Currículo, conhecimento, cultura
Estabelecendo diferenças, produzindo identidades

Filomena Moita

Universidade Federal da Paraíba


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Resumo: Vivemos um momento ambíguo em nossa história, nas palavras de Silva (2001) um tempo paradoxal. Ampliam-se as possibilidades de conhecimento numa sociedade da informação e tecnologia cada dia mais sofisticada, ao mesmo tempo, vivemos momentos de angústia, de dor, de isolamento pelo não acesso por parte de milhões de pessoas a essa mesma tecnologia. Estamos na era da sociedade do espetáculo, noções de tempo e de espaço são possíveis até com a possibilidade de serem alteradas pela ficção (homem e máquina) numa époça de ciborgues (Haraway) nas imagens-som das máquinas dos artefatos audiovisuais (televisão, cinema, jogos eletrônicos) que modelam e produzem novas identidades sociais. Todos estes artefatos culturais deveriam diminuir a dor, aumentar o prazer e melhorar a qualidade de vida. Paradoxalmente não é isso que acontece pois, simultaneamente observamos o aumento da miséria como no caso da Paraíba onde os rendimentos de 1% dos mais ricos equivalem aos ganhos de 50% dos mais pobres. Um tempo de miséria, dor, sofrimento, de violência e anulação de seres humanos. É num cenário como este que enquanto educadora sinto a necessidade de refletir sobre o impacto dessas mudanças no currículo, no conhecimento e na cultura e o estabelecimento de novas identidades, olhando pelas lentes teóricas de autores como: Cambi, Debord, Louro, Silva, Stuart Hall, Vorraber, Fleuri, Paulo Freire, entre outros. Caminharemos pela história da educação brasileira e a formação do currículo analisando os impactos das diferentes visões da teoria curricular desde a tendência tradicional passando pela concepção pós-estruturalista chegando às novas tecnologias e suas contribuições para um currículo cultural.

Palavras-chave: currículo, conhecimento, cultura.

Abstract: We lived an ambiguous moment in our history, in Silva's words (2001) a paradoxical time. The knowledge possibilities are enlarged in a society of the information and technology every more sophisticated day, at the same time we lived moments of it, of pain, of isolation for the non access on the part of millions of people to that same technology. We are in the era of the society of the show, notions of time and of space they are possible to with the possibility of they be altered by the fiction (man and machine) in a ciborgues époça (Haraway) in them image-sound of the machines of the audiovisual engines (television, movies, electronic games), that model and they produce new social identities. All these cultural engines should decrease the pain, to increase the pleasure and to improve the life quality. Paradoxalmente is not that that happens because simultaneously we observed the increase of the poverty as in the case of Paraíba where the revenues of 1% of the richest are equal to the gains of 50% of the more poor. A time of poverty, pain, suffering, of violence and human beings annulment. It is in a scenery as this that while educating I feel the need to contemplate on the impact of those changes in the curriculum, in the knowledge and in the culture and the establishment of new identities. Looking at for the authors' theoretical lenses as: Cambi, Silva, Stuart Hall, Vorraber, Fleuri, Paulo Freire, among others. We will walk for the history of the Brazilian education and the formation of the curriculum analyzing the impacts of the different visions of the theory curricular from the traditional tendency going by the conception powder-estruturalista arriving to the new technologies and its contributions for a cultural curriculum.

Word-key: curriculum, knowledge, culture.

Uma das tarefas do educador ou educadora progressista , através da análise política, séria e correta, é desvelar as possibilidades, não importam os obstáculos, para a esperança, sem a qual pouco podemos fazer. Paulo Freire(1998)

Vive-se um momento ambíguo em nossa história, nas palavras de Silva (2001) um tempo paradoxal. Ampliam-se as possibilidades de conhecimento numa sociedade da informação e tecnologia cada dia mais sofisticada, ao mesmo tempo vive-se momentos de angustia, de dor, de isolamento pelo não acesso por parte de milhões de pessoas a essa mesma tecnologia.

