir os vícios da burocracia estatal - historicamente dominada pelas oligarquias nacionais - como um problema do próprio Estado e não das classes sociais que quase sempre o ocuparam. Trata-se de procedimento análogo à enfática negação de qualquer determinismo nos crimes patrimoniais praticados por pobres: a ``moralização'' do delito é a legítima sucessora de sua ``naturalização'' positivista, e os caminhos da responsabilização penal ficam livres de todo escrúpulo. No reino do individualismo, só o indivíduo pode ser responsável por estar na penitenciáia.7

Ocorre que esse vínculo entre mídia e sistema penal é convenientemente disfarçado atrás da imagem de ``quarto poder'' - a imprensa ``abrindo os olhos do Estado para as falcatruas debaixo do seu nariz'', como afirmou O Globo em editorial de 27 de novembro de 2001. Mas, nesse processo de ``abrir os olhos'', a imprensa mobiliza o sistema penal, instado a dar respostas ao descalabro noticiado. Foi assim no famoso caso do seqüestro do ônibus 174, que ensejou um ``Plano Nacional de Segurança''; foi assim também na mais ainda famosa reportagem sobre a ``Feira das Drogas'', ganhadora do Prêmio Esso de 2001: nada ali era novidade, apenas o rosto de alguns traficantes, que, identificados, acabaram presos - a ``satisfação'' que a polícia teria de dar à ``opinião pública indignada''.

A propósito, a série sobre cidadania que o Jornal Nacional exibiu em agosto, sob a vinheta ``O poder do cidadão'', era apresentada explicitamente como ``um espaço para ajudar'' o público nas eleições que se aproximavam, partindo da justa compreensão de que a participação do eleitor não se esgota no momento do voto. Tudo bem dentro do propósito original de ``esclarecer os cidadãos''. Mas é na forma de abordar o tema que a emissora demonstra os conceitos com os quais trabalha. O episódio mais ilustrativo é o segundo, ``mobilização e cidadania'', que começa com as imagens do ``exército de donas de casa armadas com pranchas e canetas'' a fiscalizar preços em supermercados. O repórter esclarece: ``o Movimento das Donas de Casa, que existe há 19 anos, não se limita a conferir preços. Ele foi essencial para a aprovação da Lei dos Direitos do Consumidor'', que, entre tantas coisas, resolveu o problema de Irani Aguilar, compradora de uma geladeira que deixou de funcionar três dias depois.

Repórter (caminhando por um corredor de presídio):

A lei que deu uma geladeira nova a Irani foi resultado da união de pessoas que sozinhas não teriam força nenhuma. Uma lei tem sempre dois propósitos. O primeiro é evitar que um determinado crime seja cometido. Mas se acontecer, a lei serve para aplicar ao criminoso uma pena que sirva de reparação às vítimas, que faça justiça e evite que o mau exemplo se repita.

O repórter fecha a porta da cela com o estrondo ampliado pelo efeito sonoro. Corta para a cena seguinte, a história do seqüestro e assassinato, em 1992, de uma menina de 5 anos, que teve o corpo carbonizado. Então se estabelece o vínculo tão caro ao neoliberalismo: o sentido da cidadania associado ao mercado. O cidadão cioso de seus direitos consome boas geladeiras e luta pela sua segurança. Sempre com o recurso ao sistema penal, que deve ser severo para trancafiar os desonestos ou assassinos.

Segue a reportagem. Sobre imagens de multidão, o repórter aplaude: ``Foi justamente a mobilização popular que levou o Congresso Nacional a mudar a legislação anti-seqüestro. Mobilização que ganhou força depois de um crime bárbaro''.

Corta para o interior do quarto da menina, hoje ocupado pelas outras duas filhas de Jocélia Brandão: ursinhos de pelúcia, retratos, ``as lembranças'', diz o repórter, ``estão por toda parte''.

Repórter (sobre imagens da mulher no Fórum, abraçada à novelista Glória Perez):

A dor levou Jocélia a se unir a outros pais e mães que passaram por situação semelhante. Juntos, fizeram uma campanha para endurecer a lei contra o seqüestro.

(cena de Glória Perez abraçando Jocélia)

Jocélia:

Na história do país, nunca tinha acontecido. Em três meses e meio, mais ou menos, conseguimos 1,5 milhão de assinaturas.

Repórter (off, sobre cena de repressão a supostos criminosos deitados no chão com as mãos na cabeça, outros chegando a uma delegacia e cobrindo o rosto)

Hoje quem pratica um seqüestro tem penas mais longas, sem chance de habeas-corpus.

(...)

Repórter (off, sobre imagem da mulher passeando com o marido e os filhos numa pracinha):

Ao lado dos três filhos, Jocélia tem fé no futuro. Acha que, com sua luta, ajudou a tornar o Brasil mais justo. Com o voto, pretende fazer o mesmo.

Jocélia:

Nós temos um poder em nossas mãos impressionante. Quando as pessoas querem, elas conseguem muita coisa.

Clareza maior, impossível: a mobilização popular torna o país mais justo, e essa justiça significa a radicalização punitiva.

Não se trata, porém, apenas de pautar as agências do sistema penal: Batista aponta a própria ``executivização'' desse sistema, e dá como exemplo mais acabado dessa ação o programa Linha Direta.

O estudo de Kleber Mendonça sobre o programa já demonstrava a forma pela qual a Globo se apresentava como instância de serviço público, propondo-se a suprir deficiências do sistema penal, oferecendo ao público uma ``linha direta com a cidadania'' e propondo ``fazer a justiça funcionar como deveria''8. Batista, que prefaciou o livro, nota a mudança de grau na atuação dos meios de comunicação nesse caso: ``estamos fora do modelo convencional do trial by media: não se trata aqui de influenciar um tribunal, senão de realizar diretamente o próprio julgamento''.

No sábado de verão em que escrevo este prefácio, noticia-se o linchamento, pelos presos da carceragem policial de Cabo Frio, de Ronaldo Josias de Souza, ocorrido seis horas após sua prisão. O homicídio de que ele era acusado, ocorrido ano passado em João Pessoa, fora exibido ``pelo programa Linha Direta, da Rede Globo, na noite de quinta-feira'' (O Dia, 16 fev. 02, p. 8). Se levarmos em conta que o programa termina por volta de 23h, Linha Direta tem um novo recorde a comemorar: prisão em seis horas e linchamento em doze9.

Algo semelhante ocorre quando a mídia desempenha aparentemente seu papel mais estrito de ``meio'' e apenas transmite uma informação, expondo imagens gravadas por circuitos internos de TV. Foi o que ocorreu no caso da babá flagrada batendo na criança de quem ela deveria cuidar, em Goiânia: na edição seguinte à divulgação da cena, os jornais publicaram foto da moça tentando escapar de uma ``tesoura'' desferida por um rapaz, numa estrada de terra. ``Bateu, levou'' era o título da legenda do Globo, na capa da edição de 31 de julho de 2002. Na seqüência do noticiário, especialmente televisivo, o explícito desagrado na expressão dos locutores ao informar a pena imposta à babá: prestação de serviços comunitários, em vez de punição exemplar atrás das grades.

Tais são conseqüências a que pode chegar esse projeto de ``fazer justiça'' (bateu, levou?) que passa por cima de garantias fundamentais como o direito ao devido processo legal, anulando conquistas históricas resultantes das revoluções liberais de fins do século XVIII, e que fundamentariam a idéia moderna de cidadania. É justamente a diluição do sentido dessa idéia, nos tempos atuais, que permite à mídia justificar sua atuação em nome dela. Análises futuras poderão detalhar os desdobramentos desse termo no discurso midiático, para configurar melhor o tipo de cidadão que a imprensa diz representar.

Câmera oculta, transparência enganadora

Uma interpretação muito particular da idéia de ``quarto poder'' já nos permitiria levar a perceber os motivos por que a imprensa chama a si o direito de utilizar todo e qualquer meio, lícito ou não, para penetrar onde quer que seja, em nome do sagrado direito de informar - ou, o que dá no mesmo, em nome do direito do público de saber. É um postulado que sobrevive apesar de críticas recorrentes e muito bem fundamentadas (afinal, o ``direito de saber'' está subordinado a escolhas definidas pela própria mídia, no contexto das relações de poder em que ela se insere), de modo a parecer natural. Mas vimos aqui mesmo que a tarefa de informar nunca é inocente - e, no caso, destina-se explicitamente a ``abrir os olhos do Estado''. Se o Estado não funciona, nada mais lógico do que assumir o seu lugar. Em termos de métodos, a conseqüência lógica dessa ultrapassagem de limites é a legitimação do recurso à câmera oculta, ponto culminante das variadas estratégias de travestimentos nunca suficientemente discutidos - mesmo porque habitualmente louvados como o requisito de esperteza característico de todo bom repórter - que marcam a história do jornalismo. Especialmente nesses tempos em que tanto se fala de transparência como supremo valor ético, esse recurso parece ainda mais justificado.

O ideal da transparência, porém, é enganador. De saída, esconde coisas importantes como os interesses empresariais dos próprios jornais e das fontes que os alimentam, e o processo de seleção das informações que nos são oferecidas. Além disso, sugere a necessidade de exposição imediata dos fatos, como se a simples exposição bastasse para esclarecer o público.

