Uma metáfora chamada "crash"
A inquietação do corpo - o erótico, anti erótico

Paula Cordeiro

Universidade do Algarve


Índice

Resumo

Baseado no romance escrito por J. G. Ballard em 1973, ``Crash'' é uma história que nos seduz e hipnotiza. Com uma imaginação em tudo semelhante à de J. G. Ballard, David Cronenberg transpôs para o ecrã a sofisticada e perturbante narrativa de ``Crash''.

Expressão da profunda ansiedade que vive a sociedade actual, ``Crash'' é um filme sobre acidentes, onde nada do que se vê é acidental. Muitas das cenas foram cuidadosamente preparadas para chocar e obrigar o espectador a pensar. Com um prémio especial em Cannes pela sua originalidade e audácia, ``Crash'' é um filme que nos revela as obsessões, a luxúria e a brutalidade do ser humano.

O filme começa com duas cenas de sexo. Marido e mulher estão envolvidos numa relação sexual, cada um com o seu amante. Ao fim do dia, quando se encontram, James e Catherine relatam as suas aventuras sexuais.

James Ballard é produtor publicitário, e sofre um violento acidente contra o automóvel da Dra. Helen Remington, que seguia acompanhada do marido. O marido morre e depois de saradas as feridas no hospital, Helen e James cruzam-se e iniciam uma promíscua relação sexual que se desenvolve a partir da redescoberta do próprio corpo e da exploração do perigo dentro de um automóvel. Ballard e Helen acabam por conhecer Vaughan, um cientista estranho que vive obsecado por acidentes de viação e reune uma espécie de sociedade de sobreviventes de desastres. Vaughan dedica-se a encenar famosos acidentes que vitimaram figuras célebres, além de rodar a cidade inteira em busca de novos incidentes. É através de Vaughan que ficamos a conhecer Gabrielle, uma das figuras mais inquietantes de ``Crash''. O corpo de Gabrielle é a crónica dos seus acidentes, e embora repleto de próteses em cabedal, os seus movimentos, o seu olhar e tom de voz conferem-lhe um ar de boneca sexual.

As cenas desenvolvem-se em torno de temas recorrentes: sexo, perigo, excitação e morte. Ao longo das auto estradas e dentro dos carros, Helen e James são envolvidos numa espécie de sub cultura onde se descobrem novas formas de sexualidade, no confronto com o desejo para a morte, no seu desafio e na consciência que um dia a morte vencerá.

``Crash''

Rotas de colisão. Sexo. Desejo. Corpo. Morte.

Na complexa e cadente ambiguidade do mundo, as nossas relações com a realidade parecem estar em crise. Um pensamento excessivo, decorrente de situações também elas excessivas, perante uma panóplia de opções e alternativas que o engenho da técnica nos oferece. Um reino brutal e cru, seduzido pela tecnologia, sedução do corpo e exploração dos limites.

Preparado para chocar e nos obrigar a pensar as nossas próprias concepções de corpo, a história de J. G. Ballard, ``Crash'' revela-nos de forma muitas vezes violenta as mais profundas obsessões e brutalidade do ser humano. Cronenberg usa o corpo humano de forma hábil, transformando-o num signo icónico de uma complexidade extrema, construindo uma semiótica elaborada do corpo. Reconhecido pela sua capacidade de produzir trabalhos que exploram de forma inegável a alucinação e o fantástico, na sua adaptação do romance de Ballard, ofereceu-nos uma obra dura, despojada de palavras onde as imagens se fazem valer por si e nos permitem a interpretação. Dizia A. Bretton, que a vida é um criptograma que os cineastas decifram à sua maneira. Filmar impõe-se-lhes como uma parte da sua vida, algo de que raramente se conseguem afastar. A riqueza do cinema está na capacidade de interpretação que fazemos dessa realidade, tanto pelas mãos do cineasta como à posteriori em cada espectador. O mais importante é a forma como o realizador vai traduzir a sua visão do assunto, transmitindo de uma forma concreta aquilo que até aí era apenas domínio da sua imaginação. ''Um autor é um indivíduo que possui um mundo particular e uma visão pessoal desse mundo particular''1. Não tanto revelador de obsessões pessoais, o trabalho de David Cronenberg tem sido visto como uma crítica irónica dos males que afectam a nossa sociedade. Centrado em temas como a doença que corrompe o corpo humano e a luta dos protagonistas para lhe sobreviverem, Cronenberg não hesita em explorar a ideia de que o desenvolvimento das espécies envolve indubitavelmente uma certa dose de mutação, e passando pelo tema da narcose e alucinação, vai construindo narrativas metafóricas, vanguardistas e quase sempre desconcertantes.

Alguns dos seus filmes anunciam a queda da coerência do corpo, pelo desdobramento que a técnica oferece. ``Crash'' é disso um bom exemplo. Um filme que denuncia a preocupação do autor com o impacto da tecnologia na anatomia humana, onde não falta o choque, o visceral, a intensidade dramática, o desejo de provocar alguma reacção ao espectador. A história do filme é uma metáfora da acção dos media, que povoam o imaginário colectivo com imagens constantes da representação de horrores. Cronenberg mostra-nos a subversão do real através do real por ele criado, um espelho da realidade mediática com que nos confrontamos diariamente. Estamos permanentemente cercados de uma máquina mediática que nos entra pela vida dentro. ``Se a imagética mass-mediática do despedaçamento do corpo contém o poder demoníaco da desagregação de uma qualquer ordem cénica, é porque repete o simulacro duma reinscrição humana da vontade de morte''2. A violência fictícia dos filmes e a violência dos telejornais é semelhante, numa busca incessante do impacto que causa no espectador. Trata-se de uma ficção que tem correspondência na realidade mediática, uma nova modalidade de construção do mundo que possibilita a inversão dos papeis entre a ficção e a realidade. A ficção, que se nos apresenta diante dos olhos deixa a realidade por inventar e tal como J. G. Ballard, que no seu papel de escritor inventa a realidade, cabe-nos também a nós desvendar a loucura deste mundo ficcional. Se até aqui o reino da fantasia se limitava ao nosso universo mental, já não podemos assumir que o mundo exterior represente a realidade. Perante a inversão dos papeis, devemos partir do princípio de que mundo que nos cerca se trata de uma completa ficção e que o pouco que resta da realidade está dentro das nossas cabeças3.