Na era da sociedade do espetáculo1, noções de tempo e de espaço são possíveis até com a possibilidade de serem alteradas pela ficção (homem e máquina) numa época de ciborgues (Haraway) nas imagens-som das máquinas dos artefatos audiovisuais (televisão, cinema, jogos eletrônicos) que modelam e produzem novas identidades sociais.

Todos estes artefatos culturais deveriam diminuir a dor, aumentar o prazer e melhorar a qualidade de vida. Paradoxalmente, não é isso que acontece pois simultaneamente observa-se o aumento da miséria como no caso da Paraíba onde os rendimentos de 1% dos mais ricos equivalem aos ganhos de 50% dos mais pobres. Um tempo de miséria, dor, sofrimento, de violência e anulação de seres humanos. É num cenário como este que enquanto educadora sinto a necessidade de refletir sobre o impacto dessas mudanças no currículo, no conhecimento e na cultura e o estabelecimento de novas identidades.

Frente a esta realidade, pergunto-me: o que fazer? Como o currículo tem contribuído ou não para melhorar ou piorar essas diferenças? Que conhecimento é esse que mediado pelas máquinas eletrônicas modela e produz identidades?

Caminharemos pela história da educação brasileira e a formação do currículo analisando os impactos das diferentes visões da teoria curricular desde a tendência tradicional passando pela concepção pós-estruturalista chegando às novas tecnologias e suas contribuições para um currículo cultural.

Através desse caminhar pela história da educação brasileira, faço neste texto uma análise da formação do currículo analisando os impactos das diferentes visões da teoria curricular no séc.XX, desde a tendência tradicional passando pela concepção pós-estruturalista chegando às novas tecnologias e suas contribuições para um currículo cultural. Inicia-se o texto apresentando o século XX e as principais mudanças que ocorreram neste século dramático, conflituoso mas ao mesmo tempo inovador tanto nos aspectos econômicos, políticos, culturais e educacionais.

O século XX: conflitos e mudanças

Na economia vimos a afirmação do capitalismo monopolista e das tensões imperialistas. Baseado no consumo e no crescimento da classe média o capitalismo também passou por uma renovação no sistema produtivo passando da centralidade na indústria para os serviços.

Segundo Cambi (1999,p.509), ``essa história econômica complexa produziu fortíssimas tensões, contraposições de modelos e de Estados, alternativas radicais em contraste e um duplo desenvolvimento econômico''. Com a Revolução de Outubro em 1917 na Rússia e com a divisão da Europa em 1945 e mais tarde em 1989 com a queda do comunismo ruínas econômicas foram sendo deixadas para trás caracterizadas por incapacidade produtiva, por uma pobreza generalizada que levou a uma recessão gravíssima.

No que diz respeito a política, o quadro também não é menos complicado e pode-se dizer parafraseando Cambi ``dramático e contraditório''. Democracia e totalitarismo confrontam-se durante todo o século além de se influenciarem alternadamente se apresentam como vencedores em diversas áreas geográficas e culturais.

O século XX colocou frente a frente democracia e totalitarismo, indicando na primeira, mesmo nas suas múltiplas faces, um pré-requisito da vida coletiva em sociedades avançadas em seu desenvolvimento econômico e social e uma tarefa a realizar. Já no segundo, uma tentação ou risco ou possibilidade continuamente presente na vida dos diversos países, especialmente nos momentos em que estes viverem transformações sócio-econômicas ou que delineiam crises de identidade social e ideal mais profunda que política.

Temos como verdadeiros exemplos os casos da Alemanha após Weimar, da Itália fascista de Mussolini, da URSS de Stalin, a Espanha de Franco, Portugal de Salazar. Seja por um totalitarismo mais ou menos violento o que a história revela foi uma solução trágica para a solução de problemas muitas vezes por repressão ou por conformação forçada (a escola como canal preferencial para a reprodução de uma ideologia e ao mesmo tempo de uma contra ideologia). No século XX o horizonte antropológico-social mudou radicalmente. Segundo Cambi (1999), o século XX trouxe um ``modelo de homem novo'' cuja fisionomia foi criticamente traçada por Ortega y Gasset, um homem que teve riscos e perdas. Riscos de rebeldia e embrutecimento e perdeu interioridade e esquecimento do passado.