Assim se ocultam as relações de poder que direcionam o foco dessa câmera, a vasculhar determinados ambientes propiciadores de evidências às vezes fáceis de variados tipos de ilegalidades mais ou menos escandalosas. Determinados ambientes: nunca uma reunião reservada da Fiesp ou do Planalto, a não ser que interesses políticos assim o imponham; jamais uma reunião privada na Rede Globo.

Tampouco se revela o processo de elaboração discursiva: as imagens mostram personagens à vontade, comportando-se ``naturalmente'', sem as defesas próprias de quem sabe estar sendo entrevistado, e entrevistado para a televisão. Dessa forma, garantem o espetáculo - a sensação de que penetramos em lugares proibidos e ficamos sabendo de coisas que outros, eventualmente ``poderosos'', gostariam de esconder. Mas essas ``evidências'' são falseadoras, tanto porque elidem a existência do jogo de representações inerente às relações sociais (o que a câmera expõe é visto como um flagrante que surpreende algum ilícito, uma prova irrefutável de ``verdade'', sem mediações ou interferências) como porque encobrem justamente essas interferências contidas na própria mediação: o comportamento do ``repórter sem rosto'', as perguntas que não vão ao ar, o não revelado estímulo a que a fonte adote atitudes que configurarão o ilícito a ser comprovado.

Com uma agravante: a fragilidade jurídica de tais ``provas'' (mesmo porque freqüentemente produzidas por um agente provocador) anula os resultados práticos aguardados pelo público (a punição exemplar, o prazer de ver aquele corrupto na cadeia), mas a atuação legal acaba sendo mais um argumento de descrédito do Judiciário, bem à maneira dos filmes policiais americanos nos quais a existência da lei é o principal empecilho para que se faça justiça: afinal, todos ``viram'' aquele escândalo na televisão. Se o Estado não toma providências, é porque de fato não se pode esperar mais nada dele.

Diante dos marginalizados: a ação da mídia no projeto de exclusão social

Em recente artigo, procuramos demonstrar que a cobertura criminal na grande imprensa baseia-se em fundamentações de cunho positivista e se orienta por uma lógica que se estende à cobertura dos fatos relacionados às classes populares, servindo à disseminação do medo e à formulação e ampliação de políticas cada vez mais repressivas de segurança pública. Indicamos também que, embora predominante, o discurso repressor não é único, mas se completa com outro que aparentemente seria o seu contrário, evidenciando duas formas de se tratar a ``questão social'' - ora como ``caso de polícia'', ora como ``caso de política''10.

O foco da análise eram, então, os grandes jornais e revistas voltados para a classe média, embora a mesma lógica se aplique aos chamados jornais populares, com a óbvia mudança de linguagem, adequada ao público de baixa renda. Nem podia ser diferente, pois tais publicações são produzidas por empresas que representam e defendem interesses semelhantes, quando não se trata de uma mesma empresa responsável por títulos distintos para públicos diversos, como acontece com O Globo e Extra.

Não é difícil, portanto, ampliar esse eixo de análise para aquilo que chamamos de mídia, mesmo porque, no Brasil, os exemplos de publicações ou programas que vão contra essa corrente são resultado do esforço de organizações não-governamentais, movimentos comunitários e projetos editoriais que, embora muito significativos, visam justamente a consolidar sua influência localizada. Mas, por isso mesmo, não oferecem qualquer possibilidade de concorrer no mercado para, conseqüentemente, apresentarem-se como alternativa de fato ao noticiário dominante, para um público ampliado.

Tratando particularmente da Rede Globo, podemos retomar as premissas relacionadas no início deste artigo e verificar que é o vínculo entre mídia e sistema penal, associado à estratégia empresarial de legitimar-se como substituta do Estado, que orienta o trabalho ali desenvolvido - especialmente jornalístico, mas não só. Como se sabe, a empresa se empenha em diversas iniciativas apresentadas invariavelmente sob o lema surrado do ``resgate da cidadania'' e da ``auto-estima'': além de sustentar ou apoiar projetos nesse sentido, abre generosos espaços para divulgá-los, no canal aberto ou nos canais pagos, em programas especiais ou nos próprios telejornais. Em contrapartida, ao tratar das questões criminais, adota o comportamento positivista clássico, refletido na configuração do ``mal'' individualizado na figura do bandido ou generalizado para abarcar os moradores da periferia.

E aí se aplica precisamente a mesma lógica dual e complementar que informa a cobertura dos fatos relativos aos marginalizados, com a especificidade da linguagem audiovisual: diante do crime, locutores e repórteres teatralmente indignados com o ponto a que chegamos, ressaltando a ``ousadia dos bandidos'' e seu ``poder paralelo'', alardeando a ``ausência do Estado'' e o conseqüente abandono dos ``cidadãos de bem'', e finalmente estimulando declarações a favor do endurecimento das penas e do aumento à repressão; diante dos ``carentes'', freqüentemente no mesmo bloco noticioso, o ``outro lado'': a possibilidade de redenção através do trabalho voluntário, configurando aquilo que Nilo Batista definiu como discurso de lei e ordem com sabor de ``politicamente correto'':

Naturalmente, esse discurso admite aliar-se a outros que não lhe reneguem o ponto de partida: a modernidade realizou-se plenamente, suas promessas estão cumpridas, e se o resultado final é decepcionante, tratemos de atenuá-lo pela caridade, pelo voluntariado, por campanhas publicitárias; mas lei é lei11.

Lei é lei, portanto não há que transigir: separemos a sociedade em bandidos e cidadãos de bem e sejamos duros com os criminosos. Não seria surpresa se um criativo estudo sobre tal comportamento elaborasse, parafraseando a obra clássica de Lukács, uma ``ontologia do ser marginal''.

Mas essa dualidade traz outro elemento perverso, que ajuda a plasmar no senso comum os estereótipos relativos às classes populares. Pois, além do olhar benevolente que as apresenta em animadas e ordeiras associações de voluntários, elas só aparecem no noticiário como vítimas de uma tragédia ou como agentes de rebeliões ``comandadas por traficantes''. Assim, os ``carentes'' ora são enquadrados como cidadãos de bem em busca de um futuro melhor, ora como gente humilde digna de nossa piedade diante de relatos pungentes repetindo ``perdemos tudo'' entre lágrimas - embora não tivessem quase nada -, ora como massa de manobra potencialmente explosiva e perigosa, perfeitamente enquadrada nas teorias clássicas da patologia social.

São fartos os exemplos de cobertura que enfocam os pobres como perigosos12. Por isso, vale a pena enfatizar o lado do ``olhar benevolente'', mesmo porque ele costuma ser louvado como contribuição positiva (ou ``pró-ativa'', no jargão da moda): ali estão pobres honestos, ordeiros e trabalhadores, empenhados em melhorar de vida pelo próprio esforço, ainda que seus horizontes sejam sempre limitados às ocupações subalternas que lhes foram historicamente reservadas, fora das quais só há salvação no talento para a música ou o esporte; então aparecem em ensaios de teatro, dança, capoeira, futebol, rodas de chorinho e samba, ou em oficinas para trabalhos manuais variados, às vezes valorizados pelo que podem proporcionar de ``criatividade'' - e vemos gente sorridente usando sucata para fazer artesanato ou confeccionar instrumentos musicais para projetos que ``afastam o jovem do tráfico''.

``O objetivo é formar bons cidadãos'', diz o responsável por um desses projetos ao apresentador. No palco, jovens pobres do interior de São Paulo, estáticos como se posassem para uma foto, rígidos como se estivessem (e estavam) fora de lugar. Serginho Groisman ``entrevista'' um a um (como é seu nome? que instrumento é esse?), e cada um vai respondendo e mostrando tonéis, latões de tinta que se transformaram em instrumentos de percussão. O apresentador se deslumbra: tudo sucata, que beleza... Finalmente, chega ao último entrevistado, um músico jovem e bem vestido, um dos instrutores dos meninos. Ele também diz seu nome, mostra seu instrumento (``isso é uma guitarra'') e logo ressalta, entre risos: ``e não é sucata''.

A cena foi ao ar em setembro, numa edição do programa ``Ação'', da Globo, um dos vários que tratam de iniciativas de voluntariado em prol da ``cidadania''. O objetivo é formar bons cidadãos, ainda que uns possam comprar guitarras e outros tenham de se conformar à sucata, embora contem com o apoio luxuoso de Naná Vasconcelos e Caetano Veloso.

É apenas um entre inúmeros exemplos em que o olhar benevolente da mídia se une ao do voluntário bem intencionado, a partir da conclusão ou da intuição de que iniciativas como essa afastam o jovem do crime e são capazes de promover inclusão social, ainda que pela porta dos fundos. Mas as coisas não são tão simples assim, como argumenta o criminólogo Jock Young, na tradição de estudos sociológicos que apontam a desigualdade e a frustração de expectativas, oriunda justamente daquilo que se pretende promover - uma demanda por mais cidadania -, como causa do crime.

Deste modo, talvez devêssemos falar, mesmo aqui, em déficit relativo: isto é, os padrões materiais relativos dos indivíduos comparados uns com os outros, um sentido de desigualdade, de recompensa injusta em relação ao mérito. Assim, à medida em que os grupos começam progressivamente a reivindicar maior igualdade de recompensa e cidadania mais plena, sua privação relativa aumenta e, não havendo nenhuma solução coletiva à vista, ocorrerá criminalidade13.

A ignorância dessa análise, porém, talvez não seja inocente. Pois o olhar benevolente é ajustado ao enfoque e aos limites de ação do voluntário bem intencionado. Se a iniciativa não dá certo, a culpa é de quem não soube aproveitar a oportunidade, e o benfeitor pode serenamente lavar as mãos.