Produto de uma sociedade frenética, caótica e louca em que vivemos, a violência facilita-nos a identificação, de um modo ou de outro, com este filme. Afecta-nos de certa maneira. A experiência estética que nos traz, afecta-nos. Esta ideia abstracta é central em toda a obra do teórico francês, Gilles Deleuze. Deleuze dizia que dizia que o que nós vemos no cinema não é a realidade que real (a nossa); mas, a partir do momento em que essa outra realidade está a decorrer, passa a ser real. E é isso que nos afecta. A base desta ideia de Gilles Deleuze teve a sua génese na filosofia de Brauch Espinosa, o filósofo judeu que compôs a teoria dos afectos. Isto é, a experiência da arte e da estética traz-nos sempre algo, muda-nos em algo porque nos afecta. É o que acontece com a nossa percepção do que é real neste filme. Atinge-nos. Apesar de toda a metalinguagem da arte neste filme, o real está lá. De modo parcial ou total, não importa, mas está lá. Como escreveu o critico de cinema da revista ``Esprit'', Roger Leenhardt: ``Toda a significação do cinema está contida nesta ideia simples: o cinema deve mostrar as coisas tal como elas são''. Depois de alguma reflexão chegou à conclusão de que não poderia ser exactamente assim, e Leenhardt escolheu a elipse como figura de estilo para o enunciado cinematográfico. Esta deve dar conta do mundo, considerando-o contudo, como jamais totalmente revelado. E assim, recorre o cinema à elipse para mostrar o real que se pode descortinar. Daí que o tempo cronológico e o tempo cinematográfico nunca coincidam. O que temos são perspectivas do real, no mundo em que vivemos.

Influenciado pela ficção romanesca e figurativa, o filme é como uma impressão da realidade, despertando no espectador estranhas expectativas, sobre as quais Christian Metz se debruçou. Negando a realidade, os filmes de ficção criam uma ilusão referencial pela negação do significante na constituição da figura do sujeito. O psiquismo do cinema não só elabora a percepção do real, como também segrega o imaginário, de acordo com Edgar Morin, pois ao mesmo tempo que representa, significa. Parece que objecto e sujeito, não se invertendo ou canabalizando, se tornam aspectos de uma mesma realidade, anulando as contradições. É por isso que o mundo da ficção é mais desafiante que o real, pois nele tudo é intencional. A participação activa do espectador - quando este vê o que acredita estar a ver - transporta-o para um simulacro da realidade, um sentimento de actualidade convicta que se desmonta só no final do filme quando se abandona esta realidade fictícia para se afastar dos acontecimentos e regressar à sala de cinema. A linguagem do cinema e das imagens, possuem nos nossos dias uma certa coerência dentro da inconsistência e do alheamento em que vivemos, acendendo o desejo de fazer parte de todo esse universo imaginário que o cinema consegue criar.

A era da produção do outro

O real pelas possibilidades do real

O lugar da corporeidade, na era da produção do outro

Comparáveis a Méliès, os trabalhos de David Cronenberg antecipam as transformações da sociedade, recorrendo às maravilhas da técnica para criar metáforas que habilmente se transformam em realidade. Baudrillard, nas suas reflexões atenta à velocidade que transcende os factos e a todo este ambiente altamente tecnológico em que nos encontramos. ``O real não se apaga em benefício o imaginário, apaga-se em benefício do mais real do que o real: o hiper-real. Mais verdadeira do que o verdadeiro: assim é a simulação''4. A circulação contemporânea de imagens transformou o mundo num écran, como se vivêssemos num planeta onde a matéria se dispersa nas imagens, uma fábula em que os corpos servem de écran para as próprias palavras. Um simulacro no qual as relações entre a ficção e a realidade conhecem novas formas, dando origem a um mundo cada vez mais ambíguo.

A experiência da actualidade é influenciada pela tecnologia que nos oferece em cada instante, novas propostas de presente. O presente confunde-se em alguns aspectos com o terreno da ficção e com o predicado de futuro, num pessimismo e jogo de forças complexo, que tem por principal sujeito o corpo. O corpo humano deixa-se subverter pela técnica, abrindo possibilidades infinitas e deixando a realidade tal como a conhecemos com um aspecto irreconhecível, como se o reino da fantasia a invadisse e instaurasse um novo conceito de real. J. G. Ballard é o principal mentor da ideia da realidade submetida à ficção, observando um mundo governado por ficções dos mais variados tipos, como se vivêssemos dentro de um enorme romance. A insustentabilidade das hipóteses é revelada em ``Crash'', como ``uma imensa alegoria do abismo aberto pela técnica no seio da cultura''5. Destronando as nossas certezas, a técnica torna possível o impossível. O tempo suspende-se e o que se entende por real deixa de estar clarificado, para se tornar uma possibilidade dentro das várias que o virtual pode criar. Assim, o que é possível assume-se como certo, ou ``o conceito de real e da possibilidade da sua absoluta coincidência com tudo o que se encontra virtualmente no estado de potencialidade''6. Esta antevisão de um real fabricado pelo homem põe fim a certezas há muito estabelecidas e abre as portas sobre uma realidade diferente. ``Como em todo o grande romance, não há no fundo nem bons nem maus e todos os heróis têm razão se a atenção do romancista se tiver colocado numa dimensão complementar onde os destinos se tornam a encontrar, confundindo-se, elevados em conjunto a um grau superior''7. Neste panorama, as modificações do corpo humano vêm alterar muitas das nossas concepções. No filme, as possibilidades da técnica provam a adaptabilidade do corpo humano e ratificam a ideia de fragilidade, uma vez que através dos seus suportes e dispositivos permitem reunificar e recriar o que sobra do corpo após um acidente.

