A definição do sujeito no cinema
Os Dias Estranhos do Cinema ou a inconstância do eu e do outro nas personagens e no encontro entre o mundo real e a ficção

Paula Cordeiro

Universidade do Algarve


Índice

A realidade, tanto quanto sabemos é uma espécie de liame algo frágil que se constrói e vai destruindo de acordo com a nossa concepção do mundo. A ideia que dela fazemos, resulta de uma construção do espírito, que por sua vez é resultado da nossa percepção sensível. A realidade, complexa, diversificada e infinita move-se a uma velocidade que dificilmente conseguimos acompanhar. Entramos em contradição. Segundo Husserl, parece que não podemos conhecer as coisas tal como elas são em si mesmas, pois a aparência é o que está ao nosso alcance. Daí que desde o início do cinema se procure a reprodução da realidade. Cenários perfeitos, o detalhe aproximado à vida do quotidiano, as grandes dimensões da tela, imagens nítidas e agora, digitais, dão-nos a sensação de ``viver'', ``sentir'' e fazer parte da história que comodamente assistimos sentados na cadeira da sala de cinema. Durante a projecção de um filme, o espectador oscila entre o ``estar'' e o ``não estar'' perante um écran de cinema. O écran está sempre presente, independentemente da tomada de consciência da sua existência. Mesmo quando totalmente absorvido pelo filme, o espectador nunca deixa de ter noção do facto de estar numa sala de cinema, assistindo a imagens projectadas numa tela. O cinema é de todas as artes, a mais preceptiva, por ser a que mais se aproxima da realidade, assim como a conhecemos.

É, contudo, igualmente a mais deceptiva, porque facilmente tomamos consciência de que aquilo a que assistimos não é o objecto real, mas apenas a sua sombra, uma reprodução, aquilo que reflecte o pensamento e a experiência do autor da obra. Neste contexto, o cinema funciona como uma espécie de espelho, reflectindo tudo excepto o corpo do espectador.

Um filme onde a metáfora do espelho tem uma posição relevante é ``Strange Days'', de Kathryn Bigelow, e que aqui iremos analisar.

A história decorre nos últimos dias de 1999, numa zona de tensão racial na qual Los Angeles se transformou. Algo que em 1995 parecia ser o futuro. Kathryn Bigelow, introduz mais novidades: formas de explorar as imagens através da câmara de filmar e uma narrativa fílmica que explora uma realidade virtual completamente ilegal que grava e reproduz a experiência sensorial de qualquer pessoa.

Visto com a distância que nos separa de 1995, hoje nos primeiros dias do ano 2000, ``Stange Days'' transforma-se num filme futurista e apocalítico, com a cidade de Los Angeles no centro desta história de morte e destruição. O filme conta-nos a história de de um ex polícia semi honesto que negoceia em alta tecnologia. Afirmando-se o ``Pai Natal do sub-consciente'', aproveita as memórias e emoções de cada um para as vender a quem quiser revivê-las. ``It's not like TV, only better'' é o mote desta rede ilegal de negócio através da qual as pessoas podem gravar e reviver experiências, com os sons, as imagens e as emoções de quem as estiver a ``re - viver''. Um dia, Lenny recebe um disco com as memórias de um assassino que matou uma prostituta. O ex polícia vai investigar o caso e entra numa rede de raptos, chantagem e morte .

``Strange Days'' não é um clássico do cinema. Limita-se a ser uma história de mistério e amores trocados com um toque high tec para nos revelar a espiral descontrolada na qual a tecnologia se tornou. Onde iremos nós parar? Em 1995, Kathryn Bigelow não podia indicar até onde a tecnologia teria chegado. Ainda hoje estes `clips' (gravações de 20 minutos de experiências individuais, transferidas directamente do córtex cerebral para um disco digital) de que o filme fala parecem ficção, mas muito brevemente poderão tornar-se realidade. Estaremos nós preparados? Sabemos que a técnica está cada vez mais aliada à fantasia e só por isso a ideia de que tal experiência pode ser possível, nos aguça a curiosidade.

A viagem psicológica na busca do "eu"

A dialéctica do "eu" e do "outro"

Personagens que se procuram e se afastam de si mesmas

A procura da verdade tem sido, ao longo do curso da história, um objecto tão importante para a filosofia como para as ciências. Verdade implica experiência, numa relação que se estabelece entre a realidade do pensador e outra, que lhe é diferente. A verdadeira experiência deve conduzir-nos para fora daquilo que nos rodeia, resultando num movimento sem destino traçado. A questão do outro, que nos é exterior, implica o pensamento da heteronomia numa acção de transcendência sob o signo da interrogação. A liberdade do pensador exprime-se na verdade, por se alienar e ao mesmo tempo conservar a sua natureza e identidade, permanecendo o mesmo, apesar das solicitações que o outro lhe apresenta. Lévinas reduzia o outro ao mesmo, numa fórmula à qual se reduz a liberdade e a autonomia, que equivale à conquista do ser pelo homem através da história. Nietzche rejeitava qualquer distinção entre este e outro mundo, afirmando que só existe um mundo, rico de cores e movimentos, em perpétua mudança, e o homem participa nessa mudança. O devir é valorizado em relação à estabilidade e à permanência1. Distinguia o mundo ``verdadeiro'' do ``aparente'', fundando-se na própria realidade, já que outro tipo de realidade é indemonstrável. Além disso, o ``verdadeiro ser'' tem características do ``não ser'' e o mundo real foi construído em contradição com o mundo aparente. Um outro mundo é apenas um conjunto de fantasmagorias sobre uma vida melhor, para estabelecer um contraponto com a vida ``real'' que levamos. Nas manifestações artísticas do pós guerra alemão, a reprodução do mundo tal como ele é parecia um absurdo. Como uma espécie de revolta contra as aparências do mundo e contra o mundo das aparências, o expressionismo preferiu alcançar a essência das coisas, libertando a sensibilidade e revelando a duplicidade e as obsessões ocultas na personalidade individual. O mundo sensível, enquanto reflexo imperfeito do mundo inteligível, não é passível de confiança, daí que Demócrito sustentasse que o conhecimento era proveniente das sensações, podendo elevar-se acima delas através da razão. Tais afirmações remontam à Grécia Antiga, e ainda hoje a base do nosso conhecimento são as sensações e a experiência. São elas que enriquecem o nosso cérebro e por isso os dados dos sentidos estão em permanente alteração, numa espécie de acrescento de propriedades que nos torna mais sabedores. Logo, o conhecimento que fazemos dos objectos que nos são exteriores está intimamente ligado às modificações da nossa consciência. O expressionismo impõe a sua vigorosa sensibilidade do mundo exterior, afastando-se da simples visão empírica dos objectos. A realidade, corolário de todas as existências particulares, só por si de nada vale, precisa de estar em conexão com as relações que se estabelecem entre o ser e a coisa. A realidade, complexa, diversificada e infinita move-se a uma velocidade que dificilmente conseguimos acompanhar, e uma vez que perceber os fenómenos exteriores é uma missão quase impossível entramos em contradição.

