Percepção e experiência na Internet

António Fidalgo
Universidade da Beira Interior


Índice

Introdução

As redes abriram novos campos à experiência e conduziram a novas formas de experiência. A visita a um museu virtual ou a consulta de uma biblioteca on-line, a participação numa mailing-list ou num chat são inquestionavelmente tipos de experiência novos. Ora, seguindo a teoria de Aristóteles de que a experiência é um conhecimento que surge no seguimento de diversas percepções ligadas pela memória, ou seja, de que a experiência emerge quando relacionamos diferentes acontecimentos apercebidos ao longo do tempo como sendo do mesmo tipo ou da mesma natureza, e de que um homem é tanto mais experiente em certas coisas quantas mais vezes as tiver percepcionado, ou seja, se tiver dado conta delas ou mesmo as tiver vivido, cabe questionar essas experiências relativamente às percepções que as constituem. A questão é tanto mais pertinente quanto mais claro for que as novas experiências, por mais diversas que forem entre si, têm lugar a partir de uma base perceptiva idêntica: um computador ligado em rede.

A questão é sobre a constituição da experiência e é nesta perspectiva que abordarei o tema das percepções na rede.

Considerações prévias

Percepções e sensações

Antes de prosseguir com a inquirição sobre as percepções mediadas por computador, há que clarificar o próprio conceito de percepção. Desde logo há que distingui-lo do conceito de sensação.

Uma pessoa analfabeta não vê menos que uma pessoa que saiba ler. Defronte do mesmo texto ambas vêem o mesmo e, no entanto, não é o mesmo que elas vêem. As sensações são idênticas, mas as percepções são completamente distintas. O analfabeto dá-se conta de um papel com rabiscos, até pode mesmo saber que se trata de um texto, mas não percebe o texto. Ao nível de sensações todos vêem o mesmo, mas ao nível da percepção, há uns que vêem muito mais que outros. Duas pessoas que ouvem a mesma peça musical de Gustav Mahler, uma com formação musical e a outra sem a mínima educação musical e sem ouvido musical, escutam os mesmos sons. Mas onde a última não consegue ouvir mais que um amontoado de sons, a primeira dá-se conta dos sons dos vários instrumentos e do jogo musical entre eles. Só esta é capaz de analisar os diferentes sons, de perceber os sons elementares que os constituem. As percepções não se reduzem pois às sensações. As sensações que obtenho defronte de uma cadeira são as cores que vejo, a dureza que toco. Mas é a cadeira que percebo e não as cores ou a dureza da cadeira. A percepção seria efectivamente impossível sem as sensações que lhe estão na base, mas a percepção é muito mais que essas sensações. Ali as mesmas sensações podem estar na base de percepções completamente diferentes no mesmo indivíduo. Ao ler um livro o que procuramos perceber é o sentido do texto. Habitualmente nesse caso não nos damos do vocabulário utilizado ou das construções de estilo empregadas. Nada nos impede, no entanto, de centrarmos a nossa atenção sobre o estilo, relegando para plano secundário o sentido do texto. Além disso é ainda possível lermos o texto unicamente em mira das gralhas que nele ocorrem, como normalmente faz quem corrige provas tipográficas. Ou podemos ainda olhar para o livro apenas para nos darmos conta da grafia, se os caracteres são roman ou sans-serif. As sensações são idênticas nestas diferentes percepções. Vê-se sempre a mesma coisa e, no entanto, vê-se de cada vez coisas diferentes.

As sensações não se aprendem. Temos as sensações que temos e é tudo. Mas a percepção educa-se. Educa-se musicalmente o ouvido, treina-se a vista, desenvolve-se o tacto, apura-se o gosto e aperfeiçoa-se o olfacto. A aprendizagem das percepções, isto é, aprender a percepcionar, a ver as coisas com olhos de ver, não é algo assim tão simples, apesar de ser fundamental.

