A fragmentação do espaço público: novos desafios ético-políticos

João Carlos Correia

Universidade da Beira Interior


Índice

Introdução

Recentemente, assistimos a uma verdadeira transformação estrutural do Espaço Público seja no seu entendimento mais lato, enquanto espaço de visibilidade pública; seja no seu entendimento normativo, como instância de comunicação política aonde é colocada a questão da legitimidade do poder e onde se verifica um debate com vista à produção da deliberação colectiva. Esta transformação estrutural manifesta-se através segmentação dos fenómenos de produção e recepção. Para tal contribuem as ``Novas Tecnologia Multimédia'', a Internet, a Televisão por cabo e satélite, a regionalização dos media de massa e a emergência dos fenómenos identitários através da tensão entre o global e o local - uma tensão que percorre transversalmente os domínios da cultura, dos media, da economia e da política. Num contexto de mediatização generalizada: muitas das identidades emergentes, dos respectivos imaginários e visões do mundo dependem da presença de meios de comunicação.

Tal problema urge ser abordado, sob um ponto de vista que atribua ao Estado modelos de organização e de observação de procedimentos que permitam uma deliberação verdadeiramente democrática fundada na garantia do debate entre os vários interesses legítimos. O facto de esta ser uma posição ``contrafactual'', exercida no plano de um confronto entre os factos e as normas, não constitui, a nosso ver, um óbice, na exacta medida em que entendemos que a pura observação da realidade só existe no plano de uma sociologia positivista estreita e de um entendimento impotente da Teoria Política e do Direito.

A fragmentação do espaço público

Hoje, o espaço público, entendido no seu sentido mais lato enquanto espaço de visibilidade pública, encontra-se sujeito a tensões fragmentárias. Entre os factores sociais que mais têm contribuído para esta tendência destacam-se o actual sistema de consumo e, em particular, os modernos dispositivos tecnológicos de mediação.

A diferenciação cultural - traço mais vincado desta mudança estrutural - está ligada a fenómenos extraordinariamente diversos como sejam as pressões do mercado com vista à emergência de novos segmentos de consumidores, aos fluxos migratórios europeus, às alterações de costumes e do estatuto da mulher, ao aumento da mobilidade, à relativização dos Estados-Nação, à enfatização das diferenças identitárias em torno de temas como a religião, a região, o género ou o ambiente, à especialização dos mercados e ao aparecimento de uma nova forma de tecnologia relacionada com a produção de informação e de conhecimento.1 Regiões, classes e subclasses, culturas e subculturas, grupos de interesse e minorias associativas são objecto de uma recomposição crescente. O espírito do tempo, particularmente no que diz respeito às formas tradicionais de socialização e de construção da identidade faz ecoar na memória uma velha frase de Marx: ``Tudo o que é sólido se dissolve no ar. ``

Grande parte destas transformações surgem associadas aos mass media. A globalização desvalorizou as identidades baseadas em papéis sociais em detrimento crescente de identidades baseadas em pertenças culturais. Logo, os media emergem mais fortes na sua ligação quase estruturante com a definição dos territórios simbólicos que permitem a formulação destes novos tipos de afirmação identitária (Touraine, 1998:51).

As reacções à fragmentação do espaço público

O problema que estes fenómenos contraditórios suscitam é de natureza ético-política seja quanto ao estatuto a conferir ao Estado seja no que respeita as possibilidades desse mesmo Estado intervir na regulação de uma instância decisiva para a formulação do problema: os mass media e, especialmente, a produção jornalística. Perante a multiplicidade de pretensões de validade que se apresentam num espaço público de natureza democrática como é possível assegurar uma regulação colectiva que não se traduza na crise dos sistemas de mediação e de representação (problema da governabilidade) nem ao invés, numa concepção de cidadania meramente centrada na rotação das elites (problema da participação)? A resposta a este problema, ou melhor às duas dimensões do problema, implica uma tomada de posição a dois níveis: a) a relação do Estado com a pluralidade das diferenças legítimas; b) uma inquirição sobre o papel dos mass media, pois o espaço público contemporâneo é mediatizado em larga escala e os media desempenham um papel fundamental na representação dos interesses contraditórios.

Uma primeira reacção encara este fenómeno com elevado criticismo, parcialmente justificado.