Com tudo isso para Cambi (1999, p.511):

o horizonte antropológico-social mudou radicalmente: o mundo burguês e o popular, com suas regras, com suas barreiras, foram substancialmente desagregados, criando certamente maior igualdade, mas na homologação e na vulgarização.

No bojo dessas mudanças vem a educação, assim como a pedagogia e dentro desta o currículo. Aconteceram mudanças tanto nas práticas quanto nas teorias que se ressentiram da massificação da vida social. A prática educativa volta-se no século XX para um sujeito humano novo, abre-se às massas, impõem-se novos protagonistas (a mulher, a criança o deficiente). Renovou as instituições formativas dando vida segundo o autor a um processo de socialização dessas práticas.

A teoria alimentou um processo de esclarecimento em torno dos fins da educação, entregando-se segundo Cambi (1999, p.512), `` a procedimentos epistêmicos variados e complexos e fixando um papel cada vez mais central para as ciências, especialmente as humanas, que devem desenvolver e guiar os saberes da educação'' .

No curso do século XX, ``assistimos a uma renovação educativa e a uma renovação pedagógica que agiram de modo constante e entrelaçado consignando ao pedagógico uma feição mais rica, mais incisiva `` (idem, 512).

E o currículo, como se transformou? Acompanhou essas mudanças?

O Currículo: do tradicional ao pós-crítico

A escola no século XX sofre processos de profunda transformação, abre-se às massas e nutre-se de ideologia. Afirma-se como central na sociedade dá-se ênfase ao fazer enquanto as teorias se destinam a fundar e a dar substrato a essas práticas inovativas. É o ativismo que vem tentar substituir a tendência tradicional. Num movimento internacional assiste-se a uma reviravolta radical na educação, colocando a criança no centro da educação, numa tentativa de dar visibilidade as suas necessidades e as suas capacidades. Seria o fazer precedendo o conhecer, que deve vir do global para o particular.

Parafraseando Piaget seria um amadurecer inicialmente num plano ``operatório''. Segundo Cambi (1999, p.513), ``a aprendizagem coloca no centro o ambiente e não o saber codificado e tornado sistemático... rompe assim com uma escola formalista, disciplinar e verbalista''. Questiona-se então: fica claro que há indicações de uma mudança metodológica, mas e o currículo? Quando questiono sobre o currículo quero dizer que minha linha reflexiva não passa só por conteúdos, disciplinas, métodos, objetivos, etc. que compõem as atividades escolares, estou concebendo esse conjunto como algo articulado, segundo certa ordenação que é impulsionado por ímpetos que não são casuais. Um currículo que segundo Vorraber (1996, p. 43) seus componentes constituem:

...um conjunto articulado e normatizado de saberes, regidos por uma determinada ordem, estabelecida em uma arena em que estão na luta visões de mundo e onde se produzem. Elegem e transmitem representações, narrativas, significados sofre as coisas e seres do mundo.

Dentro dessa perspectiva de relações entre currículo e cultura mediado pelo poder num jogo de correlação de forças, onde o currículo como um artefato educacional retira elementos de uma cultura e os escolariza. Apresentam-se sumariamente algumas perspectivas que têm sido adotadas para examinar de que maneiras o currículo está implicado com a sociedade que o produziu.

Assiste-se, num esforço significativo, à reformulação dos currículos escolares em inúmeros países. Trata-se certamente de um fenômeno global, já intensamente estudado por pesquisadores que buscam compreender os processos de elaboração e de implementação das novas políticas de currículo.

Os estudos contudo revelam que o currículo da escola está baseado na cultura dominante, expressa-se na linguagem dominante e é transmitido através do código cultural da dominação. Esse trabalho funciona como mecanismo de exclusão natural dos dominados, que não tendo a sua cultura reconhecida acabam conformando-se com o fracasso escolar e com a condição dominada. Não por coincidência, o currículo tem sido um dos elementos centrais das reestruturações e reformas educacionais que em nome da eficiência econômica estão sendo propostas em diversos países. Ele tem uma posição estratégica nessas reformas precisamente porque o currículo é um dos espaços onde se concentram e se desdobram as lutas em torno dos diferentes significados sobre o social e sobre o político.

