O DOMÍNIO A PRIORÍSTICO DA COMUNICACIONALIDADE

NA TRANSFORMAÇÃO DA FILOSOFIA DE KARL-OTTO APEL



José António Campelo de Sousa Amaral, Universidade Católica Portuguesa


Junho de 1994


Introdução; Primeira Parte; Terceira Parte; Conclusão e Bibliografia



Segunda Parte

A TRANSFORMAÇÃO DA FILOSOFIA: DA DESCONSTRUÇÃO LINGUÍSTICA DA METAFÍSICA À RECONSTRUÇÃO METAFÍSICA DA LINGUAGEM


Univerasale est aliqua qualitas exsistens subjective in mente,

quae ex natura sua est signum rei extra

[ Ockham ]


Capítulo primeiro:

a TRANSFORMAÇÃO DA FILOSOFIA como "desconstrução" linguística da metafísica (da suspeita de sentido ao sentido da suspeita)



I. A transformação da filosofia na análise lógica da linguagem


A) A destilação analítica da linguagem. O Wittgenstein do "Tractatus". O grau de insustentabilidade interna da análise lógica da linguagem.


Que significado tem a ordem para o problema da linguagem?

Que significado tem a linguagem para o problema da ordem?

A primeira questão coloca indagações de índole mais empírica -há uma ordem na linguagem?, como se encontra ela constituida?, que relação mantém essa ordem não só com a pluralidade dos constructos e modelos alternativos linguísticos, mas também com a polivalência sémica de cada linguagem?

A segunda questão mobiliza um tipo de acercamento vinculável não só à perspectiva positivista do lógico e do linguista, mas também às apetências teóricas, quer da filosofia (gnoseológica e ética), quer da sociologia - de que forma se estrutura a ordem no mundo?, em que medida a linguagem se impõe como condição sine qua non da ordem no mundo, entendido este, por seu turno, como ordem da vida e da sociedade?

Em que atitude problemática deve a reflexão sobre a linguagem incidir?

Tomar isoladamente cada um dos polos alternativos, pode responder ao imperativo metódico de uma delimitação específica de âmbitos, contudo parece colocar a razão perante um dilema. Ou decidimos pela ordem na óptica da linguagem, e então incorremos no défice justificacional que Apel denuncia na apreciação crítica da analítica1, ou optamos pela linguagem na perspectiva da ordem, e nesse caso escamoteamos os pressupostos empíricos da ordenação da vida e do mundo.2

A saida desta aporia consiste apenas na possibilidade de a filosofia refazer a questão do ponto de vista metafísico de uma circularidade tensional: resposta à pergunta pelo significado da linguagem para o problema da ordem depende correlacionalmente da resposta à pergunta pelo significado da ordem para o problema da linguagem e vice-versa. Segundo Apel, só contemporaneamente a filosofia chegou a essa solução de compromisso:


a filosofia actual parece, com efeito, estar investida para esta aparente colocação paradoxal do problema, depois de ter exposto recentemente diante dos nossos olhos -deveria antes dizer: nos bastidores do cenário filosófico- uma espécie de "luta titânica" pela primazia da linguagem e da ordem.3


Uma das correntes que tomou posição por um dos extremos da aporia foi precisamente a filosofia analítica. Com efeito, a analítica representa, a par da hermenêutica, um dos polos da alternativa teórica, na qual se disputou o ponto de vista supremo da relação ordem/linguagem. Todavia, enquanto a hermenêutica viu a linguagem pela óptica da ordem ontológica, a analítica viu a ordem pela óptica da linguagem lógica.

A relação intrínseca entre linguagem e ordem não é todavia apanágio exclusivo, nem da analítica nem da hermenêutica. Antes de chegar a Carnap na forma elaborada de uma análise lógica da linguagem [Logische Analyse der Sprache], a relação "ordem-linguagem" encontra-se já acenada, desde a época clássica, no emprego polissémico do termo lógos.

Lógos pode, com efeito, designar

- palavra ou discurso,

- razão ou cálculo,

- sentido ou lei universal.

A lógica começou por ser uma ciência do discurso [tékhne logiké]. Ciência destinada, pois, a estudar a relação entre linguagem e ordem. A linguagem era concebida como reprodução sígnica da ordem do mundo, sendo a ordem do mundo aferida mediante a ordem imanente da linguagem. Pelo menos é nestes moldes que Aristóteles procede à inventariação lógica das categorias predicamentais do discurso (discurso entendido como "função judicativa"). A Lógica assentaria na base da relação sujeito-predicado. Essa relação equivaleria à ordem ontológica do ser essencial, da substância (ousía). Essa ordem ontológica estaria pre-figurada na estrutura do modelo linguístico indo-europeu, modelo esse radicado, por seu turno, na virtualidade onto-lógica do verbo ser [einai].4

A ideia de uma representação da ordem do mundo na linguagem representa já um "acréscimo" reflexivo em relação às intuições clássicas. Essa ideia começou por ser decantada pela ontologia da alta escolástica, ontologia essa aferida da gramática latina mediante a teoria da suposição (ulteriormente posta em causa pelo nominalismo), mas foi sobretudo com Leibnitz que atingiu a sua máxima precisão.

A Lógica leibnitzeana sustenta a ideia da pura forma do discurso, independentemente de todo o conteúdo significativo das palavras. Para aceder à comunicação universal interessa o "como se diz" e não o "que se diz". A linguagem corrente dá lugar, por conseguinte, a um calculus ratiotinator, entendido como characteristica universalis.5

Deste modo, aquilo que, desde a antiguidade, se insinuara já na comparação aristotélica entre signo linguístico e cálculo [pséphos], atinge em Leibnitz uma ressonância exponencial. Trata-se de anexar a linguagem à ordem lógica da matemática, por forma a elevar o saber à sua máxima univocidade.6

A ideia de uma "formatação" ôntica da ordem numa pura lógica da linguagem, de que Leibnitz é o indiscutível precursor, levanta, todavia, para Apel uma questão ambivalente: em que modelo de linguagem se inspira a ordem lógica para configurar a ordem cósmica?

- na ordem "contingente" das linguagens possíveis? (mas se assim é, como poderá essa contingência configurar a essência lógica da ordem do mundo?);

ou

- na ordem "absoluta" da linguagem ideal? (mas então como poderá essa idealidade configurar a essência mundana da lógica?).

Poderá a lógica desfazer esta aporia pelos seus próprios meios, isto é, sem recorrer a um nível de linguagem que exceda os limites formais que auto-prescreveu para si mesma, ou terá de implorar o "socorro metafísico" da reflexão, mesmo que isso custe um retorno à linguagem corrente e natural?

É no Tractatus de Wittgenstein que esta questão adquire uma peculiar acuidade. Esclarece Apel:


O denominado "atomismo" lógico de B.Russel e do seu discípulo L.Wittgenstein aparece como expressão dessa secreta metafísica da lógica. De modo particular, o Tractatus Logico-philosophicus poderia ser aqui aludido como culminância da tentativa, que atravessa a história da lógica, de fazer reflectir umas nas outras a ordem do mundo, a ordem da lógica matemática e a ordem da linguagem, mediante o pressuposto da sua forma idêntica.7


Mas se o Tractatus se pode assumir como análise da expressão simbólica 8, por outro lado ele representa também a crítica mais contundente do discurso metafísico. Essa crítica da linguagem simbólica à metafísica é, de resto, bem realçada por Russel nas palavras introdutórias à obra de Wittgenstein: O Tractatus do Sr.Wittgenstein, venha ou não a provar-se que é a verdade suprema acerca dos temas que trata, merece bem com certeza, em virtude da sua inspiração, profundidade e alcance, ser considerado um acontecimento importante no mundo da Filosofia. Partindo dos princípios do Simbolismo e das relações necessárias entre as palavras e as coisas, acaba por aplicar o resultado desta investigação aos ramos tradicionais da Filosofia, mostrando como em cada passo a Filosofia tradicional e as soluções tradicionais resultam da ignorância dos princípios do Simbolismo e de um uso impróprio da linguagem.9

O depoimento russeleano cunha na sua máxima extensão o móbil da filosofia de Wittgenstein e, sob o influxo deste, o mote fundamental do positivismo lógico: a suspeita da carência de sentido de toda a metafísica. A metafísica carece de sentido na medida em que, mediante uma análise lógica dos seus (pseudo-)enunciados, é destituida formalmente das suas pretensões científicas de objectividade. 10 Pelo facto de não assumir o isomorfismo lógico entre "linguagem" e "mundo", o discurso metafísico não pode presumir-se como saber "objectivo", nem constituir-se como saber "científico".

Mas de onde afere Wittgenstein o princípio canónico de uma ordem unívoca da linguagem e do mundo?

Para L.Wittgenstein, pelo menos para o Wittgenstein da "primeira fase", essa univocidade é dada na combinação entre facto [isto é, a existência de estados de coisas11 (o estado de coisas é uma conexão entre objectos12)] e imagem [ou seja, a apresentação de estados de coisas no espaço lógico13 (a imagem lógica dos factos é o pensamento14)] numa proposição [quer dizer, o sinal através do qual exprimimos o pensamento15 (o pensamento pode ser de tal modo expresso, que aos objectos do pensamento correspondem os elementos do sinal proposicional16)].

A arquitectónica wittgensteineana da lógica tende, por conseguinte, a condensar a ordem do mundo e a ordem da linguagem numa espécie de círculo auto-remissivo :

- por um lado, os factos no espaço lógico são o mundo17,

- por outro lado, o sinal proposicional é um facto18.

Esta estratégia de reenvio entre facto e proposição, entre estado de coisas e pensamento, entre mundo e lógica, parece resolver os intuitos programáticos da analítica, pelo menos do ponto de vista das exigências do atomismo lógico. Na verdade, se o pensamento é a proposição com sentido19, então a totalidade das proposições é a linguagem20. Isto significa que a estrutura linguística pode ser dissecada ou decomposta até à mais ínfima elementaridade.21

Todavia, na iminência de justificar o vício dialéctico do círculo entre factos e proposições, e, além disso, de verificar até onde poderia ir a redução elementar das componentes da expressão, Wittgenstein remete para a noção de limite formal22 tudo aquilo de que só uma meta-linguagem 23 poderia "misticamente" dar conta mas não resolver.

Ora, aquilo que Wittgenstein considera ser um "limite" da formalização simbólica, Apel entende-o como contradição interna do próprio projecto analítico:


a forma idêntica que faz possível a figuração estrutural dos objectos do mundo nos factos-signo da linguagem não pode ser em si representada como um facto, razão pela qual também não pode em absoluto comunicar-se (e por isso conhecer-se); (...) mas se nada pode ser dito acerca da forma do mundo, que só se mostra no uso da linguagem, nada em absoluto poderá ser dito com sentido acerca da totalidade do mundo e, portanto, acerca de uma ordem do mundo, já que qualquer enunciado dessa classe será, na sua verdadeira pretensão, um enunciado sobre a forma da linguagem e, por isso mesmo, impossível...24


Ora, a ideia de uma "secreta metafísica" da lógica da linguagem devolve à analítica o sentido da sua suspeita dirigida contra "o sentido de toda a metafísica".

Se, por uma lado, a analítica se revela eficaz na moção de censura dirigida, não a toda a metafísica (como pretendeu Carnap), mas particularmente a "uma" metafísica da ordem linguística 25, por outro lado, a sua "pretensão" (pseudo-metafísica, poderíamos nós dizer também...) em aceder a certezas válidas a priori sobre a relação entre ordem do mundo e ordem da linguagem -quer dizer, a "convicção" de que podemos equiparar linguagem e mundo de modo logicamente unívoco, sem o concurso de uma linguagem eminentemente equívoca e de uma pré-compreensão do mundo- fracassa inapelavelmente nos seus intentos formais.

O cáustico remoque carnapeano de que a metafísica, além de ser "pseudo-científica" nas sua pretensões, é ainda "má poesia" por ficar aquém do que legitimamente se espera da arte26, pode igualmente ser imputado às próprias expectativas "científicas" da analítica: além de ser pseudo-metafísica na sua ingénua pretensão de controlar logicamente a isonomia mundo-pensamento, é também má ciência, pela simples razão de não conseguir converter em verificação lógica a validade do círculo facto-proposição.

Tal antinomia revela, no entender de Apel, o embaraço em que incorre todo o desígnio de instituir uma linguagem unívoca na base de constructos eminentemente formais:


Assim como a velha lógica ontológica sempre acreditou ser capaz de ler imediatamente nas coisas uma única ordem possível do mundo válido possível para as coisas e para a linguagem, (...) também a problemática da interpretação das linguagens artificiais formalizadas (cálculo) mostrará agora que o projecto de uma ordem dedutivo-formal em geral não pode transladar-se para as coisas de forma imediata, (...) a não ser pela mediação de uma meta-linguagem última.27


Ora, é a partir do ponto de vista do défice justificacional e do postulado meta-linguístico da analítica, que Apel visiona os antecedentes de uma transformação da filosofia realizada no interior de uma transformação da linguagem.

