Subjetividade e tecnologia: as novas máquinas produtoras de corpos

Carlos Camargos Mendonça1

Resumo

Este artigo2 pretende refletir acerca da ampliação do entrelaçamento entre o humano e a máquina através das tele-tecnologias e da disseminação dos dispositivos e da lógica hipertextual que acabou por alcançar o próprio corpo, que é submetido a todo tipo de operações: modelizado por programas computacionais (no domínio do cinema e das experimentações artísticas), entregue ao jogo das aparências e da simulação das identidades nos chats e salas de conversação, conectado a próteses artificiais, vasculhado em seu interior - mas sem ser penetrado - pelas nanotecnologias ou pelos programas de realidade virtual, tornado lugar de implantes biotecnológicos, ou então movido e afetado à distância por meio dos dispositivos - técnicos e artísticos - que se servem da telepresença. Poderíamos afirmar que, mais do que objeto de desejo (como comprovam todas as paixões eróticas que pululam na Internet, das mais perversas às mais inocentes), o corpo aparece aí como um objeto de projeto - segundo a expressão do artista australiano Stelarc.

O que pretendemos demonstrar ao longo deste artigo é que, mesmo aí, quando falamos do corpo e da sua hibridação ou interação com a máquina, encontramos o vínculo entre o socius e a subjetividade3, agora sob a forma de um corpo partilhado a distância. Desta maneira, consideramos que as metamorfoses sofridas pelo corpo, seja através do objeto artístico ou ainda pautadas nas experiências tecnológicas, estão - antes de mais nada - imbricadas em estratos sócio-culturais, códigos culturais e fluxos de espaço-tempo que além de modelizar o corpo metamodelizam a subjetividade contemporânea.

A aproximação entre o corpo físico natural e a máquina tecnológica está sendo elaborada nas mais variadas instâncias de pesquisas e estudos. O que nos chama a atenção é não só o desenvolvimento de algoritmos que possibilitam a modelagem de diferentes tipos de sólidos, mas também as criações conceituais tais como aquelas da teoria da complexidade ou surgidas das experimentações estéticas que promovem a inter-relação entre arte, corpo e tecnologia.

Peter Pál Pelbart, no início de sua obra A vertigem por um fio, atenta para o fato de que a fabricação social e histórica da subjetividade não é um dado novo. Para ressaltar tal constatação, o autor remonta à Nietzsche e os métodos evocados por estes para dizer da domesticação do corpo.

Recentemente se mostrou que a docilização de um corpo pode recorrer a tecnologias mais suaves, dispensando até mesmo a violência direta, física... Novas maneiras de moldar o corpo, modelá-lo, marcá-lo, excitá-lo, erotizá-lo, obrigá-lo a emitir signos etc. Não cabe aqui aprofundar o sentido desta domesticação, da qual, pelo visto, ainda nada vimos. Basta lembrar que daí se depreende mais e mais como um truísmo: se a forma do homem, a forma do homem é uma modelagem histórica complexa e mutante, não há por que desesperar-se com a exclamação do filósofo: 'estamos cansados do homem'. O que o enfastia é o fato de que o homem se tornou um verme medíocre e insosso, e que esse apequenamento nivelado se tornou meta de civilização...

É preciso seguir Nietzsche até o fim, mesmo e sobretudo quando seus textos sugerem que o homem aprisionou a vida, e que é preciso livrar-se do homem para libertar a vida...

