Ficção e abdução

Paulo Filipe Monteiro1

Quem procura reflectir sobre a arte, corre o risco de ficar obrigado a escolher entre a linguagem da teoria conceptual, muito afastada da experiência, e a linguagem da arte e da estética, muito confundida com essa experiência. Como procurei explicar no livro Os Outros da Arte2, a saída para essa divisão começou com a acentuação, que ao mesmo tempo se foi gerando, da consciência do perspectivismo inevitável na nossa relação com o mundo, ou com os mundos. Mas esse perspectivismo não nos obriga a baixar os braços ou fechar os olhos numa mera glosa relativista ao mote de que tudo são perspectivas. Pelo contrário, a partir do perspectivismo abandonamos a pretensão a uma legibilidade total, seja de raiz científica seja de raiz estética, mas ao mesmo tempo começamos a lutar contra a opacidade do mundo, sem no entanto aspirarmos a uma revelação total, e muito menos a constituirmo-nos como tribunal da História. O que nem sempre é fácil, porque rapidamente perdemos a cabeça, ou nela a consciência do perspectivismo, quando estamos em contacto com a aparente omnipotência da teoria ou com os vasos sagrados da arte.

Isto implica, como em Blumenberg, fazer a crítica do iluminismo, mostrando a insuficiência da razão, e ao mesmo tempo lutar contra o romantismo, pondo em causa a excessividade do mito. No nosso discurso sobre as artes não nos interessa, nem o nada que é tudo, que foi como Pessoa definiu o mito, nem o tudo que é nada, que é como poderíamos definir os vários discursos totalizantes. Digamos que, ao procurarmos aumentar as zonas de luz através da articulação das várias formas de fazermos a experiência do mundo, optamos pelo pouco que é muito.

Trata-se, assim, de procurar reformar as duas grandes ``estilizações'' modernas, a iluminista e a romântica. A questão é que não dispomos de uma terceira estilização que sintetize e ultrapasse estas, e por isso, se somos críticos de ambas, ficamos na situação paradoxal de termos de as usar, às duas, criticando-as e articulando-as, na esperança que da tensão entre elas obtenhamos os resultados mais produtivos.

Defendo que se opte, não por um tom menor ou de lusco-fusco, como quer certo pós-modernismo, uma meia-luz em que a meu ver facilmente se pode reinstaurar o pensamento monológico que se tratava de desconstruir, mas sim pela acentuação das tensões, que baptizei de estratégia jânica, em que somos obrigados, e obrigamos duas ou mais perspectivas a viver numa relação de alteridade. É uma espécie de estratégia da mosca, do olhar estereoscópico e do voo em ziguezague: como antídoto contra as recorrentes tendências para a monologização e absolutização, que recorrem mesmo no perspectivismo e na hermenêutica, propus a combinação de esforços contrários entre si e que, diferentemente da dialéctica, se sabe não poderem vir a dar origem a uma síntese ou uma razão total, mas apenas a mútuos assaltos instabilizadores, activadores do perspectivismo.

Essa estratégia que adoptei, anti-monológica, jânica, feita de assaltos sucessivos e cruzados, significa que, em vez de uma estrada escolhi um cruzamento, ou uma estrada feita de cruzamentos - e Jano é o deus das encruzilhadas. Em vez de um estilo hegeliano, para usar a terminologia de Parret, escolhi um estilo kantiano a braços com a pluralidade irredutível das razões e dos abismos que as separam.

O tipo de caminho assim proposto pode ajudar a resolver a tensão entre a tendência para abandonar a ideia clássica de verdade a favor da questão do sentido, e a tendência para reconduzir o sentido a uma acepção de verdade. Resolver a tensão significa aqui acentuá-la, pois não há outra via que faça justiça ao que fomos compreendendo. Não é fácil deixar uma ordem clara e distinta sem ter medo de cair num caos ameaçador, e por isso sem procurar reentrar em alguma definição securizante: a melhor solução será que outros nos assaltem nesse regresso ou regressão, obrigando-nos a permanecer e a lutar no terreno da relação. Se não é fácil, para usar a expressão de Blanchot, viver num horizonte sem horizonte, é preciso que o horizonte do outro venha instabilizar o do um. Como procurarei mostrar em relação ao perspectivismo e à hermenêutica.

