Da virulência

António Fernando Cascais

Universidade Nova de Lisboa

Não atrairás já com teus encantos os carvalhos, Orfeu, nem os rochedos nem os rebanhos. Dos animais sujeitos às leis que são as suas; Já não entorpecerás o bramido dos ventos. Nem a tempestade de granizo ou a neve em rajadas. Não mais que o estrépito das ondas, pois que te eis Morto. Muitas vezes te choraram a sorte, as filhas da Memória e sobretudo a tua mãe Calíope. Porquê lamentarmo-nos sobre os nossos filhos exangues, porquanto nem mesmo os deuses conseguem arrancar a Hades os seus próprios filhos?1

Já lhe chamaram praga, castigo divino, vingança da natureza, que se abate sobre a humanidade pecadora ou que retalia sobre a irracionalidade dos comportamentos. Anunciou-se o apocalipse inapelável e a grande oportunidade da regeneração final. Anunciou-se a transformação radical da sociedade tal como a conhecemos, anunciou-se até o fim previsível da espécie. Anunciou-se o fracasso da ciência moderna e o retorno da moral eterna. Temeu-se a liberdade de costumes e temeu-se pela liberdade em geral. Proclamou-se o fim da permissividade e a punição iminente dos responsáveis pelos males do mundo. Denunciou-se a fragilidade de todas as certezas e as certezas de todas as intolerâncias. Advogou-se a coragem de saber viver nos extremos da vida e o regresso ao paraíso perdido de um mundo sem Sida. Contra a cândida ilusão da estabilidade intrínseca dos fenómenos naturais, lembrou-se a virulência essencial dos fenómenos vivos, contra a crença na bondade alojada no mais fundo do coração dos homens, apontou-se a sempre reactivada virulência que se enrosca nas melhores cepas da boa vontade. Em todos os terrenos e com todas as armas, combate-se o vírus da Sida e o não menos insidioso vírus da discriminação. Nos sentimentos precipitados pela Sida e nas atitudes em relação a ela concita-se tudo quanto é angústia contemporânea sobre o perigo dos homens e o perigo da natureza, sobre a identidade individual e colectiva e o destino das sociedades, sobre a ordem do mundo e das coisas, sobre a precaridade dos poderes do conhecimento e as sempre renovadas astúcias da dor e da morte.

A luxuriante proliferação de opiniões sobre o sentido da presença da Sida nas sociedades contemporâneas, das suas possibilidades de transformação dos modos de vida e dos seus efeitos sobre a economia, a cultura, a moral e a política, confundem decerto um público menos atento e tanto mais vulnerável quanto são vozes autorizadas por tudo menos a serenidade a turvar as águas onde melhor lancem as redes dos seus dissimulados ou assumidos interesses.

O aparecimento da Sida veio ressuscitar um medo atávico do poder da natureza numa época em que é cada vez mais generalizado o receio ante o poder da técnica. A epidemia irrompe num mundo tecnocientífico em que as nossas mais acarinhadas expectativas e os nossos mais angustiantes receios quanto ao que é possível e (in)desejável são filtrados pelas capacidades manipuladoras de uma tecnociência omnipresente e pelo sentido que essa manipulação todo-poderosa dos fenómenos confere à vida e à acção. Um mundo em que, como assinala Gilbert Hottois2, a nossa relação com o real é tecnicamente mediatizada. Uma rápida análise poderia detectar facilmente duas atitudes maiores em face da epidemia de Sida, cada uma delas enraízada em visões da natureza e da técnica em princípio divergentes: uma visão a que chamaríamos mito-teológica e uma visão tecnocrática3.