Ao nível antropológico, é clara a suspeita de que muitas das identidades perdem a sua dimensão relacional e crítica se esgotam na exploração de mecanismos compulsivos de desejo. No plano comunicacional, a multiplicação de espaços públicos não significa o aumento do pluralismo político e traduz uma segmentação de audiências e de nichos de mercado, numa perspectiva comercial ao serviço de uma lógica de acumulação de capital (Gitlin, 1995). Esta tendência para a segmentação lança dúvidas sobre a fiabilidade e solidez da esfera pública - da qual apenas se vislumbraria uma pálida nostalgia. Sob o signo do multiculturalismo, os media de hoje, organizados em segmentos alvo e subculturas de consumo, capitalizam graças à multiplicação de fronteiras identitárias. No limite, recorre-se a um novo elemento induzido pelas tendências mais recentes dos media: a transformação do quotidiano individual numa mercadoria de elevada rentabilidade (até pela dispensa de actores especializados) confundir-se-ia com o direito de acesso democrático à visibilidade.

Finalmente, sob o ponto de vista político, é duvidoso que os movimentos sociais centrados na diferença signifiquem necessariamente o tão desejado regresso do actor (Touraine, 1996). Muitas das relações sociais típicas da nossa contemporaneidade desprezam a reflexividade crítica própria da modernidade. Ao lado da libertação dos dialectos e das comunidades minoritárias, o fundamentalismo, o tradicionalismo e o culto exacerbado de uma crítica de universalidade feita em nome de valores pré-modernos conduzem à defesa da pureza étnica. Receia-se (Dayan, 1990: 105) que as sociedades ocidentais se estilhacem numa multiplicidade penosa de guerras de secessão. A não ser integrada num esquema englobante de defesa das liberdades públicas que enfatize os valores universais e cosmopolitas, a política das identidades pode facilmente desembocar num novo tribalismo2. Corre-se o risco de reforçar uma manta de trapos de identidades locais, em que as pessoas só possam falar e interrelacionar-se com os que lhe são imediatamente contíguos ou com quem partilhem uma característica comum3. É um alerta para o qual a própria actualidade tão tragicamente próxima não deixa de chamar a atenção.

Uma segunda reacção, tipicamente pós-moderna e especialmente optimista, acredita que a fragmentação é um fenómeno cultural e político que permite o regresso das tais pequenas narrativas e dialectos. Chega-se a considerar relativamente irrelevante discutir questões como a concentração da propriedade dos mass media (Vatimo, 1992) por ser uma questão relativamente menor se comparada com a capacidade de os mesmos media desempenharem uma tal função democratizante. A pluralidade e as aventuras da diferença surgem como se fossem em si próprias um fim exaltante.

Em alternativa a qualquer destas possibilidades, é possível desenhar uma concepção menos unilateral que continue devedora da ideia de espaço público aceitando críticas dos novos movimentos sociais. Os problemas que se colocam são relativamente evidentes embora se adivinhem cada vez mais complexos: Será que muitas dessas pretensões ao reconhecimento da diferença não escondem, dentro de si, uma manifestação de exotismo comercial e de um regresso de um comunitarismo que implode através da violação de direitos humanos e explode sob a forma detestável do Terror? Como garantir a universalidade sem desconsiderar o particularismo e o pluralismo sociológico e político de tal modo que a sua eventual omissão se não venha a traduzir numa efectiva violação dos direitos humanos? Como garantir inevitáveis consensos em face do incontornável diferendo desperto pelas múltiplas e conflituais pretensões de legitimidade apresentadas pelas identidades em luta pelo reconhecimento? O problema tem um sentido verdadeiramente desafiante na medida em que nos lança no coração das relações complexas entre o uno e o diverso.

Com plena consciência das dificuldades em obter certezas, creio que a resposta passa pela insistência num modelo de democracia deliberativa assente num confronto entre leituras plurais da vivência cívica, enquadrado por modelos de regulação do debate que continuam a conferir ao Estado Constitucional de Direito a primazia. A diferenciação introduzida pelos particularismos emergentes haverá de equacionar-se com um universalismo que permita, por um lado, a afirmação das especificidades, e por outro lado, impeça que a afirmação dessas especificidades se sobreponha aos direitos humanos. O corolário é a defesa do direito de manter a própria forma de vida cultural com a obrigação de aceitar o marco político da convivência definido pela supremacia dos direitos humanos. Esta convicção traduz-se numa concepção de cidadania em que a exigência de coexistência de subculturas em igualdade de direitos se encontra submetida à reserva segundo a qual as confissões, crenças e práticas protegidas não podem contradizer os princípios do Estado Constitucional Democrático que garantem a sua avaliação em condições consideradas justas.