O corpo é uma realidade paradoxal8, um veículo referencial que nesta nova dimensão da tecnologia abandona as convicções em torno da singularidade, e a ideia de que podemos dominar a realidade para a reduzir ao mesmo (Lévinas), fica encerrada na essência de um amplo mundo novo. O corpo, fenomenal e sujeito natural é um mundo próprio, com uma existência própria que o condena à coexistência no mundo, para mim e para os outros. É o corpo que me situa no mundo, numa impossibilidade de alheamento do real, do existir. Partindo da abordagem fenomenológica que Ricoeur expõe nas suas obras, temos um corpo como o meio onde a consciência se cruza com o mundo exterior. O corpo, afectado pelo outro produz o sentido, o corpo-próprio. Helmuth Plessner9, um dos poucos filósofos suíços que se ocupou com o papel próprio do corpo, conclui que a existência física é uma relação entre o eu e o corpo, na qual não é só corpo, nem tem só corpo. Nesta relação o eu coloca-se em ambiguidade, ora dentro, ora fora, observando o corpo como um objecto. Em ``Crash'', Cronenberg deixa o corpo assumir a sua autonomia, encarando as suas modificações no quadro das consequências que acarretam para a sociedade moderna. A realidade torna-se pouco plausível pela invasão das balizas do corpo, que transformam o eu em outro. É o esmorecimento da alteridade na desafeição dos valores individuais. O outro vai produzir-se pela diferença, numa modernidade em que o colectivo está subordinado ao individual, num processo de personalização das singularidades. É uma era da produção do outro, onde a pior alienação é estar despojado do outro, ter de o produzir na sua ausência. Esta ausência preenche-se com as invenções técnicas, que amputam ou acrescentam, modelando o corpo em função de um modelo ideal. Esta idealidade pode ser subversiva, se pensarmos um mundo ascético em que o corpo ganha novos moldes que anseiam pelo toque. São marcas impressas nas cicatrizes do corpo, como um catálogo de ferimentos, cheio de amputações e implantes num esquema em que os dispositivos da técnica permitem re-alcançar a integridade do corpo, ainda que se mantenham os vestígios do que parecem ser cicatrizes ou se utilizem próteses. O mito do super-homem continua presente entre nós, conhecendo cada vez mais uma dimensão possível. Já podemos substituir grande parte do nosso corpo, sem que para isso deixemos de ser menos humanos. A cirurgia plástica e as mudanças de sexo são plenamente aceites, os implantes e as substituições de membros pelos seus equivalentes biónicos começam a ganhar aceitação. O que é provocante na história de ``Crash'' é a subversão que se faz do corpo humano. Contrariando o mito da cicatriz, as personagens exibem o seu corpo deformado, numa expressão irónica, como o reflexo do pesadelo que a própria tecnologia permite ``Gabrielle ia dum stand ao outro, apoiando-se nas pernas estropiadas. (...) Girando mecanicamente dum lado para o outro sobre os calcanhares, ela acariciava as superfícies metálicas com as mãos cheias de cicatrizes, e roçava a bacia estropiada contra os guarda-lamas (...) Gabrielle avançava como uma boneca articulada entre os executivos das diversas firmas e as beldades reclinadas sobre os automóveis expostos''10. A bizarria do corpo estropiado contraria a beleza, numa altura em que nada no corpo é deixado ao acaso. Temos ao nosso dispor formas para a preservação do ideal de corpo e é com base na imagem que os outros fazem do nosso corpo, o nosso look, que se legitimam os melhoramentos e alterações que se lhe introduzem. ``As deficiências das funções vitais, tanto no domínio da sobrevivência dos indivíduos como na esfera da reprodução da espécie, estão doravante destinadas a ser assistidas em laboratórios ou compensadas tecnicamente por próteses cada vez mais eficazes, incorporadas e imperceptíveis''11. Trata-se de uma utilização projectiva, singularizada em cada outro que se produz pela diferença. Debruçando-se sobre a imagem do corpo, Cronenberg constrói uma semiótica muito particular à volta deste tema, usando as suas modificações possíveis para representar os constrangimentos subjacentes às alterações que o eu tem vindo a sofrer. É um corpo como projecção do mesmo, que permite ter a sua mesmidade permanentemente alterada. A dissolução da identidade do eu, é igualmente um paradigma das consequências da nossa existência, perante uma contemporaneidade individualista e altamente tecnológica. E, ``se no corpo já não há um lugar para a alteridade, para uma relação a dois, é porque se assume como um lugar de identificação, que devemos reconciliar, reparar ao ponto de o tornar perfeito, como um objecto ideal''12. Nesta redescoberta do outro, naquele absoluto indesmentível que se situa nos limites do corpo humano, chegamos ao ponto de nos infligirmos golpes propositados, para através da mutilação e mutação do corpo, podermos demarcar um estilo e assumir uma nova identidade. Este culto do corpo converte-se num modelo de toda a experiência, um ideal a alcançar, que em ``Crash'' as personagens assumem pelo seu lado mais negativo: o disforme que prepara o corpo para novas formas contrárias à tradicional unidade do corpo, em forma de provocação.