António Marques, em Sujeito e perspectivismo3, mostra como à ideia do pensamento como ficção, que já se encontrava no Kant da terceira Crítica, juntou Nietzsche a noção de que cada ficção é uma perspectiva. Em Perspectivismo e modernidade4, para relacionar essas origens do perspectivismo com o pensamento contemporâneo, Marques lembra que Nietzsche, num fragmento da Gaia Ciência intitulado ``O nosso novo infinito'', fala ``de um novo universo que é feito de perspectivas que se interpretam entre si num movimento sem fim, universo de novas e infinitas possibilidades cognitivas e de formas de experimentação que só devem respeitar um limite: que nenhuma dessas perspectivas, ficções ou interpretações se pretenda absoluta e fora de uma condição perpectivista inevitável. As potencialidades deste panperspectivismo revelaram-se enormes no devir do nosso século, a tal ponto que uma das suas características mais persistentes e estruturantes é essa espécie de hipersensibilidade antiescatológica, simultânea à perda de uma origem que pudesse servir de fundamento ao sistema de perspectivas. O nosso mundo adquiriu as características da multiplicidade e do perspectivismo.'' Ou seja, ``a questão é que aquilo que se designa como perspectivismo, mais do que uma teoria do conhecimento de importância conjuntural ou mesmo idiossincrásica (na ocorrência específica da personalidade Nietzsche ou de algumas das suas máscaras), é antes uma categoria que qualifica e unifica um grande número de axiomas das epistemologias contemporâneas.'' ``As críticas radicais à modernidade agudizaram, no fundo, a sua necessidade de auto-legitimação, colocaram com uma veemência impensável antes deste século o problema do sentido, fortaleceram uma força de veracidade de que falava Nietzsche quando explicava o advento do niilismo'' [Marques, 1988:353].

Ora, ``uma avaliação do perspectivismo, da sua verdadeira matriz nietzscheana, implica compreender (...) a sua ligação profunda com o princípio da vontade de poder. A própria noção de "interesses cognitivos" terá forçosamente que ser vista à luz desse princípio fundamental do ser em Nietzsche. Somente assim se poderá tornar claro como conhecer equivale a conhecer num espaço interperspectivo, a conhecer em conflito com conhecimentos concorrentes que visam a supremacia, conhecer consciencializando a eterna característica antropomorfizante de toda a operação cognitiva. O abandono da metafísica realista é um passo importante, pois não existe algo que seja como "um ponto de vista de nenhum sítio".'' Como acrescenta Nuno Nabais5, ``na medida em que toda a figura é a expressão de uma força, e a força só existe no interior de um campo dinâmico em luta contra outras forças, a teoria da vontade de poder implica a multiplicação infinita dos tipos de ficção. O conhecimento não aspira à universalidade, mas combate pela singularidade. Cada ficção, cada razão individual, é a rejeição de outras razões, numa palavra, é uma perspectiva.''

O que esse perspectivismo desfaz, continua António Marques6, é a ideia, que vimos culminar em Horkheimer e Adorno, de uma identificação entre a afirmação da razão e o domínio. ``Esses autores não se apercebem de algo fundamental relativamente à razão moderna: a sua capacidade de auto-diferenciação. Quer dizer, a possibilidade de um distanciamento em relação a certas aplicações dela própria, racionalidade: é ainda a razão que critica a razão-instrumental, é ainda a razão que critica os fins da racionalidade planificante, é ainda a racionalidade que critica o genocídio.'' ``A razão limita-se a si mesma: essa foi precisamente uma descoberta capital que a auto-afirmação moderna fez em relação a si mesma e ela basta para afastar o unidimensionalismo. O que a crítica radical da auto-afirmação afirma a respeito da transformação do mundo em mera objectividade, ser com objecto, é refutável com a mera leitura da Crítica da Razão Prática e do Juízo. (...) Auto-diferenciação, alargamento da perspectiva, exigência de legitimação são alguns dos princípios incorporados pela auto-afirmação moderna que balizam, num horizonte em que não vislumbramos ainda o fim, toda a modernidade'', caracterizada justamente por uma ``intensificação da consciência do perspectivismo''. ``Se é possível pois falar numa entrada no pós-moderno defini-la-ia como uma intensificação da componente perspectiva da modernidade com a correspondente perda de valor das pulsões emancipatória e legitimante.''