Além disso, a celebração dos projetos ``que afastam os jovens do tráfico'' não consegue resistir à realidade: então a mídia reage entre surpresa e indignada à notícia de que o músico Paulo Negueba, um dos instrutores do Afro Reggae, grupo famoso por ter sido criado como resposta ``cidadã'' à chacina em Vigário Geral, foi ferido com três tiros e escapou da morte por milagre durante uma batida policial na favela. Surpresa só possível quando se deseja desconhecer o estereótipo criminal produzido pelos sistemas penais, que os suspeitos de sempre carregam no próprio corpo e que nenhum discurso de boas intenções é capaz de apagar.

Não é difícil perceber que o caso ganhou manchete (a ponto de causar a exoneração do comandante do Bope) porque Negueba é percussionista da banda O Rappa, que integra o circuito marginal-incluído do nosso cenário musical. O vínculo é particularmente sugestivo para o tema ``violência'', pois o líder da banda, Marcelo Yuka, também figurou nas manchetes ao ser atingido por tiros (ficando paraplégico em conseqüência disso) quando tentava escapar de um assalto na Tijuca. O caso ocorreu dois anos antes, mas mesmo assim o Globo atualizou a história, escrevendo na capa de sua edição de 11 de agosto: ``Outro músico do Rappa é baleado em tiroteio'', como se a banda sofresse de algum tipo de maldição sinistra.

Os olhos fechados para o cotidiano da periferia também deixam alguns pesquisadores espantados. Como a professora Raquel Paiva, ao ler declaração de José Júnior, outro integrante do Afro Reggae, à revista Megazine (suplemento do Globo voltado para adolescentes), em 13 de julho de 2000: ``Sabe por que os jovens entram para o tráfico? Não é só pela grana. O lugar mais legal numa favela à noite é a boca-de-fumo. O som é maneiro, a galera é bem vestida...''. Diante disso, Raquel comenta:

É entristecedor constatar que o jornalismo atual não repara no que produz. Como é possível deixar escapar um depoimento desses sem realizar uma pauta que realmente tenha a preocupação de mostrar humanamente esses lugares: mostrar as pessoas que estão ali, e não apenas reproduzindo a ``batida'' policial. O jornalismo deveria estar para além, muito além, de ser espaço de reprodução de valores segregacionistas14.

É o típico discurso de boas intenções aplicado à mídia, travestido de crítica à competência profissional, e que suplementarmente introduz uma nova categorização para a imprensa: o jornalismo distraído, que não repara no que produz. Desnecessário deter-nos na avaliação desse comentário; importa, sim, ressaltar a força do depoimento de José Júnior, para reiterar que a mídia não se propõe indagar sobre o cotidiano da periferia: prefere, como certa vez observou Mattelart, ``as operações conduzidas em torno do tráfico de drogas'' a ``exprimir como essas pessoas ainda conseguem conservar sua dignidade, apesar de estarem sujeitas à mais extrema violência''15.

Exceções existem, claro, e o fato de serem exceções reitera essa lógica, embora costume ser tomado como indício de ``brecha'' por onde se insinua um discurso crítico. Exemplos são mais comuns no jornalismo impresso, e se revelam tanto em jornais populares quanto na chamada ``imprensa séria''. No primeiro caso, uma amostra significativa foi a série de reportagens sobre os chamados ``autos de resistência'' que o Extra publicou durante uma semana, a partir de 11 de julho de 1999, e que começou com o título ``A cova dos 259 Josés'': na abertura, a reprodução de uma nota curta, ``Polícia mata 3 em tiroteio'', expressão clara da banalização da violência. Imediatamente, o comentário que demonstraria a mudança de postura do jornal: o leitor é alertado para o fato de que é daquela forma que tais assassinatos são noticiados, mas que agora estaria diante da verdadeira dimensão daquelas mortes, ``um silencioso massacre contra inocentes'' escondido ``pela desimportância social das mães, pais, irmãos e mulheres de gente pobre e humilde'' - isto é, o próprio público do jornal.

Tais reportagens foram objeto de uma acurada análise de Cláudia Lemos16, que, no entanto, não dá a devida importância à vinheta ``especial'' que marca a série: de fato, este pode ser tomado como um ``exemplo de postura crítica do Extra diante da polícia'', mas um exemplo que confirma a regra e não representa o esperado divisor de águas para a adoção dessa postura a partir de então. Antes e depois da série, os Josés continuam a proliferar nos matagais, nas beiras de estrada, nas covas rasas, nos cemitérios clandestinos no alto dos morros. E continuam a ser tratados do mesmo jeito pelo jornal.

O público de classe média também é eventualmente premiado com informações que, por estarem ausentes da cobertura cotidiana, parecem surpreendentes. Assim, na série que O Globo publicou entre março e maio de 2001 para traçar os ``Retratos do Rio'', a partir do Relatório de Desenvolvimento Humano (resultado de um trabalho conjunto do Pnud, Ipea e Prefeitura do Rio), os leitores podem espantar-se com o significado dos dados crescentes da violência urbana: ``embora a sensação de insegurança domine toda a população, a violência é maior nas áreas carentes''; ``falta polícia'' justamente ``nos bairros mais violentos'' (21 de abril de 2001). Nenhuma surpresa, porém, e dessa lógica o repórter Caco Barcellos já dera conta em entrevista à Caros Amigos, em maio de 1997, comentando a política de segurança do então governador Marcello Alencar ``em sintonia com o clamor público, da imprensa'':

Veja bem, ele equipou a polícia como nunca, você tem lá Santana com equipamento de bordo, tecnologia de ponta, computador, o diabo, mas policiando a zona sul, que realmente se tornou hoje supersegura. (...) Está superpoliciado ali, em prejuízo do policiamento onde está a maioria da população, na zona norte. A imprensa também se comporta dessa forma, ela não gosta de cruzar o Túnel Rebouças.

Para completar o quadro, temos o alarde provocado pela comparação sistemática do Rio de Janeiro com a Colômbia. Comparação não só falaciosa, por associar um país em guerra civil de fato há 40 anos (com a atuação das Farc, convenientemente desqualificadas pela associação ao narcotráfico) com a alegada ``guerra civil'' no Rio, mas por um aspecto essencial para o que argumentamos aqui: a exposição do exacerbado número de mortes na cidade oculta a informação de que esses dados referem-se fundamentalmente a vítimas da periferia. Como o noticiário cotidiano destaca sempre as agressões à classe média, não é preciso muito esforço para verificar os efeitos de produção de pânico obtidos a partir desses vínculos: parece que a violência chegou a um ponto insustentável para nós, que temos os instrumentos para ir às ruas vestidos de branco (ou preto) em passeatas clamando por uma paz que se traduz em políticas cada vez mais repressivas contra quem nos rouba a tranquilidade.

Exemplo mais claro ainda foi dado pelo Jornal Nacional de 19 de setembro de 2002, na série de reportagens especiais sobre os ``problemas de nossas cidades'' inserida na vinheta ``Eleições 2002 - meio ambiente e grandes cidades'', que naquele dia traçou o ``retrato do medo'':

Locutor:

...vamos ver como a violência afeta diretamente a vida dos cidadãos. Sem estatísticas confiáveis sobre segurança pública ao longo da década de 90, os números dão lugar às imagens. E elas dizem muito.

Repórter (off):

Você vai ver um dos piores retratos da grande cidade.

A fala é paralela à cena que começa com a câmera fechando o quadro num espelho retrovisor de carro e cortando para flashes, ao som de cliques sucessivos de máquina fotográfica, documentando um assalto a motorista no trânsito parado.

Corta para depoimento 1 (mulher negra de meia-idade, aparência humilde, na rua):

Mesmo dentro de casa a gente tem medo das coisas.

Repórter (off), sobre um flash do centro de São Paulo:

Mas só na cidade de São Paulo 14 pessoas foram assassinadas por dia no ano passado17.

Corta para depoimento 2 (mulher loura, mais jovem, de classe média, na rua):

Eu, por exemplo, evito sensivelmente sair à noite com o meu carro.

Nem se diga das incongruências originais: as imagens ``dizem muito'' mas revelam um assalto, o repórter fala em mortes; as estatísticas não são confiáveis, mas, ato contínuo, apresenta-se uma estatística - as 14 mortes diárias na capital paulista. Confiável ou não, importa perceber que se trata de um dado genérico, que não informa onde tais vítimas são produzidas, nem sua condição social. Pela seqüência de depoimentos (mulher negra pobre, mulher branca de classe média), aparentemente a intenção é insinuar que a violência atinge a todos da mesma forma.

Esse desprezo pelo cotidiano das classes populares só pode reproduzir estereótipos adequados ao sistema penal. Foi o que ocorreu, mais uma vez, na cobertura do caso Tim Lopes, cuja relevância se impõe pela importância simbólica da vítima: um jornalista, que automaticamente representa os sagrados valores do jornalismo. Por isso, associam-se nesse episódio o discurso clássico de combate ao crime, fomentador da histeria punitiva e da cultura do medo, à reiteração do mito da imprensa como ``quarto poder'', em torno do qual juntaram-se as empresas de comunicação, a Associação Brasileira de Imprensa e as representações sindicais dos jornalistas, em nível local e nacional.