A mediação nas sensações e nas percepções

Feita a distinção sumária entre sensações e percepções convém agora aprofundá-la através de uma análise dos meios para melhorar umas e outras. Quem vê mal procurará suprir essa deficiência com uma ida ao oftalmologista e o uso de lentes. Quem lê numa sala com falta de luz, procurará aproximar-se de uma janela, ou então utilizar um candeeiro, para ver melhor as letras. Quem lê um texto impresso em fontes muito pequenas socorrer-se-á de uma lupa. Quem ouve muito mal usará um aparelho auditivo. Um médico usará um estetoscópio para melhor escutar os sons internos do seu paciente. Em todos estes casos o que se procura é obter sensações mais claras e definidas. Os meios encontrados são directamente atinentes à fisiologia humana, aos órgãos perceptivos, com o fim de melhorar a sua actividade.

As percepções dependem das sensações, e de tal modo, que não havendo sensações, não há percepções; mas, não se reduzindo às sensações que as constituem, há meios diferentes para melhorar determinadas percepções. Ler é muito mais que ter uma boa visão das letras, e tanto o é que a diversidade de fontes tipográficas visa facilitar a leitura. A legibilidade de um texto não depende apenas das condições estritamente sensoriais, mas também de condições de tipo especificamente perceptivo, como sejam o tipo de fonte, o alinhamento, o espacejamento e o cumprimento de linhas.

A natureza simbólica das percepções

O algo mais que impede as percepções de se reduzirem às sensações em que se baseiam é a sua dimensão simbólica. As análises dos discípulos de Franz Brentano, sobretudo a fenomenologia de Edmund Husserl e a psicologia da Gestalt de Christian Ehrenfels, trouxeram à luz a natureza simbólica da percepção. A percepção incorpora uma constituição activa do sujeito que percepciona. Quando vemos um objecto físico, uma cadeira, ou uma mesa, vemo-lo sempre de determinada perspectiva, alterando-se esta consoante os movimentos que fazemos. O objecto físico dá-se em facetas, na linguagem fenomenológica, e o todo não se reduz à soma das suas partes, na teoria morfológica. Na mesma linha de compreensão da percepção, Charles S. Peirce dirá que ela tem uma natureza abdutiva, ou seja, o quadro perceptivo das sensações é traçado por uma hipótese quase intuitiva.

As ilusões ópticas, ou os desenhos que permitem diferentes interpretações, como a silhueta do cálice que pode ser vista como a silhueta de dois rostos frente a frente, ou as escadas que tanto podem ser vistas de uma perspectiva ascendente ou descendente, são exemplos típicos de como as percepções incorporam elementos simbólicos. Mas também, numa análise mais próxima, chegamos à conclusão de que não há percepção que não seja em parte um produto do sujeito percipiente. Ao olhar para uma mesa, de certo modo, nunca é uma mesa que vejo, mas sim um tampo, ou melhor a superfície deste, ou então uma parte do objecto, um canto, uma perna, a que chamo mesa. De qualquer modo é sempre a mesma mesa que afirmamos ter como objecto da percepção.

A passividade da experiência

Mas o que caracteriza fundamentalmente as percepções e as sensações é o serem passivas (de serem sofridas). Quem sente ou percebe, sente ou percebe o que lhe vem do exterior, o que de certa maneira lhe é imposto pelo mundo, realidade, ou o que lhe queiramos chamar. Ninguém determina as sensações ou percepções que tem, mas, ao contrário, é por elas bombardeado constantemente. Nisso se distinguem as percepções (e sensações) de outros tipos de representações como fantasias ou juízos. Para Kant é muito claro que a experiência (aistesis) é o domínio da passividade e o entendimento o da espontaneidade.

O computador como base perceptiva

O que caracteriza as experiências mediadas por computador é que têm uma base sensitivo-perceptiva comum, o computador; e agora já não um computador apenas em modo de texto, como no início da Internet, mas um computador com uma superfície gráfica e com placas de som e de vídeo. Seja lendo um jornal, ouvindo uma rádio, ou vendo uma televisão online, seja consultar uma biblioteca científica, ver um sítio pornográfico, enviar e receber email, telefonar, fazer chat ou vídeo-conferência, o computador é a base sensitiva de todas estas experiências. Pode o computador ter várias configurações, ser de mesa ou portátil, ter um monitor de maior ou menor resolução, isso não importa, o que importa, é que tenha um monitor para a visão e uma placa de som e altifalantes para a audição.