No campo mais específico dos media e do jornalismo postula-se uma atitude crítica, que se recusa, no entanto a seguir uma via que passe pela condenação ou absolvição generalizada. Aceita-se que o fenómeno da comunicação é polimórfico e marcado por graduações diversas. Muitas das críticas formuladas pela primeira tendência - a despolitização da comunicação pública, o aproveitamento comercial das tendências de diferenciação identitária - são genuínas e estão presentes no espaço público português. Porém, as possibilidades de resistência e de aprofundamento democrático da indústria mediática também se continuam a revelar.

Do espaço público ao Estado Constitucional

Nesta posição confluem vários factores que urge ponderar com as devidas cautelas:

- desde logo, insiste-se no modelo da Publicidade como uma tradição da modernidade graças ao qual a se opera a transformação do domínio público em espaço público. O impulso crítico desencadeou transformações importantíssimas na forma de mediação entre o público e o privado. Vindo de baixo, da reunião das pessoas privadas em espaços informais onde se procede ao intercâmbio dos argumentos, o impulso crítico desencadeou transformações importantíssimas na forma de mediação entre o público e o privado, sendo responsável pela afirmação de uma autonomia da pessoa como limite da legitimidade das decisões do poder. A publicidade é retomada pela concepção democrática de sociedade civil e desempenha um lugar central na discussão em torno da fragmentação cultural uma vez que são as discussões democráticas que possibilitam aos cidadãos a oportunidade de esclarecerem quais as tradições que querem perpetuar e quais as que querem abandonar ( Ferry, 1989:17)

- desde logo também se aceita uma certa suspeita em relação aos ideais de universalidade que atravessavam a esfera pública sem abandonar o reconhecimento de uma força crítica originária nessa mesma tradição de origem burguesa Esta suspeita não incide sobre os ideais de universalidades mas sobre a ausência da sua realização efectiva. Assume, por isso, uma certa forma de olhar sensível às diferentes formas de desigualdade, de ocultação do sofrimento, de imposição da dor e de prática da discriminação. Parece importante analisar as diferenças relativas da capacidade dos diferentes públicos no acesso ao debate democrático, a pluralidade de interesses e de pretensões que se fazem sentir nesse espaço, as relações de poder, a posição diferenciada das redes de comunicação, a estrutura de influências que, decerto, se faz sentir no seio dessa instância;

- finalmente esta perspectiva enfatiza de forma particularmente insistente o papel do Estado e do Direito num modelo de democracia deliberativa. Ao mesmo tempo relança a discussão sobre as condições de viabilidade de um espaço público informal, o qual é em larga medida, um espaço público mediatizado. A questão reside em garantir a existência de fluxos entre a constituição da opinião na esfera pública e a tomada de decisão institucional. Estes fluxos implicam uma análise exigente da forma como está organizado o espaço público contemporâneo, quais as suas instituições, constrangimentos e desigualdades (cfr. Habermas, 1996; 1985).

Este modelo de democracia deliberativa, formulado de modo relativamente recente por Habermas e Arato e Cohen crê encontrar nos princípios constitucionais vigentes (a divisão de poderes no aparelho estatal, a vinculação do Estado ao Direito e em particular nos mecanismos parlamentares de produção legislativa), um reflexo, pelo menos parcial do seu modelo político. O Direito permite a uma sociedade regular as respectivas interacções sem ter que ter em conta as motivações directas de cada um dos seus membros.. A importância desta neutralidade processual não significa uma espécie de refúgio na positividade da lei. Por um lado, as questões que dizem respeito à identidade e à forma de vida podem e devem ser objecto de debate público. Por outro lado, acredita-se que as sociedades multiculturais só conhecerão a coesão desejável se para além de proporcionarem uma cultura de cidadania em que imperem os direitos de liberdade e de participação, dinamizarem a fruição dos direitos sociais e culturais. Finalmente, a insistência na importância do Estado de Direito implica a manutenção de uma relação com os mecanismos informais de debate e de deliberação pública.: ``O desenvolvimento e a consolidação de uma política deliberativa dependem não de uma cidadania colectivamente capaz de acção, mas da institucionalização dos correspondentes procedimentos e pressupostos comunicativos, assim como da interacção entre deliberações institucionalizadas com opiniões públicas desenvolvidas informalmente'' (Habermas, 1996: 298).

A esfera pública, surge como uma esfera de identificação, detecção e tematização de problemas, cuja influência se deve continuar a reflectir no posterior tratamento das questões que, seguidamente, originam os processos de decisão e de produção legislativa no interior do sistema político. Os grupos cívicos são vistos como actores que procuram modificar a percepção e interpretação dos problemas sociais. Podem articular projectos alternativos de políticas públicas, divulgando, entre outros grupos populacionais, o interesse pelas suas causas. Não há dúvida que muitas formas de poder ilegítimo permanecem nas mega - instituições sistémicas. Porém, o uso do poder não fica imune a uma crítica que no limite conduz à crise da própria legitimidade da decisão.