A visão mito-teológica pode detectar-se nas concepções populares da natureza e da técnica, com raízes no mais remoto passado humano e talvez comuns a todas as culturas, mas a que as religiões deram por vezes uma elaboração racional. A natureza é encarada como uma ordem cósmica inamovível à qual a condição humana se encontra religiosamente submetida e que desse modo fixa limites normativos à intervenção técnica sobre os fenómenos. A técnica é aqui intuída como tentativa sumamente perigosa de quebrar os limites impostos à condição humana e que, ao concitar para tanto as forças naturais que escapam ao controle dos homens, sobre eles precipitam a justa retaliação da ordem cósmica ultrajada. Foi desde este púlpito que se lançou o anátema sobre Galileu e o heliocentrismo, que, ao retirar o homem do centro físico de um Cosmos finito, estável e ordenado, abriu a primeira grande ferida no narcisismo onto-teológico que fazia do espectáculo do Universo o cenário onde se desenrolava o drama da salvação humana. É este mesmo tipo de pensamento que não assimilou ainda a segunda grande ferida, aberta pelo evolucionismo darwiniano, que estilhaçou o espelho da natureza em que se fazia até então reflectir a natureza humana, numa antropologia que aferia a moralidade dos comportamentos à conformidade com a boa ordem natural. E é à luz do evolucionismo, do qual, a despeito porventura de um Nietzsche, ainda se não terão retirado as necessárias consequências antropológicas, que se pode compreender a história natural de uma epidemia como a da Sida como um acidente inteiramente esperável da poiesis biológica que rege a evolução e não como uma punição divina que se abate sobre a ``promiscuidade'' dos indivíduos, nem fruto de uma revolta da ordem natural ultrajada pela hybris tecnológica. Com efeito, o perfil epidemiológico da Sida não escapa ao próprio perfil do mundo que assiste ao seu aparecimento e à sua propagação.

Comum às grandes mitologias, o perigo de interferir com forças que só aos deuses pertencem, a hybris, é uma ideia que subjaz também às posições mais fundamentalistas das igrejas cristãs, entre as quais avulta a intransigência do fundamentalismo católico perante o recurso à pílula como meio contraceptivo ou ao preservativo como expediente técnico de prevenção da infecção pelo VIH. Sendo pela insistente referência à natureza, à boa ordem natural, que se afere a moralidade dos comportamentos, o uso do preservativo é visto como um paliativo técnico para um problema que essencialmente nada tem de técnico, e que lhe oculta a verdadeira essência moral: a epidemia é entendida como consequência dos nossos actos de traição ao sentido divino da sexualidade, ou seja, da nossa relação impiedosa com a ordem natural. Prescrever o uso do preservativo é assim um erro sobre um erro, a legitimidade moral de o interditar sobrepõe-se à (i)legitimidade biomédica, isto é, tecnocientífica, que, ao propô-lo como meio de prevenção, não só reconhece como promove a desordem de base de comportamentos (não-procriativos, hetero e homossexuais) ``anti-naturais''. Mesmo não sendo vista como instrumento directo da vingança divina, a exemplo das antigas mitologias, o que não seria consentâneo com o pressuposto teológico de um Deus infinitamente bom, a epidemia de Sida é, no entanto, teologicamente interpretável como consequência do esquecimento humano de Deus. A solução do problema é pois fundamentalmente moral, advogando-se o retorno à monogamia conjugal ou à abstinência, e questiona de raíz a vocação secularizante da sociedade tecnocientífica moderna, perante a qual os fundamentalismos religiosos exprimem uma desconfiança e uma desaprovação globais.

Idênticas desconfiança e desaprovação podemos detectar, porém, em correntes contemporâneas que se pretendem seculares, como são as da ecologia radical ou de certas medicinas chamadas ``alternativas'', que propõem um voluntarioso regresso a um mundo pré-técnico ou a um éden anterior à irrupção das modernas doenças das sociedades industriais, entendidas como consequência necessária de uma ruptura com a natureza, tida por horizonte normativo originário dos comportamentos humanos. Este tipo de concepção, que enforma algumas efabulações muito vulgarizadas a respeito das origens da epidemia de Sida4, na sua incessante procura de responsáveis por ela, recupera o efeito de culpabilização a que os fundamentalismos declaradamente religiosos recorrem com idêntico móbil regenerador e salvífico. A origem da Sida é desenvoltamente atribuída a tudo quanto é vício malsão que, ao devastar os organismos, os torna vulneráveis à infecção e à degenerescência: o uso de drogas, a irregularidade de hábitos alimentares, a promiscuidade, a ansiedade e o stress que causam os estilos de vida não conformes aos bons hábitos de saúde. Numa retórica que recorda a das campanhas higienistas que outrora estigmatizavam por igual a pobreza, a sífilis ou a tuberculose, a toxicodependência, a prostituição e a homossexualidade constituem aqui os alvos preferenciais e, por mais que, às vezes, o neguem os seus defensores deste tipo de concepção, superficial e momentaneamente vergados à coerção que sobre eles exerce o politicamente correcto como ilusão do século que também não deixa de ser em parte, fazem das suas primeiras vítimas os principais culpados, só se lhes dirigindo para lhes sacrificar a alteridade; e culpados, mais que pela sua própria doença, pelo próprio perigo em que fariam incorrer a sociedade em geral. Com efeito, e quanto mais não fora, explicações como estas soçobram ante o facto de a Sida se contagiar a indivíduos que de modo nenhum possuem comportamentos susceptíveis de depauperarem o sistema imunitário, limitando-se, afinal, a deslocar a hipótese viral de montante para jusante dos comportamentos.