Essa transformação da filosofia joga-se comutativamente em dois polos de que tentaremos dar conta mediante as reflexões críticas de Apel: um de carácter reflexivo; outro de carácter histórico. Deste modo,

a) no âmbito da reflexão, transformar a filosofia implica re-definir criticamente o estatuto linguístico da racionalidade, e extrair metafisicamente as consequências últimas da suspeita analítica da carência de sentido de toda a metafísica;

b) no âmbito histórico da experiência temporal do pensamento, transformar a filosofia significa acompanhar em Wittgenstein a re-orientação transcendental da análise lógica para a teoria dos jogos linguísticos.



B) Da suspeita analítica da carência de sentido da metafísica, à suspeita metafísica do défice auto-justificativo da analítica


Não é possível aceder a uma linguagem lógica sem pressupor uma ordo metaphysica que determine a co-ordenação isomórfica do facto, da linguagem e do mundo.28

Não é essa, todavia, a posição que L.Wittgenstein adopta nos escritos da juventude, mormente no Tractatus. Refere o autor: o método correcto da filosofia seria o seguinte: só dizer o que pode ser dito, i.é, as proposições das ciências naturais (...), e depois, quando alguém quisesse dizer algo de metafísico, mostrar-lhe que nas suas proposições existem sinais aos quais não foram dados uma denotação. A esta pessoa o método pareceria ser frustrante - uma vez que não sentiria que lhe estávamos a ensinar Filosofia - mas este seria o único método estrictamente correcto.29

Contudo, o critério denotativo de que Wittgenstein se serve para pulverizar o conceito de metafísica, constitui, no entender de Apel, o pressuposto do estigma anti-metafísico da analítica.30 Significa isto que o Tractatus não se "subleva" contra toda a metafísica, mas contra a metafísica avaliada do ponto de vista unilateral da denotação...

Nesse sentido, o conceito de metafísica implícito no trecho citado denota já uma teoria da figuração do mundo -reportável de certa forma aos Principia mathematica de B. Russell- e que Wittgenstein expõe de modo original nas duas primeiras suras do Tractatus.

Aí o mundo é representado como suma dos "factos", factos esses,figurativamente projectáveis como estados de coisas, no espaço lógico, mediante signos. Refere Wittgenstein: A maior parte das proposições e questões que se escreveram sobre matéria filosófica não são falsas mas sem sentido. Não podemos, pois, responder às questões desta classe de nenhum modo, mas apenas estabelecer o seu sem-sentido.31

É nessa conclusão surpreendentemente singela que Wittgenstein postula os limites da Filosofia e a insustentabilidade formal da Metafísica.

Isomorficamente cifrada na linguagem e no mundo, a figuração da res factica na forma lógica acalenta, na perspectiva apeleana, o autêntico


motivo fundamental de toda a filosofia ulterior: a suspeita da carência de sentido dirigida contra todas as proposições metafísicas.32


As proposições metafísicas, com efeito, não se contentam apenas em efectuar asserções sobre factos empíricos do mundo, mas pretendem estatuir asserções a prioristicamente válidas acerca do mundo na sua totalidade, o que equivale, no fundo, a ratificar asserções :

- sobre a forma do mundo,

- sobre a forma de representação do mundo e

- sobre a condição de possibilidade dessa validação.

Contudo, para Wittgenstein, tais proposiões fundamentam-se, na sua maior parte, no facto de nós não compreendermos a lógica da nossa linguagem.33

Subscrevendo embora os pressupostos analíticos do Tractatus, Carnap -e todo o movimento neo-positivista subsequente- equaciona a questão do sentido do discurso metafísico de uma forma ainda mais incisiva. Transfere-a do plano "coisista" da proposição fáctica para o âmbito "enunciativo" da expressão sintática.

Para Carnap não está em causa sequer proceder a uma re-apreciação do estatuto filosófico da metafísica, mas em garantir a supressão pura e simples de tal discurso. Para atingir esse intento só há que substituir as pseudo-proposições metafísicas por enunciados sintáticos logicamente construidos. Refere o autor: The logical analysis of philosophical problems shows them to vary greatly in character. As regards those object-questions whose objects do not occur in the exact sciences, critical analysis has revealed that they are pseudo-problems. The supposititius sentences of metaphysics (...) are pseudo-sentences; they have their turn stimulate feelings and volitional tendencies on the part of the hearer. (...) The supposed peculiary philosofical point of view from which the objects of science are to be investigated proves to be illusory, just as, previously, the supposed peculiarly philosofical realm of objects proper to metaphysics disappeared under analysis. (...) According to this view, then, once philosophy is purified of all unscientific elements, only the logic of science remains. In the majority of philosofical investigations, however, a sharp division into scientific and unscientific elements is quite impossible. For this reason we prefer to say: the logic of science takes the place of the inextricable tangle of problems which is known as philosophy.34

Tendo em conta a terminologia kanteana, poder-se-ia objectar que também Kant rejeita, como se sabe, a metafísica tradicional. Se considerarmos, com efeito, que as verdades lógico-formais são designadas em Kant por juizos analíticos e as proposições empiricamente verificáveis são justamente o que Kant chama de juizos sintéticos a posteriori, poder-se-ia caracterizar "kanteanamente" o alcance epistemológico da analítica (e do neo-positivismo lógico subsequente) da seguinte forma: todos os enunciados da ciência têm de ser, ou enunciados analíticos, ou enunciados sintéticos a posteriori (isto é, empíricos).

O problema é que, para os analíticos e os empiristas lógicos, Kant admite, para além das duas espécies de juizos referidos, um outro tipo de juizos, sem os quais a ciência não pode aceder ao teor de universalidade, necessidade e progressão no conhecimento que lhe é exigido: os juizos sintéticos a priori. A esta espécie de juizos (para os quais nem os meios da lógica formal bastam para os conhecer, nem as intuições empíricas são necessárias para os obter) pertencem sobretudo os supostos metafísicos das ciências empíricas, que Kant designou de proposições da ciência pura da natureza. Para Kant, a totalidade destes enunciados constitui o núcleo duro da única metafísica cientificamente possível. Deste modo, toda a ciência da experiência assenta num fundamento sintético a priori, formalmente dependente da existência de conceitos a priori. De facto, se o nosso conhecimento se reportasse a um mundo independente da consciência, seria incompreensível como poderíamos obter um conhecimento à revelia da experiência; mas se as leis do entendimento forem,de jure ede facto, as leis que constituem o mundo, é perfeitamente admissível e requerível a existência desse conhecimento a priori da realidade.

Embora sem contestar a validade da teoria kanteana, a corrente analítica e o empirismo lógico negam, contudo, o ponto de partida que legitima formalmente o sentido da concepção metafísica de Kant: os conceitos a priori. Nem na lógica (para os analíticos) nem nas ciências físicas da natureza (para os neo-positivistas) encontramos nada parecido com princípios a priori ou objectos a priori. No que toca à lógica, os seus princípios não assentam em nada que exceda o domínio estritamente formal da sintaxe; no que respeita às ciências físicas da natureza, não é preciso recorrer a condições a priori para legitimar o critério empírico de verificação dos seus enunciados. Ainsi l'analyse logique ne triomphe pas seulement de la métaphysique au sense propre et classique du terme, en particulier de la métaphysique scolastique et celle des systèmes de l'idéalisme allemand, mais aussi de la métaphysique cachée de l'apriorisme kantien et moderne. La conception scientifique du monde n'admet pas de connaissance inconditionnellement valide qui aurait sa source dans la raison pure, ni de "jugements synthétiques a priori" comme on en trouve au fondement de la théorie kantienne de la connaissance, et a fortiori de toute ontologie et toute métaphysique pré et post-kantiennes.35

Fica deste modo rejeitada a tentativa kanteana de poupar a metafísica no itinerário transcendental das condições possibilitadoras da ciência. A perspectiva lógica da analítica e do neo-positivismo nega liminarmente o pressuposto kanteano de que o conhecimento possa depender da existência de juizos sintéticos a priori.

É possível, portanto, resumir a posição da análise lógica da linguagem face à salvaguarda kanteana da metafísica do seguinte modo: visto que não há juízos sintéticos a priori, a questão central da crítica kanteana da razão fica sem efeito; daí que não faça sentido construir uma teoria de cariz kanteano que procure responder à questão validade do conhecimento científico.36

Vê-se, pois, em que medida é que a análise lógica da linguagem resulta de uma revisão teórica da função epistémica da filosofia e, na esteira dessa revisão, indefere as pretensões filosóficas da metafísica.

Todavia, é legitimo questionar em que medida é que a ausência desse plano de legitimação interna não constrange o desígnio analítico ao inequívoco reconhecimento uma espécie de cripto-metafísica, implícita nos seus pressupostos... Dito de outra forma: a denúncia contida na suspeita da carência de sentido diagnosticada no discurso metafísico não poderá, a título metafísico, ser restituida à analítica envolvendo a pergunta pelo sentido dessa suspeita?

Até que ponto é que, paradoxalmente, a análise lógica da linguagem não preenche criticamente, do ponto de vista "material" da intuição linguística, os requisitos "formais" do conceito kanteano de metafísica? E não residirá nesse paradoxo o primeiro indício daquilo que Apel postula contemporaneamente como transformação da filosofia ?

Se, para a analítica, a essência da representação do mundo consiste na figuração de factos mediante factos, então como figurar facticamente a lógica do isomorfismo linguagem-mundo?

Será capaz a filosofia analítica de proceder e resistir à "descrição" linguística do seu uso fáctico?37 Wittgenstein refere que não: com efeito, a proposição não pode representar a forma lógica, esta espelha-se nela. O que se espelha na linguagem, ela não pode representar. O que se exprime na linguagem, nós não podemos exprimir através dela.38

Este núcleo proposicional representa precisamente para Apel a tomada de consciência dos limites formais da analítica, a sua conversão mística a uma meta-linguagem e a uma revisão metafísica dos seus critérios justificacionais, dado que


representar a figuração da forma lógica comum à linguagem e ao mundo, significa ter que representá-la linguisticamente, o que é a priori impossível, uma vez que essa representação linguística teria de tomar uma posição fora da sua forma de representação.39


É nesta incapacidade de desdobramento figurativo da linguagem que Apel detecta o contra-senso lógico do projecto analítico.

O positivismo lógico subsequente tratou de reter a parte analítica do Tractatus imputando apenas à infraestrutura ontológica uma metafísica carente de sentido. A questão, porém, é que não se deu conta da carência metafísica de sentido implícita logo na proposição inaugural do Tractatus, a saber, O mundo é tudo o que é o caso (sura 1) e O que é o caso, o facto, é a existência de estados de coisas (sura 2).

Qualquer uma destas proposições analíticas, para Apel, caem sob "suspeita" na medida em que


expressam asserções sobre o mundo na sua totalidade, o que significa que expressam asserções sobre a forma a priori do mundo. Logo, asserções deste tipo não podem ser concebidas em si mesmas (...) como proposições. Precisamente porque pretendem dar uma fundamentação ontológica ao critério de sentido, deixam de satisfazer esse mesmo critério de sentido que estabelece Wittgenstein.40


Parafraseando Carnap, poderíamos também nós dizer que a pretensão ontológica de tais asserções, não só não cumpre aquilo que é exigido analiticamente de um enunciado científico, como acaba além disso por incorrer em "má metafísica".41 É, porém, dessa "má metafísica" que temos de extrair crítica e fenomenologicamente a aptência da análise lógica da linguagem pela metafísica.

Antes de mais, o discurso que introduz o tópico da relação entre a estrutura linguística e a referência "extra-linguística" à realidade (qualquer que seja o tipo de linguagem utilizada) é necessariamente filosófico. A análise lógica cabe nesse discurso apenas como momento formal, nunca como instância legitimadora. Partindo do princípio que o acto linguístico desempenha ao fim e ao cabo o papel de acto originário do conhecimento, estamos necessariamente na senda de um retorno ao paradigma kanteano.

Em Russell, Wittgenstein e Carnap surpreendemos uma preocupação aparentada com aquilo que Kant considerava ser a busca metafísica do quid facti. A única diferença é que, em vez de um rastreio da possibilidade do conhecimento sintético a priori, compete à análise lógica deslindar as condições formais de toda a expressão. No fundo, o extraordinário impulso em torno das investigações lógicas reacende uma tradição que, com David Hume e sobretudo John Locke42, tende a descobrir o valor filosófico da mediação lógica da linguagem, e que terá constituido, apesar de tudo, uma das lacunas do kantismo.