A ambiguidade da comunicação

Para o funcionamento geral deste modelo deliberativo importa que se generalize, no espaço público, em parte graças à mediatização e especialização crescentes, a presença do fenómeno da influência - como uma forma simbólica generalizada de comunicação que facilita a interacção em virtude da convicção ou da persuasão. Toda a esfera gigantesca e complexa da informação pública - ou seja, toda a produção e consumo do conhecimento social disponível nas sociedades complexas - depende da mediação dos modernos meios de comunicação. Para Habermas, ``os cidadãos comportam-se como um público quando dialogam sem restrições - ou seja, com a garantia de liberdade de associação e de reunião e de exprimirem em público as suas ideias - acerca de assuntos de interesse geral. Num público de grande dimensão este modo de comunicação exige meios específicos para transmitir informação e influenciarem os que a recebem. Hoje, jornais e revistas, Rádio e TV são os meios da esfera pública. Apenas quando o exercício do controlo politico é efectivamente subordinada à exigência democrática de que a informação seja acessível ao público, a esfera pública ganha uma influência institucional sobre o Governo através dos corpo legislativo'' (Habermas, 1974 apud Calhoum: 1996:289). Se olharmos o espaço mediático como uma instância de competição na luta pela definição e a construção da realidade social, o problema dos media torna-se merecedor de uma aturada reflexão. Sem eles, torna-se utópico falar em decisão democrática. Porém, muitas vezes eles próprios se tornam obstáculos reais às possibilidades dessa mesma deliberação. Sabemos que algumas das críticas atrás afloradas, mesmo nas suas versões mais pessimistas, merecem crédito. Em certas circunstâncias, a sociedade civil pode adquirir influência na esfera pública e produzir impacto sobre o processo de decisão política. Porém, a sociologia da comunicação oferece uma visão céptica sobre as esfera públicas mediatizadas das democracias ocidentais. Os movimentos sociais, as iniciativas e fóruns de cidadãos, as diferentes formas de associativismo são sensíveis aos problemas. Todavia, em grande parte devido aos media, os sinais e impulsos enviados são por vezes demasiado fracos para redireccionarem os processos de decisão no sistema político (cfr. Habermas, 1996: 376).

Graças à estrutura assimétrica dos processos de comunicação mediática, as possibilidades de participação encontram-se distribuídas de forma iníqua entre os que têm acesso ao uso da palavra pública e os receptores. Os jornalistas recolhem informação e tomam decisões acerca da selecção e apresentação de ``programas'' e projectos, controlando, em certa medida, a entrada de tópicos, contributos e agentes na esfera pública. A pressão selectiva exercida pelos media exerce-se seja do lado da oferta seja do lado da procura. A imagem dos políticos apresentada na televisão é composta por temas e contributos profissionalmente produzidos como inputs dirigidos para os media através de diferentes formas de assessoria, conferências de imprensa e campanhas de relações públicas entre outros dispositivos conhecidos, que exigem recursos financeiros, técnicos e profissionais.

Ao mesmo tempo, os media apelam cada vez mais ao envolvimento emocional de um modo que contaminou a linguagem jornalística. A coerção mais drástica que os media impõem sobre a comunicação é, desde logo, a secundarização das mensagens políticas (Pissarra Esteves, 2003: 58). Esta passa por duas estratégias: a sua subordinação a um papel secundário e às características (formais mas também substanciais) dos produtos light gerados no infortainment (cfr. Gomes, 1995: 315). Antes de as próprias mensagens políticas seleccionadas serem emitidas são sujeitas a estratégias de processamento de informação no interior dos media. Perante as pressões da economia da atenção - a escassez de recursos cognitivos do público perante uma multiplicidade de estações disponíveis - os factos são relatados como histórias de interesse humano4, as informações mesclam-se com entretenimento, o material mais complexo é repartido em fragmentos mais pequenos.

Apesar de tudo, não se pode ocultar o reverso da medalha, mesmo que esse reverso seja alimentado por possibilidades e esperanças cuja concretização não é segura. ``A ideia de ambivalência é fundamental para pensar a história e a realidade presente da comunicação, nomeadamente em termos éticos. Está presente desde logo na definição e discussão permanente dos critérios reguladores do discurso público: dividido entre a legítima aspiração à sua afirmação autónoma e as ameaças de instrumentalização, com origem, desde logo, nas duas principais instâncias de decisão das sociedades modernas - o mercado e o Estado'' (Esteves, 1989: 25).