Dito isto, a questão que se coloca ao perspectivismo, diz ainda Marques [1988:353], é que ``aceitar sem mais o crescimento desmesurado de uma componente e renunciar às outras, será a vitória irreversível do relativismo e da versão anárquica de um liberalismo que na prática não vejo como deixar de ser uma capitulação perante o dogmatismo e a violência. Mas, por outro lado, pretender restaurar uma auto-afirmação que se identifique com a constituição de verdades e evidências universais, enfim a defesa de apriorismos muito fortes será perverter aquilo que foi conquista dessa auto-afirmação: o limitar-se a si mesma como espontaneidade doadora do sentido, a revisibilidade sob a pressão do mundo real, a consideração do outro como liberdade irredutível.''

O perspectivismo procura então, numa teoria da argumentação, uma hipótese de ultrapassagem desta aporia, através de um critério que é o dos efeitos que legitimam uma perspectiva junto de uma comunidade argumentativa. ``Assim, 1) o jogo das perspectivas far-se-á segundo princípios reguladores que tenderão para o universal, sem no entanto o pretenderem constituído de uma vez para sempre, 2) o jogo das perspectivas (um perspectivismo transcendental) far-se-á de acordo com processos de legitimação. A legitimidade das asserções terá de ser argumentada e as razões serão levadas o mais longe possível'' [Marques, 1988:353]. Há uma igualdade à partida que já não existe no momento da chegada, para usar agora os termos de Boaventura de Sousa Santos7: segundo a epistemologia moderna, ``é relativismo - e portanto fonte de obscurantismo - toda a atitude epistemológica que recuse reconhecer o acesso privilegiado à verdade que ela julga possuir por direito próprio. A possibilidade de uma relação horizontal entre conhecimentos é-lhe totalmente absurda. Ora o novo paradigma propõe tal horizontalidade como ponto de partida, e não necessariamente como ponto de chegada. Entendida assim, a horizontalidade é a condição sine qua non da concorrência entre conhecimentos. Só haveria relativismo se o resultado da concorrência fosse indiferente para a comparação dos conhecimentos, o que não é o caso, dado haver um ponto de chegada que não é totalmente determinado pelas condições do ponto de partida. Esse ponto de chegada depende do processo argumentativo no interior das comunidades interpretativas. O conhecimento do novo paradigma não é validável por princípios demonstrativos de verdades intemporais. É, pelo contrário, um conhecimento retórico cuja validade depende do poder de convicção dos argumentos em que é traduzido'' (desde que, evidentemente, ``o silenciamento, ou seja, a expulsão das comunidades argumentativas, que foi o timbre da ciência moderna, não ocorra ou ocorra o menos possível. Por isso o novo conhecimento, sendo argumentativo, tem um interesse especial pelo silêncio para averiguar até que ponto ele é um silêncio genuíno, ou seja, o resultado de uma opção argumentativa e até que ponto ele é um silenciamento, ou seja, o resultado de uma imposição não argumentativa.'')

Mas então pouco já parece separar o perspectivismo do pragmatismo: não apenas ambos reconhecem a impossibilidade de separar interesse e conhecimento, como ambos se orientam, na multiplicidade das perspectivas, pelos efeitos que elas possam ter no seio de comunidades, efeitos por definição localizados e pragmáticos. Ora, o objectivo anunciado por Marques é mostrar ``o valor construtivo e crítico do perspectivismo de Nietzsche'' (é este o subtítulo de Perspectivismo e modernidade), ou seja, a necessidade de, dentro da aceitação das perspectivas como ficções estratégias em conflito, encontrar uma hierarquia; e o problema será encontrar critérios para essa hierarquia, sem recair nos tais apriorismos e verdades universais8.