Na teoria abstraccionista de Shoppenhauer, o mundo não passa de uma representação do eu. A vã procura do sentido para a vida é a premissa fundamental do famoso pessimismo deste autor. Intimamente ligado ao individualismo, ao culto da personalidade privada, chega mesmo a utilizar expressões dos idealistas, ao afirmar que a coisa-em-si só pode ser encontrada no mais íntimo do nosso ser: a vontade não é considerada como um valor racional, mas como um impulso inconsciente. É esta concepção intuitiva que Shoppenhauer designa para o conhecimento verdadeiro, valorizando a dimensão estética da existência.

Também Heidegger, influenciado por Husserl, se coloca a questão do ser. O ser humano está sempre procurando algo além de si mesmo, objectivando aquilo que ainda não é. A existencialidade, enquanto existência interior e pessoal revela um homem que se projecta para fora de si mesmo, muito embora o seu ser nunca possa abandonar as fronteiras do mundo em que se encontra submerso. O ``ser no mundo'', ``ser fora de si'' é para Heidegger a essência do homem. E, incapaz de uma conciliação definitiva consigo mesmo, o homem busca permanentemente um sentido para viver.

Os limites e a subjectivação do "eu" e do "outro"

"If my film makes one more person miserable, I'll feel I've done my job". Woody Allen

Fortemente inspirado por Igmar Bergman, Woody Allen, mesmo quando filma banalidades não deixa de ser o cineasta da existência, não deixa nunca de revelar a vontade de ser qualquer outra pessoa. Os seus filmes invadem regularmente o campo da ilusão, onde ``Zelig'' e ``The Purple Rose of Cairo'' constituiem dois bons exemplos de magia cinematográfica. Em 1983, Woody Allen realizou ``Zelig'' e dando corpo a Leonard Zelig, criou uma figura camaleónica que se transfigura de acordo com a personalidade daqueles que lhe estão mais próximos. Assim como a mais banal projecção sobre outrem - alguém que admiro e tento imitar - é já uma identificação de mim com outro, de igual modo, o outro é simultaneamente incorporado na minha personalidade. ``Zelig'' é uma ideia intrigante para um filme, onde o complexo de projecção - identificação se encontra articulado num anel de transferências recíprocas que o universo mítico das estrelas de cinema exemplifica à perfeição, tanto nas histórias de filmes que retratam figuras que vêem na imitação, a identificação do seu sujeito (aproveitando a personalidade de um ídolo), como também no processo inverso, ou seja, do espectador para a estrela de cinema. O culto da celebridade, elevado ao seu expoente máximo nos Estados Unidos subjectiva o conhecimento da mesmidade colocando em primeiro plano as relações de alteridade. A fama tem carisma, é interessante e apesar da falta de privacidade, ``ser conhecido é uma área da vida que não deixa de ser excitante''2. Em 1999, Woody Allen filmou ``Celebrity'', uma experiência com um leque vasto de personagens passada na arena pública, nas discotecas, nos restaurantes, nos espectáculos de moda. O filme conta a história de um escritor que pensa ser um potencial ``best seller'' a quem ainda não deram uma oportunidade. No entanto, ainda não tem nenhum romance ou guião escrito... Allen filma os célebres 15 minutos de fama, lançando um olhar sarcástico à actual cultura de entretenimento e às contradições da fama.

Segundo Edgar Morin, é o complexo projecção - identificação - transferência que comanda todos os fenómenos psicológicos subjectivos, quer os que deformam a realidade objectiva das coisas (um filme não é o mesmo para dois espectadores) quer os que se situam, deliberadamente, fora de qualquer realidade. Processos de reflexão de idiossincrasias que tendem a tornar o sujeito imitador numa cópia volátil de uma figura que muitas vezes não corresponde exactamente à imagem que dela se tem - o actor de cinema ou a personagem que o mesmo representa.

Quanto a ``Zelig'' - e não nos cabem aqui preocupações estéticas ou da qualidade do enredo - Woody Allen propôs-se contar a história de um homem que sofre de uma estranha doença - o homem camaleão. A crítica catalogou ``Zelig'' como um filme no limiar do documentário. Extenso, sem personagens dignas desse nome, o filme foi visto como a famosa fantasia de que todo ``o Eu é Outro'', e ``ser famoso por não se ser ninguém em concreto''3. Falso documentário ficcional, ``Zelig'' é um filme que serve os nossos propósitos, porque subjectiva relações de alteridade e mesmidade. Numa ânsia permanente de agradar, Leonard Zelig começa a assumir características não só físicas como psíquicas e intelectuais das pessoas com que socializa, facto que o catapultou para os píncaros da fama em meados de 1920. Sem dúvida o filme mais conceptual de Woody Allen, ``Zelig'' é uma crónica sobre a ambiguidade de qualquer realismo cinematográfico.

Hábil a desafiar fronteiras muito específicas, em ``Deconstructing Harry'' Woody Allen obedece também ao princípio de projecção artística subjacente a muitos dos seus filmes: Harry, interpretado pelo próprio realizador é um escritor em crise, numa clara aproximação ao seu filme de 1980 ``Stardust Memories''. A narrativa de ``Deconstructing Harry'' é uma reflexão das relações de Harry com os outros e o mundo em geral, e a forma como essas relações interferem e influenciam o seu trabalho. Acaba por descobrir que todo o seu trabalho nunca sai do pequeno círculo que o rodeia, regressando, em cada história a si mesmo. A personagem de Harry é uma perfeita fantasmagoria do próprio criador. No reencontro com todas as personagens que criou, Harry do filme revisita toda a obra de Allen, transcrevendo um mundo pessoal e reinventado as coordenadas e os valores de cada existência individual. No filme, os acontecimentos sucedem-se envolvendo Harry num turbilhão labiríntico onde decorrem os acontecimentos que marcaram a sua vida pessoal. As cenas vividas e as cenas imaginadas interligam-se e tal como cada personagem passam a estar num limbo entre verdade e ficção, realidade e imaginação. O mundo que se abre, apresenta a realidade muito embora não esteja em conexão directa com ela. Trata-se de uma visão pessoal, ``uma auto reflexão, uma reflexão sobre si próprio, no decurso da qual a consciência que conhece examina as suas relações com o objecto do conhecimento''4.

Mais recentemente, ``Sweet and Lowdown'', o último filme de Woody Allen, com Sean Penn na pele de um músico de Jazz, funciona como uma síntese de alguns aspectos fulcrais da sua obra. De novo, Allen desdobra-se a si próprio, mascarando a personagem de Sean Penn, que evolui como um ``alter ego'' de Woody Allen, participando do seu gosto pelo Jazz. O estatuto do protagonista, dada a sua criação fictícia, remete-nos para ``Zelig'', num ``contexto histórico reconstruído com rigor e contendo, inclusive, algumas referências e uma breve representação do arquétipo do guitarrista de Jazz, o ``cigano'' francês, Django Reinhardt''5. ``Sweet and Lowdown'' é uma análise da ascensão e queda de um artista que nunca chega a atingir notoriedade, senão no seu próprio discurso, instalando o registo autobiográfico num tom burlesco e claramente falso.