A verdadeira forma do objecto científico não diz respeito propriamente a um conteúdo sensível, mas primeiro que tudo a uma linguagem onde se inscreve o seu processo formal. Contudo, num certo sentido, o problema transcendental do quid juris também se colocou aos analistas, e com particular relevo a Wittgenstein e ao neo-positivismo lógico subsequente. Porém, enquanto Kant acedeu à transcendentalidade pelo esclarecimento justificacional do conhecimento possível e no domínio de uma filosofia da consciência, Wittgenstein -que também faz uso do epíteto transcendental - chega a ela pelo esclarecimento analítico das proposições lógicas com sentido e no domínio de uma filosofia da linguagem.

O sentido apeleano de uma transformação da filosofia ocorrida no estofo da própria linguisticidade decorre necessariamente do facto de a a análise linguística desdobrar o rastreio da sua forma lógica em sondagem da forma transcendental. Suprimir o problema e renunciar a esse desdobramento, equivale a canonizar uma filosofia que avança analiticamente às "apalpadelas", sempre que estiver em causa atribuir um estatuto justificacional às condições de possibilidade e uso da expressão linguística.

Assim, pour répondre à Kant -sublinha Francis Jacques- la philosophie analytique a apporté une méthode, un lieu théorique et une contribution qu'on ne peut pas négliger. Qu'on songe combien de questions kantiennes sont puissamment renouvelées: l'existence et la critique de l'argument ontologique, la vérité mathématique, les antinomies et les limitations intrinsèques de la raison pure. Mais chaque fois que la philosophie analytique va jusqu'à poser le problème trancendantal, elle balbutie plus ou moins consciemment.43

Prova disso, para Apel, é a inflexão que se regista no pensamento de Wittgenstein, quando transpomos o limiar da análise lógica da linguagem para o domínio transcendental do jogo linguístico.44



C) A viragem "metafísica" da analítica. O Wittgenstein das Investigações Filosóficas. A teoria dos jogos linguísticos no limiar hermenêutico da linguagem.


Uma leitura atenta das Philosophische Untersuchungen 45 autoriza-nos a sustentar que a reflexão sobre o "sentido" do sentido linguístico -reflexão essa "despachada" no Tractatus em meia dúzia de suras tão apodíticas quanto obscuras- constitui o epicentro das preocupações teóricas do "último" Wittgenstein.

Na perspectiva apeleana46, a haver uma continuidade entre as filosofias do "primeiro" e do "último" Wittgenstein, ela cifrar-se-á precisamente na linha da suspeita contra todo o discurso ou filosofia que pretendam, à maneira das ciências, tornar-se relevantes com proposições ou teorias acerca do mundo.47

Nas Investigações, é contra a ideia de "conceito" que essa suspeita se agrava de modo ainda mais radical.

Para Apel, tal radicalismo encontra-se bem patente


sobretudo na discussão da teoria tradicional da (...) pergunta suscitada desde Sócrates pelo quê, pela quidditas definível ou essentia de qualquer significado expresso numa palavra.48


Ora, é precisamente na teoria do jogo linguístico que Wittgenstein entrevê a única escapatória possível para a "ditadura" do conceito na filosofia.

Sobre essa sobredeterminação lúdica, refere Apel:


na discussão da questão acerca da essência do "jogo" (...), Wittgenstein trata de mostrar que não é verificável a hipótese de um conteúdo de índole espiritual, fixo e unitário de uma ideia ou de uma essência, inclusive quando não se pretende nenhuma hipostatização dessa essência num modelo prévio de uma coisa existente.49


Não sendo o conceito verificável -logo, não sendo verificável também a "infraestrutura" (conceptual) do discurso filosófico-, apenas é necessário para Wittgenstein que entre as incontáveis formas de emprego de uma palavra, condicionadas pelo contexto situacional, exista um "ar de família ": Não consigo caracterizar melhor essas parecenças do que com a expressão "parecenças de família"; porque as diversas parecenças entre os membros de uma família, constituição , traços faciais, cor dos olhos, andar, temperamento, etc., etc., sobrepõem-se e cruzam-se da mesma maneira. - E eu direi: os jogos constituem uma família. (...) Mas se uma pessoa quisesse dizer: "Mas todas as construções têm uma coisa em comum - nomeadamente a disjunção de todos os traços comuns" então eu responderia: estás apenas a jogar com palavras.50

É evidente que assistimos a um salto qualitativo no modo como Wittgenstein faz exorbitar a análise linguística da forma lógica para a forma lúdica.

Contudo, cabe neste momento uma objecção de fundo ao estigma anti-metafísico dos jogos linguísticos: não cederá aqui o próprio Wittgenstein à sugestão de uma imagem? 51

A questão afigura-se-nos pertinente, se quisermos descortinar o alcance de uma transformação da filosofia operada já no cerne da própria filosofia da linguagem. Com efeito, empenhada não só em obviar as insuficiências críticas de uma análise estritamente lógica da linguagem, mas também a manter "operacional" a supeita da carência de sentido de toda a metafísica, a teoria wittgensteineana dos jogos linguísticos tem de se socorrer "paradoxalmemte" de um conceito universalmente válido acerca da essência do contexto de emprego das palavras, a saber: o conceito de jogo.52

Neste paradoxo reside, para Apel, a verdadeira dificuldade de interpretação do pensamento do "último" Wittgenstein:


Poder-se-á formular a "hipótese" do mera "parecença familiar" dos sigos de uma palavra sem recorrer -mediante um grau de reflexão e generalidade da formulação- a uma intuição essencial que justamente não fica explicada pela hipótese? -Tal me parece ser, pois, o problema.53


Para agravar ainda mais a ambiguidade, Wittgenstein nega que, mediante o conceito de jogo linguístico, tenha pretendido conhecer e referir algo acerca da essência unitária da linguagem: - Poder-se-ia objectar-me: "Simplificas demais"! Falas de todos os jogos de linguagem possíveis e imagináveis, mas nunca chegaste a dizer qual é a essência do jogo de linguagem e assim da linguagem. (...) E é verdade. - Em vez de especificar o que é comum a tudo a quilo a que chamamos linguagem, eu afirmo que todos estes fenómenos nada têm em comum, em virtude do qual nós utilizemos a mesma palavra para todos - mas antes que todos eles são aparentados entre si de muitas maneiras diferentes.54 A clareza da linguagem está no jogo do parentesco das linguagens. Para Wittgenstein, a metafísica não tem em devida conta essa afinidade lúdica.

Ora, mesmo admitindo que a clareza [linguística] a que aspiramos é uma clareza perfeita e que, em virtude disso, os problemas filosóficos devem perfeitamente desaparecer, pois não há um método (...) mas só terapias filosóficas (Investigações... § 133), não teremos de nos questionar em que instância lúdica é que a filosofia cumpre a sua função terapêutica ? Dito de outra forma: em que nível discursivo é que a "vítima" do ardil metafísico se terá de colocar, se lhe fôr interditada o jogo metafísico da função auto-clarificadora linguagem, aberta às situações novas e aos contextos não previsíveis da sua aplicabiliade?

Para estatuir e dar como adquirida a teoria do "ar de família dos significados mentados ", Wittgenstein teria de levar às últimas consequências o desígnio de colocar a metafísica em "fora-de-jogo" linguístico, correndo o risco de perder a instância justificativa que sobredetermina a ludicidade: o contexto meta-linguístico da auto-compreensão da utência sígnica.

No entender de Apel, o paradoxo da auto-compreensão do jogo da linguagem que apenas se intui na linguagem do jogo fica interrompido mediante uma questão já implicada a propósito da "secreta metafísica da lógica" de Leibnitz:


será possível mostrar a carência de sentido das questões metafísicas sem sustentar, por sua vez, de forma dissimulada, uma metafísica? Esta parece ser, com efeito a questão decisiva que Wittgenstein legou à filosofia contemporânea.55


Para Apel, Wittgenstein confere um legado metafísico à filosofia contemporânea, legado esse que induz uma transformação filosófica da linguagem em dois planos distintos:


- a um nível hermenêutico de aferição "quase-transcendental" das condições de significabilidade dos signos linguísticos, porque


se a descrição dos jogos linguísticos -enquanto unidades de uso linguístico, forma de vida e abertura do mundo- deve assumir a função da compreensão hermenêutica das intenções com sentido, o tipo de jogo linguístico que se encontra referido a outros jogos linguísticos [por exemplo, o jogo linguístico crítico ] terá de se converter em problema-chave de uma hermenêutica erigida sobre bases wittgensteineanas 56;


- a um nível pragmático de aferição "quase- transcendental" das condições de utência dos jogos linguísticos, na medida em que


por um lado, a transformação semiótico-pragmática da filosofia [operada por Ch. Peirce] assume-se como alternativa à transformação puramente semântica da filosofia transcendental [realizada por Wittgenstein]; por outro lado, a concepção dos jogos linguísticos do Wittgenstein posterior parece, sem dúvida, igualmente próxima de uma transformação pragmático-transcendental da filosofia de Kant.57


Analisemos, no escopo crítico da filosofia apeleana, cada um destes níveis em particular, tentando perceber em que medida é que concorrem, a título justificacional, para uma transformação transcendental da filosofia contemporânea da linguagem.



II. A transformação filosófica da analítica na hermenêutica da linguagem


A) Verdadeversus método: valorização fenomenológica da hermenêutica


Um dos intuitos -porventura o mais decisivo- da análise lógica da linguagem residiu no desígnio mais ou menos "prometaico" de conferir à liguagem científica um padrão discursivo uniformizado e unitário, aferido quer nos limites formais de uma sintaxe lógica (no caso paradigmático da analítica), quer -acrescentaríamos nós- nos limites meta-linguísticos de uma semântica transcendental (no caso vertente da teoria dos jogos linguísticos). Nessa linha, nous avons caractérisé la conception scientifique du monde par deux déterminations. Premièrement, elle est empiriste et positiviste. Seule existe la connaissance venue de l'expérience, qui repose sur ce qui est immédiatement donné. De cette façon, se trouve tracée le frontière qui délimite le contenu de toute la science légitime. Deuxièmement, la conception scientifique du monde se caractérise par l'application d'une certaine méthode, à savoir celle de l'analyse logique. Le but de l'effort scientifique, la science unitaire, doit être atteint par l'application de cette analyse logique aux matériaux empiriques.58

O alcance epistemológico da transformação da filosofia de K.O. Apel tem de ser apreendido a partir deste propósito analítico, aparentemente tão inquestonável quanto inofensivo: o discurso científico, para cumprir a exigência de uma partilha intersubjectivamente válida 59 dos enunciados que produz, tem de estar sob a alçada metodológica de uma linguagem unificada.

Que implicações projecta no postulado apeleano de uma transformação da filosofia a referida exigência científica de uma intersujectividade metodologicamente unificada?

Para Apel a discussão em torno de um conceito de racionalidade metódica, reduzido a partir de uma perspectiva cienticista


põe em questão o paradigma do método científico em geral e, no seu lugar, tem em conta, como caminho decisivo para transformar a filosofia, o modo de pensar fenomenológico, que se serve da experiência pré-científica da vida e do mundo -quer dizer, de uma experiência que não é metódica nem abstractiva- em contraposição ao moderno conceito de método.60


A par da fenomenologia husserliana do mundo da vida [liebenswelt]61, cabe sobretudo à fenomenologia hermenêutica oferecer-se como réplica aos saberes que implicam um discurso metodologicamente manipulado.

Adoptada e adaptada por Martin Heidegger a uma "analítica" da existência aduzida de uma ontologia radical, a fenomenologia hermenêutica atingiu a sua maturação teórica em H.-G. Gadamer com a publicação da sua obra Verdade e Método.

Com estes dois autores, a fenomenologia hermenêutica pode reivindicar e consumar em toda a linha duas emancipações :

a) a emancipação da experiência ôntica radical da verdade face à metafísica dogmática das cosmovisões filosóficas - preconizada por Heidegger, e

b) a emancipação daexperiência crítica radical da compreensividade face às restrições metodologistas da ciência - assumida por Gadamer.

É perfeitamente constatável que o pensamento destes dois autores se converte numa apropriação da fenomenologia hermenêutica no propósito de reagir contra o processo de redução da teoria do conhecimento, por um lado, e da crática do conhecimento, por outro -provenientes de Kant- a uma lógica da ciência de inspiração analítica. O mérito da fenomenologia hermenêutica possui para Apel uma dupla virtualidade - um poder desconstrutivo e um alcance re-construtivo:


- desconstrutivo, na medida em que denuncia


os secretos pressupostos transcendentais da lógica da ciência, patentes na relação sujeito-objecto defendida por descartes e Kant 62, e


- reconstrutivo, na medida em que radicalizando


a reflexão sobre a "compreensão", descobriu estruturas quase-transcendentais, impensáveis no âmbito do esquema de uma relação sujeito-objecto.63


Duas questões colocam-se então no domínio destas duas delimitações problemáticas.