Presentes desde o início da identificação clínica da epidemia no ocidente industrializado, estas teses têm-se refinado sazonalmente, tendo todas elas em comum o facto de partilharem de uma mesma concepção conspirativa, nomeadamente sobre a questão das origens da Sida, e limitando-se a transferir o alvo que culpabilizam. A imputação da origem do vírus da Sida a experiências de manipulação genética que teriam libertado inadvertidamente um microrganismo incontrolável constitui um exemplo claro deste tipo de teses, que neste caso dão corpo a uma visão das consequências desastrosas da violação tecnológica da ordem natural; outras correntes sustentam que a fabricação do VIH se ficou a dever ao propósito deliberado de eliminar minorias indesejáveis - neste caso, certos activistas gay, isto é, de uma comunidade que tem sido particularmente objecto de culpabilização, que as sustentam, mais não fazem que devolver ao pretenso inimigo a tese conspirativa. Este género de mitologia, desenvolvida a respeito da tecnociência moderna e dos cientistas, vistos como aprendizes de feiticeiros ou declaradamente como seres malignos dominados pelos mais inconfessáveis interesses, preeenche uma importante função, a de fornecer uma ilusão de controle da técnica, quando a manipulação tecnológica se torna cada vez mais omnipresente e visível e a avaliação dos seus efeitos cada vez mais negativa. Mais subtis ainda, são as opiniões que negam o próprio papel do vírus no desencadear da Sida, ou que chegam a recusar a sua existência pura e simples5 e que parecem apoiar-se nos pontos de vista de sumidades científicas em algum momento responsáveis pela própria investigação laboratorial sobre a Sida6. Na verdade, o processo da descoberta científica, cujo carácter de erro positivo a comunidade científica reconhece hoje amplamente, encontra-se ainda só numa fase precoce de divulgação pública e a necessária controvérsia que precipita toda a formulação de hipóteses explicativas é recebida com descrença e escândalo por uma opinião formada nas tradições positivistas e cientistas de outros tempos. Ao mesmo tempo que a Sida trouxe a público, com uma amplitude e uma profundidade inéditas, os processos de investigação científica, é a própria síndrome que parece levar às últimas consequências aquilo que se afigura ser uma autêntica mudança de paradigma nas hipóteses explicativas dos fenómenos patológicos, aliàs já em marcha na altura do seu aparecimento. No centro dessa mudança de paradigma encontra-se a teoria médica da causalidade, estabelecida pelo menos desde os princípios da bacteriologia pasteuriana e consagrada pela terapêutica específica de Paul Ehrlich. Assim, de uma concepção em que a uma espécie mórbida específica se atribui uma causa específica e se faz corresponder um tratamento igualmente específico, segundo uma lógica determinista e de certeza, obtível a partir de casos individuais, passa-se progressivamente a uma lógica de história clínica que valoriza a narrativa e a biografia, e na qual, à determinação de um quadro clínico compatível com uma espécie patológica discriminada se atribui um conjunto de factores e respectiva correlação funcional (em vez de causas da doença), a que, por sua vez, se aplica a prescrição terapêutica, de acordo com uma lógica indeterminista, de incerteza e a partir de grande número de casos. Na Sida, as hipóteses explicativas dos mecanismos que desencadeiam a doença, sem negar pura e simplesmente a presença do VIH e, consequentemente, o seu papel, reforçam cada vez mais a função de co-factores, de acordo com uma história natural aliàs ainda longe de ter terminado o seu caminho e história natural essa que, sabemo-lo hoje, não é ela própria alheia à intervenção colectiva e biomédica que nela se integra como uma variável da sua própria prossecução. O que não é o mesmo que apontar à comunidade científica como um todo, às organizações de luta contra a Sida, aos mass media e aos próprios doentes, a gigantesca comunhão no erro monstruoso da invenção de um ``vírus que nunca existiu'', possuídos sabe-se lá por que idola tempore que só a mente iluminada dos seus denunciantes seria capaz de romper, numa tomada de posição que, além de receber equivocamente os processos erráticos da investigação científica e as lutas de interesses e intrigas que não deixam de a pautar7, acaba por não ser capaz de oferecer melhores argumentos do que os da própria torre de marfim científica que, na sua pudenda origo, estabeleceu a sua incomensurabilidade à custa da restrição do acesso à discussão entre pares, fechando-se assim à opinião crítica por cuja criação foi, em última análise, responsável.