Segundo Silva (2000), através do currículo, concebido como elemento discursivo da política educacional, os diferentes grupos sociais, especialmente os dominantes, expressam sua visão de mundo, seu projeto social, sua "verdade". Através de seleção arbitrária, os conteúdos reveladores das manifestações culturais dos dominantes são impostos aos dominados. Em algumas análises, procuram-se explicitar as relações de poder que se expressam nas reformas e evidenciar como elas se têm constituído em instrumentos de regulação e de auto-regulação de indivíduos e grupos. Afirma-se mesmo que, por meio das reformas, pretende-se o "governo das almas", a instituição de determinadas maneiras de ver, sentir e entender o mundo.

Como o currículo afinal tem sido concebido?

Recorrendo a Silva (2001) e de forma breve e simplificada passo apresentar quatro visões de currículo e de teoria curricular:

a) A visão tradicional, dentro de uma perspectiva humanista, de uma cultura conservadora (estável e fixa) e do conhecimento como fato, como informação2, visão conservadora de escola e de educação.

b) A visão tecnicista que em alguns aspectos é semelhante a tradicional mas que enfatiza as dimensões instrumentais e econômicas da educação.

c) A visão crítica de orientação neomarxista, baseada numa análise da escola e da educação como instituições voltadas para a reprodução das estruturas de classe da sociedade capitalista: o currículo reflete e reproduz essa estrutura.

d) Finalmente uma visão pós-estruturalista, vem enfatizar o currículo como prática cultural e como prática de significação. É desta última visão que pretendo desenvolver este ensaio mais com interrogativas do que afirmativas.

Entretanto, é preciso ter claro como se define uma teoria curricular. Nas palavras de Silva (2001), ela se distingue pela forma como organiza seus conceitos para que possamos enxergar a realidade. Assim, as teorias tradicionais privilegiam no currículo: ensino, aprendizagem, avaliação, metodologia, didática, organização, planejamento, eficiência e objetivos onde fica visível a preocupação com questões de organização. Dentro dessa perspectiva, uma concepção tradicional de currículo estaria basicamente preocupada com a questão "como planejar um currículo.begintex2html_deferred

Já nas teorias críticas o currículo privilegia: ideologia, reprodução cultural e social, poder, classe sociais, capitalismo, relações sociais e libertação, currículo oculto e resistência o que revela que existe um deslocamento do eixo dos conceitos simplesmente pedagógicos de ensino e aprendizagem para um eixo que privilegia os conceitos de poder e ideologia. A concepção crítica somente poderia se deter nesta questão após uma compreensão reflexiva sobre o que este objeto é em sua essencialidade histórica e material. As teorias pós-criticas enfatizam um outro deslocamento importante que enfatizarem o conceito de discurso em vez de ideologia.

Existem teóricos paradigmáticos tanto da concepção tradicional quanto da crítica. No caso da primeira, temos como referência Ralph Tyler,  para quem a essência do conceito estaria na idéia de programa educacional, centrando-se nas fases de seu planejamento. No caso da segunda, podemos tomar como exemplos paradigmáticos os estudos de  Michael Young e Michael Apple pelas suas características de penetração no cenário internacional e nacional. Estudos de pesquisadores como (Apple,1982, Giroux, 1981) entre outros, contribuem para que se conceba o currículo como uma construção social e se compreendam as complexas conexões entre currículo, cultura e poder na sociedade capitalista. Young foi considerado como sendo o teórico que sistematizou pela primeira vez, no campo do currículo, uma concepção crítica. Apple foi considerado como o teórico que mais contribuiu para inicialmente divulgar, no Brasil, esta concepção.