A primeira tem a ver com a posição fenomenológica de Heidegger. Importa saber com efeito em que medida é que uma ontologia radical pode efectivamente, não só assenhorear-se do ponto de vista de uma refutação filosófica dos pressupostos formais, categoriais e operativos da análise lógica da linguagem, como "suspeitar" ainda do concurso de "secretos pressupostos transcendentais", inerentes ao esquematismo gnoseológico sujeito-objecto com que opera metodologicamente o discurso cienticista.

Detenhamo-nos nas palavras de Heidegger em Sein und Zeit : Lorsque l'être-là se fréquente soi-même sur le monde de l'ipséité du "on", cela signifie du même coup que le "on" lui prescrit l'interpretation que l'être-là aura immédiatement à former du monde et de l'être au monde. C'est en vue du "on" que l'être là existe sur le monde du quotidien et c'est lui qui, dans le quotidien, articule le système référentiel de la significabilité. (...) Ces considérations nous livrent aussi une compréhension concrète de la constituition fondamentale de l'être-là. (...) L'explicitation préontologique que l'être-là forme de son être est puisée au monde d'être immédiat du "on". L'interprétation ontologique commence par suivre la même tendance: elle comprend l'être-là à partir du monde et le rencontre parmi les étants intramondains. Mais ce n'est pas tout; l'ontologie "immédiate" se laisse dicter par le "monde" même le sense d'être qui doit permettre de comprendre la "réalité" de ses "sujets". Cependant, comme cet être-pris par le "monde" a pour conséquence de nous faire manquer le phénomène même du monde, le monde va être remplacé par les étants intramondains subsistents, les choses. L'être de l'étant qui est là avec se comprend comme subsistance. Ainsi donc, la mise-en-évidence, sous le mode de l'immédiateté et de la quotidianneté, de ce phénomène positif qu'est l'être-au-monde, permet aussi que nous pénétrions jusqu'à la racine des déviations qui marquent l'interprétation ontologique de cette constitution d'être.64

Esclarecendo e situando a posição teórica de Heidegger na esteira da crítica ao metodologismo cienticista, Apel não tem dúvida de que


a fenomenologia de procedência heideggeriana enfrenta as coacções categoriais do pensamento e, consequentemente da conduta, que partem da "estrutura" científico-técnica, já não do ponto de vista das pressões sócio-económicas que lhe possam estar subjacentes, mas a partir da descoberta originária da experiência quotidiana, da poética e ainda da pré-metafísica, reconstituível por exemplo a partir dos fragmentos dos pré-socráticos, e na qual o sentido do ser nunca é todavia manipulável a partir da "estrutura" .65


O sentido fenomenológico da fuga do sentido do ser à "estrutura" científica tem para o pensamento apeleano um peso decisivo, porquanto aquilo que Apel designa de pre-estrutura existencial do compreender 66 traz anunciada em si própria a superação


1. do antropologismo des-referenciado, ao nível do "ser-aí" [L'être-là est un étant qui dans son être se rapporte à son être par la compréhension qu'il en a67];


2. do idealismo gnoseológico, ao nível do "ser-no-mundo" [L'étant ne peut en effet se "rencontrer" "avec" l'être-là que dans la mesure où il se manifeste de lui-même à l'intérieur d'un monde 68];


3. do solipsismo metódico, ao nível do "ser-com" [Le monde auquel je suis est toujours un monde que je partage avec d'autres, parce que l'être-au-monde est un être-au-monde-avec-autrui... Le monde de l'être-là est un monde commun, est coexistence 69;


4. do gnoseologismo desinteressado patenteado na ressonância husserliana da tese clássica do conhecimento desinteressado de algo enquanto tal , ao nível do "ser-em-cuidado" [L'être-à...doit être saisi à partir du "là" du monde disponible, où l'être-là demeure en tant qu'il est un être-préoccupé 70].71


Ora, é precisamente nos moldes quase transcendentais desta quadrupla superação que se fundamenta o desígnio apeleano de uma transformação da filosofia, postulada do interior mesmo de uma teoria fenomenológica não refractária a uma reflexão linguística.


A segunda questão tem a ver com a posição hermenêutica de Gadamer. Importa saber então em que medida é que uma desocultação hermenêutica da compreensividade pode de facto denunciar a falácia abstractiva da concepção objectivista de compreensão, que o neo-positivismo lógico entendeu tematizar em jeito de "empatia vivencial dos processos ou actos psíquicos do outro".

Ocupemo-nos das teses de Gadamer: Sólo la pergunta de Heidegger por la esencia de la verdad transcendió realmente el ámbito de la subjectividad. Su pensamiento hizo el recorrido desde el "útil", pasando por la "obra", hasta la "cosa", un recorrido que deja muy atrás la cuestion de la ciencia, incluso de las ciencias historicas. Es hora de no olvidar que la historicidad del ser sigue presente cuando el "ser-ahí" se conoce a sí mismo e se comporta históricamente como ciencia. La hermenéutica de las ciencias históricas, que se desarrolló en el romanticismo y en la escuela histórica desde Schleiermacher a Dilthey, pasa a ser una tarea totalmente nueva cuando, siguiendo a Heidegger, avanza más allá de la problemática de la subjectividad. El único precursor en este terreno fue Hans Lipps, cuya lógica hermenéutica72, destaca con éxito la inexorabilidad del lanuage frente a su nivelación lógica73; [...] Qu'est-ce que l'herméneutique? (...) Schleiermacher définit l'herméneutique comme art d'éviter la mécompréhension. Certes, ce n'est pas là une description entièrement erronée de l'effort herméneutique: éliminer, par une réflexion méthodique et contrôlée, ce qui est étranger, ce qui induit aux mécompréhensions venant de l'éloignement dans le temps, du changement d'habitudes linguistiques, des transformations dans le sense des mots et dans les modes de penser. Cependant, ici également, la question se pose: le phénomène du comprendre est-il défini de façon adéquate lorsque je dis "comprendre, c'est eviter de mécomprendre"? Toute mécompréhension n'est-elle pas en vérité précédée par quelque chose comme un "accord" [Einverständnis] qui en est le support? (...) Nous disons par exemple: -"compréhension et mécompréhension on lieu entre le Je et le Tu". Déjà la formule "Je et Tu" témoigne d'une énorme abstraction. Cela n'existe absolument pas. Il n'y a ni "Je" ni "Tu": (...) il s'agit là de situations toujours déjà précédées "d'etente" [Verständingung]. Dire Tu à quelqu'un, nous le savons tous, présuppose un accord profond. Celui-ci repose sur quelque chose de durable. Et même lorsque nos opinions divergent et que nous tentons de nous entendre sur un point, un "accord" de ce genre est toujours déjà en jeu, même si nous n'en avons que rarement conscience.74

Equacionando as teses de Gadamer no domínio da inviabilização hermenêutica da falácia cienticista sobre a "objectividade da compreensão", Apel entende que essa concepção objectivista


constitui uma deformação abstractiva, fenomenologicamente secundária, do problema hermenêutico original, que é o acordo com os outros "acerca do mundo obectivo", quer dizer, acerca do sentido e da verdade do desocultamento linguístico de algo enquato tal. Na realidade, o acto de "compreender" o outro é já de si um acto hermenêutico (...) estabelecido no acordo sobre algo. (...) Daí pois que as regras metódicas da hermenêutica, enquanto entendidas apenas como "arte de interpretação", tenham que ser concebidas em última instância a partir do contexto prático-vital de um acordo.75


O sentido hermenêutico do acordo em Gadamer detem, a par da transitividade heideggeriana do sentido do ser à onticidade do sentido, um papel fulcral no itinerário transformacional da filosofia, tal como é proposto por Apel. Efectivamente, ao recusar a "abstracção metódica" inseminada pelo logicismo científico na "pulsão estética dos jogos linguísticos"76, Gadamer confere à hermenêutica o singular destino de exprimir a condição de possibilidade não só da ocorrência histórica da interpretação e da arte filosófica de compreender, como também da contituição do acordo dialógico, reduto no interior do qual são pulverizados três falsos dicotomismos tão caros ao cienticismo metódico:


1. a pulverização da dicotomia "eu" - "tu", ao nível comunicacional da "interpretação" [Los términos acuñados y transmitidos en el <concepto filosófico> no son marcas y señales fijas que designan algo unívoco, como ocurre en los sistemas simbólicos de los matemáticos y los lógicos y en suas aplicaciones: nacen del movimiento comunicativo de la interpretación humana que acontece en el lenguage77];


2. a pulverização da dicotomia "passado" - "presente", ao nível mediacional da "tradicão" no "círculo hermenêutico interpretativo" [El momento de la tradición en el comportamiento histórico-hermenéutico se cumple en virtud de una comunidad de prejuicios fundamentales y subyacientes; la hermenéutica debe partir de este principio: el que intenta comprender está ligado a la cosa transmitida y mantiene o adquiere un nexo con la tradición de la qual habla lo transmitido78] e


3. a pulverização da dicotomia "teoria" - "prática", ao nível pragmático da "aplicação interpretacional" [El problema de la interpretación comprensiva va unido indisolublemente al problema de la aplicación. (...) La estrutura aplicativa del comprender no significa que (...) subordinemos una realidad autónoma en sí, por exemplo, una cosa conocida en "pura teoria", a un fin práctico (...) ni permite en absoluto privar un texto de su proprio sentido para utilizarlo con intenciones preconcebidas; (...) la realidad fundamental para salvar tales distancias es el lenguage, que permite al intérprete actualizar lo comprendido79].


A fenomenologia existencial de Heidegger e a hermeneutica filosófica de Gadamer constituem, uma a par da outra, o verso e o reverso, por assim dizer, do horizonte quase-transcendental que inscreve a transformação da filosofia postulada por Apel.

Por um lado, transformação operada no "trânsito" linguistico que parte da análise lógica do sentido para uma fenomenologia hermenêutica da significatibilidade.

Por outro lado, transformação operada no "trânsito" onto-gnoseológico que parte, quer do idealismo solipsista da verdade para o estofo fenomenológico da verdade do ser, quer do paradigma metodologista sujeito-objecto para o reduto hermenêutico do acordo intercompreensivo "previamente dado" [vorgegeben] numa comunidade de interpretação.80

Esclareçamos então o "lugar" de cada um destes dois "trânsitos" -linguístico e ôntico- na história da filosofia as suas ressonâncias na tese transformacionista de Apel.


B) A hermenêutica e a crítica do sentido na reflexão linguística. A verdade do sentido hermenêutico compreendida como abertura ao sentido da constituição ôntica do mundo.


1. Hermenêutica e crítica de sentido como sintoma e resposta à confusão das linguagens filosóficas na actualidade


O centro da reflexão em torno das "implicações filosóficas da linguagem" e das "implicações linguísticas da filosofia" tem dominado em grande parte os polos do pensamento ocidental contemporâneo na alçada de dois paradigmas distintos: o analítico (lógico-positivista), por um lado, e o fenomenológico (hermenêutico-existencial), por outro.

Com efeito, o que se encontra em jogo com a pergunta heideggeriana pelo sentido do ser é a textura humana e ôntica do "ser-aí", não só da compreensão, cujaconstituição existencial reduzida ao ser abre a condição possibilitadora dessa mesma pergunta, como também da linguagem entendida quer onticamente como casa do ser , quer antropologicamente como morada do humano.81 É nesse sentido, por conseguinte que Heidegger entende o método filosófico, não como "fenomenologia" na estrita acepção husserliana, mas sobretudo como uma hermenêutica que parte da comunicação [Mitteilung] da interpretação pública [öffentlich] do "ser-aí" dentro de uma compreensão [pré-ontológica ] do ser [Seinsverständnis]82 e cujo método consiste em pensar o humano pela, com e na linguagem.

Pelo lado da "analítica" -e que em atenção ao seu método é no fundo uma filosofia analítica da linguagem - o que está em jogo prende-se não só com o sentido ou a carência de sentido -ou até mesmo com o sem-sentido - dos enunciados, como também com a sintaxe e a semântica lógicas das proposições, como ainda com a descrição dos jogos linguísticos da linguagem do quotidiano na qual se encontram metalinguisticamente associadas uma forma de vida, uma regra do uso linguístico e uma pré-compreensão do mundo.

É precisamente à luz destes dois posicionamentos teóricos da reflexão linguística que se tem tentado caracterizar o estado actual da filosofia de acordo com dois diagnósticos aparentemente contraditórios.