Enraízada, em última análise, numa tradição que remonta à revolução científico-tecnológica dos séculos XVI e XVII, e imparável desde então, a visão tecnocrática faz da possibilidade da produção de um saber positivo sobre os fenómenos, e da capacidade de manipulação eficaz deles que, mais do que aplicar esse saber positivo, chega inclusivamente a reger-lhe o critério de verdade, um ideário de transformação social. Não é outro o ideário de um Auguste Comte, que erige a racionalidade científica em modelo geral da racionalidade e culmina com o privilégio quase absoluto do imperativo técnico nas mais recentes correntes tecnocráticas, segundo o qual tudo o que é (tecnicamente) possível é legítimo e mesmo desejável. Modelada à luz da racionalidade emergente das ciências da natureza pós-renascentistas, este tipo de racionalidade afigurar-se-ia, aos olhos do pensamento iluminista do século XVIII, a matriz de uma razão emancipatória capaz de libertar os homens da servidão em face do seu semelhante, o que se consagraria numa ciência ético-política que estabeleceria as bases da democracia, da paz universal e da realização humana finalmente liberta da sua menoridade, tal como então a razão científica parecia dar sobejas provas de libertar os homens da sua ancestral heteronomia em face dos fenómenos naturais. Recuperando da tradição messiânica judeo-cristã o ideal de uma história teleológica com o sentido e o destino da salvação final, o pensamento iluminista apropria para a faculdade racional exclusivamente humana, conciliando-a mais ou menos com os dogmas da fé transformados em religião racional, a obra de um progresso humano indefinido, cumulativo e contínuo, o qual, contra o que terão sido as previsões e até as prescrições dos grandes pensadores iluministas como Kant, foi em grande medida regida pelos saberes e poderes tecnocientíficos. A experiência recente deste processo levado às últimas consequências trouxe a sociedade contemporânea à avaliação generalizada e pública da bondade da ciência e do sentido do progresso por ela postulado, visíveis, e por vezes atrozmente visíveis, que são agora os seus efeitos perniciosos em todos os campos e a um ponto insuspeitado pelo próprio Comte, que, ao mesmo tempo que propunha um projecto de racionalização global do mundo social, descria, nomeadamente, da possibilidade de racionalização completa dos fenómenos vivos que as modernas ciências biomédicas parecem em vias de levar a cabo, em particular no domínio da engenharia genética. É a necessidade imperiosa desta avaliação global do sentido e dos efeitos da tecnociência moderna,e da ambiguidade fundamental das expectativas, tão positivas quanto negativas, que ela no nosso tempo suscita, conjugadas com a consciência aguda de que as bases racionais, os juízos e procedimentos da ética e da política legadas pelas tradições grega, cristã e iluminista não são suficientes para levar a bom termo essa avaliação da extensão da racionalidade científico-tecnológica às próprias condições da acção humana, que abre o campo de teorização de domínios tão actuais como os da crítica filosófica das ciências e das técnicas, da ecologia ou da bioética, esta com particular incidência nos saberes e poderes das ciências e tecnologias biomédicas, mas com um alcance que se afigura capaz de superar em muito os porventura estreitos limites da medicina e da biologia.