O caso Tim: preliminares

A mudança no comando do governo Rio, com a saída de Anthony Garotinho para a disputa das eleições presidenciais, foi marcada pelo anúncio de (mais um) plano de emergência para a segurança. Tal foi a manchete do Globo de 7 de abril, que, como seria óbvio, dedicaria amplo espaço naquela edição à posse de Benedita da Silva. Dois dias depois, o jornal noticiava na capa a possibilidade de união dos governos estadual e municipal para o combate ao crime. O assunto virou manchete no dia 21 de abril, um domingo: ``Estado e prefeitura iniciam ofensiva contra violência''.

O tema voltou às manchetes no domingo seguinte, com a denúncia do novo governo de que os índices da criminalidade teriam sido manipulados pela gestão anterior. Dois dias depois, a notícia do ``primeiro teste de fogo'' da ``polícia do PT'', que esteve no Complexo do Alemão, onde dez ônibus haviam sido destruídos pelos moradores, em protesto contra a morte de um menino ``num tiroteio entre traficantes e PMs''. ``O próprio comandante da PM, coronel Francisco Braz, que esteve na favela para investigar a morte, foi recebido a tiros'' (O Globo, 30 de abril de 2002, chamada de capa). No dia 31, o Jornal do Brasil publicaria o caderno especial ``Cidade sitiada'', abrindo foto de um soldado num mirante, apontando uma metralhadora para o vale urbano, Pão de Açúcar ao fundo. O que deixa dúvidas sobre quem está sitiando a cidade: aparentemente a população é refém do ``crime'', mas quem domina a cena é um policial armado.

O caderno especial não traz propriamente novidade, reunindo matérias requentadas sobre as providências que a classe média vem tomando para proteger-se (inscrevendo-se em cursos de krav-magá, a luta que prepara soldados do exército israelense contra o terrorismo, providenciando a blindagem de carros e sistemas eletrônicos de vigilância, contratando seguranças particulares). O ``outro lado'' são as ``aulas de cidadania'' promovidas por ONGs em favelas, buscando afastar os jovens do crime através do esporte, com destaque para o projeto ``Luta pela paz'', que tem no estímulo ao boxe o gancho para a metáfora ideal.

Como se vê, nenhuma novidade, a não ser a própria ênfase no tema, que traduz a idéia de que ``ninguém agüenta mais'' tanta violência. Idéia recorrente, como qualquer pesquisa aleatória poderá verificar, tantos foram os episódios, em tão diferentes governos (que a mídia torna tão parecidos), capazes de produzir séries de reportagens sobre o assunto. Mas, bem a propósito, uma crônica de Carlos Heitor Cony, em 12 de junho, usava o mesmo título para comentar a remissão: ao passar por uma banca de sebos no Largo do Machado, vira uma velha Manchete dos anos 70, com uma chamada berrante, em vermelho e amarelo: ``Cidade sitiada''.

Estaria a cidade sitiada há três décadas? Se há tanto tempo ninguém agüenta mais tanta violência, e se mesmo assim continuamos agüentando, que motivos levariam a mídia a reiterar suas manchetes? Que motivos teria essa formidável cozinha jornalística, além da semeadura cotidiana de um pânico difuso para fundamentar o discurso repressivo do combate ao crime?

O retorno às preliminares do caso Tim pode fornecer mais informações. Na última quinzena de maio, o crime e a urgência em combatê-lo no Rio foi manchete no Globo praticamente todos os dias, configurando a descrição de uma situação de descalabro que se encaixa na famosa fabricação de ``ondas'' objeto de estudos acadêmicos e mesmo de eventuais críticas de jornalistas mais qualificados18. Situação comparável, para ficarmos no exemplo mais contundente, ao período que antecedeu a Operação Rio, em 1994, com a óbvia diferença dos resultados, de acordo com particularidades da conjuntura política.

Assim, temos ``Bandidos desafiam governo e jogam granada em secretaria'' (15/5); ``Ministério da Justiça manda PF investigar atentado no Rio (16/5); ``Governo do Rio já negocia força-tarefa contra o crime'' (17/5); ``Benedita aceita força-tarefa mas quer o Rio no comando'' (18/5, uma edição que traz matéria em página interna na qual o prefeito César Maia, fotografado conversando com Benedita, ``defende morte de bandidos para garantir a ordem pública no Rio'').

Pausa para respiração no domingo, dia 19, mas nem tanto, pois a manchete remete ao ambiente onde brota a violência: ``Cem favelas surgiram no Rio em quatro anos''. No começo da semana, a seqüência retomada: ``PF defende força-tarefa com comando conjunto'' (20/5); ``Plano contra o crime prevê o bloqueio de carros em favelas'' (21/5); ``Governo libera recursos para a segurança no Rio'' (22/5).

No dia 23 a manchete é sobre economia, mas o assunto continua em chamada no alto da primeira página: ``Força-tarefa: PF quer a participação da prefeitura''. Seguimos até o fim do mês com o crime em destaque máximo: ``Governadora anuncia parceria com prefeituras contra o crime'' (24/5); ``Polícia descobre conexão paulista em crimes no Rio'' (25/5); ``Violência esvazia a noite do Rio'' (26/5); ``Força-tarefa faz plano para deter violência'' (27/5); ``Benedita põe mais 1.300 policiais nas ruas do Rio'' (28/5); ``Tráfico fecha túnel em dia de guerra'' (29/5); ``PM admite que direito de ir e vir está ameaçado'' (30/5); ``PM invade morros para impor cessar-fogo ao tráfico'' (31/5).

Tudo isso eventualmente editado ao lado de fotos sugestivas: uma menina olhando pela fresta de persianas verticais (como grades?) entreabertas para deixar-lhe à vista apenas pequena parte do rosto, no dia em que se noticiou a ``ameaça ao direito de ir e vir''; policiais atrás de vidros estilhaçados pelas balas, como se eles mesmos tivessem sido atingidos, no ataque da véspera ao posto policial de Ramos, noticiado em subtítulo e legenda no dia 17. Fora as habituais fotos de policiais circulando armados pelos morros, em meio a crianças franzinas e assustadas.

Tudo isso concorrendo com o noticiário das vésperas da estréia do Brasil na Copa do Mundo.

Foi nesse crescendo que estourou o caso Tim.

Sexo, drogas e funk and all

Em fins de maio, o repórter Tim Lopes iniciara a apuração de uma matéria na favela de Vila Cruzeiro, na Penha, supostamente atendendo a pedido de moradores que, indignados mas temerosos de represálias, teriam telefonado para a Rede Globo denunciando a realização de bailes funk com shows de sexo ao vivo protagonizados por adolescentes e farto consumo de drogas, sob o patrocínio dos traficantes locais. O repórter teria ido à favela três vezes. Ao retornar, dia 2 de junho, para documentar o baile com uma microcâmera, desapareceu. Seu assassinato, que teria sido comandado pelo traficante Elias Maluco, só foi confirmado uma semana depois.

Tivesse tido sucesso, a investida alimentaria a espiral de manchetes que criavam o clima propício a mais uma onda de repressão social (generalizada aos marginalizados, portanto circunscrita aos morros), a pretexto de combate ao tráfico. Com o indispensável condimento moral, aliás orientador de todas as coberturas sobre o tráfico: pois é mais fácil e funcional encarar o bandido como o malfeitor que desvirtua nossas crianças do que apreender o tráfico em sua lógica econômica, demonstrada com especial clareza por Rosa del Olmo19.

Impossível, então, não lembrar do escândalo da suposta epidemia de gravidez vitimando adolescentes na ``dança do trenzinho'' dos bailes funk, denunciada dois anos antes por alarmadas autoridades da saúde pública (pois se tratava sobretudo de uma questão de higiene...). Impossível não perceber o efeito de ocultamento que as imagens prometidas pela denúncia dos moradores indignados provocaria: raro seria o espectador a perguntar-se sobre cenas semelhantes, mais contundentes até, protagonizadas em festinhas de classe média, tão longe vai longe a memória do caso Cláudia Lessin. Muito menos se suspeitaria dos processos seletivos para atores adolescentes em busca do estrelato midiático. Ou - para retornarmos à extração social dos marginalizados - se indagaria dos efeitos de um tal recurso a vasculhar a intimidade de uma delegacia.

A rara, talvez isolada crítica sobre o motivo fútil (embora muito funcional ao sistema) que expôs o repórter ao perigo e ao desfecho trágico foi feita por Fritz Utzeri, no JB. Primeiro, no artigo ``Jornalismo ou voyeurismo?'', em 9 de junho:

Tim Lopes foi vítima da imprudência quase criminosa das chefias de jornalismo da TV. Por que se arriscou? Para mostrar imagens de algo sabido, em nome do voyeurismo. Cenas de sexo de adolescentes e consumo de drogas em bailes funk. Isso vale a vida de um repórter? A Globo insiste em confundir jornalismo com reality show. O Jornal Nacional noticia a campanha da novela das oito e o Big Brother como se fossem notícias. A novela faz - supostamente - campanha contra as drogas (e é elogiada por isso), quando na verdade usa causa nobre para promover o voyeurismo mais escrachado e técnicas jornalísticas para alavancar o ibope de sua dramaturgia.

Depois, em seu artigo seguinte, ``Reflexões'', de 12 de junho:

Se for para investigar o mundo do sexo e droga para mostrar no Fantástico, por que perder tempo com bailes funk, onde todos sabem o que rola? Por que não arranjar logo um ``repórter investigativo'', de preferência com cara de gente fina, equipá-lo com câmera oculta e deixá-lo em certas festinhas da Zona Sul, na região serrana ou no litoral do Rio, ou ainda em São Paulo, Brasília & alhures, reuniões freqüentadas por socialites, políticos, empresários, artistas e mostrar como são esses encontros no que diz respeito a sexo, drogas & rock n'roll? E que tal usar essas mesmas microcâmeras em certas ``reuniões de negócios'' filmadas desse jeito? Ou em certos ``encontros políticos''?