Mas como liberar as forças aprisionadas sob a carcaça atual do homem? É uma guerra total, cruel, brutal e sofisticada ao mesmo tempo, não menos violenta talvez, do que aquela que deu origem a essa forma que hoje se quer remover, e cujo campo de batalha não é outro se não o próprio corpo do homem, desde seus genes até os seus gestos, sua percepção, seus afectos. Nada está decidido, pois o homem continua sendo, conforme a definição de Nietzsche, 'o ainda não domado, o eternamente futuro'. O retrato que Nietzsche nos lega é também um chamamento: o homem, um grande experimentador de se mesmo." (PELBART.2001: 13)

Segundo Edgar Morin (1993), todo organismo vivo é uma máquina que necessita, para manter-se vivo, do trinômio matéria/energia/informação exterior, sem desconsiderar a utilização de seu patrimônio genético. Computamos as informações exteriores para garantirmos nossa sobrevivência. Toda estrutura do mundo, seja ela uma célula, um grande organismo vegetal ou animal funciona como uma máquina computante. Criamos autonomias e depedências para nos mantermos vivos. Somos ``seres- máquinas''.

O paradigma da ``auto-organização'' defendido por Heinz von Foerster e por Henri Atlan está presente no pensamento de Edgar Morin. Para von Foerster, um dos fundadores da cibernética, a criação da máquina artificial, diferentemente da máquina natural, não a capacita para auto-organizar seus programas à medida em que esses são operados. Máquinas artificiais dependem de constante programação exterior. Essas máquinas não são capazes de se auto-gerir ou mesmo de efetuar algum tipo de pensamento. A imprevisibilidade do pensamento humano não está presente nos programas de computadores, o que os impede de imitar a inteligência humana. O armazenamento de dados matemáticos e linguagens computacionais não configura memória. O computador não tem memória, tem apenas armazenamento de dados, ele nunca descreverá suas memórias, conclui o autor.

É através de noções como a de ``seres-máquinas'', de corpos híbridos, metamodelizados por múltiplos agenciamentos maquínicos4, habitantes do encontro virtual das redes, que buscamos perceber uma possível composição que organiza os novos modos de subjetivação e de sociabilidade.

O surgimento das redes telemáticas e da cultura digital, a criação do ciberespaço, a proliferação das comunidades virtuais, as mudanças no mundo do trabalho proporcionadas pela inserção dos computadores nos modos de produção e comercialização de bens e produtos, as próteses eletrônicas utilizadas na medicina ou mesmo as combinações da engenharia genética são elementos que modificam o nosso corpo. Os novos aparelhos para exames médicos possibilitam ver o interior do corpo sem cortá-lo; a ultrassonografia, por exemplo, detalha formato, tamanho e textura dos órgãos.

Pesquisas como a da Universidade de Washington, nos Estados Unidos, são desenvolvidas, desde o início de 1998, com o objetivo de criar procedimentos cirúrgicos através de realidade virtual. A universidade de Simom Fraser, em Burbanaby, no Canadá, também pesquisa cirurgias em ambientes virtuais. Na California, Estados Unidos, a Computer Motion, empresa que desenvolve braços robóticos, desenvolveu o robô Zeus. Com três braços, ele auxilia e melhora a operação médica. Dados como estes indicam que o corpo humano está passando por transformações, seja na sua relação com as máquinas, seja na sua inter-relação com o outro mediada pelas tecnologias. Para André Lemos

Vivemos hoje, sem dúvida, um processo de conversão do mundo em dados binários. A artificialização avança com o digital, atravessando todos os aspectos da cultura comtemporânea. É neste contexto que pode surgir o discurso sobre os cyborgs. Embora seja fruto de processos ancestrais da simbiose homem-técnica, o cyborg só pode existir num mundo traduzido em bits. Não é a toa que o corpo passa a ser uma superfície de escrita de vários `textos'; um grande hipertexto, desaparecendo enquanto corpo natural (processo de hiper-exteriorização com prótese, nanotecnologia, vacinas; e hiper-interiorização - construção de subjetividade). (LEMOS. 1998: 54)

Tal como escreve André Lemos, os processos de hiper-exteriorização e hiper-interiorização, por sua vez, adquirem força na aproximação entre o corpo físico natural e as máquinas tecnológicas. A hiper-exteriorização ganha um relevo considerável na modelização informática do corpo. As tecnologias não inauguram simplesmente um corpo imaginário, desejado, elas nos proporcionam um corpo até então não imaginado: o cibercorpo.