Com efeito, o alvo fundamental da filosofia crítica das ciências e das técnicas, da ecologia e da bioética, é a visão tecnocrática que encara a natureza como uma matéria prima indefinidamente disponível e a técnica como um simples instrumento livremente utilizado para a transformação dessa matéria prima ao serviço da prossecução dos móbeis humanos. O ideal da criação de uma ``natureza mais perfeita do que a própria natureza'' teve largas e profundas repercussões nas tecnociências biomédicas e deu corpo ao contributo destas para a concepção geral de progresso humano indefinido, expresso na passagem de um estádio da medicina das doenças de ambiente para um estádio da medicina das doenças de comportamento. A medicina das doenças de ambiente teria sido o primeiro estádio da medicina clínica moderna, tendo-se ocupado das doenças causadas pelas condições patogénicas ambientais, tais como a peste, a cólera ou a tuberculose, caracterizadas pela sua elevada morbilidade e mortalidade. As grandes pandemias continuariam porém a ser típicas dos países do Terceiro Mundo, que se veria a braços com o tipo de procedimentos a que, desde o século XVIII, o Ocidente teria recorrido com indesmentível sucesso, traduzido na superação da milenar impotência humana ante os fenómenos naturais em geral e patológicos em particular, de modo mais ou menos linear, e por mais errática e aventurosa que a narrativa legitimadora das ciências biomédicas conceda que o processo histórico seja. Com efeito, a medicina das doenças de ambiente propõe e assiste às grandes campanhas de saúde pública e ao advento da era da microbiologia pasteuriana que conjugam esforços para dar um combate sem tréguas aos agentes patogénicos, enfim claramente identificados.

Contemporâneo, nos seus primórdios, da vertente autoritária do pensamento iluminista que é o despotismo esclarecido, este processo recuperou e estabeleceu como prática institucional permanente os modos de proceder a que desde a época medieval se recorria excepcional e, por assim dizer, artesanalmente, por ocasião dos surtos de peste: a quarentena, com as suas típicas práticas de arregimentação e cooptação coerciva e militarizada das populações. As campanhas de salubridade erguidas no Ocidente a partir de finais do século XVIII foram assim enformadas por um modelo bélico de guerra generalizada às condições patogénicas do ambiente em que os indivíduos figuravam como reservatórios inertes de micróbios cujo estado de saúde exigia um esquadrinhamento permanente, empreendido por uma medicina dos elementos, mais que dos homens, no quadro geral da medicalização da vida que um autor como Michel Foucault descreveu inspiradamente como o processo da bio-história. É esta a era de ouro do paternalismo médico que outorga ao clínico individual e à classe médica como um todo, ao serviço do poder do moderno Estado-Nação, secularizado e somatocrático, doravante ocupado com a saúde dos corpos, que já não com a salvação das almas, o privilégio exclusivo do princípio de beneficência, isto é, de reger a prática profissional dos médicos e as políticas de saúde pública por um critério de bem, do doente ou de populações inteiras, cujas definição e aplicação recaem sobre aqueles que detêm o saber científico e o poder técnico de curar. A eficácia das políticas de saúde pública, tomada ao modelo experimental de mensuração dos fenómenos oriundo de ciências naturais como a física e a química, permitiu erradicar do mundo ocidental industrializado as doenças de ambiente, de tal modo que a medicina poderia então dedicar-se às doenças devidas aos comportamentos, quer individuais, quer colectivos - desde o tabagismo e os deficientes hábitos alimentares à poluição industrial ou inclusive aos efeitos de prolongamento da esperança média de vida e o consequente envelhecimento da população, por acção do próprio processo de medicalização generalizada da vida - patologias tais como o cancro e as doenças cardiovasculares, ou as doenças degenerativas que assolam as vastas camadas de uma população senior que, no mundo desenvolvido, sobrevive doravante às infecções que dizimavam os seus antepassados antes da maturidade. Definida como doença de comportamento, a Sida possui porém uma morbilidade e uma mortalidade que a aproximam paradoxalmente do perfil das tradicionais doenças de ambiente, o que, aliado ao estigma de periculosidade social que se insinuava na identificação originária de grupos de risco, faz acordar os velhos procedimentos de quarentena e esquadrinhamento militar que tão eficazes se revelaram em face das doenças de ambiente. Assim se compreende a propositura de medidas tão draconianas como, além da quarentena, o teste compulsivo dos indivíduos indiciados como pertencentes a grupos de risco, ou de turistas e imigrantes, senão mesmo a despistagem maciça e universal de populações inteiras, a notificação obrigatória e identificativa (isto é, não anónima, ao contrário do que prevalece nas actuais doenças de declaração obrigatória) e o isolamento coercivo dos portadores do VIH, por esse meio detectados, em ``sidatórios'', ou o requisito pré-nupcial da declaração do estatuto serológico.