No filme, o corpo belo e idealizado desmembra-se cada vez mais chegando a uma des-subjectivação que, se levada ao limite revela um corpo impróprio com o qual é impossível qualquer tipo de identificação, pois mesmo reconstruído integralmente, jamais mantém a sua identidade. É o mesmo, sendo outro. Estas alterações não implicam uma perda de sentido, apenas uma mudança de contornos, de figura que ainda assim se realiza no corpo13. ``Crash'' é o produtor de monstros, que se traduzem num novo reino de sensualidade e sexualidade que experimenta os limites, e joga com esses limites, contrariando a necessidade da normalidade humana. Trata-se do mesmo transformado em quase outro, em que a identidade humana se assume como uma mesmidade normal e o outro como uma alteridade radical. É um novo sentido de alteridade, independente da existência corporal. O corpo serve apenas para sustentar uma existência pessoal que transporta a nossa identidade física e a pode rejeitar, para buscar uma outra, que se desenvolve num círculo de afectividade e relacionamentos do mundo que lhe dá sentido. A representação do eu com a imagem de si próprio está no facto concreto do existir, na concretização de uma presença que manifesta o meu lugar no mundo. Uma marca, um traço são os manifestos dessa presença, de um corpo que ``não existe diante de nós; é indissociável da nossa experiência do mundo (...) a deslocação para aquém ou além do nosso mundo é inseparável da deslocação do nosso próprio corpo, fazendo assim diferir interminavelmente o seu horizonte''14. Só por si, o corpo exprime a existência. Nem o corpo nem a existência podem exigir para si o estatuto de serem os únicos identificadores da originalidade do ser humano15. Em ``Crash'', as personagens orientam a sua presença no mundo para si, numa envolvente narcisíca, ``concentrando-se nos seus interesses, mas carentes dos seus próprios valores do `self' - notadamente, auto-expressão, serenidade, dignidade, integridade''16, que procura o limite a ultrapassar, resistindo de face voltada para o outro. Assim, experimentamos a sua presença ``sob a forma de uma imagem abissal que nos é devolvida pelos outros e que permanece aberta a todo um jogo interminável de reflexos. É por isso que entre a identidade e a alteridade se interpõe todo um processo infindável de constantes alterações que tornam impossível uma objectivação completa e definitiva do nosso corpo''17.

A figuração e a representação do corpo

A não sedução pela exploração das categorias possíveis

A obscenidade presente em cada marca do corpo

O corpo, durante tanto tempo negado, assume cada vez mais um papel preponderante, com a tomada de consciência associada a uma ideia de transformação e mutação, explorando os limites do que é realizável.

Colocam-se novos desafios, para experimentar a mediação entre a técnica e o desejo.

Em ``Crash'', este mundo fantástico da anatomia nega a integridade das personagens, numa espécie de fascínio pela decomposição, mutilação e transformação que faz esquecer a ideia de unidade. Extrapolando desejo de morte individual para a civilização em geral, Cronenberg explora a conexão entre o sexo e a morte, criando um mundo abstracto e conceptual que potencia o inorgânico e erotiza a tecnologia, na figura maquinal do automóvel. Colocando o corpo ao serviço da concretização de desejos e fantasias, o realizador especula sobre os nossos devaneios, projectando para o ecrã os delírios do espectador. ``O desejo de morte que está em causa em Crash refere-se a um desejo impreenchível, ao desejo de desejar''18. Este desejo que as personagens de ``Crash'' revelam é um desejo de posse sobre uma vontade, numa lógica semelhante à do mestre e do escravo. Nesta dialéctica não se procura o corpo pelo corpo, o drama inclui um sujeito que desperta o Eros fascinante que há no outro, numa vertigem tão perigosa como um jogo de azar. ``É cair na valia da atracção, da sedução do objecto. O sujeito perde-se no objecto, fica fascinado e desfeito por ele''19. O sujeito deseja, e o objecto seduz. Baudrillard atenta ao privilégio do sujeito, ``porque este, podendo apenas desejar, é frágil, enquanto o objecto, por seu lado, joga muito bem com a ausência de desejo. Ele seduz através desta ausência de desejo, joga no outro com o efeito de desejo, provoca-o ou anula-o, exalta-o ou decepciona-o''20. Esta sedução, erotizada no próprio corpo revela o conhecimento que se faz dele, pela expressão corporal que o desmascara. É pelo corpo que nos ligamos à alma e ao mundo exterior e apesar das suas diferenças, o humano congrega uma unidade que vive oscilante entre o desejo e a consciência. Esta unidade entre as partes do corpo baseia-se nas imagens de uma relação em que interior e exterior se confundem. Errante por natureza, o homem deve manter a lucidez suficiente para separar a relação real da imaginária, num processo de conhecimento do próprio corpo, dos seus desejos e limites. Voz originária, o desejo é descontrolado, e numa ânsia de infinito, quer sempre mais do que aquilo que tem. É o desejo que medeia a relação do corpo e da alma, que Ricoeur explica a partir da tematização do homem como um ser misto21, repleto de oposições entre a razão e o desejo, que se esforçam por uma eterna conciliação. Em Ricoeur, o desejo denuncia uma carência, uma exigência de satisfação de qualquer coisa, obviamente fora do ser. É Vaughan que introduz no enredo de ``Crash'' a capacidade de descoberta, na procura de algo para colorir uma vida aborrecida. Um desejo nunca satisfeito, desejo de nada e de tudo, que encontra na morte a libertação para esse anseio inesgotável. Para Bataille, a violência do erotismo está no jogo de forças entre a individualização e a fusão. O indivíduo quer ser ele mesmo e no entanto, fundir-se com o outro. Cronenberg exaspera esta dialéctica pela transgressão, violência, destruição e morte. A morte de Vaughan, resultado de uma patética tentativa para destruir a monotonia, permite o embarque das personagens na tomada de consciência de si mesmas, especialmente Ballard, que consegue finalmente perceber-se e elevar-se da espiral erótica em que se tinha envolvido após o contacto com Vaughan.

A representação da auto destruição é uma das mensagens mais fortes do filme, onde ``as imagens da desagregação, da mutilação, da decomposição do corpo povoam e desprezam os modelos por conservação. Por vezes são tão fascinantes, tão repulsivas e tão atractivas que perturbam de forma ímpar as mais fortes representações do equilíbrio''22. A dada altura, as personagens revelam uma desafeição pelo seu corpo, uma necessidade de confrontar o estabelecido com a figura da mutilação, do acidente e em última instância, da morte. A mutação do corpo humano desencadeia a queda de tabus, vergonhas ou preconceitos que propiciam toda uma nova lógica de desafio. Nesse desafio, constroem-se novas acepções para o corpo num desejo escapista a uma normalidade repugnante. A confissão do desejo tem a marca da ambiguidade: o desejo vive da imaginação, retém a imagem do objecto e envolve-a num ambiente de sedução, charme e fascínio. O imaginário é posto na relação do desejo com o sujeito pela sedução destas novas formas corpóreas. A motivação das personagens não é clara. Ela está subjacente a uma cultura da modernidade, um urbanismo anónimo que deixa o homem só perante si e o mundo, motivando-o para uma cultura da diferença. A sociedade pós moderna, com tendência para aumentar a opção privada, vive num ``reino dos media, dos objectos e do sexo''23, onde cada um procura a sua verdade, a sua forma estética, afectiva e até libidinal.