Conhecimento e Currículo Cultural

Na medida em que estão ocorrendo rápidas e profundas modificações no mundo contemporâneo, discutem-se alguns "efeitos" sociológicos e culturais dessas mudanças - como as questões referentes à desigualdade distributiva, ao multiculturalismo, ao relativismo cultural, à representação e às novas tecnologias de subjetivação - e suas relações com o currículo, principalmente no que concerne às nossas práticas pedagógicas e à pesquisa educacional.

O novo século submeterá a educação a uma dura obrigação. Segundo Delors (1996,p.89) ``à educação cabe fornecer, de algum modo, os mapas de um mundo complexo e constantemente agitado, e, ao mesmo tempo, a bússola que permita navegar através dele''. Vive-se uma centralidade do conhecimento e dos valores culturais. Neste contexto a educação, precisa estar pronta para dar uma formação básica e universal de forma a dotar os estudantes dos instrumentos e competências cognitivas indispensáveis à aprendizagem de conhecimentos socialmente significativos. Por outro lado a escolarização deve permitir novas formas de solidariedade e de associação, capazes de contribuir para a construção de identidades complexas, nas quais se inclua o pertencimento a múltiplos âmbitos.

Dentro desta perspectiva todas as iniciativas de efetuar e de analisar as mudanças curriculares que se vêm promovendo em muitos países precisam ser referidas ao processo de globalização em curso. Quer se enfatizem seus aspectos econômicos ou seus aspectos culturais, não há como negar seus contraditórios reflexos no cenário educacional. Nas políticas educacionais, nos currículos, nas formas de avaliação, nas propostas de reformular a formação docente, nas investigações, assim como nos encontros e seminários que se desenvolvem em inúmeros países, há, claramente, procedimentos, objetivos e características comuns, a despeito de diferenças também observáveis. A reorganização dos currículos move-se pela intenção de responder à preocupação dos que têm coordenado e desenvolvido os processos de reestruturação da escolarização e ao caráter inevitavelmente multicultural de nossas sociedades.

Bhabha ( 1998, p.63 e ss.) distingue paradigmaticamente o conceito de diversidade do conceito de diferença. Para o autor a diversidade cultural, refere-se à cultura como um objeto do conhecimento empírico, reconhecendo conteúdos e costumes culturais pré-datados. Em contraposição a esta perspectiva , a diferença cultural se constitui, como um processo de enunciação da cultura.

Têm-se buscado, nos novos currículos, oferecer algumas respostas a um complexo panorama cultural. A diferença cultural, cada vez mais marcante, pauta-se por relações de poder que oprimem determinados grupos e indivíduos e que respondem por crescentes xenofobia, racismo, fundamentalismo, terrorismo. Tais respostas tanto têm correspondido à intenção de harmonizar e integrar os diferentes grupos no seio do que se chamaria de cultura hegemônica, como ao propósito de tornar visíveis, questionar e desestabilizar as assimétricas relações entre esses mesmos grupos. Inegavelmente plurais, essas sociedades abrigam diferentes grupos cuja convivência está longe do que se poderia considerar pacífica. É como estivéssemos assistindo num teatro a uma peça em diferentes cenários. Enquanto num a realidade ainda convive-se com uma relação taylorista de 60 anos atrás, em outra assistimos a mesma peça com robô, com braços e pernas substituindo a força muscular, os trabalhos insalubres e tediosos do ser humano.

Pode-se dizer então, recorrendo as palavras de De Masi (2000, p.29), que estamos convivendo de forma turbulenta na sociedade pós-industrial com remanescentes tanto da sociedade industrial quanto da época rural.

O avanço tecnológico que cada vez mais confere rapidez ao processo de comunicação, disponibiliza a um número crescente de pessoas uma ampla gama de informações e também deixa um grande número de outras pessoas à margem ou mesmo na escuridão de um conhecimento para o qual não têm acesso. São os abismos entre o Mundo desenvolvido e o em desenvolvimento. Assim defende-se que uma sociedade baseada no uso intensivo de conhecimento possa produzir simultaneamente fenômenos de mais igualdade e mais desigualdade, de maior homogeneidade e maior diferenciação.