Desvirtualizando as barreiras que normalmente se erguem na percepção do eu e do outro, Woody Allen é uma referência no que diz respeito à dualidade da personalidade, atribuindo ao actor as principais características do autor e brincando com as fronteiras que separam a história, tal como a conhecemos, da realidade ficcionada das suas narrativas cinematográficas. É com sabedoria que regista autobiograficamente os seus desejos, anseios e personagens preferidas (ainda que um reflexo da sua própria pessoa) em obras que transcrevem o mundo de forma singular, reinventando a nossa percepção da existência individual.

A metaforização da ideia de écran: caixa para as imagens, janela ou espelho?

O cinema enquanto espelho da realidade

"As coisas desaparecem. Temos de nos apressar, se queremos ver alguma coisa". Cézanne

Partindo da raiz etimológica da palavra, o conceito de imagem pode ter vários sentidos, dos quais aqui se destacam três: a imagem enquanto reprodução ou representação, do termo latino ``imago, imaginis'' que dá origem a palavras como imaginário e imaginação. A imagem, é imagem de qualquer coisa, ou seja, signo da coisa representada. Uma vez que a raiz da palavra é a mesma de magia, Santos Guerra6 fala-nos de encanto, num certo universo misterioso, incontrolável onde se diluem as fronteiras entre a realidade e a irrealidade, a presença e a ausência, o inconsciente e o consciente. Se remontarmos ao grego ``eikon'', imagem é retrato e em última análise, iconografia, ícone. Do ponto de vista semiológico, ícone é um signo que opera por relação de semelhança com o objecto representado.

A ambiguidade do real permite que cada espectador, diante de um quadro de conceitos e imagens que se lhe apresentam, possa interpretar a realidade de acordo com a sua própria sensibilidade.

Existem dois tipos de imagens, as mentais e as técnicas: as imagens técnicas possuem uma realidade física que nos proporciona representações dos objectos, cujas características dependem quer dos meios de produção, quer dos meios em que se apoiam. Por seu turno, observou Sartre, a imagem mental é um certo modo que a consciência tem de se dar a um objecto. A consciência de um objecto com imagem, donde, as imagens mentais são elaboradas interiormente, mediante a percepção directa da realidade, seja essa percepção a partir de experiências directas e actuais, ou de algo que não está espácio-temporalmente presente - as imagens de memórias e as imagens de imaginação. Os efeitos de ficção de que o cinema é capaz têm em si uma forte aparência de real. Tal como afirmou Bazin, ``o cineasta vai criar um cinema da hipérbole e da realidade'' São imagens em movimento, que preservam a memória colectiva da sociedade, desafiando o esquecimento característico do tempo. Uma espécie de reprodução da vida, tal como ela é.

Os poderes da imagem remetem-nos para um domínio delicado e quase secreto: perfeições técnicas à parte, como explicar que uma imagem nos fascine e outra apenas nos desperte interesse pelo seu conteúdo? ``Se a imagem é misteriosamente atraente, é porque nos conduz a um mistério. E é o mistério dos seres e das coisas. (...) Tudo pode ser um mistério: mas é necessário e bastante que a verdade do mistério seja respeitada. O que é, porém essa verdade? É a apreensão da vida, sem qualquer artifício, no próprio instante em que nasce.''7A imagem é sempre uma alteração voluntária ou não, da realidade e constitui um segundo mundo, com características próprias, pelo que nos coloca sempre perante processos de derivação. A ideia que fazemos da realidade, resulta de uma construção do espírito, que por sua vez é resultado da nossa percepção sensível. ``A ``realidade''. Não existe praticamente nenhum outro conceito que seja mais oco e inútil em relação ao cinema. Cada qual sabe por si o que isto quer dizer: percepção da realidade. Cada qual vê a sua realidade, com os seus próprios olhos. Vemos os outros, sobretudo as pessoas que amamos, vemos as coisas à nossa volta, vemos as cidades e as paisagens em que vivemos, vemos também a morte, a condição mortal dos homens e a efemeridade das coisas, vemos e experimentamos o amor, a solidão, a felicidade, a tristeza, o medo; em resumo: cada qual vê, por si mesmo, a vida. (...) Tornou-se raro no cinema actual que tais instantes de verdade tenham lugar, que pessoas ou coisas se mostrem tais como são''8. O cinema é de todas as artes, a mais preceptiva, por ser a que mais se aproxima da realidade, assim como a conhecemos. É contudo, a mais deceptiva, porque facilmente tomamos consciência de que aquilo a que assistimos não é o objecto real, mas apenas a sua sombra, uma reprodução, aquilo que reflecte o pensamento e a experiência do autor da obra. Neste contexto, o cinema funciona como uma espécie de espelho, reproduzindo tudo excepto o corpo do espectador. As imagens que vemos no cinema têm um forte sentimento de realidade, pois dela estão muito próximas, muito embora se trate sempre de uma realidade estética pessoal e subjectiva do cineasta, onde o belo e o feio são facilmente misturados num mundo de magia e sonho criando um casamento entre as verdadeiras formas do universo e aquilo que somos capazes de inventar. Dizia A. Bretton que a vida é um criptograma que os cineastas decifram à sua maneira. Filmar impõe-se-lhes como uma parte da sua vida, algo do qual raramente se conseguem afastar. Numa entrevista, Wim Wenders explicava que ``alguma coisa acontece, vêmo-la acontecer, filmamo-la enquanto acontece, a câmara observa, conserva-a, podemos contemplá-la repetidamente, contemplá-la mais uma vez. A coisa já não está lá, mas a contemplação é possível - a verdade da existência desta coisa, essa, não se perdeu. O acto de filmar é um acto heróico (não sempre, nem sequer frequentemente, mas por vezes). A progressiva destruição da percepção exterior e do mundo é, por um instante, suspensa. A câmara é uma arma contra a miséria das coisas, nomeadamente contra o seu desaparecimento''9. Perpetuar a realidade, mostrar o mundo tal como ele se apresenta é algo que qualquer um de nós pode facilmente fazer com uma câmara de filmar. A riqueza do cinema está na capacidade de interpretação que dessa realidade fazemos, tanto pelas mãos do cineasta como à posteriori em cada espectador. A experiência do público não se fica por aquilo que lhe é apresentado, porque o uso que faz das imagens organizadas numa dada narrativa não pode deixar nunca de estar relacionada com o passado cultural de cada espectador. O significado do filme vai sendo construído subjectivamente na consciência do espectador, de acordo com as categorias do tempo, do espaço e da causalidade organizadas pelo cineasta10. O mais importante é a forma como o realizador vai traduzir a sua visão do assunto, transmitindo de uma forma concreta aquilo que até aí era apenas domínio da sua imaginação. Alguns autores que afirmam que um bom cineasta tende a perseguir problemas que ainda não conseguiu superar, temas que o preocupam, assumindo um estilo particular, como Bergman e a homossexualidade, o amor e o sexo; o suspense sempre presente em Hitchcock, o tema do recinto fechado em Bresson ou os westerns de John Ford. Tal como qualquer criador, o cineasta tem a liberdade de escolher o tema e a forma como o trata, mas é incapaz de se exprimir sem revelar a sua personalidade. ''Um autor é um indivíduo que possui um mundo particular e uma visão pessoal desse mundo particular''11. O uso de uma dada estilística revela quase sempre o realizador, e é talvez por isso que se reconheçam tão facilmente os filmes de Bresson, Fellini ou Welles. Correndo o risco de fazer ecoar a estética do naturalismo do século XIX, na qual a arte deveria ser o mais fiel reflexo da realidade, cabe-nos pensar até que ponto a obra do cineasta reflecte a realidade tal como a conhecemos. André Bazin considerava inadmissível o facto do realizador, ao ordenar os planos da filmagem durante a montagem da sua obra, influenciar o espectador, ``obrigando-o a ver o que ele quer que veja''12. Muitas vezes seguindo a lógica da associação de ideias, a montagem relaciona os dados da memória com as imagens que compõem o filme, e perante o resultado, o espectador integra as cenas no contexto geral da narrativa através da sua memória de acontecimentos anteriores, quer digam respeito ao cinema ou à vida real.