Essa questão de fundo delimita o foco da câmera oculta e obriga à urgente discussão sobre limites e métodos do trabalho da imprensa. Foi, aliás, o que o próprio Fritz procurou fazer, em seu artigo inaugural sobre o caso Tim, intitulado justamente ``Os limites do jornalismo'' e publicado dia 5 de junho, quando (pelo menos formalmente) ainda havia a esperança de que o repórter não tivesse sido assassinado.

O uso desses meios tecnológicos modernos e miniaturizados facilita denúncias, sem qualquer dúvida, mas pode ser também um modo questionável de exercer a profissão. Além disso, usados indiscriminadamente, acabam sendo um convite à preguiça apurativa e ao sensacionalismo voyeurista, além de desestimular o uso da inteligência, pois ao repórter exige-se que seja um bom ator (algo não previsto nos pré-qualificativos requeridos para o exercício da profissão), capaz de portar a câmera que denuncia. Mero instrumento. (...)

Morrem anualmente dezenas de coleguinhas em guerras, revoluções e acidentes. Faz parte do risco da profissão, mas daí a transformar cada um de nós numa cópia de 007 vai uma distância enorme. Nós somos testemunhas, não temos licença para matar e nossa atividade só pode ser exercida dentro da ética e da legalidade. Essa noção de que jornalista é jornalista é a única proteção que temos ao entrar em zonas de conflito para sairmos vivos e contar a nossa história. Se nos confundirmos com espiões ou policiais com eles seremos confundidos, e nesse caso é melhor mudar logo de profissão. O debate está aberto.

Caberia lembrar, bem a propósito, que para o crime de espionagem em tempo de guerra o Cógido Penal Militar prevê pena de morte (art. 366).

Mas, não, Tim não era um espião: era ``um cidadão'', conforme o título do texto que o diretor da Central Globo de Jornalismo, Carlos Henrique Schroder, publicou em resposta a Fritz, no dia seguinte, no mesmo JB. ``Tim disfarçou-se do que no fundo é: um cidadão carioca, de bermuda, camiseta e pochete''.

Cidadãos comuns não andam por aí com câmeras ocultas. Mas Schroder faz pouco caso desse detalhe, tratando-o como ``apenas um dos recursos que o jornalismo hoje pode usar com o avanço tecnológico. Claro, sempre com um indispensável bloquinho de notas. Não foi ela [a microcâmera] que pôs Tim Lopes em perigo; descoberto, o bloquinho teria sido suficiente para despertar a ira dos traficantes, que conhecem seus adversários: a sociedade de homens de bem deste país''.

Tim não era um espião, nem tampouco a nossa guerra é uma guerra qualquer:

Os bandidos dos morros do Rio são bárbaros, criminosos, que têm feito questão cada vez mais freqüentemente de demonstrar o seu sadismo.

Não há nenhuma intenção da Globo em negociar com eles, em respeitá-los, em acreditar que eles tenham palavra, honra, moral. São bandidos, facínoras e jamais negociaremos com eles. Pareceu-nos absurda a idéia de a eles nos apresentar como jornalistas, dizendo: ``Estamos aqui para registrar os seus crimes; somos apenas observadores neutros e gostaríamos da permissão de vocês''. Como não cremos que seja essa a proposta que está sendo sugerida, cabe a pergunta: não havendo esta possibilidade, a alternativa seria o nosso silêncio, a nossa omissão, relegar toda essa gama de crimes à sombra?

De novo o foco sobre um determinado aspecto da vida (ou do desvio) social, aguçando aquela vigilância sobre os marginalizados, a quem é sempre mais fácil vigiar porque ``vivem a céu aberto'', ao contrário das classes média e alta20; de novo a justificativa da utilização de todo e qualquer método de investigação. Observações muito instrutivas, aliás, para informar o tipo de fundamentação sociológica ou criminológica que orienta a cobertura específica.

O curioso é que um dos principais argumentos contra a violência cometida na captura do repórter, em reiterados protestos de jornalistas e autoridades, foi o desrespeito à liberdade de imprensa. Ora, seja porque esta é uma guerra sem lei, seja, tão-somente, porque se trata de bandidos (por definição, aqueles que transgridem a lei), como exigir respeito a postulados clássicos do liberalismo iluminista?

Também defensor da idéia de que esta é ``uma guerra pior do que a guerra'' (JB, 5 de junho), na semana seguinte Eugênio Bucci escreveria sobre ``o jornalista, o Estado de Direito e o assassino'' (JB, 11 de junho), aceitando ``o desafio da reflexão'' que ``diz respeito aos métodos aceitáveis na captação de informações e também às relações entre as atribuições do repórter e as atribuições da polícia''. Crítico de mídia com espaço semanal em grandes jornais brasileiros e autor de um livro sobre ética21, ele passa a relacionar o que, em tese, seria o comportamento esperado de um repórter:

A rigor, a ética do profissional de imprensa exige que ele sempre se identifique como tal e que não adote dissimulações na apuração. Quem fala para uma reportagem tem o direito de saber que está falando para uma reportagem. Quem aparece numa gravação em vídeo que depois será exibida na TV tem o direito de saber do que é que está participando. A câmera oculta atropela esse direito das fontes. A câmera oculta tapeia as fontes e aqueles que são objeto da reportagem. Embora não constitua obrigatoriamente um crime como a violação de correspondência (art. 194 do Código Penal), é uma forma grave de invasão de privacidade. É análoga, em termos éticos, à escuta clandestina de ligações telefônicas (que também é crime). Ou seja: constitui um método que pode até ser empregado por espiões ou detetives (numa prática extremamente discutível, é verdade), mas nunca por um jornalista. A não ser...

...e então ficamos mais ou menos diante dos direitos assegurados pela Constituição após o AI-5. Pois temos todas as garantias, a não ser...

A não ser em situações excepcionais. E quais são as situações excepcionais? Certamente não são aquelas em que só o que se pretende é fazer fofoca ou intriga de quinta categoria. São aquelas em que o acesso aos fatos, necessariamente de altíssima relevância pública, é impraticável caso o jornalista se apresente como jornalista. Essas situações excepcionais se apresentam quando os fatos investigados constituem crimes graves ou a premeditação de crimes graves contra cidadãos, contra o Estado de Direito ou simplesmente contra a ordem, ameaçando diretamente um grande número de pessoas. Venda de drogas à luz do dia e a céu aberto, por exemplo. Isso não pode ser fotografado por um repórter que, uma vez no local, anuncie placidamente seus propósitos. E, no entanto, isso é um fato de alta relevância, que o público tem o direito de conhecer. Por isso, o jornalista tem o dever de registrar, apurar, investigar e publicar. Ele precisa aparecer ali mais ou menos disfarçado. Não há outro modo de trabalhar.

Assim esclarecidos, devemos depositar nas confiáveis mãos dos jornalistas (e das empresas para as quais eles trabalham) o poder de deliberar sobre o que é ou não de interesse público.

A melhor contrapartida a esse raciocínio foi dada por Janio de Freitas, no único artigo que dedicou ao caso, bem a propósito intitulado ``Tim e os outros'' (Folha de S. Paulo, 16 de junho de 2002):

Cidades como Rio e S. Paulo estão transformadas em depósitos de pobres. Resultado de um processo. Diante do qual, tudo o que a mídia fez e faz são ondas de sensacionalismo. É a exploração mercantil-emocional de um ou outro episódio. As políticas e não-políticas geradoras da degradação ficam intocadas. Para rechear o sensacionalismo, a falsa defesa do interesse público escala um culpado, assim proporcionando a conveniente guarda a quem tenha real responsabilidade pela degradação social e pela omissão nas restrições à criminalidade.

Pois ``é fora das favelas que está a maior parcela da responsabilidade pelo aumento incontrolado da violência urbana''.

Sobre o tratamento dado ao ``caso Tim'', Janio aponta uma série de mistificações:

Pela pessoa, pelo profissional e pela atrocidade atordoante de que foi vítima, o repórter Tim Lopes justifica toda a emoção emergida do seu desaparecimento. Não se justifica, porém, o sentido dado a grande parte dessa emoção, criador de ficções perigosas como o surgimento de uma espécie de terror contra jornalistas, ameaças à liberdade de imprensa e risco para a democracia.

Em qualquer lugar do mundo, ameaçar a segurança de um foco de bandidagem sujeita a riscos, inclusive o de morte. Risco que não advém só da criminalidade instalada nas favelas, mas de vários outros gêneros de máfias, que podem ser de empreiteiros, de policiais (caso do ex-coronel e ex-deputado Hildebrando Paschoal, que matava com motosserra no Acre), de bicheiros, a do combustível adulterado e, tantas vezes, de políticos corruptos. (...)

A liberdade de imprensa está reprimida, sim, mas não pela bandidagem favelada. Está sempre reprimida por muitos jornalistas e certos proprietários de mídia, com suas práticas diárias de deformação e sonegação de informações, por sujeição a interesses oficiais ou particulares, como por conveniências materiais diretas.

E de que fronteiras da democracia se trata, ao falar da criminalidade produzida nas favelas? Os direitos dos pobres em geral são mesmo aqueles conferidos pela Constituição?