As novas formas de espiritualidade trazem de novo para primeiro plano o corpo humano, sacrificando-o ou adornando-o, mas nunca o negando, como fez o Cristianismo. A cultura ocidental afastou-se sempre de uma ligação visível com o corpo, perdendo a presença para si do corpo individual. O movimento humanista, fonte originária de toda a tradição judaico-cristã representa o corpo vestido, numa expressão metonímica que o faz esquecer, e o remete para a organização simbólica da vida24. A cultura ocidental tende a esconder o corpo humano, afirmando em todos os aspectos a supremacia da mente sobre a carne. Neste reino simbólico, as grandes personagens da história são predestinadas a uma encarnação que rebaixa o corpo e eleva o espírito, ao ponto extremo da negação do corpo, na morte. Toda esta perturbação com o corpo e a sua utilização favorece o desencontro do homem com o sexo e com a imagem do seu corpo, que só muito gradualmente se foi redescobrindo. O culto do corpo estimulou a mudança e agora conhece um regresso às origens, pelo adorno e mutilação.

A marca da cultura num corpo que pela sua plasticidade traduz os códigos, é tida como uma possibilidade de modelo de representação, há muito comum nas sociedades, por revelar os seus costumes no simbolismo patente em cada modificação do corpo humano. ``Sabe-se que em África certas escarificações marcam o indivíduo de um cunho indestrutível: signo de pertença ao grupo, o seu grupo reflectirá para outros um território de exclusão. (...) A escarificação e a tatuagem supõem uma comunidade mais profunda, porque o sistema de classificação que estes signos implicam age apenas sobre um fundo único, um corpo ``incestuoso'' que atravessa todos os corpos individuais: cada signo de reconhecimento só é eficaz se ele próprio, na sua materialidade de signo, for reconhecido idêntico; isto é, a escarificação significante de pertença ao grupo, não reenvia a um significado, que, uma vez preenchido, permitiria o reconhecimento. Pelo contrário, é porque o reconhecimento do idêntico é principal que ele vale como signo do Mesmo''25.

Pinturas corporais, tatuagens, escarificações, piercing, amputações e mutilações genitais, ganham agora de novo preponderância. Actualmente, muitos jovens servem-se da mutação para tomarem consciência do seu próprio corpo. Uma cultura underground baseada em mitos culturais, fantasias e criações artísticas, num retorno ao que de mais ancestral existe.

Nos Estados Unidos, o simbolismo das cicatrizes chega tão longe que muitos jovens infligem golpes propositados - body modification - para demarcarem a história da sua vida sentimental. Uma auto mutilação que anda muito longe dos ritos tribais e da estrutura que os sustenta. Esta ideia de transcendência deixa ao corpo um papel mutante, onde só o exterior é adornado. Tal como na história de ``Crash'', também estes novos ritos põem em causa a metáfora do corpo e querem explorar os limites do possível. O desafio coloca-se a cada um, face à capacidade individual de experimentar novas modificações, independentemente da razão que esteja na origem desse desejo. Todos eles revelam personalidades narcisistas, que padecem de uma série de obsessões, como se tratasse de uma deformação por excesso de conformidade, na qual o dogma do corpo se perdeu. Esta desaparição do corpo na ``forma discreta do espelho, através do qual o corpo se vigia a si mesmo e à sua imagem, é abolida, deixando o lugar para a redundância sem freios de um organismo vivo. Não há mais limites, não há mais transcendência: é como se o corpo deixasse de se opor a um mundo exterior, mas procurasse digerir o espaço na sua própria aparência''26. Sem ideal do eu, Cronenberg explora as figuras num fascínio descomplexado, que exibe sem artifícios e sem pudor os recantos menos prováveis, os tecidos hipertrofiados e as marcas obscenas que pressagiam uma nova cópula entre o desejo e o corpo, numa sedução pouco convencional.

Estamos a atravessar uma época que põe em causa os valores, deixa os afectos vazios de sentido e a alma perdida no seio das abstrações. Em ``Crash'' vive-se um superlativismo, uma indistinção entre o verdadeiro e o falso, o belo e o feio onde a sedução se faz independentemente de qualquer juízo de valor. As formas mais tradicionais de expressão da sexualidade são rejeitadas, e tentam-se formas desiguais de viver e sentir. Todas as reacções se alteram, a noção de dor torna-se muito própria, as emoções são traiçoeiras e atitudes inconcebíveis ganham uma acepção banal. Em toda a narrativa, ficção e realidade misturam-se de forma magnífica. Entre as personagens criam-se relações de ironia e afecto que propiciam toda a lógica sexual que lhes está inerente. A função tradicional do sexo muda, e mudam também os pontos erógenos do corpo humano. O potencial erótico encontra-se nas marcas que o habitáculo do veículo deixou cicatrizadas no corpo. ``A colisão constituía a única experiência genuína a que eu estivera sujeito desde há muitos anos. Pela primeira vez, eu via-me confrontado com o meu próprio corpo, enciclopédia inexaurível de dores e supurações, sujeito ao olhar hostil das outras pessoas''27. O prazer retira-se da exploração das novas formas do corpo, as fantasias eróticas prendem-se com a ligação do corpo estropiado e os acidentes ainda possíveis, criando em nós a visão de certas mortes e ferimentos até aí temidos e nunca idealizados. O acidente de automóvel enriquece todas as possibilidades do corpo e da sua identidade, que pesquisa misteriosos universos. Não há sentimento de horror. Os sinais sedutores triviais conhecem um novo formato, numa coqueterie em que o corpo deformado é o impulso de uma nova relação com a gestualidade e a anatomia. Trata-se de uma sedução misteriosa, confissão de um desejo, da tal procura incessante que paradoxalmente se encerra a si mesma, no encontro com a morte.

A mortificação da carne é o tema recorrente em ``Crash'', com todos os acidentes intencionais, as escoriações e ferimentos personificados em Gabrielle, a personagem mais afectada pelos acidentes.