O mesmo tipo de situação encontramos no seio da hermenêutica. Segundo Habermas9, ela tenta ``precisamente tornar comunicável aquilo que é irredutivelmente individual''. Ao fazê-lo, divide-se entre a vocação de trabalhar para a abertura do pensamento à interpretação, e a tentação de, nessa interpretação, procurar alcançar um sentido primordial, mais verdadeiro do que os outros. Eduardo Prado Coelho10 escreve, a propósito do filme Francisca: ``em texto recente, Manuel S. Fonseca prevenia-nos de um risco: o de construirmos em relação a Manoel de Oliveira uma grelha de leitura "que tudo sintetizando a si mesma se esterilizasse pela ilusão de uma pura e total legibilidade". A advertência é útil, em particular no momento em que é feita: porque o filme Francisca, surgindo-nos como um ponto de aparente coincidência de Manoel de Oliveira consigo próprio, poderá levar-nos a procurar uma chave global que permita a captura do que de essencial nesta obra se configura. E isso é um risco - sobretudo se avançarmos para ele com a ideia predadora de que se trata de fixar uma imagem, apreender um enigma. Mas todo o cinema de Manoel de Oliveira desmente esse empreendimento: ele parte sempre de uma dúvida que a imagem diz e suspende. Compreender será sempre construir sistemas de leitura que põem elementos em relação. Ou, por outras palavras, procura-se reduzir o arbitrário entre os componentes de um filme. Não há crítica que não tenha esse projecto: a redução máxima de um arbitrário. Mas persegui-lo não leva à ilusão de se vir a saber tudo. Bem pelo contrário, trata-se de circunscrever com rigor os lugares do não-saber.''

O que estou a procurar argumentar é que, também na hermenêutica, se vive a tensão entre a total abertura, com o risco de um relativismo paralizante, e a ``ilusão da total legibilidade'', que tem tido tendência a apagar essa consciência do não-saber. A hermenêutica não terá ficado sempre marcada pela sua ligação original a uma tradição exegética que procura trazer à luz os sentidos secretos dos textos sagrados, revelando uma verdade última? Repare-se na evolução da tão jovem estética da recepção, herdeira da hermenêutica gadameriana. Ela começa por retirar o sentido ao autor para o colocar, de algum modo, na rua, nas mãos do seu leitor. Mas, como que não suportando a radical instabilização assim instituída, caminha rapidamente para uma delimitação sociológica do sentido enquanto horizonte de expectativas próprio de uma época concreta, em que ainda por cima a época da produção da obra parece ser um referente determinante. Há, assim, uma vacilação entre perspectivismo e ordenação; a própria colocação da obra no contexto da história literária, que era feita com o propósito de ``provocação da ciência da literatura'', pode acabar por constituir a maior ferramenta do seu fechamento. A este respeito, Robert Hollub11 é radical (demasiado radical) na sua crítica a Jauss: ``A despeito da retórica dos "direitos do leitor", o texto enquanto estrutura estável e determinada consegue frequentemente introduzir-se no próprio âmago da teoria da recepção. A dependência de Jauss de uma objectivação do horizonte de expectativas ou a sua diligência de descrever uma obra nos termos da linguística textual são dois casos nos quais notámos já uma furtiva reintrodução da determinação textual.''