Um deles, partindo da atitude "sectária" das relações entre a chamada filosofia analítica e as "incontáveis" filosofias da existência - realça o facto de se assistir, por um lado a uma indicutível e excessiva fragmentação e disseminação de correntes, e por outro à utópica tentativa de conciliar, segundo um denominador comum, quer a verdade dos seus "resultados", quer a relevância dos seus posicionamentos teóricos "estratégicos".83

O outro salienta o facto de as multiformes trajectórias das correntes filosóficas contemporâneas serem aglutináveis e referenciáveis a um núcleo relativamemente constante e homogénio de problematizações, cuja preocupação teórica poderia ser condensável ao questionamento da "linguagem", do "sentido" e da "compreensão".84

Longe de contradizer a "divergência" diagnosticada por Steegmüller, esta "concentração" e "convergência" num horizonte linguístico de tendências filosóficas -aparentemente inconciliáveis- surge para Apel não tanto como constatação ex facto de uma empírica tomada de consciência da proliferação de "diversos modos de pensar", mas como apelo de jure de um inequívocosintoma muito mais profundo e radical - de algo que, em última análise, terá de conduzir mesmo a uma transformação da filosofia : aconfusão babilónica das linguagens filosóficas.85

Em que âmbito pode a filosofia, ao arrepio dessa confusão reinante, ser capaz de aceder criticamente às legítimas condições possibilitadoras de uma re-conversão "pentecostal" da linguagem?


Com a correspondência entre a "hermenêutica" do "ser-aí" de Heidegger -ou, mais precisamente, com a "compreensão" pré-ontológica do "ser" própria do "ser-no-mundo"- e a análise de Wittgenstein dos "jogos linguísticos" do quotidiano (...) na compreensão a prioristicamente válida do mundo, parece que podemos ter descoberto já certamente um âmbito de ideias substantivas para o qual convergem em definitivo as actuais filosofias "hermenêutica" e "analítica".86



2. A hermenêutica como "índice" linguístico de uma ontologia fundamental


Para Heidegger oculta-se nas proposições da ontologia, tomada como ciência do ser enquanto tal, uma profunda ambiguidade. A proposição "isso é um ente" dá cobertura na verdade a uma confusão: o que se mostra no "é" não é necessariamente equivalente ao que se revela no "isso"...

Nesta "clivagem" ôntica reside porventura, segundo K.O.Apel, o mal-entendido histórico87 que se insinuou, sem a suficiente e clara consciência disso, na pergunta pelo "ser" que instaura a ontologia dogmática no ocidente e que Heidegger tentou obviar no trânsito de uma ontologia radical para uma analítica da existência.

Assim, o que se "mostra" ao olhar do filósofo no "é" da proposição referida é, na perspectiva hermenêutica heideggereana, a compreensão do ser que, de forma prévia e concomitante, se oferece em todas as proposições e juízos linguísticos.

No limiar "propedêutico" de uma transformação da filosofia, esta pre-onticidade da compreensão detem para Apel um papel crucial a dois níveis:

- se é verdade que, a um trecho, a perspectiva de Heidegger desfere não só uma resposta contundente à suspeita wittgensteineana da carência de sentido de toda a metafísica, como ainda um contributo supletivo para os limites linguísticos de uma análise lógica da linguagem, na medida em que


o "prévio e concomitante" que aparece em todo o siscurso, o que segundo Wittgenstein só se "mostra" mas não é passível de ser "dito", é precisamente o "ser" 88,


- também é verdade que a mesma perspectiva coloca a ontologia fundamental heideggeriana no curso daquilo que Kant designava por condições transcendentais de possibilidade dos objectos da experiência, uma vez que


se podemos interpretar como expressão da "diferença transcendental" de Kant a distinção wittgensteineana entre aquilo de que se pode falar e aquilo que apenas se mostra, tal distinção se mostra agora como uma expressão da "diferença ôntico-ontológica" de Heidegger.89


Seguindo na esteira desta leitura apeleana da hermenêutica, compreende-se pois porque é que, tanto para Wittgenstein como para Heidegger, a filosofia não seja propriamente uma teoria científica ao lado de outras teorias científicas. A filosofia não é em definitivo um "sistema" de proposições que possam competir em igualdade de circunstância com os enunciados científicos.

Se Wittgenstein parece resolver de modo prático o aparente embaraço gerado pela pertinência linguística das proposições filosóficas ao conceber a filosofia, não como "ciência", mas como "actividade clarificadora" do pensamento, em Heidegger pode ser surpreendida uma atitude teórica análoga na auto-concepção do seu filosofar.

É assim que, no entender de Apel, Heidegger em Sein und Zeit acentua


o carácter de projecto, que em certas ocasiões encerra a violência de um pensamento que não pretende estabelecer nada acerca do que existe intramundanamente, se não (...) tornar-se "visível" nos fenómenos prévios e concomitantes da compreensão do ser. Mais tarde identificará, em crassa oposição à metafísica como ciência teórica, o "pensamento" do ser com o "produzir a verdade do ser", sublinhando desde logo que este "produzir" não se decanta num "fazer arbitrário" ou numa "actividade industriosa", mas só na disposição de escutar a interpelação [Zuspruch] do ser adveniente.90


Que implicações filosóficas subjazem a esta "decantação" hermenêutica da "mostração" [aufweisen] da "verdade do ser" em Heidegger?

O pensamento de Heidegger ter-se-á instalado teoricamente, pelo menos em Sein und Zeit, no propósito de enunciar de modo universalmente vinculante a estrutura a priorística do "deixar-ser do ente" [Seinlassen des Seienden] em conformidade com o pro-jecto mundano do "ser-aí".91 A esta formulação "existencial" Heidegger denominou de ontologia fundamental .92

Em todo o caso, partindo do cotejo da analítica com a hermenêutica, o que se pode comprovar para Apel é o facto de


tanto a concepção wittgensteineana de filosofia entendida como "actividade clarificadora do entendimento" -ou como semântica construtiva-, como também, por outro lado, a heideggeriana radicalização pro-jectiva da compreensão pre-ontológica do ser dada na linguagem, em ambos os casos a concepção tradicional de metafísica sofre uma completa depreciação.93


Com estas premissas abrem-se-nos agora duas possibilidades para entender o alcance de uma transformação da filosofia :


a) ou desmascarar, a partir do ponto de vista "externo" da analítica de Wittgenstein, a ontologia fundamental de Heidegger como recaída numa metafísica teórica;


b) ou mostrar, a partir do ponto de vista "interno" da hermenêutica, que a ontologia fundamental de Heidegger é capaz de obviar o problema nuclear de Wittgenstein de um discurso filosófico com sentido sobre a forma a priori do discurso e da sua relação com a forma da realidade.94

Ao operar, em Sein und Zeit , uma clara distinção entre a auto- compreensão existencial da reflexão efectiva da linguagem (em que "alguém" se compreende) e a auto-compreensão existencial própria da filosofia, Heidegger lançou as bases hermeneuticas de uma fundamental e irredutível radicalização da compreensão pre-ontológica do ser -implícita na compreensão existencial do "ser-para" [Zu-sein]-, a fim de proceder à sua conceptualização.

A questão que põe para Apel coloca-se ao nível do critério sustentador da "radicalização ontológica", dado que da inteligência desse "extremamento" parece depender a resposta cabal à pergunta heideggeriana pela possibilidade e validade dos próprios enunciados filosóficos.95

Com efeito, esta decisão "radicalista", que o próprio Heidegger entendeu como precipitadora do necessário "retorno" [Kehre] do seu pensamento a uma "reflexão transcendental", condescendia, apesar de tudo e paradoxalmente, com as pretensões da suspeita wittgensteineana dirigida contra toda a metafísica teórica.

Heidegger tomou em sentido literal -tal como Wittgenstein- a aparência metafórica do discurso metafísico acerca do sujeito do pensamento e dos seus actos executivos, interpretando-a como abandono [Verfallen] da visão que nos faz frente [bebegnet] dentro do mundo e nos é continuamente presente. Esta tendência para "desmascarar" e "denunciar" a metafísica na esteira de uma reflexão linguística -reflexão essa manufacturada no horizonte meta-linguístico de uma "lógica de visão" pré-linguística, coloca a ontologia fundamental heideggeriana na estreita vizinhança da crítica da linguagem de Wittgenstein, pelo menos tal como este a delineou nas Philosophische Untersuchungen.

Por conseguinte,


tanto Heidegger como Wittgenstein julgam ser necessário evitar a qualquer preço as sugestões (...) de toda a ontologia tradicional, para que se manifeste enfim o que permaneceu encoberto e esquecido nessas rígidas esquematizações e idealizações: quer o "ser", no seu acontecer no "jogo de espelhos" [Spiegelspiel] camuflador do mundo (Heidegger) 96, - quer o "jogo linguístico" [Sprachspiel], desprezado por toda a metafísica (Wittgenstein).97



C) A radicalização fenomenológica da existência como fundamentalismo hermenêutico.


Como contrapartida da neo-positivista concepção epistemológica da compreensão entendida como método (ainda que Dilthey, por exemplo, não o tenha entendido assim...) e como função auxiliar heurístico-psicológica no contexto do descobrimento "explicativo" da conduta, respondeu a nova "hermenêutica" no sentido de mostrar que a compreensão -enquanto modo de ser do humano "ser-no-mundo"- já se deve encontrar previamente pressuposta não só para a constituição dos dados da experiência, como também para responder à pergunta pelo "quê" e o "porquê" do conhecimento.

A canonização hermenêutica da "compreensão, ao arrepio de uma concepçãometodologista, encerram no âmbito do pensamento apeleano uma dupla significação filosófica98:


a) por um lado, tanto a problemática gadameriana da verdade- compreensão como a problemática heideggeriana da verdade- manifestação de sentido, evocam de forma implícita não só o estatuto transcendental da "constituição" da significatibilidade, como determinam também o horizonte de possibilidade da própria "constituição" dos dados mediante os quais opera discurso científico;


b) por outro lado, torna-se bem patente que a "específica" relevância da compreensão no domínio das chamadas ciências do espírito só se equaciona de forma adequada enquanto e só na medida em que a filosofia fôr capaz de situar o problema da explicação no mesmo patamar transcendental em que deve ser colocado o problema do acordo meta-científico das linguagens científicas 99 sobre os objectos a tematizar e sobre o enfoque metódico dos programas de investigação, em vez de o "centrifugar" e "suprimir" do horizonte das suas reais preocupações teóricas, como se de um "pseudo-problema" filosófico se tratasse.


Mesmo admitindo que esta dupla consequência acima referida deveria ser apanágio não de uma hermenêutica tout court, mas de uma hermenêutica transcendental, ainda assim não é de todo evidente para Apel que a hermenêutica heideggeriana empreendida nos limites fenomenológicos de uma "analítica do ser-aí " se torne permeável a essa subsumção filosófica da "explicação". Porquê?


Na minha opinião, a "hermenêutica" sofreu em Heidegger uma radicalização ontológica e existencial, cuja relevância gnoseológica ficou patente sobretudo na superação da ideia de que a "compreensão" é um método que rivaliza com a "explicação" analítico-causal das perguntas científicas pelo porquê.100


As implicações dessa "radicalização" assumem particular agudeza e penetração nas ilacções que Gadamer extrai, até às últimas consequências, da posição heideggeriana.

A passagem onde Gadamer, no escopo de uma teoria interpretativa da ciência, assume e "extrema" essa radical pulsão ontológica é por demais inequívoca para ser deixada passar em claro: julgo que seria um puro mal entendido -refere Gadamer em Warheit und Methode - em querer implicar na compreensão a famosa kestão kantiana entre quaestio de juris e quaestio facti. Kant não tinha a menor intenção de prescrever à moderna ciência da natureza o modo de se comportar no caso de desejar manter-se firme diante dos ditames da razão. O que ele fez foi dirimir uma questão filosófica: indagar quais as condições intrínsecas ao nosso conhecimento pelas quais é possível legitimar a ciência moderna, e certificar-nos do seu alcance. Nesse sentido, também a presente investigação coloca uma questão filosófica, (...) cuja interpelação visa o âmbito da experiência humana e da praxis vital. É na realidade uma questão que tem de ser colocada previamente a toda a atitude compreensiva da subjectividade, inclusive a todo o comportamento metodológico das ciências compreensivas, às suas normas e regras. A analítica temporal do "ser-aí" humano em Heidegger mostrou, a meu ver de um modo convincente, que a compreensão não é um dos modos de comportamento do sujeito, mas o modo de ser do próprio "ser-aí". É neste sentido que empregamos aqui o conceito de "hermenêutica". Ela designa o carácter fundamental do móbil constitutivo da finitude e da historicidade do "ser-aí", abarcando por conseguinte o conjunto da sua experiência no mundo.101

As afinidades e os distanciamentos teóricos em relação ao projecto transcendental kanteano que Gadamer interlaça na sua argumentação revela um indiscutível alcance "crítico", mas denuncia também as suas limitações e insuficiências. O intento gadameriano peca não por fundamentação, mas acima de tudo por um "fundamentalismo" que tem tanto de ambíguo quanto de paradoxal. De facto, é ponto assente em Apel na apreciação "crítica" que faz da hermenêutica a partir do postulado de uma transformação da filosofia que


o intento levado a cabo por Gadamer para alcançar um acordo filosófico em torno da essência e sentido de uma "compreensão hermenêutica nunca poderia pretender ser metodologicamente irrelevante se não tivesse que ser filosoficamente relevante. Todavia, isto parece estar em contradição com a concepção que Gadamer tem do seu próprio intento (...). Gadamer julga com efeito ser possível socorrer-se, por um lado, do travejamento transcendental kanteano, e recusar simultaneamente, por outro, todas as exigências inerentes a uma "justificação" filosófica da "validade" do conhecimento...102



D) Ambiguidades da hermenêutica: a quase-transcendentalida-de inerente aos pressupostos da destruição da metafísica. A exigência "transformacionista" de uma transição filosófica para a doutrina pragmática da linguagem.