Desde logo, a proliferação de self media e o acesso fácil a canais de informação alternativa dificultam o monopólio da agenda pública pelo menos em situações de crise: o recurso à Internet para desencadear movimentos de opinião em torno de Timor, para pôr em causa a hegemonia do PC Chinês, para divulgar os protestos dos agricultores ingleses contra a cadeia norte-americana McDonald's, a organização do protesto contra a Organização Mundial do Comércio em Seattle e a convocatória da manifestação que precedeu as eleições espanholas são alguns dos muitos exemplos bem actuais. Muitas destas possibilidades, nalguns dos seus usos múltiplos, nem sempre virtuosos, poderão passar pela atribuição de relevância a temas geralmente ocultos, alterando a função de agendamento graças ao impacto produzido junto dos próprios media de massa. Na verdade, uma parte substancial dos temas sociais da agenda publica, (a sensibilização para questões ambientais, novos direitos sociais, etc.), dificilmente ganhariam relevância sem as estruturas comunicativas da esfera pública que competissem com o centro do sistema político e com a influência do dinheiro.

Os próprios media ditos de massa confrontam-se com interesses conflituantes entre si, vendo-se obrigados a procurar conciliar pontos de vista económicos, culturais, profissionais, ideológicos e políticos. Não podem, apesar de tudo, furtarem-se às obrigações que resultam da missão jornalística nem corresponder, ao menos na totalidade, aos standards mais grosseiros da cultura de massa. Encontramo-nos perante ``uma lâmina de dois gumes no que respeita a implicações éticas''(Esteves, 1998: 24). Apesar de serem empresas que implicam normas rígidas de especificação produtiva destinadas a conseguir a melhor adequação possível entre os seus produtos e as necessidades do mercado, os media geram espaços onde se confrontam pretensões de validade conflituais que contribuem, de modo decisivo, para equacionar a legitimidade do sistema político.

Tais media de massa são confrontados com exigências que muitos dos seus profissionais acreditam estarem a cumprir e até que acreditam tentar cumprir. Michael Gurevitch e Jay Blumer atribuem aos media algumas tarefas que estes devem desempenhar e que dizem respeito, no essencial, a uma vida pública saudável apoiada por uma comunicação política ao serviço dos cidadãos5. Tais princípios ou, pelo menos alguns deles, podem ser escassamente aplicados no quotidiano. Porém, fazem parte da imagem que os media e os profissionais criam de si próprios. Na esquizofrenia institucionalizada que, sob o ponto de vista ético, se instalou no campo dos media, os profissionais e os media defendem as suas actuações muitas das vezes, em nome destes princípios. No limite, tentam convencer-se a si próprios que agiram na defesa de tais princípios. No fundo, precisam de um espelho onde possam ver uma imagem mais virtuosa de si próprios. Na pior das hipóteses, receiam ser denunciados porque também eles estão sujeitos ao escrutínio público. Obviamente, no campo jornalístico isto é particularmente sentido e origina práticas contraditórias.