Para terminar, uma comparação, entre tantas possíveis:

O sensacionalismo que se vale da tragédia de um jornalista sério como Tim Lopes é mais um momento típico da mídia brasileira em relação à criminalidade. Tão poucos dias depois do desaparecimento de Tim, um casal foi também preso, torturado e assassinado quando entregava uma cesta de café da manhã no dia dos namorados, nas cercanias de uma favela no subúrbio carioca ironicamente chamado Piedade. A jovem e marido que, guarda penitenciário, ocupava-se de um trabalho complementar, seriam menos humanos do que jornalistas? A tortura e morte de que padeceram seriam menos revoltantes? Sim, a julgar pela maneira muito discreta com que o caso foi tratado na mídia do Rio. Talvez para não desconcentrar a exploração do outro caso.

Essa distinção de tratamento fica mais evidente na cobertura das buscas pelo corpo de Tim, que vão fazendo brotar as atrocidades de que os pobres, criminosos ou não, são vítimas cotidianas: primeiro um corpo carbonizado, depois a descoberta de um cemitério clandestino e várias arcadas dentárias. Apenas cinco dias depois das buscas O Globo (15 de junho, p. 13) abre uma página para alardear os possíveis ``200 corpos'' do ``cemitério de Elias Maluco''. Uma reportagem especial, pois graves ocorrências como aquela não alcançam o status de notícia para este jornalismo, interessado a servir a seu público, que, por sua vez, só se interessa pela pobreza quando é assaltado. Daí a hipocrisia apontada por José Murilo de Carvalho, que, depois de sumariar as raízes extremamente violentas de nossa formação social, denuncia:

A imprensa se mobiliza e a opinião pública se escandaliza com a violência apenas em dois casos: quando ela se manifesta em massacres que envergonham o país perante o mundo (Candelária, Carandiru, Eldorado) e quando ela se exerce contra pessoas da elite ou da classe média. (...)

Mas é preciso apontar a hipocrisia da reação quando ela se esquece de que a população pobre é vítima cotidiana e sistemática de violência, tortura e assassinato. As várias ossadas encontradas nos cemitérios dos traficantes são também de cidadãos brasileiros. São cidadãos brasileiros os milhares de desaparecidos, torturados, mutilados, mortos, esquartejados. Com suas mortes ninguém se comove22.

Por isso o mini-editorial ``Obrigação'', publicado no mesmo dia 18, no alto da página 15, cai no pântano das boas (hipócritas?) intenções: o jornal conclama o poder público a ``vasculhar a área, recolher as ossadas e fazer o possível para identificá-las. Não só porque é o que manda a Justiça; mas por uma simples questão de humanidade''. Mas, se o próprio jornal - a mídia, de forma geral - não se cansa de repetir que o poder público é ausente e só funciona se alertado pela imprensa...

A mídia vigilante, substituta do Estado

O outro aspecto emblemático do caso Tim Lopes é o sentido de ``quarto poder'' que a imprensa incorpora, agora radicalizado devido à idéia de que ``ao calar-se um jornalista, cala-se toda a sociedade''. Como a história começou com a situação clássica do cidadão desprotegido e descrente do poder público, que apela à imprensa para ser atendido, ficou mais fácil transformar o assassinato do jornalista em um atentado à liberdade de imprensa. Esta foi a abordagem do Globo no editorial de 10 de junho (``O bom combate''), quando se noticiou a morte do repórter:

...é por esse ângulo que se deve reverenciar Tim Lopes, um soldado da cidadania. Ao recorrer à Globo e não à polícia, o morador do bairro da Penha, com o gesto, simbolizou a incapacidade do poder público de debelar a maior crise de segurança enfrentada pelo Rio em mais de meio milênio de história. Liga-se para uma redação, não para a polícia.

O recurso é espantosamente apresentado como novidade, e novidade provocada pela propalada ``ausência do poder público''. Legitima-se assim a imprensa como substituta de um Estado falido e, ao mesmo tempo, reitera-se o discurso que apela à repressão crescente contra o ``crime'', reificado como sempre.

O

morador agiu corretamente. A distorção está nas circunstâncias vividas pelo Rio de Janeiro e outras grandes cidades brasileiras. Junto com Tim Lopes, foi alvejado o jornalismo investigativo. Mas, como destacou editorial divulgado ontem pela TV Globo, ``temos certeza de que, mesmo diante deste atentado, a imprensa brasileira não abrirá mão do seu papel''. A imprensa não recuará, é certo. (...)

Mas esta é uma guerra que não pode ser ganha apenas pela imprensa. Esta é uma guerra de todos - do Estado, da sociedade. Também não é uma guerra do estado e da cidade do Rio de Janeiro. É uma guerra do Brasil.

No dia 6, o Jornal do Brasil já havia tratado do tema com enfoque semelhante, num editorial cujo tom belicoso se evidenciava desde o título: ``A guerra começou''.

O jornalista estava ali porque a polícia não estava. Por sua natureza, a colheita de informações em terreno minado é perigosa, mas não impossível. A imprensa já solucionou crimes - comuns ou de colarinho branco - de que a polícia passou ao largo. Mas nada se compara à impunidade reinante no Rio de Janeiro, onde nem 10% dos crimes de morte são solucionados. A impunidade é a mãe de todos os crimes que se cometem até mesmo a céu aberto.

Só há uma maneira de conviver com este caso, de péssima repercussão internacional: solucioná-lo, como ponto de partida para uma cruzada maior de enfrentamento da criminalidade em seus nichos. A situação a que se chegou é de guerra urbana, e não há mais como recuar.

Assim, a imprensa retoma, agora como personagem (mesmo porque aquela fora ``uma morte na família''23), a dicotomia entre ``bandidos'' e ``homens de bem'' que ajuda a sedimentar em sua pauta cotidiana. É o sinal para a repercussão de declarações indignadas de autoridades, a começar pelo próprio presidente da República, que O Globo publicou no dia 10:

É mais um crime hediondo. O assassinato do jornalista Tim Lopes tem, além do mais, uma conotação específica, porque se tratava de um repórter investigativo. É uma tentativa de silenciar a imprensa na questão da droga. Nós estamos passando de todos os limites. É o momento de nos darmos as mãos, tanto os governo federal, estadual e municipal quanto a sociedade, e colocarmos um ponto final nessa série de barbaridades que estão ocorrendo. O assassinato desse jornalista indigna a todos os brasileiros.

É também o sinal para o lançamento de duas campanhas: de um lado, a série ``Homens de bem'', espelho de atuação da Globo como empresa incentivadora de ``cidadania'', na qual o RJ-TV mostra histórias de pessoas simples que tiram da dor e da adversidade as condições para lutar por uma vida melhor e para agir em prol da comunidade; de outro, a enxurrada de reportagens e artigos que desqualificam o sistema judicial e apelam para o recurso à força: o espanto diante de ``manobras jurídicas'' que ``deixaram à solta'' o assassino de Tim (O Globo, 11 de junho), insinuando não só que o direito deveria valer apenas para os ``cidadãos de bem'' como, de modo até ingênuo, que se Elias Maluco estivesse preso o repórter não teria sido executado; o elogio de Elio Gaspari (12 de junho) às ``Supermax'', penitenciárias americanas de segurança máxima apresentadas como solução mágica, e cuja eficácia nunca é confrontada com políticas alternativas de segurança pública, estatisticamente tão ou mais bem sucedidas nos próprios EUA - fora o ocultamento de determinadas conjunturas que propiciam a redução ou o crescimento do crime, jamais consideradas na análise24; e, no mesmo dia, mais uma vez a criminalização do lazer dos pobres na chamada de capa, com a pergunta que já embute a resposta: ``Funk, voz do morro ou do tráfico?'', apesar da publicação, na mesma edição, de artigo de um representante do grupo Afro Reggae (O Globo, 12 de junho).

A carga aumenta com o lançamento da pergunta ``O Rio está perdendo a guerra contra o tráfico?'', que trabalha a velha dicotomia da cidade como organismo sadio versus o corpo estranho do crime que a agride e corrompe. Este é o título do caderno especial publicado em 16 de junho, tendo na capa, em primeiro plano, o cano de um fuzil apontado para o leitor; mas é a vinheta que, antes e depois desse dia, apresenta reportagens sobre o ``poder (ou Estado) paralelo'' dos traficantes. A do dia 15 de junho é exemplar da desqualificação do direito: abaixo da manchete (``Justiça cega até demais'') figuram, de um lado, a estátua da Justiça, e de outro o traficante Celsinho da Vila Vintém, preso no mês anterior, sorridente e debochado apesar de algemado. Entre as duas imagens, um bloco de texto, sob o título ``Traficantes perigosos conquistam benefícios facilmente, até por bom comportamento'' (p. 16).

Em paralelo ao apelo à repressão, edifica-se a imagem do mártir. Valendo-se do sugestivo nome de batismo do repórter, matérias ressaltam seu caráter e sua simplicidade (``Um repórter que se chamava Arcanjo'', O Globo, 10 de junho), artigos (``Somos todos vítimas'', Luiz Garcia, O Globo, 10 de junho) lembram que ele (como Jesus?) morreu por nós:

Somos todos vítimas. É nesse contexto que devemos reagir. Preste atenção, prezado leitor: Tim morreu porque era um de nós. Mas morreu por sua causa.