Que medidas como estas tenham sido defendidas, ou efectivamente postas em prática, por correntes políticas e sociais aparentemente tão incompatíveis como as do ultra-direitista francês Jean-Marie Le Pen e o governo cubano, ou as dos governos provincial da Baviera, na Alemanha, e estadual do Illinois, nos Estados Unidos da América, só atesta uma comum visão instrumental e fundamentalmente positiva da técnica, porquanto se trata de procedimentos claramente técnicos e administrativos que, ao mesmo tempo que consubstanciam o espírito higienista de outrora, reformulam nos termos da política oficial de Estado o entrincheiramento fundamentalista numa identidade crispada que sacrifica ostensivamente a alteridade dos grupos e a autonomia dos indivíduos. Não se trata, porém, de uma crítica exclusivamente moral que denunciaria antes de mais a perigosa conjunção entre o espírito tecnocrático moderno e o atavismo de representações deploráveis e discriminatórias da doença e do doente; com efeito, aquilo que foi eficácia técnica de um dispositivo de vigilância permanente, que obteve amplo sucesso profiláctico sobre as doenças de ambiente antes mesmo que uma terapêutica específica ou uma vacina fossem possíveis para debelar as grandes infecções de outros tempos, é hoje insuficiência técnica: além de se não terem descoberto ainda terapêutica ou vacina eficazes contra a Sida, o prolongamento cada vez maior da expectativa média de vida dos doentes, ao ponto de a Sida se tornar progressivamente numa afecção crónica, o facto de a Sida ser uma doença de comportamento, a despeito das suas atípicas morbilidade e mortalidade, e de os comportamentos de risco envolverem profundíssimas convicções e hábitos ou serem mesmo consentâneos com alguns dos valores fundadores da sociedade contemporânea (como, por mero exemplo, a liberdade de iniciativa ou de circulação, ou os direitos cívicos mais básicos), tudo isto obriga a uma necessária cooperação voluntária, activa, competente e autónoma dos indivíduos como cidadãos, nos diferentes estádios de prevenção da doença, primária, secundária e terciária, cooperação contra a qual haveria que sopesar os consequentes riscos de refracção individual e de conflitualidade social acrescida. Por outras palavras, a estratégia de guerra generalizada contra as condições patogénicas do ambiente não pode, com a Sida, transpôr-se para os indivíduos sob pena de os transformar em peões contra si próprios. Se, à luz da narrativa de progresso cumulativo e contínuo dos saberes e poderes biomédicos, era inverosímil o aparecimento de uma pandemia com as características da Sida, o modelo bélico8 das respostas biomédicas, sociais, culturais e políticas à sua indómita virulência também não se adapta ao perfil dela, que repete o próprio perfil da sociedade contemporânea. Ilustra-o bem a procura da cooperação activa de grupos tradicionalmente estigmatizados; ou o forçar da acção social e política e dessa cooperação, neste caso por parte de comunidades como a comunidade gay 9, que, mais do que oferecer, impõe desse modo a sua resistência ao backlash em países onde é forte a tradição de movimentos gay e a aquisição de uma nova respeitabilidade, em países como o nosso, onde essa tradição é inexistente ou incipiente e, como consequência, a sua visibilidade foi durante muito tempo nula. Os fenómenos que acompanham o alastre repetir em caso de fracasso, o que humanamente se ``experimenta'' nunca pode deixar de ser aventura singular, insubstituível, irrepetível.

A propósito da Sida podem pois distinguir-se dois grandes projectos autoritários. Correspondente à concepção mito-teológica, e directamente fundado nela, um autoritarismo com um móbil anti-técnico e de pendor moralista. Em contrapartida, as soluções tecnocráticas para os problemas postos pela epidemia configuram um projecto igualmente autoritário, mas de pendor militarista. As limitações de ambos, esboçámo-las já no curto espaço disponível, que as suas implicações muito mais exigiriam, como necessariamente longa teria de ser a formulação de uma alternativa, que temos de deixar para alhures, tendo tão só esboçado as bases para a revisão de algumas ideias feitas. A superação dos constrangimentos intrínsecos às soluções autoritárias, das concepções mito-teológicas ou tecnocráticas, para os problemas colocados pela epidemia de Sida, sugeri-lo-íamos apenas, mais do que passar pelo primado de um princípio de beneficência, de acordo com a mais antiga tradição médica, ou pelo reforço da ideia de solidariedade, como o aponta um Richard Rorty, deverá privilegiar, na sua formulação, um princípio de autonomia capaz de recolher e sintetizar, das visões mito-teológicas, a reivindicação de uma exigência ética e, das visões tecnocráticas, a reivindicação de uma exigência de eficácia técnica, sem todavia acolher a virulência totalitária de que aquelas são portadoras.