O programa de Jauss é renovado por Iser com a mesma tensão entre a definição do horizonte mais correspondente ao texto (pela sua época de produção) e a abertura correspondente ao imaginário. ``Ele pensa que, em qualquer teoria, ou segundo qualquer conceptualização, pode sempre verificarse a tendência para fazer do sentido do texto o seu horizonte final. Os vários conceitoschave não estão à margem deste processo: a estrutura dános a produção de sentido, a função mostranos o funcionamento do produto e a comunicação propõenos a experiência desse sentido pelo destinatário. Mas Iser procura pôr em causa essa tendência para fazer da dimensão semântica o horizonte final do texto'', através de distinção, já referida, entre o sentido, preciso, e o imaginário, informe. ``A ficção dá ao imaginário uma certa determinação: cria uma figura do imaginário estabilizada numa intencionalidade. E este grau de determinação permite ao imaginário intervir no real. Contudo, não permite reduzir a figura do imaginário a uma mera representação. E aqui aparece outra distinção: entre o representado e o figurado (em Mukarovsky, por exemplo, encontramos esta importante destrinça entre o mundo representado e o mundo aludido na obra estética). Segundo Iser, "não é o que é representado na representação que deve ser figurado, mas a possibilidade de pôr em relação o representado de um modo diferente daquele que nos é dado reconhecer na sua designação verbal. O como se da ficção estabelece, portanto, uma distância particular entre o que é representado e o que deve ser figurado pelo representado. A ficção não é idêntica ao que ela representa e, nesta identidade deficitária, põese em valor no texto a presença do imaginário". Mas podemos observar que a interpretação visa precisamente reduzir ou mesmo anular esta distância. Por outras palavras, a interpretação pode ser considerada como uma semantização do imaginário. Daí, aliás, os violentos e inteligentes ataques de que tem sido alvo (Sontag, 1968). Iser propõe mesmo a tese de uma recepção que estaria apta a permanecer numa determinada fidelidade, emudecida em relação à obra, distinta da interpretação. De qualquer modo, é importante sublinhar que, em todas as interpretações, a presença do imaginário fica assinalada pelo grau de abertura e metaforização que existem nos conceitos postos em jogo no processo interpretativo. "A conceptualidade metafórica não é, em última instância, a marca de uma falta de precisão que estaria ainda por atingir, mas a expressão do imaginário, de um imaginário que só se deixa apreender num discurso regulado pelo código através de uma metaforização latente da conceptualidade empregada". O que significa que "o discurso orientado semanticamente não consegue nunca referencializar totalmente o imaginário``'12.

Se considerarmos que, no tipo de pensamento jânico que propomos, com o seu perspectivismo pelo menos duplo, estará tendencialmente evitada qualquer tentativa de recriação de uma verdade universal, teremos agora de discutir a questão da comparação entre as várias perspectivas. Estamos aí, como escreve Manuel Maria Carrilho13 numa ``tensão entre duas exigências dificilmente compatíveis: por um lado a da "anulação dos critérios", por outro a da "conservação dos limites".'' Mais recentemente, Miguel Tamen14 dedicou-se a historiar, de Santo Agostinho a Gadamer, uma série de noções que ``são usadas para evitar a concepção de um embate contra os limites da interpretação'', já que ``parece existir toda uma retórica do uso dos limites da interpretação'', destinada a evitar a sua paralisia.

Como salienta Maria Teresa Cruz15, ``é um facto que dizer que a obra de arte não é possuidora de um sentido único e verdadeiro, mas antes uma "obra aberta" a leituras diversas, é um discurso que convém ao senso-comum e a uma certa democratização da cultura e da arte que a modernidade procurou encenar. Trata-se de um tipo de discurso que tende a acentuar o lado subjectivista do paradigma, enquanto que uma versão mais crítica o apresenta antes como interaccionista.'' E José Guilherme Merquior16 pergunta, com o exemplo de Kafka: ``como equiparar a leitura em tantos pontos forçada de Max Brod e a penetrante análise de Walter Benjamin? Refreemos um pouco essa euforia de multisignificações: pois se é certo que todo grande livro comporta vários entendimentos, daí não se segue que todos tenham a mesma profundidade, nem que alguns não "incluam" os outros, num movimento de síntese e de gradação.'' Será que a modernidade, de Kant a Heidegger e ao ``pós-modernismo'', levou tão longe a crítica dos juízos que nos deixou sem quaisquer critérios para tomar decisões (situação que, evidentemente, se torna especialmente grave quando é necessário assumir posições perante a violência e a monstruosidade)?