Finalmente, a selecção não é definida apenas pela emissão. Ela é também igualmente exercida pelo público ao nível da recepção, pela escolha entre os programas oferecidos, e em especial, pela possibilidade de os públicos, de acordo com uma lógica de redinamização e democratização da sociedade civil, pretenderem eles próprios tomarem a palavra, fazendo chegar ao espaço público interpretações conflituais e afirmações em defesa do reconhecimento de identidades excluídas e de problemáticas esquecidas. A periferia civilista tem a vantagem, comparativamente ao centro político, de uma maior sensibilidade para detectar situações problemáticas. Por outro lado, a visibilidade dos temas agendados pelos media e a configuração que lhes é conferida pelas visões do mundo dos jornalistas organizados enquanto comunidade interpretativa também se confronta com a opinião do cidadão comum na sua vida quotidiana, a qual se difunde através de espaços informais. Um governo que mente de forma demasiado ostensiva mesmo com apoio de media poderosos, pode ser confrontado com instâncias de comunicação informal que não controla. A pesquisa sobre efeitos e sobre recepção tem, apesar do reconhecimento do poder do jornalismo, vindo a abandonar a ideia da manipulação absoluta dirigindo a nossa atenção para as estratégias de interpretação dos espectadores , que comunicam uns com os outros e que, de facto, podem rejeitar ou criticar um projecto ou programa político ou sintetizá-lo com os seus próprios julgamentos e avaliações. É evidente, que há espaços importantes da comunicação política que se integram dificilmente no espaço público. De um lado, dos cidadãos comuns, existem formas de comunicação informal, ocasional, directa e espontânea, que funciona como um elemento natural de politização mas que fica muitas vezes limitada a círculos restritos de participantes e que não conseguem alcançar a mediatização. Do outro lado, das elites, existem formas de comunicação política subtraídas deliberadamente ao espaço público e que se confinam à troca de informações confidenciais entre jornalistas, políticos e alguns círculos académicos. Porém, a comunicação política não se restringe ao jogo de interacções entre jornalistas, políticos, institutos de sondagem e líderes de opinião (Ferry, 1989: 20-23).6 Em democracia, as fronteiras entre aquelas duas formas de comunicação e o próprio espaço público não são rígidas: a opinião aparentemente periférica do senso comum influencia a percepção das mensagens mediáticas e pode, ocasionalmente, tornar-se politicamente relevante. Ao mesmo tempo, a política de segredo das elites confronta-se com as contradições que se verificam entre elas, com lógicas de interesses conflituais e com a voracidade dos media e as pressões da opinião pública.7 O problema da credibilidade emerge em contraponto à política do segredo. Independentemente do que cada um de nós pense sobre os assuntos, há exemplos claros: no plano político, as motivações da Guerra são objecto de um escrutínio fortemente crítico. Do lado iraquiano, ficou famoso o Ministro do Interior que negava a chegada dos americanos a Bagdad. Porém, ao Ocidente também proliferaram episódios pouco edificantes. A retórica das armas de destruição macissa gerou dificuldades aos Governos da Coligação. A relação entre a BBC e o Governo de Blair, o criticismo e a suspeita sobre a Administração Bush alimentaram a chacota mordaz do cidadão comum. No plano da Economia, grandes empresas como a Parmalat, a Living Omnimédia, a Eron ou a Royal Dutsch Schell são objecto de investigações judiciais que conduzem a prisões ou a investigações jornalísticas que conduzem a quedas abruptas na bolsa e à demissão de Presidentes. Contra a lógica que sempre presidiu à sua actuação, os próprios media são notícia: sectores importantes da opinião pública discutem as opções dos media, a forma como constroem a agenda e como se submetem a ditames exteriores, nomeadamente em questões de politica externa.

Apesar de tudo, neste contexto de forte desregulação mercantil, todo o minucioso recenseamento das perversões e possibilidades do sistema mediático parece eficaz e impotente e, em última instância, contraditório, sem contar com o Estado. Com efeito, o poder mediático não deve nem pode tornar-se o poder público, o qual deve ter o seu centro no poder político.

... E de novo, o Estado

Sem deixar de reconhecer as dificuldades do modelo social europeu, admitindo até as fragilidades, dificuldades e perversões que uma concepção centralista pode originar, não me parece incorrecto que um Estado Constitucional e Democrático se possa tornar ele próprio uma instância dinamizadora de formas de contratualização que permitam a criação de mecanismos reguladores do espaço mediático que é o tema central deste trabalho. Poder-se-á dizer neste momento que este texto, na sua fase final, parece mais adequado a uma mesa de políticas de comunicação. Na verdade, não deixamos de falar de Ética. O caciquismo, a governamentalização, a massificação comercial são um desafio ético. Porém, a Ética exige necessariamente a intervenção da política. A Ética sem a sua tradução institucional é frágil.

Por isso, é legítimo defender a intervenção do Estado na criação de condições para o exercício de um debate esclarecido, com um enquadramento institucional que assegure a existência de uma pluralidade de organizações mediáticas independentes. O que está em causa não é a salvaguarda do espaço hertziano como um bem escasso. A defesa do de serviço público deve ser assumida através da assunção do princípio segundo o qual a liberdade de expressão e o direito a informar e ser informado não são meros direitos subjectivos. Têm, claramente, uma dimensão pública e articulam-se com outras vertentes do património constitucional europeu como o direito à Cultura. Por isso, é defensável uma intervenção estatal em diversos níveis:

Na garantia do exercício dos direitos por todos os cidadãos, impedindo e dificultando as formas de concentração de propriedade que se traduzam numa redução significativa da diversidade, com sacrifício do pluralismo sociológico e político;

Na criação de meios e recursos disponíveis para assegurar níveis de pluralismo e qualidade aceitáveis. Uma televisão de serviço público deve ser financiado pelo Estado, através de uma taxa ou do pagamento de indemnizações compensatórias pagas pelo Estado, quebrando o vínculo relativamente à estratégia dos anunciantes. Pode-se aceitar a possibilidade da adopção do modelo finlandês, sendo-lhe atribuída uma receita em função das receitas publicitárias dos canais privados, diminuído a sua dependência do Estado. Quanto aos seus conteúdos, eles devem reflectir o pluralismo sociológico e político, proporcionar informação de qualidade e desgovernamentalizada e manter, com as devidas cautelas, uma distância profunda em relação à guerra de audiências o que não significa ser inconsciente relativamente às mesmas audiências.