John Willinsky propõe um novo enfoque na política da identidade e do multiculturalismo, sugerindo que propiciemos ao nosso estudante a compreensão de como categorias poderosas como cultura, raça e nação têm sido construídas. Pergunta se é possível continuar a dividir a realidade humana, como temos feito, em culturas, histórias, tradições, etnias e sociedades nitidamente diferentes, e sobrevivermos de modo humano às conseqüências dessa divisão. Sugere, então, que focalizemos nos currículos a construção dessas categorias, tornando evidente como elas vêm sendo produzidas e naturalizadas ao longo dos tempos. Trata-se, em outras palavras, de reconhecer e contestar a histórica de categorias usadas para identificar-nos. Trata-se de compreender como a humanidade veio a ser dividida de um determinado modo, o que é indispensável para se apreciar, criticar e desvelar o jogo político da identidade no mundo contemporâneo.

Inconclusão: continuando em busca de respostas

A questão da identidade vem sendo discutida na teoria social, na verdade a essência da discussão é segundo Hall (2001,p.01): as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado.

O mundo, as relações e as identidades mudaram, assim como as concepções e as práticas educacionais. Em função dessas mudanças, não podemos mais olhar nem praticar a pedagogia e o currículo como antes.

Tal olhar nos coloca, assim, face a face com o novo saber produzido neste caso pelos artefatos audiovisuais no caso especifico dos jogos eletrônicos. Vou considerar aqui somente o jogo eletrônico mais típico: aquele que exige velocidade do indivíduo que joga contra a máquina e ganha pontuação quando acerta determinadas ações, o que denomino de jogos tipo ``combate''.

O aparelho consiste numa tela (grande como um monitor de computador ou TV, ou até mesmo uma tela bem pequena de jogo portátil). Como meio de comunicação entre o jogador e o computador - um teclado, um joystick ou uma pistola que detecta luminosamente a posição apontada por ela na tela. A tela exibe uma figura em movimento; o jogador tem que fazer alguma ação com seus dedos, como pressionar algumas teclas; o computador detecta que teclas foram pressionadas e produz uma modificação na imagem da tela; e assim por diante.

Naqueles espaços de jogo os jovens têm acesso a técnicas de simulação, imagens interativas que segundo Levy (2001, p. 165), ``não substituem os raciocínios humanos, mas prolongam e transformam a capacidade de imaginação e de pensamento''. Parafraseando Assmann (1998),''em cima do que nos advém de fora reconstruímos nossa imagem do real''. Recorrendo a Castells, todas as expressões culturais, da pior à melhor, da mais elitista à mais popular, vêm juntas nesse universo digital que liga, em um supertexto histórico gigantesco, as manifestações passadas, presentes e futuras da mente comunicativa. Com isso, afirma o autor, ``elas constroem um novo ambiente simbólico. Faz da virtualidade nossa realidade``(2001 p.395).

Parte-se do pressuposto de que o público jovem constrói significados no contato com essas imagens: por um lado, os jovens se apropriam do conhecimento mediatizado pelos jogos eletrônicos e constroem um currículo cultural que contribui com novos saberes dependendo dos significados atribuídos por cada um. Por outro lado segundo Morin (2001, p. 21), ``a importância da fantasia e do imaginário no ser humano é Então, além daqueles saberes algo mais pode ser apropriado e produzido.

Não divinizo nem diabolizo estes artefatos audiovisuais mas defendo que estas máquinas produzem diferenças e formam identidades. O jogador aprende a fazer algo muito especializado - saberes que formam um currículo cultural. Será que o que aprendeu somente se aplica ao jogo, não podendo ser utilizado na vida prática diária? Numa situação de emergência, de estresse, de consciência abafada, como reage o jogador? Pode reagir como fazia no jogo, mas tratando o real como artificial - o que é um grande perigo, pois são duas coisas completamente diferentes. Mas essas reações não são iguais elas dependem de jovem para jovem jogador, ele também pode através do jogo exercitar sua atenção, sua coordenação motora, sua habilidade de pensar.

Nessa perspectiva, segundo Fleuri (2003), o eixo conceitual em torno do qual se situam as questões e as reflexões emergentes nesse campo, e que caracteriza os mais espinhosos problemas do nosso tempo, é o da possibilidade de respeitar as diferenças e de integrá-las em uma unidade que não as anule.