Para o artista australiano Stelarc, estamos estendendo as capacidades do corpo com o uso das tecnologias. Em suas performances, o artista utiliza a combinação de próteses e de estímulos nervosos a partir de corrente elétrica sobre seu corpo, buscando uma imbricação entre movimentos voluntários, involuntários e programados. ``O corpo não como sujeito, mas como um objeto - não um objeto de desejo, mas um objeto de projeto.'' (STELARC.1997:55)

A biotecnologia está nos dando novas dimensões da interioridade e da exterioridade do corpo físico natural. O corpo adquire uma nova espessura, no ciberespaço ele se torna híbrido, misturando os componentes do humano e da máquina. Paul Virilio dedica um capítulo de seu livro A Arte do Motor à discussão da relação entre os novos dispositivos tecnológicos e o corpo físico natural. Partindo do super-homem nietzscheano e chegando até o superexcitado Stelarc, Virilio analisa o que ele denomina ``intra-estrutura'', istó é, a inseminação do corpo físico humano pelas biotecnologias, possibilitada pelo desenvolvimento da nanotecnologia.

Paul Virilio comenta que a nanotecnologia está propiciando uma colonização do corpo, produzindo até mesmo uma invasão microfísica do corpo e surgindo assim como último recurso, ou recurso de ponta, para domesticar o homem. Segundo ele, houve uma modificação no espaço ocupado pelas tecnologias de ponta, que deixou de ser o universo sem fronteiras do ambiente planetário para ocupar nossos órgãos. ``A perda, ou mais exatamente, o declínio exclusivo da ausência de intervalo das teletecnologias do tempo real resulta inevitavelmente na intrusão intraorgânica da técnica e de suas micromáquinas no seio do que vive.''(VIRILIO.1996:92)

O ``corpo-próprio'' sofre o ataque da biotecnologia - que agora é capaz de povoar as entranhas do sujeito. As novas técnicas suplantam revoluções como a industrial e a provocada pela transmissão imediata de informação pelos meios de comunicação de massa. A revolução de agora é a dos transplantes, que têm em si o poder de povoar o corpo vital com técnicas estimulantes, afirma Virilio.

Se durante toda a sua história a técnica se desenvolveu no sentido do corpo geofísico, agora ela caminha na direção do corpo físico, excitando-o e estimulando-o ao máximo como forma de compensação diante da inércia a que está condenado pelas modernas formas urbanas de vida:

Não se pode descrever melhor o estado dos lugares de nossa pós-modernidade onde os superexcitantes são prolongamentos de uma sedentaridade metropolitana em vias de generalização acelerada, notadamente graças a essa teleação que substitui doravante a ação imediata...A inércia, a passividade do homem pós-moderno exige um acréscimo de excitação, não somente através das práticas esportivas abertamente desnaturalizadas, mas também no caso de atividades cotidianas em que a emancipação corporal devida às técnicas da teleação em tempo real liquida as necessidades tanto de vigor quanto de esforço muscular. (VIRILIO.1996:93)

As mudanças que hoje atingem o corpo vão muito para além das transformações proporcionadas pela cirurgia plástica. Um novo projeto de corpo redimensiona o velho modelo de carne e osso para colocá-lo mais próximo da hibridação homem-máquina. Um novo tecido cobre a pele, desnudada e penetrada por aparelhos bio-tecnológicos: ``O corpo hoje pode ser construído, apagado, restaurado. Já não há mais verdade no corpo'', afirma o artista multimídia e professor da The School of the Art Institute of Chicago (EUA) Eduardo Kac, em entrevistas ao Jornal Folha de São Paulo na abertura da exposição ``Arte Suporte Computador'', na Casa das Rosas, em São Paulo, no dia 11 de fevereiro de 1997.