Na televisão, a Globo investe na dramaturgia do Jornal Nacional: atrizes emprestam suas vozes a relatos emocionados da mãe e da viúva, o locutor William Bonner se esmera nos editoriais, uma edição do telejornal termina com uma homenagem de toda a equipe, reunida no estúdio, vestindo negro, aplaudindo o colega assassinado. O Fantástico faz longa reportagem recuperando imagens da ``Feira das Drogas'', do jornalista no ambiente de trabalho e em outras reportagens, entrecortadas por depoimentos de autoridades escandalizadas com o ponto a que chegamos, e compara o ``jornalismo investigativo'' de Tim à cobertura da guerra do Vietnã. Na Globo News, sucedem-se programas de debates que já partem de um consenso sobre a ousadia do poder (ou do Estado) paralelo - o que, pelo menos numa ocasião, chegou a causar constrangimentos aos convidados, que discordavam daquela abordagem. No GNT, outro canal pago da empresa, reprisam-se em seqüência os documentários ``Notícias de uma guerra particular'', sobre o tráfico nas favelas do Rio, e ``Morrendo para contar a história'', o caso de um fotógrafo de agência morto na Somália ainda muito jovem, um elogio ao repórter que personifica o ideal do jornalismo de não medir esforços para ``contar a verdade'', mas não faz qualquer ligação entre o seu trabalho e a empresa que o remunera: é como se ambos compartilhassem do ideal.

No ``memorial dos mártires'': Tim, Herzog e... Baumgarten

A edição de 13 de junho do ``Sem Fronteiras'', da Globo News, sobre o Newseum, o ``memorial dos mártires do jornalismo'', vai no mesmo sentido dessa construção de imagem. Depois de apresentar casos clássicos de violência contra jornalistas pelo mundo todo, depois de realizar várias entrevistas com diferentes defensores de direitos humanos e de contar (o que seria) a história do memorial, o repórter Jorge Pontual conclui informando que Tim Lopes terá seu nome imortalizado ao lado de outros mártires do jornalismo. E começa a recitar: Wladimir Herzog... Alexandre von Baumgarten...

Baumgarten, assassinado em queima de arquivo em outubro de 1982 porque ameaçava revelar a história do acordo que firmara com a ``comunidade de informações'' na transação que lhe garantiria recursos para reerguer a revista O Cruzeiro em troca da publicação de matérias de interesse do SNI? Baumgarten, colaborador da ditadura, um mártir do jornalismo?

A surpresa diante da placidez do jornalista a recitar aqueles nomes põe em xeque todas as informações daquela reportagem e provoca uma pesquisa própria sobre história desse memorial. Então encontramos um artigo de Argemiro Ferreira publicado no site do Observatório da Imprensa em 20 de junho de 2001: ``The Freedom Forum - a história virada pelo avesso''. A história é a do jornalista americano Bill Stewart, que cobria a revolução sandinista e, ao identificar-se diante de uma barreira do exército, foi obrigado a deitar-se no chão e, logo após, assassinado a sangue frio em 1979 por um soldado da Guarda Nacional de Somoza. Segundo Argemiro, num livro financiado pela instituição The Freedom Forum, Stewart é apresentado como ``veterano de duas guerras e três rebeliões'', que cobria ``a guerra civil entre tropas do governo da Nicarágua e os rebeldes Contras'' e foi executado por um soldado do governo.

Quem lê o texto conclui que o repórter foi executado pelos sandinistas. Os Contras, ali citados, não existiam em 1979. Só foram recrutados, armados e financiados pela espionagem (CIA) dos EUA três ou quatro anos depois, celebrizando-se pelas atrocidades contra civis na guerra secreta do governo Reagan contra o governo sandinista da Nicarágua.

Assim se revelam as intenções do ``Fórum da Liberdade'', que, segundo o jornalista, conta com 1 bilhão de dólares para sustentar suas atividades, entre elas o Newseum (Museu da Notícia) e um certo First Amendment Center, através dos quais ``a organização arvora-se em juiz da liberdade de expressão no mundo - sob a ótica americana, favorável não ao direito das pessoas à informação, mas ao das corporações de dizer o que quiserem''.

Como o USA Today, The Freedom Forum é uma invenção do magnata Allen H. Neuharth, executivo que usou o título da autobiografia (Confessions of a S.O.B.) para confirmar a suspeita que se tinha dele - de que é um bom FDP.

Eu o vi há uns seis anos, em evento do Freedom Forum em Nova York (há centros em toda parte, o da América Latina é na Argentina). Explicava-se ali o critério para se incluir nomes num monumento a jornalistas vítimas do arbítrio. Numa matéria, observei à época que o nome de Vladimir Herzog não aparecia e sugeri que a causa era ideológica. Depois soube que incluíram Herzog - mas junto com outro ``mártir da imprensa'' brasileira, Alexandre von Baumgarten...

O engodo que aquela edição do ``Sem Fronteiras'' ajudou a sacralizar é apenas um exemplo, talvez um dos mais eloqüentes, da enorme mistificação que a mídia fez de si mesma no caso Tim.

``Aqui está Elias Maluco''

A diluição de conflitos é parte dos projetos de integração nacional que, no Brasil, são tentados, pelo menos, desde o Estado Novo. Entidades sindicais de jornalistas não costumam freqüentar o noticiário, a não ser na condição de agitadoras (quando de campanhas eleitorais radicalizadas, como em 89) ou rés (por exemplo, no episódio que envolvia a obtenção ilegal de registros profissionais e aposentadorias, no Rio de Janeiro). O caso Tim conseguiu a proeza de unir a mídia (leia-se, principalmente, a Rede Globo) a entidades que em outros tempos desafiaram a ditadura: ABI, Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro e Federação Nacional dos Jornalistas.

O Fórum Tim Lopes Nunca Mais, de 5 a 9 de agosto, foi o ponto alto de um movimento que expressava ao mesmo tempo a indignação dos jornalistas e sua incapacidade de enfrentar questões que fugissem ao estrito âmbito corporativo da segurança no trabalho, das responsabilidades dos empregadores e da relação de poder nas redações. Salvo exceções já citadas aqui, não se discutiam métodos, limites, enfim, o sentido da atividade profissional. O Fórum sintetizou esse quadro, a partir mesmo da pergunta que, escrita numa faixa, dominava o auditório do 7º andar da ABI, e depois seria transferida para o hall de entrada do prédio: ``Onde está Elias Maluco?''. Qualquer perspectiva de discussão séria já estaria descartada a partir dali, pois, se a questão era saber onde estava o traficante, uma vez que ele aparecesse o assunto estaria encerrado. Na abertura dos debates, o discurso da viúva reiterava aquela impossibilidade, pois qualquer crítica tenderia a ser vista como um atentado à memória do companheiro morto.

Na cobertura do evento, veiculada em www.partodeideias.org sob o título ``Mostrar os dentes e mascar clichês'', Hugo R.C. Souza e Paula Grassini falam da repetição de lugares-comuns em torno da idéia de poder paralelo do tráfico e do estado de guerra civil, do desdém a pontos de vista contrários aos já sacralizados e, muito significativamente, do que chamaram de ``tropa de choque'' da Globo na platéia, pronta a reagir ao mínimo sinal de crítica ao comportamento da empresa. Uma das presenças ilustres na audiência foi William Waack, chamado à mesa para discutir segurança no trabalho: na qualidade de ex-correspondente internacional responsável pela cobertura de guerras, ele e outros na mesa passaram a falar de detalhes como as características dos coletes à prova de bala que os repórteres deveriam usar para certas missões. Bem a propósito, a TV Globo, que cobriu todos os dias do evento, dedicou uma reportagem no Jornal Nacional a uma suposta disseminação do uso desses coletes para a proteção das pessoas no cotidiano das grandes cidades. Os entrevistados, claro, eram empresários, sempre focalizados do pescoço para baixo. Não ocorreu aos repórteres indagar sobre o uso de capacetes.

Na manhã de 19 de setembro, 109 dias depois do crime, quando já se esgotava o prazo estabelecido pelas autoridades para a captura, a polícia finalmente respondeu à pergunta que atormentava os jornalistas. Um cartaz escrito rudimentarmente em letras irregulares informava: ``aqui está Elias Maluco'', ao lado da exibição do traficante. O bandido perigoso e sanguinário ``que sempre andava armado'' foi preso na mesma favela onde atuava, de bermuda, descalço, sem camisa e sem arma, sem um só tiro disparado.

Era quem faltava: o chefe, o mais importante. Os outros haviam sido presos, alguns logo após o crime, outros mais tarde; dois estavam mortos, e o Jornal Nacional de 17 de setembro cometeu imperdoável falha ao dizer que ambos haviam sido assassinados. Falha nossa, corrigida a tempo: um havia morrido em troca de tiros com a polícia (o que obviamente exclui a hipótese de homicídio) e o outro se suicidara. Boa noite.

Um estudo mais aprofundado poderá identificar o que teria ocorrido na relação da mais influente empresa jornalística brasileira com o governo do estado. Uma análise de fora permite perceber a tensão em várias manchetes, nesse meio tempo: no episódio da descoberta de uma suposta ``central telefônica'' em Bangu I, através da qual o traficante Fernandinho Beira-Mar era associado a Bin Laden porque teria mandado encomendar um míssil ``como os da Al-Qaeda'' (dia 19 de junho); no ``atentado com 200 tiros'' à sede da prefeitura, que ``desafia[va] poderes no Rio'', em reportagem que opunha a fragilidade do governo estadual e a aparente mobilização enérgica do prefeito; na própria notícia da morte de um dos traficantes, com a publicação da foto que ridicularizava o secretário de segurança, Roberto Aguiar, com seus gestos desencontrados e seus olhos arregalados (O Globo, 16 de agosto de 2002); finalmente, em nova rebelião em Bangu I, quando se atribuiu a Beira-Mar o assassinato de quatro traficantes da facção rival (edições de 12 e 13 de setembro), e se criava a expectativa de invasão do presídio, fazendo prever uma reedição do massacre de Carandiru.