Na criação de oportunidades para assegurar a existência de outras plataformas independentes de produção e de emissão, colocando como elementos essenciais de regulação a qualidade dos projectos e a sua diversidade política e sociológica. Neste domínio, a sociedade da informação e os seus alicerces típicos, a televisão digital e a Internet, constituem desafios particularmente interessantes no que respeita à capacidade reguladora do Estado. Por outro lado, a reflexão sobre os media locais e regionais está longe de estar terminada. Os 900 títulos recenseados no Instituto da Comunicação Social fazem de Portugal o país com maior taxa de jornais por mil habitantes , apesar de ter o índice leitura mais baixo da União Europeia. Estas empresas conseguem captar apenas 5% das receitas publicitárias e pautam-se, em grande parte, pelo amadorismo. Por outro lado, não é estulto pensar, com cautela na televisão regional ou de proximidade seguindo o princípio de que terá que se ter em conta não apenas a cultura mas a estrutura económica. Os exemplos de Espanha - desde o Canal 9 TV ( da comunidade valenciana) à Telemadrid -são muito diversificadas. Ao nível local não se parece ter passado da fa se experimental.

Finalmente, importa tornar as novas tecnologias acessíveis a todos, tornando claro que os indivíduos têm necessidade de desenvolver uma cultura mediática. O receptor só passa a ser sujeito da informação quando dispõe de critérios próprios (Calvo, 1994:327). Não é exagerado dizer que alguns movimentos de literacia mediática nos confrontam com desafios e problemas dos mais delicados entre aqueles que, como educadores e cidadãos, teremos que enfrentar no século XXI. Trata-se no fundo de promover as competências que permitam aos estudantes e os cidadãos em geral tornarem-se mais sensíveis aos mecanismos sociais de representação tantas vezes ocultos na linguagem mediática. Nessa medida, influenciar o modo como se constrói a diferença e a hierarquia no interior dos discurso mediáticos em geral e dos discursos jornalísticos em particular, implica saber como eles são construídos, quais são os seus códigos e convenções e, em última instância, ser capaz de produzir artefactos mediáticos, de forma a usá-los como meios de expressão e de comunicação.

Conclusão

Um espaço público fragmentado é, em si, teatro de esperanças e decepções. As exigências ético-políticas com que os media se confrontam são cada vez maiores. A capacidade de estes responderem a essas exigências é relativamente pobre, especialmente quando, como é o caso, se verificam contextos de desregulação mercantil pouco prometedores. Porém, as forças que o Estado possa acrescer a uma regulamentação ético-político do papel dos media são forças que apelam à inegável vocação do politico: a responsabilidade para decidir.

Referências bibliográficas



Notas de rodapé

... conhecimento.1
Pelo seu vigor e capacidade de síntese não resistimos a recorrer a esta citação de Castells: ``as mudanças sociais são tão grandiosas como os processos de transformação tecnológicos e económicos. Apesar de todas as dificuldades no processo de transformação da condição feminina, o patriarcado foi atacado e abalado em muitas sociedades. Assim, as relações de género tornaram-se na maior parte do mundo, num domínio de disputas em vez de uma esfera de reprodução cultural. Há uma importante redefinição das relações entre as mulheres, homens e crianças e, consequentemente, da família, da sexualidade e da personalidade. A consciência ambiental penetrou as instituições da sociedade e os seus valores tornaram-se politicamente apelativos foi o de passarem a ser usados e manipulados na prática diária das empresas e das burocracias. Os sistemas políticos estão mergulhados numa crise estrutural de legitimidade, periodicamente arrasados por escândalos, dependentes dos media e da liderança personalizada e cada vez mais isolados dos cidadãos. Os movimentos sociais tendem a ser fragmentados, locais, com um objectivo único e efémeros, ora fechados nos seus mundos interiores ora brilhando por um instante em torno de um símbolo dos media. Num mundo de mudanças confusas e incontroladas, as pessoas tendem a reagrupar-se em torno de identidades primárias: religiosas, éticas, territoriais e nacionais. O fundamentalismo religioso, cristão, islâmico, judeu, hindu e até budista (o que parece ser um contra senso) é provavelmente a maior força de segurança pessoal e mobilização colectiva nestes anos conturbados'' (Castells, 2002: 3).