Como meio de análise desta base sensitiva, vale compará-la ao papel. Também este constitui um suporte visual para múltiplos tipos de experiência. Ler uma carta, ler um jornal, ler um romance, ler poesia, ver as reproduções coloridas de quadros, ver mapas, esquemas, fotografias, etc., são experiências que têm uma base sensitivo-perceptiva comum, o de serem feitas através da visão ou leitura do papel. O papel pode ser de diferentes tipos e gramagens, branco ou colorido, solto, agrafado ou encadernado em revista, folheto, caderno ou livro, o que importa é que ele constitua a base sensitiva para percepções visuais. Como veículo de comunicação o papel, ou os seus antecedentes papiro, pergaminho, etc., antecipou o monitor em milhares de anos na função de proporcionar experiências diferidas no espaço e no tempo. Os papéis que se enviavam e recebiam como cartas ou livros representavam a comunicação com interlocutores afastados, geográfica e historicamente. A revolução que a escrita representou na comunicação, a possibilidade de transcrever a oralidade, de fixar fisicamente o que era dito ou visto num determinado momento, não foi menor que a revolução telemática dos finais do Século XX e princípios do Século XXI.

A folha de papel, primeiro manuscrita e depois impressa, foi, de alguma maneira, o primeiro ecrã a dar conta de gente e terras longínquas, dos seus costumes, dos feitos e das palavras, da sua filosofia, história, cultura, religião. O papel tornou-se a janela do mundo e a imagem que temos dos sábios dos renascimento e dos primórdios da modernidade é a de homens que vivem dos livros, com os livros e para os livros. Com a imprensa nasce a Galáxia Gutenberg do homo typographicus com ``novas formas de experiência, de perspectiva mental e de expressão''.1 No papel podiam-se fixar as palavras ditas, as não ditas, mas pensadas - e temos os índexes dos livros proibidos! - , os relatos de viagens, de terras estranhas, as notícias vindas de além-mar, mas também os desenhos de homens, animais, castelos e paisagens. Depois veio a impressão a cor e o papel ainda pôde e pode representar melhor o mundo, o mundo da arte, por um lado, mas também, por outro, o mundo específico da imprensa cor-de-rosa. Por mais diferentes que fossem os campos, desde a carta de amor ao relatório científico, do folheto propagandístico ao documento secreto, tudo podia ser transposto para o papel e experimentar o relatado graças a ele. A diversíssima panóplia do que o papel podia transmitir convergia nas manchas da impressão sobre o papel. As sensações básicas eram e são extremamente semelhantes, mas as percepções e as experiências destas resultantes são completamente diferentes.

O computador ligado em rede comunga com o papel o estatuto de ponto de convergência onde vêm desaguar as informações de todo o tipo sobre o mundo que nos rodeia. Só que o computador ultrapassa o livro em muitos aspectos. Desde logo pela própria incorporação de tudo o que, podendo ser impresso, pode também ser digitalizado e colocado on-line e acessível na Internet. Hoje temos email, jornais, livros, imagens, na Internet, numa substituição digital do papel. Se a fotocópia representou um progresso assinalável na difusão da informação em papel, agora a digitalização permite que esse processo seja feito muito mais facilmente e à escala de todo o planeta. Uma vez um texto ou uma imagem colocados na Internet podem ser copiados, guardados, enviados e reenviados vezes sem conta.

Por outro lado, o computador multimédia em rede ultrapassa o papel porque junta ao texto e à imagem o som e o vídeo. Com um computador, sobretudo se ligado em banda larga, é possível aceder para além de jornais, livros e museus, também a músicas, a rádios, a televisões, telefonar e fazer vídeo-conferência. O computador juntou ao reduzido mundo visual da imagem estática do livro, o rádio, a televisão e o telefone. À imagem juntou o som e a imagem em movimento. No computador convergem hoje várias funções de comunicação e informação dispersas até agora pelos livros, pelos aparelhos de rádio e televisão, correio e telefone.