No entanto, essa mesma análise dá conta de aplausos inéditos a um governo de oposição. Primeiro, no episódio do afastamento do responsável pelo inquérito que apurava o assassinato, e que ousara comentar em seu relatório a imprudência do repórter - o que mereceu até um suspiro desolado de William Bonner (``não, Tim Lopes não morreu pela notoriedade, ele queria ajudar uma população que estava cansada de pedir ajuda à polícia...'') na leitura do editorial indignado que fechou o Jornal Nacional de 7 de agosto: a pronta atitude da governadora lhe valeu o elogio explícito na edição seguinte. Depois, na ação que conteve a rebelião em Bangu I. Finalmente, no louvor à operação que prendeu o principal responsável pelo assassinato de Tim.

O editorial da TV Globo é uma peça exemplar de adaptação do discurso midiático à situação do momento e de reiteração dos postulados aqui apresentados. Por isso vale a pena reproduzi-lo na íntegra:

Foram três meses de angústia e medo para a população do Rio, desde que o assassinato de Tim Lopes revelou todo o poder paralelo dos traficantes - numa longa reportagem escrita com o próprio sangue do jornalista. O que se exigia então era uma polícia eficiente, capaz não somente de prender os culpados como também de conter os altos índices de violência.

Exigir a prisão dos assassinos de Tim, com a persistência com que todo o Brasil exigiu, não era reivindicar um privilégio. Todo assassinato tem de ser punido. Mas a persistência foi também o reconhecimento de que quando se mata um jornalista o que se pretende é calar toda a sociedade.

A prisão de Elias Maluco foi uma vitória da polícia que o Brasil deseja: a vitória de uma polícia que entende como legítima a pressão por resultados, mas que não toma medidas precipitadas - e quase sempre de eficácia duvidosa - apenas para tentar conter o clamor popular. A vitória de uma polícia que aceita a crítica como construtiva, e não como fruto de uma luta política, que não há: porque o que todos desejam é a derrota do crime. A vitória de uma polícia que prefere investigar em silêncio, usando modernamente as técnicas de inteligência - e evita medidas apenas cosméticas - mas de grande impacto. Às vezes com o custo da impopularidade.

Com Elias Maluco atrás das grades, e também com a prisão de outros chefes do tráfico, o governo do estado mostrou que o Rio tem uma polícia que, em sua maioria, é capaz de acertar. O Rio de Janeiro está, sem nenhuma dúvida, de parabéns, e merece comemorar essa vitória. Mas sem perder de vista que a luta apenas começou.

Elias Maluco é somente um numa multidão. É preciso agora continuar a dar sinais claros ao crime de que não haverá trégua. A luta será contínua, dura e difícil, mas contará sempre com o apoio da população. Porque é sempre bom poder dizer que o crime não compensa. Que isso não é apenas um ditado popular. É uma verdade.

Não há crítica política, embora este seja um contexto de disputa eleitoral. Quem sabe foi por isso que o presidente do STJ, Nilson Naves, pôde definir, delicada e sentenciosamente: ``uma vitória das forças do bem sobre as forças do mal''. Quem sabe também foi por isso que, naquele dia de glória, a governadora Benedita da Silva recebeu elogios até da presidência da República, ``por sua atuação, com firmeza, na repressão ao crime organizado, dando ao Rio de Janeiro a perspectiva de uma melhor segurança''.

Sem dúvida, ali estava muito mais do que Elias Maluco.

Bibliografia

Publicações acadêmicas

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__________. ``Reflexões'', in Jornal do Brasil, 12/6/2002.



Notas de rodapé

... Batista1
Nilo Batista. ``Mídia e sistema penal no capitalismo tardio'', in Discursos Sediciosos - crime, direito e sociedade, nº 12. Rio de Janeiro, Revan/ICC, 2º semestre de 2002. p. 253-270.
...ao2
Georg Lukács. ``O marxismo ortodoxo'', in História e consciência de classe. Lisboa, Escorpião, 1974, p. 20.
...ca3
Vicente Riccio. ``A lei em tela e a tela da lei - o direito e os reality shows'', in Dados - Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, Iuperj, vol. 44, nº 4, 2001, p. 773-805.
... populares4
Cf., a propósito, entre outros, Maria Thereza Fraga Rocco. Linguagem autoritária - televisão e persuasão. São Paulo, Brasiliense, 1988, e Maria Tereza P. da Costa. O programa Gil Gomes - a justiça em ondas médias. Campinas, Unicamp, 1992.
...a-lo5
Nilo Batista. ``A privatização da cidadania''. Texto apresentado no colóquio ``Cidades, cidadania e direitos''. Laboratório Cidade e Poder, Niterói, ICHF, 2 de julho de 2002.
... neoliberalismo6
Nilo Batista. ``Mídia e sistema penal no capitalismo tardio'', art. cit.
...aia.7
idem, p. 271.
... deveria''8
Kleber Mendonça. A punição pela audiência - um estudo do Linha Direta. Rio de Janeiro, Quartet/Faperj, 2002, p. 18.
... doze9
Nilo Batista, prefácio a Kleber Mendonça, op. cit., p. 14-15.
...itica''10
Sylvia Moretzsohn. ``Imprensa e criminologia - o papel do jornalismo nas políticas de exclusão social''. Rio de Janeiro, 2002, mimeo.
... lei11
Nilo Batista, ``Mídia e sistema penal...'', art. cit, p. 274.
... perigosos12
Cf., por exemplo, Patrick Champagne. ``La vision médiatique '', in Pierre Bourdieu (org.), La misère du monde, Paris, Seuil, 1993, p. 61-79 ; Kleber Mendonça. ``A onda do arrastão'', em Discursos Sediciosos - crime, direito e sociedade. Rio de Janeiro, Freitas Bastos/Instituto Carioca de Criminologia, ano 4, nº 7-8, 1º e 2º semestres de 1999, p. 267-282; Sylvia Moretzsohn, art. cit.
... criminalidade13
Jock Young. A sociedade excludente - exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente. Rio de Janeiro, Revan/ICC, 2003, p. 86.
... segregacionistas14
Raquel Paiva. ``A publicização da ética no espaço midiatizado'', em Raquel Paiva (org.), Ética, cidadania e imprensa. Rio de Janeiro, Mauad, 2002, p. 39.
...encia''15
Armand Mattelart. Comunicação-mundo - história das técnicas e das estratégias. Petrópolis, Vozes, 1994, p. 276.
... Lemos16
Cláudia Lemos. Seis questões sobre o jornalismo: uma leitura da imprensa brasileira nos anos 90 a partir de Ítalo Calvino. Tese de doutorado em Literatura Comparada. Belo Horizonte, UFMG, 2001.
... passado17
A impropriedade da adversativa na intervenção do repórter pode passar despercebida pelo espectador, mas fica evidente na leitura da transcrição do áudio. Por que falar em número de assassinatos, assim, sem gancho algum, e ainda por cima iniciando a frase por um ``mas...''? A explicação só aparece para quem pôde ver novamente a matéria, cerca de dez dias depois, no programa Almanaque, do canal pago Globo News, que anunciava a repetição de todas as reportagens da série sobre eleições e cidadania, agrupadas em blocos temáticos: ali estava um trecho cortado da matéria que foi ao ar no JN, no qual o repórter citava uma estatística informando sobre a redução na taxa de homicídios, para seguir com a fala sobre o número de mortos em São Paulo. ``Mas'' esta não foi a única alteração: nesta e em várias outras matérias houve inclusão de trechos de entrevistas, alteração de montagem, em suma, apresentou-se uma edição diferente para o que seria uma simples repetição da série.
... qualificados18
Cf., no primeiro caso, Mark Fishman. Manufacturing news. Austin, University of Texas Press, 1990; no segundo, Janio de Freitas, ``As ondas do Rio'', Folha de S.Paulo, 30 de outubro de 1994.
... Olmo19
Cf., por exemplo, ``A legislação no contexto das intervenções globais sobre drogas'', in Discursos Sediciosos - crime, direito e sociedade, nº 12. Rio de Janeiro, Revan/ICC, 2º semestre de 2002, p. 63-78.
... alta20
Augusto Thompson. ``Reforma da polícia - missão impossível'', in Discursos Sediciosos - crime, direito e sociedade, nº 9-10. Rio de Janeiro, Freitas Bastos/ICC, 1º e 2º semestres de 2000, p. 244.
...etica21
Bucci, hoje presidente da Radiobrás, assinava colunas no JB e na Folha de S. Paulo e é autor, entre outros, de Sobre ética e imprensa (São Paulo, Companhia das Letras, 2000).
... comove22
José Murilo de Carvalho. ``Elias, maluco?'', in O Globo, 18/6/2002, p. 7.
...ilia''23
Luiz Garcia. ``Somos todos vítimas'', in O Globo, 10/6/02, p. 14.
...alise24
Cf., por exemplo, Loïc Wacquant. Punir os pobres - a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro, Freitas Bastos/ICC, 2000.