Gabrielle é a nossa consciência da fragilidade do corpo. Uma criação digna de humor negro, com imagens que são um compromisso literário e figurativo, no qual a extensão de uma cicatriz na sua perna parece querer representar um sulco semelhante ao sexo feminino. Apesar de aleijada, Gabrielle é muito sensual e usa sua incapacidade de forma sexy e provocante. Com as pernas presas dentro de aparelhos de metal, a cena no stand da Mercedes em que experimenta um automóvel consegue provocar o nosso desejo de tocar, sentir como será viver e movimentar-se assim agrilhoada. A cena é uma duplicação de muitos anúncios, com a diferença de que a figura sedutora da mulher é acompanhada por um vasto leque de deficiências físicas, gerando uma incongruência entre o cenário e a personagem.

Gabrielle é uma personagem emblemática. Mais do que as cicatrizes, a sua personagem existe para perturbar, para provocar a curiosidade e aumentar a tensão entre o desejo de viver situações limite e o medo incontrolável que nos deixa tolhidos. As cenas de sexo que a envolvem são verdadeiras acrobacias, com torsões e contorsões, ``um calvário físico num corpo que é já mutante''28. Tanto o colete ortopédico, como os aparelhos que usa nas pernas e o fato de cabedal que a sustenta, transformam a sua figura - que poderia ser monstruosa - numa sex doll rodeada de um cenário de humor, perfídia e até tristeza, que não existe em nenhuma outra personagem.

Os monstros tocam-nos sempre.

Significam demasiadas coisas, coisas que muitas vezes se reduzem a nada porque não as sabemos descodificar. O monstro transforma ``o corpo em signo delirante, parasitário de todos os signos da linguagem''29 e no trabalho de David Cronenberg, a monstruosidade toma como protagonista o corpo enquanto expressão das ansiedades sociais, que são representadas em ``Crash'' na morte da vida afectiva. A tónica acenta no ``gozo do sofrimento e das mutilações, a visão do sexo como arena mais ideal, onde podemos exibir a verónica das nossas perversões, o jogo das nossas nevroses, e sobretudo as nossas capacidades aparentemente ilimitadas de abstracção''30.

Para muitas pessoas, a ideia de que as cicatrizes podem funcionar como símbolos de atracção sexual parece absurda. No fundo, a marca da civilização é ter marca nenhuma. Ao longo da história do Cristianismo, as marcas separavam os cristãos dos pagãos, atribuindo-lhes uma aura de pureza, de belo e de proximidade com Deus. A sociedade contemporânea continua a ver as cicatrizes como uma desfiguração e quem as tem, tenta disfarçá-las ou removê-las. Vaughan, a figura mais perturbada e perturbante da narrativa, revela a sua obsessão em torno das feridas que têm em si um misterioso erotismo. ``Crash'' expõe as cicatrizes como trofeus, uma marca que ajuda a compreender as verdadeiras emoções proporcionadas pelo automóvel. São esculturas em movimento, uma anatomia distorcida, posta a nu pela máquina mortal, metáfora da vida no século XX. A geometria do automóvel acidentado desperta um desejo de toque e sedução. Reflexo da violência do século, no qual através do automóvel atingimos elevados níveis de velocidade e agressão, o acidente desperta em nós a consciência da fragilidade do corpo. A inscrição das feridas ao longo do corpo é uma crónica ilustrada do nosso percurso ao volante de um automóvel. As feridas não são repugnantes, são a história viva do que se passou, uma nova forma de atracção sexual pela imaginação do acidente em si. ``As cicatrizes do meu peito fascinavam-na, e ela beijava-as com os lábios molhados de saliva''31. Depois das portas abertas pelo acidente, é com Vaughan que se deixam transportar para um enigma sedutor, que se desenvolve na viciosa curiosidade das as rotas de colisão possíveis. Vaughan é uma presença enigmática e inquietante, que afecta os comportamentos. As figuras centrais da trama perdem a sua força interior, fragmentando-se em torno das ligações que desenvolvem com Vaughan, um maníaco obcecado pela reprodução de acidentes de viação. A curiosidade pelo acidente, a sedução pelas escoriações e a própria forma de conduzir indiciam uma amálgama de sensações fortes e um certo erotismo que profetiza um novo acidente, tornando a asfixia do desejo um verdadeiro martírio.

Cronenberg mostra, aquilo que com Ballard conseguimos imaginar.

A percepção do novo corpo, perante a dor e as marcas dos ferimentos, liberta o homem para fantasias cada vez mais ausentes e distantes do quotidiano banal, num convite fetichista que leva as personagens a regressarem ao momento do acidente. ``(...) as matrizes de variações sexuais inéditas a serem criadas futuramente em centenas de colisões experimentais''32. A associação de partes do corpo dilacerado e partes da carroçaria, são novas formas de uma relação da dor e do desejo, que revelam uma nova personalidade que até aí estava subjacente. ``As linhas agressivas deste habitáculo produzido em massa, as molduras exageradas em volta dos comandos, tudo isto veio reforçar a minha sensação de uma nova relação entre o meu corpo e o automóvel (...)''. Depois dos acidentes, todos respondem a instintos básicos, adoptando um estranho comportamento no que respeita à morte. Esta libertação do homem não se limita a transformar a visão que se tem da realidade, uma vez que conjuga essa nova visão com a transformação da própria realidade, como diria A. Bretton.

A inquietação do corpo

A utopia da sexualidade na erotização

A volúpia na repetição

A narrativa de ``Crash'', explora extremos de comportamento, revelando a perversidade do ser e a adaptabilidade do corpo humano. A história concentra-se nas respostas estranhas, muitas vezes chocantes de um grupo de pessoas que encararam a morte em acidentes de viação, numa espécie de psicologia da violência. Esta experiência atribui-lhes novas ideias e formas de estar, levando-as a redescobrir a sua sexualidade e uma nova vitalidade nos seus corpos escoriados e carros amolgados. A algumas colisões que deixam as personagens ilesas, segue-se a cena que representa o desespero da personagem, por não ter sequer um arranhão. Tanto a tristeza como que o acidente que a precede são de uma angústia quase insuportáveis. Cronenberg explora neste filme, ``a ligação entre o sexo e a morte, levando-a a um nível superior por sublinhar os restos desta existência industrial (...) onde não só o indivíduo procura a morte - é toda uma civilização''33.