A história, o enquadramento, as personagens, os planos e os cenários formam um conjunto de significantes de uma obra que acaba por ser muito própria e por assim dizer, única do realizador. O cinema é muito mais que um simples registo fotográfico e no conjunto dos seus vários planos, o filme necessita sempre de recorrer à montagem, daí que o realismo estético apontado por Bazin reflicta uma manifestação de olhar, mais do que a expressão de um pensamento. Bazin ignora toda a parte técnica subjacente à reprodução do real. Trata-se no seu caso, de uma reprodução literal, num plano contínuo do quotidiano, pertencente a um mundo sem qualquer relação e significado. Walter Benjamim debruçou-se sobre a complexidade da reprodução, concluindo que as aparelhagens técnicas foram penetrando na própria realidade a ponto de a tornar quase artificial, tornando impossível a montagem residual, sem instituir nenhuma relação. Emoções, desejos e angústias são-nos transmitidas pelo cineasta através dos seus filmes. ``Na realidade, podemos dizer que ele está como que encerrado numa redoma: nela evolui livremente, mas não pode escapar nem tam - pouco se subtrair ao olhar do observador: como Albee, nunca termina de explorar as fronteiras do mundo totalmente fechado em que está - em que todos estamos - encerrados''13. O processo de identificação com a história e as personagens decorrem do estímulo que as imagens despertam no espectador, num processo de criação de expectativas que abre asas à imaginação através do reflexo das sensações e pensamentos das personagens. Estas são vulgarmente aspirações e desejos do comum mortal, transpostas a um nível superior e encarnadas pelo herói, num sistema de participação afectiva. Christian Metz debruçou-se sobre o desejo que o cinema desperta nos espectadores: influenciado pela ficção romanesca e figurativa, o filme é como uma impressão da realidade: cenários perfeitos, o detalhe aproximado à vida do quotidiano, as grandes dimensões da tela, imagens nítidas e agora, digitais, têm focado sempre os efeitos do que é real. Negando a realidade, os filmes de ficção criam uma ilusão referencial pela negação do significante na constituição da figura do sujeito. A ficção não é apenas a capacidade de inventar histórias, mas a existência de ``um sistema de funcionamento psíquico socialmente regulado, que se chama precisamente ficção''14. Retomando a distinção de Pasolini relativa ao cinema de poesia e cinema de prosa, que defendia a natureza metafórica do cinema vaticinando a exploração do irracional e do mítico, podemos relembrar que, no cinema de poesia P. P. Pasolini falava claramente numa secundarização da intriga pela primazia da visão subjectiva do autor que influencia, toca e sensibiliza o espectador, como o fizeram Bresson ou Godard.

O espectador e a dualidade entre as imagens e o écran onde estas se projectam considerações teóricas sobre a oscilação entre percepção do real e a ficção

``A arte está no modo de dizer ou de representar, não no que é dito ou representado''15

Desde o início do cinema que se procura a reprodução da realidade para nos dar a sensação de ``viver'', ``sentir'' e fazer parte da história que comodamente assistimos sentados na cadeira da sala de cinema. A força dramática do cinema provém da sua capacidade para desencadear sensações e emoções que sentimos como reais. ``As imagens fílmicas tornam-se imagens mentais e, como tal, têm uma existência própria na consciência do espectador''16. As emoções libertam angústias e o espectador cansado de si, procura novas relações de alteridade, revelando os seus próprios sentimentos. ``O personagem e a estrela - não raro fundidos e confundidos na mesma entidade mítica - configuram-se como duplos dinâmicos e fantásticos do espectador anónimo, reduzido à passividade do seu lugar sentado, espectante. Na luz do altar - écran, os deuses; nas trevas da terra enclausurada, os fiéis''17. Cada filme compõe-se tanto na cabeça do cineasta, que pode mostrar-nos o real através dos olhos de diversas personagens, como na cabeça do espectador. A história que é contada, é narrada de acordo com um determinado temperamento, e se imaginarmos a mesma história contada por duas pessoas diferentes, esse incidente pode tornar-se interessante ou enfadonho. Tudo depende da vivacidade, que traduz a personalidade de quem está a contar, ou da discrição e delicadeza de uma personalidade menos vincada. O mesmo acontece no cinema.

Durante a projecção do filme, a câmara é substituída pelo projector, levando o espectador a identificar-se com as imagens do filme, antes de o fazer com as personagens ou os actores. Esta posição omnipotente e omnipercepcionante do espectador atribui ao filme um coeficiente de ilusão que só tem equivalente na alucinação ou no sonho18. Trata-se aqui de uma espécie de sobre - realidade, sem ser verdadeiramente uma surrealidade, uma vez que o método de percepção do mundo surrealista se funda na crença da resolução da contradição sonho/realidade, libertando o homem pela imaginação. Parafraseando André Bretton, esta libertação do homem não se pode limitar a transformar a nossa visão da realidade, mas sim conjugar esta nova visão com a transformação da própria realidade. O surrealismo permite explorar uma vasta gama de emoções, por ``exprimir o que pertence a um universo mental, ao sonho ou à fantasia'', aponta Vincent Minelli. Ora, o que acontece no cinema não é propriamente uma transformação da realidade.

A riqueza do cinema está na possibilidade de aliar a realidade à prodigiosa imaginação humana, criando uma aura de sonho como a de Hollywwod, onde se projectam os sonhos e fantasias do homem vulgar. Muitos seriam os exemplos de filmes tão sofisticados do ponto de vista técnico e por isso capazes de nos enredar num aura mítica onde não somos capazes de discernir onde começa e acaba a ficção. Mas limitemo-nos aos filmes tomados para exemplo deste trabalho e assim, relembramos mais uma vez o filme de Woody Allen, ``Zelig'' que, excelente do ponto de vista técnico, muitas vezes nos faz perder a noção do que é real e do que é ficção. O cinema ``apresenta o mundo não só objectivamente mas também subjectivamente. Cria novas realidades, em que as coisas podem ser multiplicadas; pode inverter os seus movimentos e acções, distorcê-las, atrasá-las ou acelerá-las. Dá vida a mundos mágicos onde não existe a gravidade, onde forças misteriosas fazem mover objectos inanimados e onde objectos partidos voltam a ficar inteiros. Cria relações simbólicas entre acontecimentos e objectos que não têm qualquer ligação na realidade'' (Arnheim)19. Neste contexto, podemos sustentar uma outra condição do real/ficção que deriva das capacidades técnicas colocadas à disposição do realizador.