Na finitude da condição que é a nossa, bem podemos dizer que somos, todos, doentes de Sida. E a assumpção ética dessa condição tem no amor próprio a sua matéria prima e o ponto de partida para a formação de leis que cada um possa impôr a si mesmo no pleno uso da sua liberdade. Não é possível impôr a ninguém um ``Tu deves'' sem lhe reconhecer ao mesmo tempo um ``Tu vales''. ``Deves'', no pleno uso da tua liberdade de seres, porque ``Vales'' irredutivelmente por aquilo que és. Nas pessoas dos doentes de Sida, é a sociedade contemporânea, pletórica de direitos e de consumos, que, à custa de um penoso e solitário trabalho da dor, vai forjando essa injunção moral que nos devolve ao imperioso dever de nos amarmos antes de mais a nós próprios. De amarmos a vida em nós, que não nos é - nunca foi - dada para que a aceitemos nas múltiplas formas de pequena morte que a limitam, mas para que a cultivemos, como o querer que nos faz querer, o ávido sol que nos faz correr o sangue nas veias. Virulentamente.



Notas de rodapé

... filhos?1
Antípatros de Sidon, Epitáfio de Orfeu, séc. II A. C.
... Hottois2
Gilbert Hottois: Pour une éthique dans un univers technicien, Bruxelles, Éditions de l'Université de Bruxelles, 1984 e O paradigma bioético, Lisboa, Edições Salamandra, 1992.
...atica3
Sobre estas duas visões antagónicas e o esboço de uma alternativa a elas, ver, com maior desenvolvimento, António Fernando Cascais: ``Sida: luz e sombra num olhar bioético'', in Revista de Ciência, Tecnologia e Sociedade, n$^{o}$ 21, Janeiro/Fevereiro de 1994.
... Sida4
A história das origens da Sida encontra-se bem descrita, e em termos até hoje ainda não contestados em Mirko Grmek: Histoire du Sida. Début et origine d'une pandémie actuelle, Paris, Payot, 1990, 2ème ed.; a respectiva tradução portuguesa tanto faz jus ao valor da escolha da obra como emblematiza a escassez de produção literária nacional sobre a Sida: História da Sida, Lisboa, Relógio d'Água. Anteriormente a ela, já tinham sido publicados textos que tematizam de forma clara todas as controvérsias respeitantes às origens da Sida e que Grmek desenvolve; V., nomeadamente: Jacques Leibowitch: Sida. Um estranho vírus de origem desconhecida, Lisboa, Editora Nova Nórdica, 1986; Luc Montagnier: ``Les problèmes de l'origine du virus'', in AAVV: Sida: Épidémies et sociétés, Lyon, Fondation Marcel Mérieux/Fondation des Sciences et Techniques du Vivant, 1987, pp. 62-66; Mirko Grmek: ``Problème des maladies nouvelles'', in id., ibid., pp. 97-107 e Henri H. Mollaret: ``Interprétation socio-écologique de l'apparition des maladies réellement nouvelles'', in id., ibid., pp. 108-114.
... simples5
O mais recente exemplo, encontramo-lo em Neville Hodgkinson: AIDS. The Failure of Contemporary Science, London, Fourth Estate, 1996.
... Sida6
É o caso de Peter Duesberg; sobre a controvérsia científica suscitada pelas suas posições, V. Joseph Wayne Smith: AIDS, Philosophy and Beyond. Philosophical Dilemmas of a modern pandemic, Aldershot, Avebury, 1991.
... pautar7
De que a luta pela ``patente'' da descoberta do vírus entre Robert Gallo e os americanos, por um lado, e Luc Montagnier e os franceses, por outro, não constitui menor exemplo, aliás ilustrativo da vulnerabilidade até de paixões tão ``nobres'' como é a paixão do conhecimento; v., a este propósito: Bernard Seytre: Sida: les secrets d'une polémique. Recherche, intérêts financiers et médias, Paris, Presses Universitaires de France, 1993; é interessante seguir a perspectiva pessoal de cada um dos grandes investigadores iniciais do que posteriormente viria a ser designado por VIH - V. Robert Gallo: Chasseur de virus. Cancer, Sida et rétrovirus humains, Paris, Robert Laffont, 1991, e Luc Montagnier: Des virus et des hommes, Paris, Éditions Odile Jacob, 1994.