No Tractatus Logico-Philosophicus , Wittgenstein condena a metafísica teórica como sem-sentido socorrendo-se dos mecanismos semântico-sintáticos de uma linguagem que apenas pode figurar estados de coisas subsistentes dentro do mundo. O que Wittgenstein contudo não equacionou logicamente foi incapacidade revelada pela linguagem analítica em "dizer" as condições ontológicas e transcendentais requeridas para possibilitar essa "figuração do estado de coisas". Isto significa que Wittgenstein não discerniu e esclareceu com suficiente clareza o que é que valida "de jure" por um lado, uma ontologia dos estados de coisas e por outro, uma filosofia linguística da figuração do mundo "formatado" por estados estados de coisas. Pelo contrário: postula e pressupõe-as acriticamente para legitimar a sua acepção de uso linguístico com sentido, acabando por subordinar tacitamente estes "expedientes" ontologico-transcendentais a uma concepção atomista de linguagem.

Ora, se considerarmos essa ontologia inerente ao atomismo lógico como uma versão refinada do que Heidegger designou por ontologia da presença fáctica da coisa fáctica [Ontologie der Vorhandenheit des Vorhandenen], percebemos porque é que o cotejo e a comparação que Apel efectua, no escopo de uma concepção transformacionista da filosofia, entre Wittgenstein e Heidegger, chega a este resultado surpreendente:


apesar de Heidegger combater em "Ser e Tempo" o esquecimento do ser mediante o ponto de vista da "diferença ôntico-ontológica" com a mesma decisão com que questiona a proeminência latente da ontologia da "presença fáctica" da coisa fáctica, a crítica à metafísica do primeiro Wittgenstein surge exclusivamente da agudização paradoxal da lógica da presença fáctica mediante a distinção entre o que se pode dizer (ou seja, "o que é o caso") e o que apenas se mostra no enunciado (ou seja "a forma lógica do mundo").103


Esclareçamos: Apel chama a atenção para o facto de Wittgenstein mostrar heideggerianamente falando que a lógica da nossa linguagem apenas nos permite expressar enunciados com sentido acerca de estados ônticos de factos -isto é, intramundanos -, mas nunca acerca do "ser" ou da "compreenção do ser" que possibilitam a priori a presença fáctica de tais estados. Essa possibilitação a priorística instalada numa ontologia da presença fáctica, não é, como já vimos, questionada por Wittgenstein.

Também para Heidegger se torna igualmente válido o pressuposto segundo o qual o esquecimento do ser -quer por "negligência" da diferença ôntico-ontológica, quer por "queda" na compreensão ontológico-substancial do ser- se encontra irremediavelmente condicionado por uma pre-concepção [Vorgriff] metafísica da lógica tradicional linguística, bem patente, de resto, no passo platónico do Teeteto que refere: Julgo ter ouvido dizer a alguns que aquilo a que chamamos elementos primitivos de que nós e tudo o resto é composto, não têm nenhuma razão de ser. Aquilo que é em si e por si apenas poderia ser nomeável. Nada mais do que isso pode ser dito, nem que é, nem que não é. Com efeito isso equivaleria a um acrescento de "ser" ou "não ser"; ora nada precisa de ser acrescentado se é isso e apenas isso que queremos dizer. (...) Por conseguinte é impossível que qualquer um desses elementos primitivos possa ser expresso com a ajuda de uma razão de ser, dado que não existe para além deles nada mais senão o facto de serem nomeáveis: um nome apenas, eis a sua única posse. (...) É na verdade uma tecitura de nomes que produz a razão discursiva.104

É nesse contexto preciso que deve ser entendida a crítica heideggeriana da metafísica subjacente à linguística clássica. Segundo Apel,


não há qualquer dúvida de que Heidegger considera toda a lógica tradicional como correlato de uma ontologia [da coisa fáctica] (...)que deve ser destruida, da mesma forma que, no âmbito da questão dos universais, considera reprovável não só aos nominalistas e seus continuadores modernos (os positivistas) o esquecimento do ser na intramundaneidade da coisa fáctica, como também aos chamados realistas o facto de pensarem o ser do ente como ente de uma espécie particular.105


Que implicações se poderão precipitar e que precedentes se poderão criar, no entender de Apel, com esta crítica que Heidegger dirige à metafísica tradicional na esteira de uma reflexão linguística?


1. Ambiguidade e perplexidade inerentes à desconstrução ontológico-hermenêutica da metafísica. Afinidades com a análise lógica da linguagem.


Detenhamo-nos nas palavras de Heidegger acerca do sentido de "superação" em Überwindung der Metaphysik : Que veut dire "dépassement de la métaphysique"?: (...) passage et dissolution dans l'avoir-été. Alors que la métaphysique passe, elle est passée. Qu'elle soit pasée n'exclut pas, mais implique au contraire que se soit seulement de nos jours que la métaphysique arrive à sa domination absolue, au sein de l'étant lui-même et en tant que celui-ci, sous la forme dénuée de vérité du réel et des objets.106 (...) Le déclin de la vérité de l'étant a lieu d'une façon nécessaire, comme l'achèvement de la métaphysique. (...) La vérité encore cachée de l'être se réfuse aux hommes de la métaphysique.107 (...) Le dépassement de la métaphysique est pensé dans son rapport à l'histoire de l'être. Il est un signe présurseur annonçant la com-préhension commençante de l'oubli de l'être. Ce qui se montre dans le signe est antérieur au signe, quoique aussi plus en retrait que lui. C'est l'avénement (Ereignis) lui-même. Ce qui, pour la pensée métaphysique, se présente comme le signe précurseur d'autre chose ne compte plus que comme la simple et dernière lueur d'un éclairement plus originel. Le dépassement (de la métaphysique) ne mérite d'être pensé que lorqu'on pense à l'appropriation-qui-surmonte [Verwindung] (l'oubli de l'être).108

Que significado atribuir, para Apel, a esta pulverização liminar da "metafísica" em Heidegger?


Tanto a hermenêutica heideggeriana como a teoria dos jogos linguísticos do último Wittgenstein começam por ser na raiz, segundo a perspectiva apeleana, a dupla expressão linguística de uma posição anti-metafísica comum: o distanciamento crítico em relação ao nominalismo, ou melhor dito, em relação à ontologia que engendra o nominalismo.109

Todavia, levada às últimas consequências e extremados os seus limites nenhuma destas posições se revela suficientemente consistente para conservar um grau de sustentabilidade auto-legitimador. Ao prescindir e centrifugar uma "metafísica de base", ainda que de expressão nominalista, o distanciamento operado por Heidegger e Wittgenstein não escapa a uma ambiguidade radical:


por causa desse distanciamento, nem Wittgenstein pode "reduzir" ao designável em sentido positivo a compreensão do mundo implícita na gramática profunda da linguagem, nem pode Heidegger sequer conceber seriamente o ser do ente como um ente designável.110


Na verdade, procurar manter o foco de resistência contra a linguagem da metafísica pela via da diversidade e profundidade não objectiva da compreensão da linguagem e do ser111, é já, de algum modo, pressupor uma possibilidade de constituição de objectos.112

Nesta desmesura entre a urgência em consumar a evacuação de toda e qualquer sugestão metafísica do discurso filosófico e a inconsequência-limite que esse gesto teórico comporta, reside propriamente o embaraço e a perplexidade não só, como já vimos, da análise sintático-semântica da linguagem, como também da própria hermenêutica ontológica.

O último Heidegger, com efeito, expressou várias vezes muito claramente a dificuldade que lhe criava a radical insustentabilidade da resistência crítica contra a linguagem da metafísica: a intenção de passar da representação do ente enquanto tal ao pensamento da verdade do ser, de modo nenhum tem de representar também, partindo dessa representação, a verdade do ser, de modo que este representar terá de ser necessariamente de outra classe e, consequentemente, não adequado enquanto representação ao "por-pensar" [Zu-denkendes].113 Tal apuro perante os limites de uma representação de outra índole, insolúveis numa linguagem da representação, encontra-se aliás bem patente na "perplexidade" evidenciada na seguinte passagem de Identität und Differenz : a dificuldade reside na linguagem. As nossas línguas ocidentais são, cada uma de modo diferente, línguas do pensamento metafísico. Se a essência das línguas ocidentais se encontram em si mesmas apenas conformadas metafisicamente, e por isso conformadas definitivamente por uma onto-teo-logia, ou se as ditas línguas oferecem outras possibilidades do dizer (...), é uma dificuldade que permanece em aberto.114


2. O âmbito quase-transcendental dos pressupostos onto-hermenêuticos da crítica à metafísica.


O embaraço heideggeriano revelado na tentativa de absorver o destino linguístico da metafísica ou, se assim o entendermos, o destino metafísico da linguagem, figurados e configurados no pensamento ocidental, sem prejuízo da coerência interna do sistema e sem suscitar crispações doutrinais incómodas, toca na perpectiva transformacionista de Apel um tópico decisivo: o teor quase-transcendental da metafísica subjacente à crítica da metafísica, de que a ontologia fundamental e a hermenêutica heideggerianas, a par da análise lógica da linguagem, constituem um índício demasiado evidente para ser substimado.

O problema diagnosticado por Apel acaba porém por se revelar controverso. A leitura filosófica que introduz é com efeito suficientemente dissecante para mostrar, por um lado, a inevitabilidade dos plurímodos desprezos históricos por "determinadas" metafísicas, e para mostrar ao mesmo tempo, por outro, o grau de extrema inconsistência e inconsequência dos fundamentalismos sem fundamentação imputáveis a uma analítica e a uma onto-hermenêutica que levam às últimas consequências a suspeita dirigida contra "toda" a metafísica.

O problema é que essa ideia de uma insolvência da metafísica na filosofia ocidental começa por se tocar tangencialmente o próprio núcleo das profissões de fé ontológico-hermenêuticas para depois o atravessar transversalmente em toda a sua amplitude.

É assim que tem de ser entendido, de resto, o empenho posto por Heidegger no sentido de obviar a "sinistra" inconsequência de um extremismo anti-metafísico mediante o socorro cautelar de um estratagema argumetativo cuja "circularidade" das premissas peca por constituir uma ameaça à integridade dos seus pressupostos doutrinais: dépasser la métaphysique, c'est la livrer et la remettre à sa propre vérité. On ne peut tout d'abord se réprésenter le dépassement de la métaphysique, si ce n'est à partir de la métaphysique elle-même: comme si un nouvel étange lui était ajouté. On a le droit, dans ce cas, de parler encore de "métaphysique de la métaphysique", sujet effleuré dans l'étude de Kant et le problème de la métaphysique, où nous avons essayé d'interpréter la pensée kantienne, qui procède encore de la critique pure et simple de la métaphysique rationnelle, en la considérant précisément sous cet angle. Par là, sans doute, on accorde à la pensée de Kant plus que lui-même ne pouvait penser dans les limites de sa philosophie.115

Esta concessão heideggeriana aos ditames quase-trancendentais de uma "metafísica da metafísica" tem, no tocante ao repto apeleano de uma transformação da filosofia, uma ressonância ímpar na história seja da reflaxão filosófica da linguagem, seja se quisermos, na reflexão linguística da filosofia:


A meu ver, o verdadeiro significado filosófico fundamental dos desvelamentos filosóficos quase-transcendentais alcançados pela fenomenologia hermenêutica não fica menosprezado, mas confirmado no facto de terem encontrado eco em desenvolvimentos teóricos muito mais precisos, ou, em todo o caso, mais eficazes, por parte das restantes filosofias do século XX.116


Que ressonâncias são essas a que Apel alude e que de certa forma induzem e configuram uma proposta "transformacionista" da filosofia?