Em Os limites da interpretação e em Interpretação e sobreinterpretação17, Umberto Eco procurou resolver a questão defendendo que não podemos limitar a multiplicidade e diversidade das interpretações, mas podemos discutir o seu valor, distinguindo entre interpretações aceitáveis e ``sobreinterpretações''. É possível estabelecer critérios, ainda que apenas negativos: não se trata de apurar quais são as ``melhores'' interpretações, trata-se, mais, modestamente, de indicar as ``más''. Eco defende que, independentemente da intenção do autor e das circunstâncias particulares que envolveram a sua emissão, o texto conserva uma ``intentio operis'', um sentido literal que fixa os limites de todas as interpretações. É essa intentio operis que explica que certos textos resistam a certos usos que se pretende fazer deles (como aliás Eco já defendia em Obra aberta18, onde dizia que a obra de arte se distingue do dicionário por possuir uma estrutura que já só permite algumas utilizações; enganam-se, por isso, ou pelo menos exageram, os que vêm nas ideias de Eco sobre a interpretação uma viragem no seu pensamento).

Para Eco, escreve Patrícia San Payo19, ``toda a leitura se constrói com base numa operação intelectual que designa por abdução, retomando neste ponto a conceptualização proposta por Peirce. É a abdução que permite que, ao lermos, tomemos decisões difíceis, com base em instruções frequentemente ambíguas fornecidas pelo texto. Só que, precisa Eco, estas hipóteses interpretativas devem ser confirmadas pela obra no seu todo - segundo o que em semiótica se designa por economia isotópica -, e só o pode ser se tiverem sido construídas com base em conjecturas preliminares sobre o possível emissor e o possível período em que a obra foi produzida.'' Isto reintroduz ``a questão de saber se haverá ou não esse grau zero da linguagem, se se poderá de facto traçar uma diferença entre significado literal e significado figurativo.'' Eco sabe que o problema é controverso, e vai historiar os antecedentes das teorias que contesta, defendendo ``que o que se joga nos debates em torno da interpretação é a predominância na cena cultural do Ocidente de um racionalismo de herança greco-latina de acordo com o qual é verdade o que pode ser explicado e não o inverso''.

A Eco contrapõe-se o pragmatismo de Rorty, o qual, como diz Manuel Maria Carrilho [1995:14], ``aponta para a dissolução de uma dicotomia clássica, a que em geral se estabelece entre a interpretação e o uso dos textos. A sugestão de Rorty20 é que se abandone esta clivagem e se compreenda que "tudo o que seja quem for faz seja com que coisa for, é usá-la. Interpretar uma coisa, conhecê-la, penetrar na sua essência, e assim por diante, são apenas vários modos de descrevermos um processo de a pormos a funcionar". Deste modo, interpretar não conduz nunca ao conhecimento de algo que pertence a um texto intrinsecamente, essencialmente. Qualquer texto é sempre um objecto relacional que se constitui no decurso do jogo hermenêutico, ou seja, dos objectivos e propósitos que com ele e através dele se visam. Não há aqui nenhuma anterioridade de essência, nem nenhuma prioridade de coerência. Dito de outro modo, tal como a "essência'e sempre relacional, a "coerência'e sempre funcional: o que se diz sobre um texto é inseparável de quem o diz, dos propósitos com que o faz e do momento em que tal ocorre.'' Nas palavras de Rorty [1993:94], a interpretação ``de textos é uma questão de os lermos à luz de outros textos, pessoas, obcessões, fragmentos de informação, ou seja o que for de que dispusermos, para vermos o que acontece a seguir''. ``Nesta tranquila expectativa'', remata Carrilho [1995:16], ``a interpretação não conhece limites que não sejam os da inspiração; ponto com que, de algum modo, concorda Eco quando numa réplica final fala já não de "más" interpretações mas de interpretações "sem êxito", "que são como uma mula, quer dizer, incapazes de produzir novas interpretações ou não podem ser confrontadas com as tradições das interpretações anteriores``'.