A sexualidade faz parte da nossa existência, desempenhando um papel privilegiado na nossa relação com o mundo. Indissoluvelmente ligada à nossa imaginação, a sexualidade é uma representação do homem com o seu mundo, vivida de forma real e imaginária. ``Há osmose entre a sexualidade e a existência, ou seja, dizer que a existência se difunde na sexualidade, reciprocamente a sexualidade se difunde na existência, de sorte que é impossível indicar, para uma decisão ou uma acção dada, à parte da motivação sexual e das outras motivações, impossível caracterizar uma decisão ou um acto como sexual ou não sexual''34. A sexualidade não é somente física, não é somente genital. Ela é desencadeada pelo desejo e incarna-se no corpo que transporta a existência35. A narrativa de ``Crash'' desenvolve-se a partir de um acontecimento que é o mito fundador da mudança. Os meandros do corpo, de noção de corpo, de limites e da exploração de novas sensações que culminam numa nova vivência sexual. A experiência do acidente de automóvel é um acontecimento mortal duma intensidade sexual tão forte que é impossível de acontecer de qualquer outra forma. A perversidade em todas as suas formas está aqui presente. Não se trata de sexualidade, mas de tecnologia perversa que concretiza desejos e fantasias. O automóvel alimenta o nosso desejo de velocidade, escape e liberdade que origina uma nova sexualidade.

É pela sedução disforme e desejo sexual que este filme se afasta dos parâmetros da normalidade e nos perturba. Concretiza-se um mundo pós humano, reinado de um jogo cruel de sedução, pela provocação fatal de cada corpo. A diferente concepção do corpo, das suas zonas erógenas, do momento ou local para a sexualidade, podem cativar e erotizar o pensamento onde a incerteza das origens, a indefinição do objecto e a procura do prazer definem a excitação sexual.

O poder de sedução, da anatomia do corpo em estreita ligação com a do carro, desperta interesses muito característicos no conformismo masculino - feminino. Essa relação é determinante para um crescimento deliberado da perversidade das personagens, que encontram na relação homossexual uma fuga ao modelo padrão, e nos corpos desfiguradamente cicatrizados, o potencial erótico do seu prazer sexual. A concepção estafada do sexo nas suas mais variadas formas vai encontrar no acidente e nos corpos marcados uma nova expressão para a sedução e o prazer. Ao sexo extraconjugal contrapõe-se o voyeurismo, e à relação homossexual, o prazer de tocar as feridas, percorrer os seus sulcos e apreciar os dispositivos que amparam pedaços de corpo, só aparentemente unificado.

A crise dos afectos é plenamente caracterizada em ``Crash''.

Depois de uma vivência aparentemente banal, Helen Remington conhece novas formas de sexualidade, na descoberta da perversidade que encera em si mesma. O drama sinistro do acidente que vitima o seu marido, num quadro dantesco de tecnologia e salvação vai consumir-se na ``união inevitável e perversa'' que se desenha entre Helen e James Balard, o causador da tragédia. Depois do acidente e durante a recuperação, Ballard toma conhecimento das inúmeras possibilidades do acidente, num conjunto de emoções em torno de constrangimentos sexuais que envolvem também a própria Helen. A fantasia gira em torno da colisão do seu carro com o de Helen, na consciência de uma sexualidade redescoberta, até ao momento em que os dois se reencontram, na contemplação dos carros amolgados, sujos de sangue e lama. Helen vinga-se da violência terrível causada pelo acidente, numa relação paradoxal que envolve Ballard. Helen vai desenvolvendo a sua sexualidade ao longo da narrativa. Saltita entre amantes, não se abstraindo sequer da relação homossexual, mergulhando numa promiscuidade após o luto. As obsessões de Vaughan, transpostas para todas as outras personagens que o acompanham, envolvem Gabrielle, a doce amante estropiada, e Helen que encontra a sua felicidade nas chagas e cicatrizes da amante.

O sexo tradicional já não preenche as personagens, num inconformismo representado pelo casal James e Catherine. Antes do acidente, o seu casamento já estava recheado de aventuras extra conjugais, numa constante negação da moral que busca o erotismo irresponsável, anárquico, externo a qualquer possessividade amorosa. É o acidente que vai oferecer uma energia sexual e emocional que as personagens já não conseguem obter pela normalidade. As relações sexuais são quase abstractas, mantidas com base numa série de jogos de perversidade. A satisfação que obtêm com estas novas aventuras sexuais vai muito além do simples prazer sexual, funcionando como uma libertação total das suas emoções. ``Este jogo do esconde-esconde era algo de que tanto eu como ela não conseguíamos abdicar. (...) Havia alturas em que eu chegava a pensar que estas aventuras amorosas tinham como única função fornecer a matéria-prima para os nossos jogos sexuais''36. Este erotismo como um afrodisíaco excessivo não permite resistência de qualquer espécie. O sujeito transvia-se e busca mais do que pode ter, num desejo que é por natureza descontrolado. Em grande parte, as manias de Vaughan fascinam quem dele se aproxima, pela intriga que desenvolvem. Ballard acaba por se excitar com a ideia de um coito com Vaughan, muito embora tenha sempre a ideia de estar a pensar num acto sexual que envolve outra pessoa que não ele. Em reflexão, reconhece que este interesse depende não da sua anatomia, mas do automóvel, emblema de tantas seduções. ``Vaughan só despertava em mim impulsos homossexuais latentes quando nos encontrávamos dentro do habitáculo do seu carro, ou quando rolávamos por uma estrada. O seu poder de sedução residia (...) no equilíbrio estilístico das linhas e dos movimentos que se estabelecia entre Vaughan e o carro''37. É com Catherine, a mulher de James Ballard que Vaughan vai representar um papel nas suas fantasias eróticas e esta, apropriando-se dos devaneios que James desenvolve, imagina-se deitada ao lado de Vaughan, não hesitando no momento de concretizar essas fantasias, deixando que o marido tome a posição de voyeur, numa ironia sem limites. As melhores cenas terminam numa catarse, deixando o orgasmo como uma simples manifestação física desse prazer. Não interessa onde ou com quem. O importante é o momento em que cada um se reencontra numa comunhão irascível de ilusões violentas e desejos primários, em viaturas mais ou menos acidentadas. Reafirma-se a redescoberta da sexualidade após o acidente. A relação matrimonial anteriormente mecânica que sobrevivia à custa de expedientes imaginativos, reencontra-se no reconhecimento do indivíduo e do seu lugar na relação. No entanto, o acidente desperta também uma alteridade latente na obsessão pelas possibilidades sexuais de tudo o que rodeia James Ballard. ``Enquanto ela se deixava ficar deitada a meu lado, atrasando-se deliberadamente para o emprego, eu conseguia atingir o orgasmo só de pensar no qual eu e Helen Remington executávamos os nossos actos sexuais''38. Os fantasmas do desastre constróem uma paranóia de sonhos realizáveis, nas fantasias de uniões sexuais nunca antes imaginadas. O automóvel é uma metáfora audaz do pendor erótico, do instante no qual o sexo se torna um apetite insaciável. Através da metáfora do carro, é simulada uma sexualidade e um desejo para a morte, provando que o ser humano consegue manter-se acima desse simulacro, pela vontade e controle da realidade. As figuras desta história estão mais preocupadas em explorar os limites - da condução, da tecnologia, do desejo, do sexo e da própria vida - do que em morrer. Trata-se de uma exposição deliberada ao perigo - não apenas físico - onde morrer é a concretização dos ensaios realizados em todos os acidentes anteriores.