As percepções mediadas por computador

As percepções mediadas por computador limitam-se neste momento às de tipo visual e auditivo, embora se vislumbre já a possibilidade das de tipo olfactivo e táctil. Que percepções visuais e auditivas são essas? De certo modo são idênticas às percepções directas, não mediatizadas. Todos os sons podem ser gravados, tudo o que é visível pode ser fotografado ou filmado a cores, e, assim, podem ser também veiculados pelo computador. No entanto, há diferenças importantes. Um som ouvido ao vivo tem o volume que tem, volume que se impõe ao ouvinte. No caso de um computador esse som pode ser controlado no seu volume e até nas suas características de graves e agudos, por exemplo. Pode-se ouvir uma sinfonia ao vivo ou num computador, seja transmitida em directo seja ouvida indirectamente, através de gravação. O que distingue desde logo os dois tipos de percepção é a possibilidade de interferir e de controlar essas percepções no caso de serem mediatizadas e de fazê-lo através dos meios que as mediatizam. Numa sala de concerto ao vivo os sons chegam com determinado volume e timbre que os ouvintes não são livres de alterarem, a não ser que tapem os ouvidos ou alterem a distância a que se encontram da orquestra. O mesmo se pode dizer para as percepções visuais. Aliás nestas tudo fica reduzido à bidimensionalidade do monitor, bem assim como às respectivas polegadas de diâmetro.

Por outro lado, as percepções mediadas por computador podem-se dividir em dois tipos: as percepções já mediadas por outros meios, como a imprensa, a rádio, a televisão ou o telefone, e que o computador se limita a copiar; e as percepções específicas dos computadores, novas, não possíveis de experimentar por outros meios. Teremos neste caso as percepções que integram o elemento da interactividade. Embora já presentes de maneira incipiente na televisão, mas que a televisão digital virá seguramente incrementar, os elementos interactivos, de escolha, selecção, e configuração, são já um elemento chave da maneira como vemos e lidamos com os computadores.

Um texto pode ser visualizado e lido na televisão; e sabemos como no teletexto há uma forte componente de interactividade, à semelhança aliás de um browser de navegação na Internet. Mas é difícil conceber uma biblioteca on-line na televisão, algo que se tornou bastante trivial na Internet.

O que caracteriza, porém, as novas formas de experiência na rede é, mais do que novas percepções, a combinação revolucionária dos diferentes tipos de percepção, e nomeadamente da interactividade. Na escrita de um texto pode-se facilmente averiguar como uma percepção se altera radicalmente se em vez de se utilizar a velha máquina de escrever se utilizar um computador. As possibilidades de alterar o texto, de apagar, copiar e colar, de o formatar, de um modo extremamente simples e rápido, alteram a percepção da escrita. Mas para analisar melhor as experiências mediadas por computador o melhor será analisar uma experiência hoje típica da cultura das redes, a de uma biblioteca on-line.

Fenomenologia de um caso concreto

Estou em casa, sentado à minha secretária, em frente ao portátil. Sei que para aceder à biblioteca on-line que pretendo preciso de ter o computador ligado à Internet e que tenho de abrir um programa chamado browser. Com esses meios tanto posso aceder a um jornal on-line, à página de uma universidade, à página pessoal de um amigo, mas é uma determinada biblioteca on-line que pretendo. No local próprio coloco o URL da biblioteca. No ecrã do computador aparece a página inicial da biblioteca qual hall de entrada virtual. A partir daqui posso procurar os títulos por temática, por autor, por título, por escola por ano. Obviamente tomo como exemplo a BOCC - Biblioteca On-line de Ciências da Comunicação (http://www.bocc.ubi.pt, onde está parte do meu trabalho ao longo dos últimos 3 anos).