Às 21h30 daquele dia, em uma maca, Kac tomou uma anestesia local para fazer uma incisão com bisturi no tornozelo esquerdo e implantou ali um chip como parte da obra Time Capsule. O chip, que ficará no corpo do artista para sempre, tem o tamanho de 15 mm x 2 mm e trazia um número aleatório que poderia ser decodificado: 026109532. A operação foi transmitida ao vivo pela TV Cultura de São Paulo e pela internet. Para o artista, o implante fazia parte de um trabalho de arte e não foi apenas uma cirurgia.

Em outros trabalhos seus, como o Ornitorrinco, por exemplo, um robô pode ser operado a distância e em tempo real via internet. Desse modo, o espectador pode explorar, à distância, o espaço no qual o robô está.

Os elementos imateriais são mais adequados para o meu trabalho: luz, lugares remotos e diferentes zonas temporais, conversações orais, videoconferências, navegação robótica, multiplicidade dos espaços virtuais, sincronicidade, interação humano/máquina, interação animal e planta, interação humana e animal mediada por telerrobôs, e transmissão, recepção e troca de informações digitais. (KAC.1997:322)

Por meio dessa estranha interação entre as máquinas e os seres vivos (animais e humanos) as obras de Kac colocam em coexistência elementos do espaço virtual e do real na busca de expandir o corpo físico natural através do espaço eletrônico e das diferentes formas de tele-ação. Um corpo feito feito de perceptos e afetos mutantes5. A título de ilustração sobre os perceptos e afetos mutantes, desencadeados pelas hibridações entre os corpos e as máquinas, podemos nos lembrar do filme Matrix. Nessa obra, a vida é uma ilusão produzida por dispositivos tecnológicos operados por um grupo de inteligências artificiais que se rebelou contra os humanos. No ciberespaço foi criada uma reprodução do mundo físico natural e os humanos são usados, sem saber, como fonte de energia para as máquinas. Aqueles que conseguiram se libertar - ou se desconectar, como dizem eles - usam a grande rede para fazer a passagem de seu mundo físico para o mundo possível (segundo a caracterização de Eco para a ficção científica6) representado pelas redes. Quando se servem desse processo, uma tomada cheia de microsoftwares implantada na nuca permite a conexão do corpo com a rede informática chamada Matrix. Nessa rede, o corpo pode adquirir qualquer forma ou função, ser construído ou reconstruído quantas vezes for necessário, desde que não sofra nenhuma ação letal. O corpo de quem não se libertou da grande rede está preso em cápsulas, apenas a mente trabalha estimulada pela ilusão de que está tendo uma vida comum. Identificamos aí um tipo de Corpo sem Órgãos (CsO).

Deleuze e Guattari definem o Corpo sem Órgãos - CsO, do seguinte modo:

Um CsO é feito de tal maneira que ele só pode ser ocupado, povoado por intensidades. Somente as intensidades passam e circulam. Mas o CsO não é uma cena, um lugar, nem mesmo um suporte onde aconteceria algo. Nada a ver com um fantasma, nada a interpretar. O CsO faz passar intensidades, ele as produz e as distribui num spatium ele mesmo intensivo, não extenso. Ele não é espaço e nem está no espaço, é matéria que ocupará o espaço em tal ou qual grau - grau que corresponde às intensidades produzidas. Ele é a matéria intensa e não formada, não estratificada, a matriz intensiva, a intensidade = 0, mas nada há de negativo neste zero, não existem intensidades negativas nem contrárias. (DELEUZE e GUATTARI.1996:13)

O CsO é uma experimentação inevitável, que põe em contato o corpus e o socius concedendo aos órgãos uma outra função, modificando sua função natural, permitindo ver com a pele ou sentir com os olhos, tal como fizeram em diferentes ocasiões, em suas experimentações literárias, criadores como Artaud, William Burroughs, Carlos Castañeda e Henry Miller. Para Deleuze,

do mesmo modo como o mecânico supõe uma máquina social, o próprio organismo supõe um corpo sem órgãos, definido por suas linhas, seus eixos e seus gradientes, todo um funcionamento maquínico distinto das funções orgânicas sociais tanto quanto das relações mecânicas. (DELEUZE. 1998.p.122)