São profícuas as realizações em torno da ficção científica que normalmente transportam o espectador para contextos que dificilmente verá realizados para lá da sétima arte. Invasões de marcianos em ``The War of the Worlds'' de Byron Haskin, a cidade futurista ``Alphaville'' de Goddard ou o épico ``2001: A Space Odissey'' de Stanley Kubrik, são filmes que através da arte da ilusão nos fazem crer que o perigo e a magia existente naquilo que nos parece fisicamente impossível é nada mais nada menos que pura realidade.

Não se afastando radicalmente daquilo que todos percepcionamos como sendo a realidade, o cinema cria ``realidades'' diferentes, consoante a história do filme, as suas personagens e actores. Reunidas as mesmas condições de filmagem, cada cineasta apresenta o seu filme, da mesma maneira que cada espectador o interpreta de uma forma muito pessoal. Godard, o criador que veio redefinir a forma de olhar para um filme, afirmou que os filmes nascem quando alguém olha, pois eles são o invisível. ``O que não vemos é o inacreditável - no cinema o que interessa é mostrar isso. Estou aqui sentado diante da câmara, mas na realidade estou, na minha cabeça, atrás dela. O meu universo é o imaginário e este é uma viagem de trás para a frente, de lá para cá. E, como o Wim (Wim Wenders), eu sou um bom viajante''20. Não se poderá falar em transformação da realidade, mas em ``formas'' de percepcionar essa realidade, pois tal como afirma Metz, o filme tem algo em comum com o sonho que é a capacidade de ficção. Claro que o real, enquanto algo que existe de verdade e não é imaginário, ao ser reproduzido na tela já passou por uma série de contradições que obrigatoriamente o alteram. Independemente da montagem dos planos, já antes o real está corrompido, à força da escolha do momento, da luminosidade, da direcção ou da velocidade da câmara, que só dependem do cineasta. Algo se perde do real, quando o captamos com uma câmara. Mais do que isso, o real que nos chega nunca é o real, pois o ``nosso olhar é demasiado pensativo, demasiado inteligente''21 O cinema permite que o espectador se encontre a si próprio, objectivando aquilo que não é e revelando os seus desejos insuspeitos, por nos decifrar aquilo que mais profundamente sentimos. ``Para cada filme há tantas interpretações quantos espectadores. Isso se deve à complexidade da vida, onde nada é absoluto, e à relatividade das coisas''22. Parece que objecto e sujeito, não se invertendo ou canabalizando, se tornam aspectos de uma mesma realidade, anulando as contradições.

Escreve Eduardo Geada que a projecção - identificação é uma técnica de participação afectiva. O cinema é uma das bases da matriz do dispositivo de ficção da televisão, representando a síntese de todos os desejos humanos: viver os sonhos e sonhar a vida.

É por isso que o mundo da ficção é mais desafiante que o real, pois nele tudo é intencional. A participação activa do espectador - quando este vê o que acredita estar a ver - transporta-o para um simulacro da realidade, um sentimento de actualidade convicta que se desmonta só no final do filme quando abandona esta realidade fictícia para se afastar dos acontecimentos e regressar à sala de cinema.

Durante a projecção de um filme, o espectador oscila entre o ``estar'' e o ``não estar'' perante um écran de cinema. O écran está sempre presente, independentemente da tomada de consciência da sua existência. Mesmo quando totalmente absorvido pelo filme, o espectador nunca deixa de ter noção do facto de estar numa sala de cinema, assistindo a imagens projectadas numa tela23. Como diria Freud - o sonhador tem sempre consciência de que está a sonhar. O sonho, por ser a essência da subjectividade é o sistema de projecção - identificação no seu estado mais puro. A transposição do filme para a realidade depois da sua projecção é um fenómeno frequente, que resulta da identificação com a história ou as personagens. Não separar o filme da realidade é resultado deste estado ora consciente ora inconsciente que também participa para a magia do cinema. No seu estado consciente, o espectador vê as imagens e percepciona a linguagem do filme ao passo que no seu estado inconsciente, o espectador vive um universo ilógico, onde assume os seus desejos e frustrações. A tendência é para o espectador adoptar as personagens e situações que lhe são apresentadas. Por semelhança à vida real, o cinema mostra-nos muitas vezes algo que nos é próximo e que por derivação identificamos como nosso. As emoções misturam-se e a dado momento o espectador passa a protagonista, transpondo para a sua vida quotidiana a história que o realizador lhe oferece. De facto, quantas vezes já não nos deparámos com situações em que um filme nos faz ver a nossa vida - simples e anónima - de outra forma? A monotonia parece absurda, o que é errado passa a ser certo e sem darmos conta queremos ser Bonnie and Clyde, Mickey e Mallory de ``Natural Born Killers'' ou Vivian Ward, a prostituta encarnada por Julia Roberts em ``Pretty Woman''. Violência, finais felizes, doenças graves, o adultério e a morte são temas que habitualmente tocam mais facilmente o espectador. Sentados na sala, o efeito catártico das imagens permite a passagem da atitude reflexiva a uma atitude mais existencial que muitas vezes se mantém para lá da apresentação do filme. Em ``Purple Rose of Cairo'' de Woody Allen, acontece o inverso: não é o espectador que se deixa absorver pela história, adoptando aqueles acontecimentos como seus, mas o protagonista que ``sai'' para a vida real. O paradoxo é explorado pelo realizador, na medida quem que o protagonista não consegue fazer a ponte total para a vida quotidiana. Há cenas que nos mostram a sua incapacidade para lidar com os detalhes mais prosaicos da vida, como ligar a ignição de um automóvel. A dualidade ficção - realidade mistura-se: as personagens principais pertencem a mundos diferentes e ajudam-se em cada um desses mundos, provando que nenhum dos dois é perfeito.

"I just met a wonderful new man! He's fictional, but you can't have everything..." Purple Rose of Cairo

Na maioria das vezes, os espectadores estão no cinema para experimentarem vidas que não as suas, para sonharem um pouco e vestirem a pele dos protagonistas, ainda que por uns breves momentos. Woody Allen consegue habilmente brincar com os conceitos de realidade e fantasia, mostrando claramente que os filmes não nem mais nem menos que um fiel reflexo das nossas vidas, causando quase de certeza, grandes decepções para muitos espectadores.

Hoje, os cineastas deixam na mão do espectador a descoberta do real a partir do mundo tal como ele é, com as suas mutações e ambiguidades, a partir das imagens que lhes são apresentadas. Mamoulian afirma que ``é o espectador que se torna o director do filme, é ele quem o cria''. Ao relacionar a si as imagens, o espectador permite que a dialéctica de distanciamento e identificação que se sucede à primeira emoção influencie a sua personalidade, abolindo as fronteiras entre a obra e a vida. O espectador vive o filme de dentro e assume a personalidade do protagonista como se fosse sua, esquecendo-se de que tudo não passa de espectáculo e que depois das luzes acesas e da máquina de projecção desligada, raramente a vida deixa de ser o que é.