Encontro um título que me agrada, clico nele e o texto correspondente começa a aparecer no meu computador. No ecrã aparece o título e uma vintena de linhas, mas sei pela barra lateral do browser que o texto é muito mais extenso. Posso fazer o scroll do texto, avançar mais umas tantas linhas, aumentar o corpo de letra do texto para ler melhor, etc. Vejo que o texto afinal não me interessa, faço uma nova pesquisa pela biblioteca à procura de outros textos ou autores. Encontro um do meu agrado, interessa-me, gravo-o no meu disco duro para um eventual acesso posterior, mais rápido e off-line, ou então imprimo parte do texto ou o todo.

Podemos relacionar estas experiências com as experiências análogas a uma biblioteca física (não digo real!!). Aqui em vez de me assentar à secretária e de ligar o computador, desloco-me à biblioteca em causa, por exemplo à biblioteca da Faculdade da Universidade Católica, posso dirigir-me aos catálogos, cada vez mais aos terminais de computador com os ficheiros organizados em bases de dados - os catálogos de fichas são já uma relíquia do passado - ou então vou directamente à secção de livros que me interessa e procurar nas estantes os livros. Um livro chama-me a atenção, pelo título, pelo formato, pela lombada, não importa pelo quê, tiro-o da estante, abro-o, vejo o índice, afinal não me interessa muito, volto a colocá-lo na estante, retiro outro, que me interessa, levo-a para uma mesa de leitura, sento-me, verifico que efectivamente é um livro importante para o trabalho que estou a fazer, decido fazer a fotocópia de dois ou três capítulos que acho cruciais, vou à maquina de fotocópias, devolvo o livro, venho-me embora.

Obviamente que apesar de todas as analogias, a consulta de uma biblioteca on-line é muito diferente da visita a uma biblioteca física. Imaginemos até que o acervo das obras é exactamente o mesmo.2 Podemos consultar exactamente os mesmos livros, melhor, os mesmos textos, mas as experiências são muito diferentes. Num lado estou sempre sentado à secretária, olhando para o mesmo monitor, servindo-me sempre do teclado e do rato, na biblioteca física, tenho de percorrer corredores, vejo estantes cheias de livros (nas bibliotecas de livre acesso, claro), tenho de usar uma escada para chegar a um livro colocado numa prateleira mais alta, curvar-me para ver as lombadas dos livros das prateleiras do fundo.

Desçamos agora às percepções que enformam as diferentes experiências. Numa primeira abordagem, ao nível das sensações, temos percepções completamente distintas, do que ninguém duvida, mas, a um nível mais elaborado, quando nos concentramos no próprio texto, verificamos que a percepção do texto é similar num e noutro caso. Tal como é possível ler os mesmos textos sob formas diferentes, diferentes caracteres tipográficos, em edições de bolso ou luxuosas, e, às tantas, abstraímos do suporte sensível mediante o qual chegamos ao texto, da mesma forma podemos ler um texto, um artigo, no papel de um jornal ou de um livro ou então num ecrã. A percepção do texto é uma percepção própria, diferente das sensações que lhe subjazem e a tornam possível, e é a mesma percepção que ocorre tanto no ecrã como no papel físico. As palavras são as mesmas, as frases, os parágrafos, etc. É uma percepção bem real e positiva. Não cabe ao nosso arbítrio determinar as palavras, registamo-las passivamente.

Se a percepção de leitura de um texto é uma percepção comum, esteja esse texto on-line ou num livro físico, com determinado peso, tantas páginas, etc., o mesmo se passa relativamente a outras actividades que caracterizam a experiência de consultar uma biblioteca, seja ela on-line, ou esteja ela num edifício e composta por milhares de volumes. Uma biblioteca tem o espólio que tem, e disso dou-me conta por uma percepção, tem os catálogos que tem, o tipo de indexação que tem, etc., etc., coisas de que me dou conta e a partir das quais determino a minha acção. Também uma biblioteca on-line tem o espólio que tem, os índices que tem, etc., etc. São dados que o utilizador regista e não determina.