Estas questões não deixam, evidentemente, de estar presentes no interior das próprias produções artísticas. Merquior [1981:102-103] vê, por exemplo, no Nouveau Roman a tentativa extrema de suspender todos os juízos, para ``descrever minuciosamente um mundo que o leitor interprete de mil maneiras, utilizando-se à vontade dessa imagem impecavelmente neutra do real''. Como escreve Gianni Vattimo21 sobre as artes mais recentes, ``também na estética sentimos o que acontece, segundo modalidades e com uma carga dramática diferentes, na ciência que tinha sempre aparecido (...) como o lugar onde o mundo se dá enquanto objecto único; sentimos porevelado uma multiplicidade de mundos diversos. Deixou de ser possível falar da experiência estética enquanto pura expressividade, puro colorido emotivo e múltiplo do mundo, como se fazia quando se pensava que esse mundo-base era de qualquer modo dado e conhecível por meio dos métodos científicos. Isto não resolve certamente o problema da redefinição da estética e não permite talvez "defini-la" delimitando-a e distinguindo-a: também aqui nos encontramos, parece, face a uma realização imprevista, e talvez "distorcida", da utopia.''

Daí a dificuldade acrescida, face às artes contemporâneas, de navegar sem bússola num mar sem pontos de referência, continuando a resistir à tentação de cair numa operatividade meramente técnica, ou numa definição apenas negativa das questões, ou ainda num regresso a um qualquer absoluto que ficaria a rir-se de tantos séculos de reflexão. O que é fundamental ter presente é a distinção, tão importante no pensamento kantiano, entre juízos determinantes, que ao fim e ao cabo nunca existem, pelo menos se lermos Kant com a chave hermenêutica dada na sua terceira Crítica, e os juízos reflexivos que têm de ser exercidos mutuamente, entre as perspectivas - e nova razão para estarmos sempre munidos, no nosso próprio pensamento, de mais do que uma perspectiva de modo a ser possível a comparação e a reflexividade, contra qualquer monologização. O passo seguinte, que me parece ser essencial, é pensar que quando uma segunda perspectiva assalta outra, não é tanto para estabelecer, ou sequer sugerir, os limites da primeira, mas antes de mais para trazer à consciência e à enunciação os limites de si própria e da alteridade que as desencontra no seu encontro: é no contacto com a outra perspectiva que cada uma pode ganhar mais aguda percepção da sua própria finitude, isto é, de que aquilo que a fez dizer alguma coisa sobre a outra é, no mesmo movimento de relação, o que a faz encontrar os limites, não só do outro, como do seu próprio dizer. Isto é particularmente iniludível e relevante na relação que o discurso estabelece com esse outro, muitas vezes tão pouco discursivo ou só aparentemente discursivo, que encontramos na arte.

BIBLIOGRAFIA

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Rorty, Richard, ``O progresso do pragmatista'', in Stefan Collini (org.), Interpretação e Sobreinterpretação, Lisboa, Lisboa, Presença, 1993

Santos, Boaventura de Sousa, Pela Mão de Alice: O Social e o Político na Pós-Modernidade, Porto, Afrontamento, 1994

Tamen, Miguel, Maneiras da interpretação: os fins do argumento nos estudos literários, Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1995

Vattimo, Gianni, La société transparente, Paris, Desclée de Brouwer, 1990





Resumo:

Reflectir sobre a arte - por exemplo, sobre um filme de Manoel de Oliveira - acentua a nossa consciência do pensamento como ficção e da ficção como perspectiva. Procura-se aqui reflectir sobre as vantagens e tensões inerentes ao perspectivismo e à hermenêutica, e propõe-se uma estratégia que, através de constantes e difíceis decisões de abdução, visa lutar contra a opacidade do mundo sem ter a miragem de uma legibilidade total.