Em primeiro lugar, a chamada filosofia analitica descobriu o a priori linguístico de forma mais detalhada e consistente a partir dos contributos de uma onto-hermenêutica. Assim pois,


é-nos legítimo esperar de uma hermenêutica transcendental a reconstrução das intuições sobre o acordo interpessoal [antecipado existencialmente no "mit-sein"], fazendo não só com que a filosofia analítico-linguística ceda às pretensões abstractivas da construção sintático-semântica de sistemas proposicionais, mas fazendo também com que o sentido e a verdade se joguem originariamente como atributos afirmativos em detrimento dos propositivos, uma vez que as afirmações devem ser entendidas como respostas a perguntas explícitas ou implícitas no contexto de uma situação problemática real, respostas que devem justificar-se e com as quais nos devemos responsabilizar na prática .117


Além disso, como a partir da epistemologia moderna ficou bem patente a primazia das descrições empírico-explicativas sobre o contexto histórico, sociológico e justificacional que lhes deram origem, resultou daí uma "fixação esquizofrénica" entre aquilo que o discurso científico poderia "realmente" construir mediante bases metódico-normativas e aquilo que apenas poderia "idealmente" almejar no sentido de incorporar explicativamente os ingredientes "alheios" à operatividade racional da ciência. O papel da hermenêutica foi por conseguinte crucial para a ... epistemológica de história da ciência. Isso implica que


o autêntico sentido da história da ciência deve consistir tanto em validar como em corrigir, a partir da prespectiva do "círculo hermenêutico", a "ratio" metodológico-normativa da teoria filosófica da ciência mediante uma compreensão mais profunda da "ratio" correspondente aos clássicos. Dito de outro modo: perante a explicação dos acontecimentos naturais, a compreensão das acções humanas tem de levar implícita uma exigência normativa de justificação.118


Finalmente, a superação fenomenológico-existencial não só do idealismo gnoseológico, como também do solipsismo metódico, levada a cabo por uma ontologia fundamental do ser "abrigado" na linguagem e por uma hermenêutica radical da verdade "pro-jectada" na mundaneidade e na alteridade, tem a sua equivalência no "movimento" polarizado em torno dacrítica do sentido, quer ao nível da análise dos jogos linguísticos do "último" Wittgenstein, quer ao nível da semiótica pragmática de Charles S. Peirce. Por esta ordem de ideias


devíamos superar também a discutível abstracção que a lógica da ciência, reduzida à sintática e à semântica construtivas, realiza ao arrepio da pragmática ao nível da relação sígnica (Zeichenrelation), em favor de uma teorização pragmático-transcendental da ciência. 119De acordo com isso, o chamado "contexto de descobrimento" já não poderia ser considerado como um tema puramente empírico-psicológico da ciência particular, nem poderia ser desconectado do "contexto de justificação" meta-científico, mas teria que ligar-se com o problema hermenêutico-transcendental da constituição de novos jogos linguísticos ou horizontes de sentido.120


Em que moldes se terá de processar então a transformação pragmática da hermenêutica, de modo a aceder a esse patamar transcendental requerido, na perspectiva apeleana, para uma legitimação justificacional da linguagem e do conhecimento na era da ciência contemporânea?


3. Da questão intersubjectiva, ao repto transformacionista de uma transição da hermenêutica para o pragmatismo.


Um dos méritos indiscutíveis da radicalização hermenêutica, reside para Apel no facto de ter contribuido para indiferir filosoficamente uma teoria restrita da compreensão, tal como era "objectivisticamente " defendida pelo neo-positivismo: empatia vivencial dos processos ou actos psíquicos do outro.

Para Gadamer, essa concepção induz e conduz à deformação e secundarização, tipicamente abstractivas, de um tópico hermenêutico fenomenologicamente originário: o acordo com os outros acerca do "mundo objectivo". O compreender o outro só se pode erigir como acto hermenêutico em si na medida em que não camuflar a relação sujeito-sujeito -relação essa que estabelece o acordo sobre algo- numa pretensa "objectividade descritiva" dos actos psíquicos ou da conduta vivencial do "outro". Daí se compreende que para a hermenêutica a "arte da interpretação" se tenha de conceber a partir do contexto práctico-vital do acordo.

Receptivo à proposta teórica da Escola de Erlangen, que consistiria em "reconstruir" o acordo linguístico -imediatamente presente na dimensão pragmática do uso dialógico da linguagem- mediante o "cruzamento" da filosofia analítica com a filosofia hermenêutica, Apel sublinha a notável convergência de pontos de vista entre a tecitura wittgensteineanado jogo linguístico (que "enterlaça" de modo concomitante a abertura linguística ao mundo e a forma de vida social ) e os pontos de veista hermenêuticos no âmbito do problema que tradicionalmente tem vindo a ser designado de intersubjectividade.121

É certo que Wittgenstein acede ao problema da intersubjectividade no âmbito "intra-linguístico" de uma refutação das linguagens privadas. O que está na base, porém, dessa objecção é a detecção fundamental da insustentabilidade metodológica do solipsismo. Toda a relação gnoseológica com a esfera privada do sujeito assim como toda a referência ética ao foro íntimo do indivíduo encontra-se prévia e concomitantemente configurada pela forma pública através da mediação intersubjectiva pelo simples facto de "falarmos" delas, isto é, por se atestarem perante e com o outro na transitividade recíproca da expressão.122 Nesse sentido, existe de facto uma afinidade com a perspectiva existencial da hermenêutica, já que, Heidegger denuncia a ditadura moderna do solipsismo gnoseológico na metafísica ocidental, contrapondo teoricamente, mediante uma analítica fundamental, o carácter estruturalmente comunitário do ser-aí entendido como "ser-com" [mit-sein]. A ratificação heideggeriana da "falácia" solipsista faz valer o ponto de vista hermenêutico segundo o qual a pré-compreensão está sempre antecipada na quotidianeidade da interpretação pública do mundo.123

Todavia, para lá daquilo que explicitam, o que importa extrair de ambas as posições perante o problema da intersubjectividade, prende-se sobretudo com aquilo para que apontam: a sua índole pragmática.124

Na verdade, o pragmatismo constitui talvez o desenlace e o desfecho mais evidente para as aporias da analítica e na hermenêutica, suscitadas quer devido a uma exorbitante radicalização sintático-semântica da linguagem, quer devido a um radical fundamentalismo onto-fenomenológico da existência.

É portanto no âmago de um horizonte pragmático que tem de ser contextuada a questão da intersubjectividade. Ele deve ser teoricamente aferível


- por um lado, ao nível regulativo dos jogos linguísticos (isto é, ao nível da aplicação das regras de jogo linguísticas), uma vez que, tal como Wittgenstein o reconhece, não pode ser que uma regra tenha sido seguida uma única vez por um único homem: (...) seguir um regra, fazer uma comunicação, dar uma ordem, jogar uma partida de xadrez, são costumes (usos, instituições). Compreender uma proposição significa compreender uma linguagem; compreender uma linguagem significa dominar uma técnica125;


- por outro lado, ao nível manutenível doútil [Zeug] que "está-à mão" [Zuhandenheit] (isto é, ao nível da disponibilidade instrumental da linguagem), dado que é ponto assente em Heidegger que le signe est ontiquement un étant disponible qui, en tant qu'outil déterminé, fonctione de manière à nous annoncer la structure ontologique de l'être-disponible, des systèmes renvois et de la mondanéité 126.


Ora para Apel é precisamente o concurso recíproco e ambivalente, tanto do recorte técnico e institucional das "regras" linguísticas (em Wittgenstein), como do carácter disponível e utilitário dos signos linguísticos (em Heidegger), para a constituição da intersubjectividade comunicativa, que constrange a hermenêutica da linguagem a empreender uma justificação pragmática da sua possibilidade, alcance e limites.



III. A transformação da analítica e da hermenêutica na pragmática da linguagem


A) A dimensão pragmática dos signos como tópico fundamental da historicidade da linguagem na hermenêutica heideggeriana


Quando consideramos a evolução da filosofia heideggriana da linguagem no retorno [Kehre] da analítica existencial à história do ser, podemos dar-nos conta da peculiar ambiguidade que define a relação entre o humanismo e o pragmatismo, seja ela pensada a partir do ideal de linguagem e verdade próprio da retórica 127, seja a partir da criação poética 128 no sentido que lhe adjudicou Vico.129

Posicionando-se a partir de uma perspectiva histórica, Apel extrai de um texto de Ammonio a perspectiva clássica dessa relação. O trecho do comentador aristotélico reza assim: Todo o discurso [lógos] -tal como o mostrou o filósofo Teofrasto- mantém uma relação dupla, a saber, com os ouvintes, para os quais tem um significado, e com as coisas, mediante as quais o falante pretende convencer o ouvinte; no que respeita à relação com os ouvintes nascem a poética e a retórica..., mas é apenas no tocante à relação do discurso com as coisas que o filósofo tratará preferentemente de refutar o falso e demonstrar o verdadeiro.130

Topamos aqui, na verdade, com o precedente clássico de um inequívoco escalonamento e diferenciação dos três vectores do discurso que Morris estabelecerá posteriormente no domínio linguístico de uma semiótica tridimensional. Com efeito, parece ser ponto assente em Ammonio -apelando até para a voz autorizada de Teofrasto- que:

- enquanto à filosofia deveria ser-lhe reservado o papel da verificação semântica dos signos,

- já para a poética e a retórica dever-lhe-iam caber a incumbência da estratégia pragmática do discurso na sua relação com os ouvintes.

Esta divisão estrutural das téchnai do lógos, ou, dito com muito mais propriedede, das artes sermonicales, resolvia de certo modo todas as querelas e disputas que, desde Sócrates e Platão, opuseram poetas e retóricos no culto do verbum. Todavia, visto de um modo ainda mais profundo e incisivo, o que esta divisão indicia é sobretudo a intransigente recusa de um abandono da verdade "linguística" e da linguagem "verdadeira" às mãos dos lógicos. Foi precisamente no sentido de impugnarem o monopólio linguístico da aparelhagem formal dos lógicos, que os poetas e oradores não só opuseram, como sustentaram também, a utência e a eficácia do discurso.

É claro que usar signos e tornar eficaz um discurso não depende apenas do protesto e da consumação de uma "ruptura" efectiva com a instância hermenêutica da linguagem; eventualmente pode mesmo atestá-la fenomenologicamente e até pressupô-la a título quase-transcendental. A mediação que configura o trânsito das condições possibilitadoras do acontecer da compreensão do sentido na hermenêutica para as condições de acesso à performatividade do efeito discursivo na pragmática, a partir obviamente de uma perspectiva transformacionista da filosofia, joga-se em Apel, não propriamente na mutação pragmática da hermenêutica, mas sobretudo no "topos" hermenêutico da pragmática ao nível da historicidade da linguagem: a retórica, assim como a essência da criação simbólica, seja ela textual (ao nível literário), conceptual (ao nível filosófico), ou litúrgica (ao nível religioso)


não pode ser concebida -atrever-nos-íamos a afirmar- independentemente do carácter histórico da linguagem e, consequentemente, da verdade (enquanto abertura ao mundo intuitivamente significativa). A linguagem (...) possui a sua verdade na recta (adequada) conjugação de uma relevante situação significativa, por um lado, com o uso (...) de uma topologia linguística acerca do mundo, e por outro, com a referência a uma pragmática estabelecida na base das necessidades e fins humanos em geral. Literatura, filosofia e religião (ou o mito que subjaz a todas elas) configuram o precedente que abre e funda linguisticamente aquilo que constitui a interpretação pública do homem e do mundo e mediante o qual a retórica e a pragmática (...) medem a sua (secundária) "conformidade".131


Este esclarecimento apeleano acerca da "mediação" da historicidade na pragmática linguística desbrava-nos uma nova senda e coloca-nos na clareira filosófica da transformação da linguagem, precisamente porque nos constrange a ceder à "suspeita" metafísica de que a linguagem não só possui uma função "nominativa" (designativa ou conformativa) e "significativa", como também o destino de manifestar primária e originariamente as qualidades do mundo circundante no uso das referências situacionais.

Antes de passar porém ao sentido da historicidade da linguagem, convém determo-nos ainda na distinção que Apel introduz na acepção de utência linguística, dilucidação essa que nos permitirá compreender ulteriormente o alcance não só de uma transformação pragmática da hermenêutica, como também de uma transformação hermenêutica da pragmática. Significação e uso intersectam-se, mas sempre com a tutela "quase-transcendental" do desempenho pragmático do discurso sob o acontecimento do hermenêutico do sentido: a linguagem do uso subordina-se, na ordem da "transformação" filosófica da linguagem, ao uso da linguagem.