O jogo de espelhos em "Strange Days"

As personagens: corpo do actor e pensamento do autor

Negro? Sim. Excitante? De certa forma. Novo?

A história decorre nos últimos dias de 1999, numa zona de tensão racial na qual Los Angeles se transformou. Algo que em 1995 parecia ser o futuro. Visto com a distância que nos separa de 1995, hoje nos primeiros dias do ano 2000, ``Stange Days'' transforma-se num filme futurista e apocalíptico, com a cidade de Los Angeles no centro desta história de morte e destruição. O filme conta-nos a história tecnologia. Afirmando-se o ``Pai Natal do sub - consciente'', aproveita as memórias e emoções de cada um para as vender a quem quiser revivê-las. ``It's not like TV, only better'' é o mote desta rede ilegal de negócio. Um dia, Lenny recebe um disco com as memórias de um assassino que matou uma prostituta. O ex-polícia vai investigar o caso e vê-se envolvido numa rede de raptos, chantagem e morte .

Voyeurismos à parte, em ``Strange Days'' assistimos, através dos `clips' a imagens puras de pedaços da vida de outras pessoas sem a intervenção de uma câmara de filmar. Trata-se no fundo de um visionamento directo, tal como se fosse feito pelos próprios olhos. O voyeur ``veste'' a pele do outro. Deixa de ser voyeur e passa a ser a personagem. Enquanto se está ligado, está-se aparentemente lá, com todas as sensações que este ``transporte'' acarreta: o simples facto de ver e ouvir são excitações sensíveis que se dilatam para outras como o odor ou o tacto, que não estão de todo presentes. O prazer, quando o protagonista ``re - vive'' um romance, transforma-se num estado psicorgânico intenso, e o medo no momento em que o cuidado pela integridade física é posto em causa, é a principal emoção presente neste filme. É o que acontece quando chega às mãos de Lenny - o nosso ex policia, um `clip' onde uma jovem é forçada a testemunhar a sua própria violação pelos olhos do seu violador.

Perante uma realidade virtual completamente ilegal que grava e reproduz a experiência sensorial de qualquer pessoa, viver e e reviver experiências, com os sons, as imagens e as emoções de quem as estiver a ``re - viver'' é um salto quântico24 numa profunda disparidade de emoções, sentidos e noções de identidade. ``Eu'' ou ``Outro''? Levanta-se a questão.

Em ``O Mistério de Ariana'', G. Deleuze fala da obra de Klossowski, que tende para a afirmação da perda da identidade pessoal, uma dissolução do eu não apenas porque o eu é olhado e perde a sua identidade sob o olhar, mas também quem olha e que desse modo se coloca fora de si e se multiplica ao olhar25. É precisamente o que acontece em ``Strange Days'', quando se abre uma nova possibilidade tecnológica que é a de gravar pedaços da vida como se tivéssemos uma câmara de filmar no nosso cérebro. Aquela parte da nossa vida deixa de nos pertencer, deixa de fazer parte do domínio íntimo da nossa memória para quase se tornar domínio público, sujeita às leis de mercado e à possibilidade de ser negociada. A transferência destes pedaços de vida real pode circular indefinidamente, acabando por ficar diluída a noção de sujeito.

Quem é o sujeito: a pessoa que viveu a cena pela primeira vez ou quem a está a ``re-viver''? Afinal, o sujeito pode ser qualquer um, uma vez que cada nova ``viagem'' permite emoções sempre diferentes. Ou não?

Este facto torna-se claro com o `clip' mais dramático da história, aquele em que Iris testemunha a sua própria violação. Outras duas pessoas visionam o `clip' e apesar de viverem exactamente o mesmo medo e ansiedade, fazem-no como se aquilo estivesse a acontecer com elas Sentem a sua integridade violada, muito embora estejam plenamente conscientes do que se trata. Donde, se sentem a sua integridade a ser violada, é porque assumem o lugar de sujeito, ainda que por breves instantes. Não existe contudo, um sujeito consciente da sua identidade porque essa identidade tende a ser um simulacro. O que existe é um acontecimento e uma figura que o vive, em momentos diferentes e de formas também elas diferentes. Quem ``re - vive'' não é tábua rasa, já tem um determinado conjunto de características que formam a sua singularidade enquanto sujeito e por isso estas ``re - vivências'' de ``Strange Days'' são flutuações com intensidades e tensionalidades diferentes, esplendor do impessoal com uma infinidade de modificações. ``A intensidade torna-se intencionalidade, na medida em que a intensidade toma por objecto uma outra que está compreendida nela mesma, e na medida em que se compreende a si mesma, na medida em que se toma a si mesma por objecto, até ao infinito das intensidades pelas quais passa''26. A identidade do Eu perde-se, em favor de uma capacidade de metamorfose só possível na transmutação de corpos perante as mesmas imagens.

Tal como nas redes actuais, em ``Strange Days'', há uma enorme poluição das fronteiras, dos limites que separam o sujeito. A manipulação de conteúdos, facto corrente quando se trabalha em rede, não permite a noção clara, exacta e definida de emissor - receptor, tal como acontece com os `clips' do filme. Na maioria dos casos o sujeito nem é conhecido, logo, o sujeito é quem vive, neste caso ``re - vive'' o dito `clip'.

O Eu afirma-se perante os acontecimentos, independentemente da sua origem inicial.

Em ``Strange Days'', a narrativa cronológica dá-nos a sensação de uma duração contínua e descritiva, fornecendo sentido e significado ao filme através de informações que motivam o espectador e estimulam a sua curiosidade. Esse sentido e significado, colados através de uma montagem de fragmentos que asseguram continuidade ao discurso, deve, como afirma Metz, disfarçar-se em história. O cinema enquanto arte do real, expressão utilizada por Jean Mitry, constitui o seu tempo com factos e organiza o mundo de acordo com uma certa continuidade. O guião do filme está muitas vezes sujeito a pequenas alterações, já que o subtexto só ganha vida no momento da representação, no corpo e na voz do actor, que toma posse das palavras e as faz parecer suas. O encadeado de acontecimentos da narrativa vai dando espessura humana às personagens, restituindo as motivações dos seus gostos, a profundidade dos seus sentimentos, revelando e aprofundando a sua caracterização. Mais do que a narrativa, este é um trabalho que depende inteiramente do actor e do que o cineasta coloca ao seu dispor. Marlon Brando, paradigma mítico de uma geração de actores, introduziu um método de aproximação à existência da personagem que o impelia para representar a partir do interior e não do exterior da personagem. De facto, por mais autênticos que sejam os décors e os adereços, é também importante o reconhecimento da identidade imaginária da personagem que se vai representar, a favor da persuasão e do realismo. Não se trata de recalcar a identidade, mas de explorar o próprio eu para favorecer os comportamentos e reacções espontâneas que vão definir a existência virtual da personagem, por forma a que o actor revele sentimentos semelhantes aos da personagem que representa. O método do Actor's Studio, que seguia os ensinamentos de Stanislavski, procurava desenvolver no actor qualidades que lhe permitissem comportar-se na história tal como se estivesse na vida real, atenuando, a nosso ver, as barreiras que separam o real do imaginário, e a vida real do filme. ``Ao revelar a capacidade de agir e de sentir de acordo com as circunstâncias sugeridas num guião, como se o mundo da ficção fosse a realidade do mundo, o actor descobre novos horizontes de si próprio: é a exploração do eu enquanto exploração de ser outro''27. Os silêncios, as expressões e a movimentação do actor são os indícios mais preciosos do subtexto fílmico e que em ``Strange Days'' ganham grande relevância. As cenas nas quais as personagens visionam os `clips' transpõem o contexto do `clip' mesmo antes do espectador o ver. A direcção de Kathryn Bigelow por vezes assemelha-se à filmagem de Elia Kazan, que em muitos casos prefere mostrar o rosto de quem escuta em vez do rosto de quem fala, invertendo a ordem e invadindo as fronteiras da intimidade da personagem. O contexto verbalizado é fotografado pelas reacções e actividade dos personagens na relação física entre os actores, no magnetismo de silêncios e de palavras em suspensão no plano: ``A câmara revela o acontecimento interior que um olhar humano não teria notado, tornando o cineasta cúmplice dessa revelação''28.