Atualmente, modificações profundas emergem dos novos modos de relação humana, não só com referência aos corpos que habitam o ciberespaço, mas também no que diz respeito ao cotidiano, nas interações simples do dia a dia. As ingerências das mutações tecno-científicas nas sociedades complexas desse fim de século reconfiguram a ecologia social. Guattari afirma que a ecologia do virtual se faz tão necessária ao mundo de hoje quanto a ecologia do mundo natural e humano. Segundo ele, as artes nos servem como ricos instrumentos e como paradigmas de referência para as novas práticas sociais. A ecologia do virtual, aliada à ecologia do mundo natural e humano, produzirá a ecologia geral ou, nos termos do autor, a ecosofia, que

agirá como ciência do ecossistema, como objeto de regeneração política mas também como engajamento ético, estético, analítico, na iminência de criar novos sistemas de valorização, um novo gosto pela vida, uma nova suavidade entre os sexos, as faixas etárias, as etnias, as raças... (GUATTARI.1993a:116)

Quando levamos em conta os perceptos e afetos$^{~}$ mutantes, produzidos na conformação do cibercorpo - com suas infinitas interfaces que se desdobram em interioridade e exterioridade - percebemos os agenciamentos hipercomplexos que compõem o corpo meio-objeto meio-sujeito a que estamos nos referindo. Nesse corpo, modificado pela tecnologia não só no seu aspecto físico, mas também na sua estrutura psico-social, os velhos órgãos se expandem e se retraem para produzirem novos movimentos e estímulos que configuram uma subjetividade que aproxima o humano e as máquinas.

Deleuze e Guattari nos apresentam uma pequena procissão de corpos: o corpo hipocondríaco, o corpo paranóico, o corpo esquizo, o corpo drogado e o corpo masoquista. Tomemos como referência, nesse momento, o corpo drogado. A personalidade fendida com a droga passa a desenvolver um modo diferenciado de ser. Novos objetos são apreendidos por esse sujeito em seu território existencial, com uma diferença: entradas existenciais adquirem um caráter desigual, algumas se tornam mais importantes que as outras. Esse processo imprime, em uma primeira visão, uma desterritorialização dos modos de subjetivação existentes, mas acaba por construir uma reterritorialização conservadora no território existencial. O usuário do ecstasy, por exemplo, busca eternamente recuperar o shoom (sensação de bem estar) da fase inicial de uso da droga. Sem sucesso, desenvolve algumas patologias como a depressão crônica, dependência psíquica e uma dificuldade em lidar com o mundo real, que nem sempre é tão divertido como uma pista de dança de uma rave.

A crescente produção de materiais informáticos, de linguagens, de produtos informacionais, de novos dispositivos eletrônicos - como as copiadoras com dados armazenados em chips ou as câmeras de vídeo produzidos com periféricos de computadores - encurta as distâncias espaço-temporais e alarga nossas representações. O corpo desdobra-se em características hipertextuais e rizomáticas, extrapola o universo traduzido em bits para regalar-se em experiêncas estéticas, sensoriais, cognitivas e conceituais que o desterritorializam numa escala até então desconhecida.

Maffesoli (1996) afirma que, na perspectiva de uma estética ampliada, há uma erótica dos corpos, ou seja, eles funcionam como fatores de união e de criação de comunidades. Se podemos afirmar que estamos frente ao estabelecimento de alguns pressupostos que apontam para a constituição das comunidades virtuais, como então desprezar uma aproximação entre os cibercorpos?

Concordar com as afirmativas que declinam um vasto repertório sobre o caráter narcotizante que as experiências mediadas pela tecnologia apresentam, significa desprezar que há um entrelaçamento ou uma apropriação da forma técnica pelo laço social. E a essa apropriação os cibercorpos não escapam.