... tribalismo2
Mais uma vez vale a pena citar Castells: ``A sociedade informacional, na sua manifestação global, é também o mundo de Aum Shinrikyio (Seita da Verdade Suprema), das Milícias Norte Americanas, das ambições teocráticas islâmicas/cristãs e do genocídio recíproco de hutus e tutsis'' (Castells, 2002:4).
... comum3
Apesar de não nos podermos debruçar em profundidade sobre a matéria importa lembrar que os movimentos sociais de defesa das identidades socialmente desfavorecidas são muito diferentes na sua relação com tradição moderna de defesa do aprofundamento da universalidade dos direitos. O movimento feminista e o movimento sindical, por exemplo, têm uma tradição maioritária de aprofundamento da universalidade dos direitos humanos. Por outro lado, há movimentos de defesa dos direitos das etnias e contra a discriminação racial que mantém no seu horizonte uma relação positiva com a universalidade dos direitos humanos, aceitando a primazia dos preceitos do Estado de Direito Constitucional relativos a pluralidade dos valores e das normas e à igualdade, reciprocidade e responsabilidade mútua dos diversos actores sociais. Esta primazia, todavia, não pode ser aceite, apenas, na relação entre os diferentes grupos mas também nas relações entre os diferentes membros do grupo.
... humano4
Algumas estratégias de personalização dos factos políticos são particularmente imaginosas. Após a divulgação das primeiras projecções sobre o resultado das últimas eleições espanholas (14 de Março de 2004) um jornalista referia-se ao candidato socialista Zapatero de uma forma que o indicava como personagem relativamente apagado. O que é interessante é a prova que o jornalista, no calor dos acontecimentos, apontava para se referir a esta característica. Em sucessivos directos, disse que Zapatero é um homem apagado que gosta de pescar trutas aos fins-de-semana. Isto foi várias vezes repetido. Nesta lógica de personalização, a prática de desportos radicais podia indiciar que Zapatero era uma figura carismática. Provavelmente, este pequeno episódio merece uma reflexão acrescida sobre a problemática dos valores notícia.
...aos5
Tais tarefas são as seguintes: vigilância sobre o meio ambiente de modo a detectar situações que se podem repercutir positiva ou negativamente no bem - estar dos cidadãos; a identificação dos assuntos chave, incluindo as forças que estão por detrás deles ; a criação de plataformas para uma apresentação inteligente esclarecida de outras causas e grupos de interesse; a criação de mecanismos de responsabilização dos servidores públicos pelo exercício do poder; a criação de incentivos aos cidadãos para se informarem, aprenderem, escolherem e envolverem-se em de se limitarem a seguir de forma passiva processo político; a resistência contra forças exteriores aos media que subvertem sua integridade e independência e disponibilidade ara servirem as audiências; o respeito pelo membro da audiência , como alguém potencialmente interessado e capaz de compreender o ambiente político. ( Gurevitch, M. e Blumer, J., 1990: 268-89).
... 20-23).6
Nesse sentido, concordamos com Ferry na ideia segundo a qual a definição de Dominique Wolton de comunicação política como a interacção entre jornalistas, políticos e a opinião pública medida pelas empresas de sondagens, está errada. Porém, faça-se justiça: Wolton distingue-a completamente de espaço público, como instância que é consubstancial à existência da democracia (Wolton, 1989: 32). A única dificuldade é que esta definição, que até pode ser vantajosa, em termos analíticos, tem que admitir a existência de numerosos fluxos entre o espaço público e a comunicação política. Wolton reconhece que, no plano prático, existem muitíssimos modos de expressão pública que não passam por sondagens, como sejam os movimentos de opinião e os movimentos sociais e defende que a comunicação política possa constituir uma forma de impedir o fechamento do meio político, possibilitando a sua abertura aos movimentos sociais. Um aspecto que convirá olhar com mais cautela é a posição do mesmo autor segundo a qual são os meios e as sondagens que salvam o espaço público.

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A este nível parece ser frutuosa a opinião de D. Wolton segundo a qual os políticos, os meios de comunicação e a opinião pública parecem ter lógicas diversas: os primeiros centram-se na acção, os segundos no acontecimento e a terceira, na hierarquização dos temas (Wolton, 1989: 35).