Podemos levantar agora outra questão: quem são, ou o que são, as personagens deste filme?

À primeira vista, temos Lenny, o polícia; Faith, a sua ex namorada; Iris, a sua amiga prostituta e Mace, a amiga de Lenny. No entanto, todos eles são vítimas de uma outra identidade que não a do seu sujeito, quando visionam os `clips'. Há como que um abandono da alma da personagem, que incorpora novos sentimentos por adoptar um momento da vida de outro sujeito. A concepção tradicional do cartesianismo relativa ao corpo e à mente separa-os em matéria e espírito, na forma como o primeiro está submetido ao segundo e na forma como interagem e dependem um do outro. É através do corpo que nos ligamos à alma e ao mundo exterior. Na cultura ocidental há muito que o corpo foi relegado para segundo plano, escondendo-o e afirmando em todos os aspecto, a supremacia da mente sobre a carne. Esta ideia de transcendência deixa ao corpo um papel mutante onde só o exterior pode ser adornado, modificado ou transgredido. ``Strange Days'' vai contra esta ideia por modificar - ainda que temporariamente - o aspecto mais espiritual do nosso ser, que é a mente humana. Quando em `viagem' o sujeito assume comportamentos já anteriormente adoptados pelo outro, modificando a sua forma de agir. O que é a realidade naquele momento deixa de o ser, pois o indivíduo embarca numa `viagem' que pode ter como cenário uma paisagem completamente diferente daquela onde se está.

A dicotomia entre o real e o imaginário na história: a colisão de dois mundos

"I wish my life was a non-stop Hollywood movie show `cause celluloid heroes never feel any pain..." The Kinks

Do ponto de vista estético, ``Strange Days'' está longe de ser uma obra prima e do ponto de vista da história, nunca se tornará num clássico do cinema norte americano. No entanto, ao contrário do que à primeira vista se possa pensar, é mais do que um simples filme de acção e aventura, focando um ponto fulcral da existência humana, que é a questão da identidade do ser. Desconcertante, o tema é evidentemente a permanente dialéctica da mesmidade e da alteridade, a partir da qual decorrem as inúmeras possibilidades de identidade.

Com "Strange Days", muitas das nossas certezas caem por terra.

Numa época em que os sistemas de referência se apresentam cada vez mais ocos (a era do vazio que G. Lipovetsky tão bem definiu) as possibilidades da técnica, a inteligência artificial, a engenharia genética e neste caso, a realidade virtual assentem um real totalmente fabricado pelo homem, esbatendo as fronteiras do real e do irreal, do possível e do impossível. O homem ocidental está demasiado habituado à ideia de que pode dominar a realidade, controlando-a, violentando o real e em última análise, reduzindo-a ao mesmo, para invocar uma expressão de Lévinas. O absoluto dos grandes sistemas clássicos que pretendiam conhecer a totalidade ou a metafísica enquanto tentativa para conhecer a realidade em si, deixam de fazer sentido e a consciência do homem torna-se marginal, um subproduto entre os conflitos individuais e as imposições sociais, susceptível inclusivamente de ser comercializado e vivido por qualquer outra pessoa. Durante o filme e enquanto espectadores, com todas as contingências que tal facto implica, deixamos de perceber o que é real ou imaginação. Se retrocedermos à data de lançamento de ``Strange Days'' e deixarmos de parte os cinco anos de conhecimento e experiência que medeiam as duas datas - presente e passado - facilmente somos levados a pensar: why not?

A tecnologia avança a uma velocidade estonteante e em 1995, ninguém pensaria aceder à Internet através de um telefone portátil. Aliás, voltando um pouco mais atrás no tempo, quem diria que os telefones celulares se iriam tornar tão pequenos e multifuncionais?

Há de facto uma colisão, onde o irreal convive com a realidade, num combate cego perante a fantasmagoria de um outro alicerçado no mesmo. ``Strange Days'' é um testemunho do paradoxo que está inerente à percepção humana: ver e ser visto, de acordo com os fenómenos de actividade e passividade que lhes estão inerentes.

Para conseguir um cinema ``transparente'', Kathryn Bigelow tenta reduzir o espaço que medeia a imagem captada pela câmara e a visão humana, que no filme se faz através do `squid', o aparelho que capta as imagens directamente do cortéx cerebral, num movimento superior ao da percepção humana. A narrativa acompanha esta velocidade das imagens, reproduzindo na maioria das vezes a ligeireza do olho humano.

A própria Kathryn Bigelow, fervorosa adepta de experiências tecnológicas, explora novas formas de filmagem, que no caso de ``Strange Days'' se traduz numa câmara especial que acompanha a rapidez e agilidade do olhar, para as cenas dos `clips'. Para além da câmara, Bigelow recorre ao décor para aumentar de forma impressionante a dualidade das imagens. Segundo Bazin, o poder do cinema, ``está na projecção de um valor de realidade sobre a representação, sobre a mentira ou seja lá o que for que passe diante da câmara''. A subjectividade do olhar humano é realçado nas cenas dos `clips', criando uma espécie de reino flutuante no qual nunca sabemos o que é verdadeiro. As cenas, filmadas sem cortes, mantêm-se muito próximas da acção, multiplicando-a por todos os que a elas assistem. Não falamos só do voyeur que utiliza o `squid' para visionar o `clip', mas de todos os espectadores, deixando cair por terra a barreira que habitualmente separa o auditório da acção, anulando a diferença entre a ficção e a realidade. O plano, filmado a partir da visão do interveniente no `clip' transporta os nossos olhos para lá, para o coração do momento. Contudo, estas alterações da percepção nunca chegam a ganhar a força de halucinações porque o voyeur mantém a consciência de não estar lá, muito embora a sensação física e psíquica não seja essa.