Biliografia

Teses de mestrado

FONTOURA, Amândio, O Corpo como Apropriação (Dissertação de tese de Mestrado em Filosofia), 1996, UNL - FCSH

Artigos, Revistas e sites na Internet

CRUZ, Maria Teresa, Media Art ou Mediacracia

BAUDRILLARD, Jean, Plastic surgery for the Other

Revista de Comunicação e Linguagens, nš 10/11, Ed. Centro de Estudos de Comunicação e Linguagens, Lisboa, 1990:

RODRIGUES, Adriano D., O Corpo e a Linguagem

JEUDY, H. P, Equilíbrios Imaginários, in Prodies le l'autodestruction, Librairie des Méridiens, Paris, 1985, pp. 41-51

Revista Sight and Sound, Junho de 1996

Revista Cahiers du Cinéma, nš 504

http://www.flf.com/crash/cmp/storyboard.html

http://zappa.users.netlink.co.uk/cronen.html

Filmografia

Crash, David Cronenberg, 1996



Notas de rodapé

... particular''1
WEYERGANS, Tu e o Cinema, pág. 156
... morte''2
JEUDY, RCL nš 10/11 (Equilíbrios Imaginários), p. 22
...cas3
BALLARD, Crash - introdução do autor, p. 24
...ao''4
BAUDRILLARD, As Estratégias Fatais, p. 12
... cultura''5
BALLARD, Crash (nota à edição francesa) - Prefácio de J.B. Miranda, p. 9
... potencialidade''6
CRUZ, Maria Teresa, Media Art ou Mediacracia
... superior''7
PAUWELS e BERGIER, El Retorno de los Brujos, p. 45
... paradoxal8
RODRIGUES, RCL nš 10/11 (O Corpo e a Linguagem), p. 25
... Plessner9
PIMENTA, A Máscara diante da Cara (Imagens do Corpo), p. 130 - Texto publicado no âmbito das pesquisas do Gabinete de Estudos de Simbologia da Universidade Nova de Lisboa, tendo por base o seminário ``Para uma determinação do simbólico'' (Março de 1981)
... expostos''10
BALLARD, Op. Cit., p. 206
...iveis''11
RODRIGUES, Op. Cit., p. 26
... ideal''12
BAUDRILLARD, Figures d'Alterité
... corpo13
MERLEAU-PONTY, Phénomènologie de la Perception, p. 193
... horizonte''14
RODRIGUES, Op. Cit., p.29
... humano15
MERLEAU-PONTY, Phénomènologie de la Perception, p. 194
... integridade''16
LOWEN, Narcisismo, p. 9
... corpo''17
RODRIGUES, Op. Cit., p. 28
... desejar''18
BALLARD, Crash (nota à edição francesa) - Prefácio de J. B. Miranda., p.13
... ele''19
ALBERONI, O Erotismo, p. 66
... decepciona-o''20
BAUDRILLARD, As Estratégias Fatais, p. 95
... misto21
RICOEUR, Finitude et Culpabilité (L'Homme Faillible)
...ibrio''22
JEUDY, RCL, nš 10/11 (Equilíbrios Imaginários), p. 19
... sexo''23
LIPOVETSKY, A Era do Vazio, pág. 23
... vida24
PIMENTA, A Máscara Diante da Cara(Imagens do Corpo), p.134
... Mesmo''25
GIL, Metamorfoses do Corpo, p. 44
...encia''26
BAUDRILLARD, Op. Cit., p. 25
... pessoas''27
BALLARD, Op. Cit., p.63
... mutante''28
BOUQUET, Sweet Movie (in Cahiers du Cinéma), p. 24
... linguagem''29
GIL, Op. Cit., p.39
...ao''30
BALLARD, Crash (nota à edição francesa) - Prefácio de J.B. Miranda, p. 12
... saliva''31
Idem, pág. 75
... experimentais''32
BALLARD, op. cit., pág. 208

$^{30}$ BALLARD, op. cit., pág. 79

...ao''33
KAUFFMAN, Bad Girls and Sick Boys, p. 184
... sexual''34
MERLEAU-PONTY, Op. Cit., p. 197
...encia35
FONTOURA, O Corpo como Apropriação, p. 49
... sexuais''36
BALLARD, Op. Cit., p. 55
... carro''37
Idem, p. 146
... sexuais''38
Idem, p. 110