...elico8
O texto de Michael Sherry sobre a linguagem da guerra no discurso da Sida é exemplo significativo dos avatares desse modelo bélico e constitui-se em parte como comentário às teses de Susan Sontag: Illlnes and Metaphor and AIDS and its Metaphors, New York, Anchor Books/Doubleday, 1990; sobre a mudança de um paradigma bélico para um paradigma cognitivo nas ciências biomédicas em geral e na imunologia em particular, V. António Fernando Cascais: ``A recepção do sindroma de imunodeficiência adquirida: imagens e mitos'', in Revista de Comunicação e Linguagens, n$^{o}$ 10/11, Março de 1990.
... 9
Sobre os efeitos da epidemia na comunidade gay e respectivas respostas, além do manifesto histórico de Larry Kramer aqui recolhido, V. Michael Pollak: ``Géographie sociale et morale d'une peur. Le groupe à risques: une mystification'' (entrevista), in Emmanuel Hirsch: Le Sida. Rumeurs et faits, Paris, Éditions du Cerf, 1987, pp. 35-50; Les homosexuels et le Sida. Sociologie d'une épidémie, Paris, Éditions A. M. Métailié, 1988; ``Histoire d'une cause'', in AAVV: L'homme contaminé. La tourmente du Sida, Paris, Éditions Autrement, 1992, pp. 24-39; Michael Pollak, Françoise Dubois-Arber, Michael Bochow: ``La modification des pratiques sexuelles'', in La Recherche, n$^{o}$ 213, Septembre 1989, pp. 1100-1111; Michael Pollak, Marie-Ange Schiltz: ``Identité sociale et gestion d'un risque de santé: les homosexuels face au Sida'', in Actes de la Recherche en Sciences Sociales, n$^{o}$ 68, Juin 1987, pp. 77-102; Martin P. Levine: ``The Implications of Constructionist Theory for Social Research in the AIDS Epidemic Among Gay Men'', in Gilbert Herdt, Shirley Lindenbaum, eds. et allii: The Time of AIDS: Social analysis, theory, and method, Newbury Park, Sage Publications, 1990, pp. 185-198; Douglas Crimp: ``How to Have Promiscuity in an Epidemic'', in Douglas Crimp, ed. et allii: AIDS: Cultural Analysis, Cultural Activism, MIT Press, 1989, pp. 237-271; Dennis Altman: AIDS in the Mind of America, Garden City, N.Y., Anchor Press/Doubleday, 1986; Randy Shilts: And the Band Played On. Politics, People and the AIDS Edpidemic, London, Penguin Books, 1988;Michael Denneny: ``AIDS Writing and the Creation of a Gay Culture'' in Judith Laurence Pastore, ed. et allii: Confrontong AIDS Through Literature. The Responsibilities of Representation, Urbana and Chicago, University of Illinois Press, 1990, pp. 36-54 e James W. Jones: ``The Sick Homosexual: AIDS and Gays on the American Stage and Screen'', in id., ibid., pp. 103-123; Susanne B. Montgomery, Jill G. Joseph: ``Behavioral Change in Homosexual Men at Risk for AIDS: Intervention and Policy Implications'', in New England Journal of Public Policy, Vol. 4, No. 1, Winter/Spring 1988, pp. 323-334 - a lista de outras referências pertinentes seria infindável.
... social10
Acerca do valor e sentido das reacções à Sida como forma de experimentação social, V., além do próprio texto incluído nesta recolha: Allan M. Brandt: No Magic Bullet: A social History of Venereal Disease in the United States since 1880, New York, Oxford University Press, 1987, rev. ed.; ``A Historical Perspective'', in Scott Burris, Harlon Dalton, Judith Miller, eds. et allii: AIDS Law Today. A new Guide for the Public, New Haven, Yale University Press, 1992, pp. 46-53; tem aqui todo o cabimento assinalar um texto português que além de absolutamente raro, senão singular na produção nacional sobre Sida, ilustra o alcance da ideia de experimentação social na luta contra a epidemia: Cristiana Bastos: ``Geomorfologia do Poder na Produção Social da Ciência: a propósito da luta global contra a SIDA'', in Revista Crítica de Ciências Sociais, n$^{o}$ 41, Dezembro de 1994, pp. 63-84.