Ainda segundo o autor (idem, p.17):

isso vale, de fato, tanto para o discurso das diferenças étnicas e culturais, de gênero e de gerações, a serem acolhidas na escola e na sociedade, quanto para a distinção entre os povos, a ser considerada nos equilíbrios internacionais e planetários.

Indo mais além, deve valer também para pensarmos o currículo incluindo a diversidade das propostas metodológicas, assim como deve valer segundo Terranova, 1997, p.13), para a possibilidade de articulações em rede das informações e dos novos saberes nas formas do pensamento complexo.

Na perspectiva da Educação Popular como educar superando as dificuldades que se apresentam no mundo egocêntrico, de saberes fragmentados? Parafraseando Morin (2001), Como perceber e entender o global (todo/partes) o multidimencional, o complexo nessa sociedade egocêntrica que fragmenta os conhecimentos, que divide as pessoas?

Segundo Freire (1987, p.60), quanto mais se imponha a passividade, em lugar de transformar, os alunos tendem a adaptar-se ao mundo, à realidade. Portanto, um dos ideais da educação deveria ser formar indivíduos que pudessem agir em liberdade, procurando atingir as metas que eles mesmos se propusessem, e que não agissem de maneira condicionada.

Tal concepção de educação traz como corolário a necessidade de se pensar e ressignificar a concepção de currículo frente às novas tecnologias e seus efeitos na formação de identidades e diferenças.

O currículo deve ser pensado de forma a impelir novas concepções, fazeres e dizeres. O currículo cultural deve inclui no seu bojo questões relativas à classe, por certo. Mas também, com a mesma importância, questões relativas a gênero, à sexualidade, à identidade nacional, ao colonialismo e pós-colonialismo, à raça e etnia, à cultura popular e seus públicos, ao discurso e à textualidade, às políticas de identidade, da estética, da diferença.

Trabalhar nesta perspectiva é dispor-se a alargar os horizontes conceituais, é fazer do currículo palco de novos territórios, nos quais seja possível discutir os processos de significação de nós mesmos e de nossas relações com os outros e com o meio ambiente. Segundo Morin (2001), a superação do risco dá-se no manter a tensão entre intelecto e o afeto que possibilita a tarefa da educação de forma a identificar e superar a possibilidade de erros e ilusões.

Esta deve ser a nossa prática de liberdade em Educação Popular no século que vivemos para tanto precisamos de coragem, forças e vontade ética para enfrentar a realidade das novas tecnologias que invadem nosso entorno e de nosso alunos entre elas os novos artefatos audiovisuais que atravessam nosso cotidiano e pelos quais somos interpelados.

Utilizando aqui a fórmula do poeta grego Eurípedes, que data de vinte e cinco séculos, e nunca foi tão atual: ``O esperado não se cumpre, e ao inesperado um deus abre o caminho''. Fica assim difícil predizer, por isso, na busca das incertezas a necessidade de continuarmos nos interrogando: será que o que a educação popular vem fazendo e o currículo que oferecemos é o suficiente para não estabelecer diferenças e se respeitar as diferentes identidades que são modeladas no entorno em que vivemos?

Referências Bibliográficas



Notas de rodapé

...aculo1
``O Espectáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediatizada por imagens'' Guy Debord. Sociedade do espectáculo, 1971.
...ao2
Segundo Setzer W. Valdemar, A informação é objetiva-subjetiva no sentido que é descrita de uma forma objetiva (textos, figuras, etc.) ou captada a partir de algo objetivo, como no exemplo de se estender o braço para fora da janela para ver se está frio, mas seu significado é subjetivo, dependente do usuário. O conhecimento é puramente subjetivo - cada um tem a vivência de algo de uma forma diferente. A competência é subjetiva-objetiva, no sentido de ser uma característica puramente pessoal, mas cujos resultados podem ser verificados por qualquer um. - disponível site www.ime.usp.br/~vwsetzer em 1/12/2003.