Notas de rodapé

... Monteiro1
Universidade Nova de Lisboa
... Arte2
- Oeiras, Celta, 1996
... perspectivismo3
2#2 - Lisboa, D. Quixote, 1990.
... modernidade4
2#2 - Lisboa, Vega, 1993, pp. 131,7,48.
... Nabais5
2#2 - ``Kant perspectivista'', Expresso, 3 de Julho de 1993, p. 20.
... Marques6
- ``Metamorfose da razão, o problema da entrada numa época pós-moderna'', Revista de Comunicação e Linguagens, n1#1 6/7, 1988, p. 352.
... Santos7
Pela Mão de Alice: O Social e o Político na Pós-Modernidade, Porto, Afrontamento, 1994, p. 284.
... universais8
2#2 - Nuno Nabais, no artigo citado, critica, por exemplo, a proposta feita por A. Marques de atribuir uma ``maior valia cognitiva'' às perspectivas ``que tiverem maior grau de consciência do carácter perspectivista do conhecimento'', por não aceitar que esse critério corresponda a diferenças objectivas de validade.
... Habermas9
2#2 - Zur Logik der Socialwissenschaften, de 1982, tradução espanhola como La logica de las ciencias sociales, Madrid, Tecnos, 1990.
... Coelho10
- A Mecânica dos Fluidos: Literatura, Cinema, Teoria, Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1984, p. 179.
... Hollub11
- Cit. in Fernando Cascais, ``Sentido e comunicação: a estética de Hans Robert Jauss'', Revista de Comunicação e Linguagens, n1#1 2, Dezembro de 1985, p. 84.
...ario"''12
2#2 - Quem faz esta síntese é Eduardo Prado Coelho (Os Universos da Crítica, Lisboa, Edições 70, 1987, p.153), que no seu trabalho prefere no entanto uma outra terminologia: ``é que o que designamos por verdade do texto aparece em Iser como o sentido do texto; e o que designamos por sentido do texto aparece em Iser como o imaginário do texto. Donde, em Iser o par teórico é sentidoimaginário. Pela nossa parte, utilizaremos o par teórico verdadesentido, segundo uma proposta de Barthes. Mas a tese fundamental de Iser permanece. Poderemos formulála deste modo: quanto mais se postular uma coincidência entre verdade e sentido de um texto, mais se reduz a metaforização latente do discurso interpretativo utitizado. Em contrapartida, quanto mais se defender a nãocoincidência entre verdade e sentido de um texto, mais se justifica a metaforização latente do discurso conceptual.''
... Carrilho13
2#2 - ``A interpretação como aventura'', que abre Aventuras da Interpretação, Lisboa, Presença, 1995, pp. 13-16. No mesmo volume, leia-se também, especificamente sobre este tema, ``O espectro do relativismo'', pp. 173-176.
... Tamen14
2#2 - Maneiras da interpretação: os fins do argumento nos estudos literários, Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1995, p. 47.
... Cruz15
- ``A estética da recepção e a crítica da razão impura'', Revista de Comunicação e Linguagens, n1#1 3, Junho de 1986, p. 60.
... Merquior16
- As Ideias e as Formas, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1981, p. 104.
... sobreinterpretação17
2#2 - O primeiro título é de 1990 e tem edição portuguesa na Difel, Lisboa, 1992. O segundo corresponde a Interpretation and overinterpretation, volume editado em 1992 sob a direcção de Stefan Collini, editado em português pela Presença em 1993 e que inclui os ensaios de Eco ``Interpretação e história'', ``Sobreinterpretação dos textos'', ``Entre autor e texto'', e ainda uma ``Réplica'' ao ensaio de Richard Rorty ``O progresso do pragmatista'', incluído no mesmo volume.
... aberta18
- L'oeuvre ouverte, Paris, Seuil, 1979 (ed. original:1962).
... Payo19
2#2 - ``A letra da obra'', Expresso, 22 de Maio de 1993, p. 25.
... Rorty20
- ``O progresso do pragmatista'', op. cit, p.84.
... Vattimo21
- La société transparente, Paris, Desclée de Brouwer, 1990, pp. 91-92.