Semelhanças e diferenças das experiências mediadas e das não mediadas

O campo das experiências mediadas, como o caso da experiência de uma biblioteca on-line, é balizado pelas experiências imediatas. A leitura de um jornal on-line tem não só obviamente semelhanças com a leitura de um jornal impresso, como também segue o seu figurino. As razões destas semelhanças advêm desde logo do facto de os produtos on-line, daquilo que se experimenta pela rede, copiarem os produtos tradicionais, como jornais, rádios e revistas. Se os produtos são análogos, não admira que a forma de os experimentar seja também análoga. Por outro lado, mesmo em novos tipos de experiência on-line é-se levado sempre a recorrer a tipos conhecidos e habituais para lidar com essas novas experiências.

As formas básicas de experiência não se alteram por estas passarem a ser mais e mais mediadas. O progresso tecnológico retira o homem cada vez mais do imediato e situa-o no mediato. Mas isso mais não é do que o processo cultural em que o homem se distancia progressivamente do estado meramente natural da sua condição física e fisiológica. Com as redes informáticas a moldarem crescentemente as formas como se vive e experimenta, nas múltiplas formas do ser e do estar do homem no mundo, seja no tele-trabalho, seja na comunicação com os outros, email, chat, netmeeting, na informação ou no entretenimento, alcança-se um novo patamar na experiência humana. O homem continua a dispor das mesmas capacidades sensitivas e perceptivas já analisadas pelos filósofos gregos, os primeiros a apresentarem uma teoria da experiência. No fundo há uma analogia essencial subjacente à diversidade e multiplicidade das experiências: é o mesmo homem que vê, ouve e sente, directamente o mundo que o rodeia sem quaisquer meios instrumentais ou que o vê, ouve e sente através de meios técnicos sofisticados. Os horizontes deste mundo, e os paradigmas da sua experiência, é que se alteram. O que sabemos hoje do mundo é através dos meios de comunicação e mais e mais através da comunicação on-line.

Fundamentalmente é o horizonte da percepção que se altera com a comunicação on-line. A percepção do quer que seja pode agora perspectivar-se da percepção on-line. Por um lado, é possível reter, mais do que jamais se pensou, a imagem e o som do que foi percepcionado, pela via da gravação digital. A miniaturização dos equipamentos, a facilidade e rapidez de transmitir as gravações em formato digital, o impressionante aumento e não menos extraordinário baixo custo das capacidades de armazenamento, constituem um elemento presente, pelo menos enquanto possibilidade, de qualquer percepção visual ou auditiva. O modo como se vê um jogo de futebol ou qualquer outro evento desportivo é balizado pela possibilidade de o visionar a posteriori de outras perspectivas. Quando vemos ou ouvimos algo hoje é sempre sob o signo da possibilidade de haver uma câmara de filmar por perto. Mesmo quando olhamos para as coisas fazemo-lo muitas vezes como se as víssemos da perspectiva de um objectiva.

Por outro lado, aumentam em número e em importância as percepções mediadas digitalmente e veiculadas pelas redes. Ora aqui é possível voltar, em princípio, sempre a elas. À partida sabemos que o objecto das experiências mediadas pela rede podem ser objecto de novas percepções, repetidamente e em outros espaços, por nós ou por outros. A percepção é um acto único, feito num determinado momento e num determinado lugar, mas o que é dado na percepção é guardado digitalmente, podendo vir a ser reproduzido vezes sem conta.

É claro que haveria que distinguir aqui o objecto da percepção enquanto entidade própria e enquanto elemento integrante do acto perceptivo, como o fez a fenomenologia. Mas isso terá de ficar para uma outra análise. O que importa realçar desde já é que a -antonio-percepcao-na-rede.html#tex2html2">2

Podemos mesmo imaginar que a biblioteca on-line consiste de ficheiros pdf feitos a partir dos livros existentes na biblioteca física, como acontece em gallica.bnf.fr e que, portanto, podemos até dar-nos conta dos pequenos riscos existentes nos livros físicos.


a Galáxia Gutenberg. Génesis del homo typographicus, Cícrculo de Lectores, Barcelona, 1998, p. 8.
... mesmo.