Os planos da alteridade não serão desprezados pelos corpos construídos ou estendidos pelas tecnologias. Quando em um chat $--$ fóruns on line que funcionam em tempo real $--$, o sujeito muda seus componentes identitários, ele produz um corpo ilusório, não somente para si mesmo, mas para estabelecer um contato com o outro. Sobre o motivo dessa escolha que permite jogar com a aparência poderíamos escrever um sem número de artigos, o que não é nosso objetivo. O que queremos dizer é que nesse modo de tele-presença, em que a voz é ainda muito pouco usada, a ilusão do corpo, nos termos de Maffesoli, constitui um forte elemento para a sedimentação de relações.

Partindo das conversas on line e chegando até as experiências de Kac e do superexcitado Stelarc, que interferem sobre o próprio corpo para criarem suas performances artísticas, ainda aí não podemos dizer de uma atitude solitária, individualista. A opção da intervenção sobre o corpo é individual, não resta dúvida, mas a atitude aí produzida tem efeitos coletivos. Maffesoli, a partir de Nietzsche, ao comentar a transposição da arte para o cotidiano, afirma que o homem ``é produto da estética, ele é participante de um `genius' coletivo que o ultrapassa de longe. É tomado pelas formas, como um banho matricial que o modela e faz dele o que ele é.'' (MAFFESOLI.1996:150)

É importante relembrar aqui que Maffesoli confere ao termo estética um sentido amplo, um sentido de agregação que constitui as relações sociais a maneira de uma pulsão. A própria atitude, seja ela produzida no ciberespaço ou sobre o corpo físico, não é o sintoma de uma subjetividade narcísica e solipsista, mas, paradoxalmente, signo de um narcisismo de grupo, nos termos de Maffesoli. Parafraseando o autor, como nos rituais de algumas sociedades da Idade Média, o sujeito está oferecendo sua carne em partilha, não para uma colonização, mas para uma exaltação coletiva do corpo, seja na sua hibridização com as máquinas, seja quando afetado à distância.

Referências Bibliográficas

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Notas de rodapé

...ça1
Mestre em Comunicação Social, professor do Departamento de Comunicação Social da Fafich/UFMG e membro do Grupo de Pesquisa em Imagem e Sociabilidade da Fafich/UFMG
... artigo2
Este artigo é uma versão ampliada do trabalho apresentado no VIII Colóquio Internacional de Sociologia Clínica e Psicossociologia, realizado no período de 03 a 06 de julho de 2001, na Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil.
... subjetividade3
Por subjetividade entendemos - com Félix Guattari - o ``conjunto de condições que torna possível que instâncias individuantes e/ou coletivas estejam em posição de emergir como território existencial auto-referencial em adjacência ou em relação com uma alteridade ela mesma subjetiva''. (Cf. GUATTARI. Caosmose, p.19).
...inicos4
Guattari denomina maquínico o estrato de sentido formado por matérias expressivas heterogêneas, não-linguisticamente formadas, mas ainda assim de natureza semiótica. Substâncias de expressão heterogêneas como as codificações biológicas ou as formas de organização própria ao socius - como aquelas derivadas de instituições como a família ou a escola - atravessam, transversalmente, os domínios de sentido propriamente linguísticos. A esse respeito, cf. Caosmose, p.35-38.
... mutantes5
Segundo Deleuze e Guattari, perceptos e afetos são seres de sensação que transbordam o vivido e a própria percepção, e se conservam nos diferentes materiais da arte. Enquanto o percepto é aquilo que nos arranca das percepções vividas, o afeto é aquilo que nos revela os devires não-humanos do homem. Cf. Deleuze, Guattari. O que é filosofia? p. 216-217
...ifica6
Para Eco, a metatopia ou metacronia é denominação mais apropriada para a ficção científica. Esse tipo de narração remete, imediatamente, a uma visão de tempo futuro: textitMetatopia ou Metacronia: as épocas retratadas nas obras representam um tempo futuro que, por mais diverso que seja do real, é possível e verossímil porque as transformações a que foi submetido nada mais fazem do que complementar as linhas de tendência do mundo real." (ECO.1989:168)