A cena que abre o filme é uma sequência de um assalto onde vestimos a pele do assaltante. O microship que permite gravar estes pedaços de realidade está inserido no cortéx cerebral e inexplicavelmente todas as suas emoções nos são transmitidas, todos os seus gritos parecem nossos e a excitação do roubo só termina com um grito e a escuridão total. Teoricamente, o voyeur do `clip' deveria ficar surpreso e intrigado, sem conhecer o fim da história. Teria o ladrão fugido? Será que caiu e desmaiou?

Nada disso.

O sentimento que de nós se apodera é terrível, como se um frio nos invadisse a alma.

``Nada de `clips' de morte'', diz Lenny Nero, no momento em que retira o `squid' da sua cabeça.

Os `clips' funcionam como janelas . Uma tela onde se desenrola a história secundária. No entanto, sem essa história a narrativa principal não avança. Não se resolvem as questões de identidade, sempre patentes num jogo de espelhos que não se limita a focar apenas uma personagem.

As possibilidades da visão humana são o ponto fulcral da história, a partir da qual se vai construindo a narrativa principal. O olho humano tem capacidades fantásticas e quando associado ao poder da mente, é capaz de subverter a realidade, criando conexões representativas dos seus anseios, desejos e motivações, paralelas ao real verdadeiro. Bigelow fortalece esta relação ao colocar inúmeros espelhos em todos os cenários, onde se reflectem invariavelmente duas personagens.

O espelho é uma metáfora de todo o movimento em que o filme nos envolve através do jogo da câmara que apresenta os actores em diálogo: um deles, reflectido no espelho.

O espelho assume-se como o ponto chave da cena, sem a qual não poderíamos perceber quem está presente. Mesmo nos `clips', o espelho mantém a sua presença e Kathryn Bigelow chega ao ponto de filmar o reflexo do voyer, que se vê a si próprio no `clip' através da imagem reflectida num outro espelho. O tema do duplo - seja através do visonamento dos `clips', seja através de imagens reflectidas nos espelhos - é impressionante nas cenas finais do filme. O quarto de hotel onde a sequência foi filmada tem espelhos em todas as paredes, reflectindo e duplicando o corpo das personagens, para além de multiplicar as perspectivas. Os últimos momentos atingem o auge com espelhos que se quebram numa alucinante multiplicidade de imagens e reflexos perturbantes do movimento delirante das personagens. A duplicidade do eu perante o outro ganha contornos até aí desconhecidos.

Lenny aparece enquanto reflexo. Não sabemos a sua posição exacta, ou se trata de uma reminiscência a partir de um processo de derivação mental de Faith. Tal como em quase todas as outras cenas, visionamos o `clip' pelos olhos de outrém, mas desta vez não sabemos exactamente de quem se trata. Aquilo a que assistimos, também reflectido através do espelho, é desconcertante, pois ao contrário do que tinha sido feito até aqui, a figura principal do `clip' está a olhar para o espelho e a ver-se a si próprio. Afinal, quem é o sujeito?

Se até aqui a identidade se transfigurava para o sujeito que utilizava o `squid' para ver o `clip', fornecendo-lhe apenas através de imagens todo um complexo sistema de emoções e sensações quase físicas, para fechar ``Strange Days'', Kathryn Bigelow entrega ao espectador as últimas peças do complexo puzzle que se vinha construindo. Na análise sobre ``Strange Days'', Laura Rascaroli29 conclui que quando revela a identidade do assassino, recorrendo mais uma vez à metáfora do espelho, Bigelow dá ao espectador a impressão de um rosto reflectido em mil pequenos pedaços, numa forte ligação com todo o desenvolvimento da narrativa do filme. A verdade finalmente é concretizada e as personagens não têm possibilidade de fuga. O espectador, depois de ter estado tantas vezes ``dentro'' da história, reconhece de novo a tradicional ficção do cinema: o espelho parte-se, e o filme encerra com imagens que não são de todo o playback dos `clips': um longo beijo entre os dois heróis, num verdadeiro contacto humano, algures entre o segundo e o terceiro milénio.

Bibliografia



Notas de rodapé

...encia1
Nietszche, Friedrich, Crepúsculo dos Ídolos
... excitante''2
Woody Allen, em entrevista a Rui Henriques Coimbra para o Jornal Independente, 19 de Fevereiro de 1999
... concreto''3
Kael, Pauline, Reviews, Microsoft Cinemania 96
... conhecimento''4
Monteiro, Paulo Filipe, O que é o Cinema - Revista de Comunicação e Linguagens, pág. 85
... Reinhardt''5
Torres, Mário Jorge, Jornal Diário de Notícias, 6 de Setembro de 1999, pág. 23
... Guerra6
Guerra, Santos, M.A., Imagen y Educación, Anaya, Madrid, 1984
... nasce.''7
Weyergans, Tu e o Cinema, pág.170
...ao''8
Comentário falado de Wim Wenders sobre o diário de viagem filmado (Tokyo-Ga) rodado em 1983/84 in Wenders, Wim, A Lógica das Imagens
... desaparecimento''9
In: ``Porquoi Filmez-Vous? 700 Cinéastes du Monde entier répondent''. Libération, caderno especial de Abril de 1987
... cineasta10
Geada, Eduardo, Os Mundos do Cinema, pág. 158
... particular''11
Weyergans, Franz, Tu e o Cinema, pág. 156
... veja''12
Escudero, Garcia, Vamos Falar de Cinema, pág. 72
... encerrados''13
Betton, Gérard, op. cit., pág. 87
...ao''14
Christian Metz
... representado''15
Caillois, Roger, Esthétique Generalisée
... espectador''16
Geada, Eduardo, Os Mundos do Cinema, pág. 160
...eis''17
Geada, Eduardo, Op. Cit., pág. 50
... sonho18
Geada, idem
... (Arnheim)19
Geada, Eduardo, Os Mundos do Cinema, pág. 10
... viajante''20
Robert Bresson, Retirado da introdução falada do autor e dos statements feitos no filme com o mesmo nome, rodado en Maio de 1982 in Wenders, Wim, Op. Cit.
... inteligente''21
Robert Bresson
... coisas''22
Betton, Gérard, pág. 100
... tela23
Rascaroli, Laura, Strange Visions: Kathryn Bigelow's Metafiction, http://www.ucc.ie/ucc/depts/italian/Ir.html
...antico24
Teoria Quântica: teoria introduzida por Max Plank, segundo a qual a emissão ou absorção de energia se faz de maneira descontínua e por múltiplos inteiros de uma mesma quantidade, para a mesma frequência, o quantum
... olhar25
Deleuze, Gilles, O Mistério de Ariana, pág. 15
... passa''26
Deleuze, Gilles, Op. Cit, pág. 41
... outro''27
Geada, Eduardo, Op. Cit., Pág. 343
...ao''28
Elia Kazan
... Rascaroli29
Rascaroli, Laura, Strange Visions: Kathryn Bigelow's Metafiction, http://www.ucc.ie/ucc/depts/italian/Ir.html