É por isso que, no contexto daquilo que consideramos ser o uso linguístico, cabe para Apel


distinguir (...) -sem necessidade mesmo de exorbitar metefisicamente dos limites do mundo, sempre já de resto linguisticamente interpretado- entre um uso linguístico que supõe como "evidentes" as qualidades das coisas e um uso linguístico que tem previamente de as evidenciar; entre um uso linguístico que subsume factos em conceitos convencionais e um uso linguístico que, todas as vezes que acontecem novas percepções (com o seu componente de "verdade": Neu-"wahr"-nehmungen) do ente, se "impõe" a ele no seu "ser-aí". Dito de outra forma: entre um uso da linguagem que consiste em "usar" as palavras apenas como meio para designar coisas conhecidas ao seviço de fins e necessidades, e um uso da linguagem que, partindo do princípio que afinal as coisas, os fins e as necessidades não se encontram de modo algum reflectidos no seu estado actual, "põe em jogo" as palavras como potências, por assim dizer, incarnadoras de sentido.132


De que ponto de vista pode ser então aferida essa "utência" linguística em relação à qual Apel se preocupa em encontrar, por um lado, uma ascendência histórica, e em proceder, por outro, a uma distinção estrutural?

Recuperemos de novo o filão teórico aberto no início do capítulo acerca da metamorfose heideggeriana da analítica fenomenológica da "tecitura existencial" para a hermenêutica linguística da "história do ser"133, a propósito da qual nos vimos na iminência de introduzir a questão pragmática.

Tem sido sublinhada quase à exaustão a oposição metodológica entre uma ontologia fenomenológica da linguagem (própria da hermenêutica existencial) e uma crítica semiótica do conhecimento (própria do neo-positivismo lógico). Pensou-se acerca disso que se poderia opôr de forma inocente e pacífica o vislumbre fenoménico das intuições imediatas e essenciais das "coisas mesmas" à pulsão metódica que, professando um total desprezo pelas mediações do conhecimento do mundo, configura proposicionalmente a linguagem à verificabilidade do "mundo externo". Esta visão antagónica, própria de uma exegese filosófica "conspirativa", não esgota, porém, na perpectiva "tranformacionista" de Apel, o verdadeiro significado e a autêntica ressonância "doutrinal" do Ser e Tempo :

- em primeiro lugar porque no escopo da fenomenologia heideggeriana surge aplicada ao mundo a intuição essencial de uma hermenêutica da preconcepção linguística 134;

-em segundo lugar porque, tal como Wittgenstein o compreendeu muito bem na últma fase ds seus escritos, esse mistério mediante o qual não nos é possível falar da estrutura interna da linguagem mas apenas torná-la manifesta na projecção da sua enérgeia imanente, é o que constitui em boa verdade o secreto fundamento metódico da fenomenologia hermenêutica de Heidegger.135


É apenas, portanto, na medida em que atendemos a esse jogo ambivalente da diferença fundamental e da afinidade estrutural entre a analítica e a hermenêutica, que estamos em condições de entender o repto "transformacionista" de Apel no sentido de esclarecer em que medida é que o ciclo "quase-transcendental" das sucessivas ascensões justificacionais da linguagem a patamares de legitimação cada vez mais abrangentes só fica completo se fôr exigido ao discurso filosófico o tributo de um esclarecimento crítico da possibilidade, alcance e limites do pragmatismo, entendido este, quer do ponto de vista "programático" de Morris, quer na perspectiva "fundamental" de C.S.Peirce.

Duas ilacções, no entender de Apel, podem ser filosoficamente extraíveis desse incremento "quase-transcendental" da mais-valia pragmática na filosofia hermenêutica da linguagem: uma ilacção metodológica (não "metodologista") e uma ilacção formal (não "formalista").136


a) Por um lado, se atendermos à ordem do método, não existe em Sein und Zeit qualquer "curto-circuito" possível entre uma intuição fenomenológica da linguagem e uma dedução semiótica da expressão. Num primeiro acercamento Heidegger parece mesmo atribuir à dimensão pragmática do significado a primazia sobre a conformidade lógico-formal do facto e da proposição de um modo muito mais radical do que aquele que Morris sedimentou na sua semiótica tridimensional. Na verdade, a interpretação pública da verdade enquanto "desvelamento" [alétheia] do "ser aí" na sua "quotidianeidade" encontra-se originariamente determinada por fins que tornam possível, na tecitura projectiva do "que-fazer-ocupado" [besorgendes Zutunhaben] e da "consideração" [Rücksicht] perante os demais, a interpretação linguística do mundo e a compreensão inter-humana.


b) Por outro lado, e colocando-nos agora na óptica da forma, a "relativização" e a "secundarização" pragmatista da significatibilidade do mundo em relação aos fins da praxis humanas não constitui de modo algum para Apel o ponto de vista supremo e definitivo da analítica existencial heideggeriana na medida em que o "ser-aí" é, em virtude do seu "cuidado" [Sorge] práxico, eminentemente histórico. Quer dizer: as necessidades e interesses últimos do homem são convertíveis em "aconteceres" [Ereignisse] históricos, no horizonte dos quais não são propriamente os fins humanos que decidem acerca da conformidade [Bewandtnis] das coisas enquanto "úteis", mas sim as "coisas" que impelem o "ser-aí" a transformar-se à luz de uma nova significatibilidade. Heidegger deu provas desse "retorno" [Kehre] pragmático à história do ser no seu ensaio A origem da obra de arte 137. Situando-se na vizinhança filosófica de Vico, Heidegger concebe a poesia como a essência mais profunda da linguagem. Em última análise é o carácter de "obra" das palvras poéticas o que define de modo mais profundo o teor pragmático da "utilidade" dos signos linguísticos, em cuja verdade se incarna "publicamente" a patentização [Offenbarkeit] histórica do "ser aí".138



B) A dimensão pragmática da função sígnica


À luz da fundamentação que C. Morris reservou "programaticamente" para a semiótica, habituámo-nos a dissecar e escalonar disciplinarmente três aspectos nucleares e concorrentes a partir de uma análise filosófica da linguagem: a sintática, a semântica e a pragmática.

Enquanto a sintática, reflectindo a estrutura lógica das linguagens formalizadas a partir da estrutura lógica da matemática, diz construtivamente respeito às relações dos signos entre si [cf. Carnap], já a semântica, configurando o ponto de partida da moderna lógica da ciência, visa referencialmente a relação que os signos mantêm, quer com os objectos extra-linguísticos, quer com os estados de coisas signicamente representados [cf. Tarski], ao passo que a pragmática, tal como a vimos embrionariamente desenvolvida na hermenêutica heideggeriana, situando o o conhecimento e discurso da ciência no contexto da praxis vital humana, tem funcionalmente a ver com a relação dos signos e os seus utentes [cf. Peirce].

Apel enumera três razões pelas quais, no seu entender, o eixo da filosofia analítica da linguagem se deslocou transformacionalmente da sintaxe para a pragmática passando pela semântica:


1) Em primeiro lugar porque a questão do critério verificativo do sentido não pode ser aferível no contexto analítico a partir da "inspecção" construtiva de uma sintaxe ou semântica lógicas, a não ser pela potenciação pragmática de uma aplicabilidade contextuada. No entender de Apel, a analítica vagueia ainda no sonho neo-leibnitzeano de erigir na base de um único cálculo universal uma única linguagem científica formalizada. Esse desígnio


revelou-se utópico, e com ele fracassou totalmente a nuclear ideia esotérica de uma concepção de ciência puramente sintático-semântica (...) na medida em que o empirismo lógico se viu constrangido a renunciar a essa pretensão em favor de um convencionalismo de "frameworks" pragmaticamente comprovável.139


2) Em segundo lugar porque, para Apel, a busca analítica de uma concepção adequada de linguagem e de significação


conduziu [a filosofia da linguagem] do paradigma sintático-semântico do "atomismo lógico" ao modelo radicalmente pragmático do "jogos linguísticos", isto é, conduziu ao modelo de uma linguagem usada no contexto de formas de vida reguladas.140


3) Em terceiro lugar porque se assistiu a partir da apropriação epistemológica da analítica a uma progressiva e amplificada vaga de intereses -tradicionalmente não equacionáveis ou pelo menos considerados excedentários e supérfulos para o exercício e a coerência do discurso científico- iniciada


desde o "justificacionismo", inspirado na meta-matemática, até ao problema do "desenvolvimento da ciência" ["Growth of science"] no contexto pragmático de um meio social.141


Estas três razões constituem por assim dizer a linha de costura do "pragmatic turn" sugerido por Apel142 como a culminância "quase-transcendental" da transformação filosófica da linguagem que deve estruturar propedeuticamente uma transformação linguística da filosofia e vice-versa.

Podemos, assim, na esteira de Morris e Peirce, justificar essa "inflecção" ["turn"] pragmática a partir do propósito filosófico não só de inibir e atenuar a "inflacção" formal da expressão linguística, como ainda de possibilitar à instituição científica a despistagem do "metodologismo abstraccionista" e a plena integração das suas competências e virtualidades linguísticas: de facto, se tivermos de considerar a mediação sígnica [semiosis] como estrutura nevrálgica da teoria moderna e contemporânea do conhecimento e da ciência, então teremos que atribuir à relação pragmática do signo com os seus utentes a mesma dignidade linguística que a da relação sintática dos signos entre si e a da relação semântica dos signos com os estados de coisas por eles representados.

É pois na óptica dessa "paridade" e "equidistância" que Apel concebe filosoficamente o desfecho gnoseológico e epistemológico do "ciclo" justificacional que dita a transformação de todas as instâncias formais da linguagem:


somente a pragmática pode efectivamente analizar a função íntegra, no contexto da qual adquirem pleno sentido os resultados da análise sintático-semântica dos sistemas linguísticos ou científicos; apenas a pragmática dos signos pode, por isso, consumar a moderna lógica analítico-linguística da ciência.143


Há, porém, em face desta leitura apeleana da pragmática um acervo de questões perante as quais a filosofia da linguagem não se pode legitimamente furtar: em que medida é que a dimensão pragmática dos signos é susceptível de ser vertida epistemologicamente não só como tema mas também como objecto da ciência? Mais especificamente ainda: não nos será permitido reduzir o utente dos signos a sujeito "objectivável" de uma proposição científica? Não nos será lícito, à imagem e semelhança do que fizeram os analíticos e semânticos lógicos, tratar desta questão no "subúrbio" meta-científico das condições de possibilidade e validez da ciência e suas linguagens?

Para subscrever o sentido das questões atràs suscitadas, poderíamos referir, por exemplo, que o próprio neo-positivismo tentou modelar a pragmática como "disciplina" formalizável eaxiomaticamente construtiva. Esse encargo disciplinar estaria coordenado com uma pragmática empírico-descritiva, do mesmo modo que a sintaxe linguística se encontraria umbilicalmente ligada a uma sintática empírico-descritiva e a semântica construtiva a uma semântica empírico-descritiva.144

Todavia -e há que sublinhá-lo para se perceber os possíveis desenlaçes transcendentais de uma transformação filosófica da pragmática gerada no interior mesmo de uma transformação pragmática da linguagem-, a referida concepção neo-positivista (a saber, de uma pragmática construtiva funcionalmente articulada com uma pragmática empírico-descritiva) não responde de todo ao intuito "hermenêutico" que subjaz às questões colocadas.

Não está em causa a coerência dos intentos formais do neo-positivismo lógico. Todavia, o que Apel teoricamente introduz nessa constatação analítica é o pressuposto meta-formalista de que a coordenação entre uma disciplina axiomático-construtiva e uma empírico-descritiva requer uma "condição", a qual não pode ser de modo nenhum determinada mediante a mera permuta funcional entre uma "construção" axiomática e uma "descrição" empírica. Porquê?


Porque a coordenação entre uma construção (...) e a sua descrição correspondente já pressupõe que os sujeitos que constroiem e descrevem a linguagem têm de estar de acordo entre si [sich verständigen] sobre a possível coordenação entre a linguagem construida e a linguagem empiricamente descrita.145


É precisamente nos limites pragmáticos desse acordo [Verständigung] entre os utentes científicos da linguagem sígnica que o pensamento apeleano procura instalar filosoficamente o tema "quase-transcendental" da pragmática linguística entendida como índice metafísico de uma "meta-ciência".146

Obviamente que os neo-positivistas poderiam sempre objectar que esse acordo previamente estabelecido entre os utentes dos signos poderia ser tematizável no domínio de uma ciência social empírica... A questão porém é que a solução empírica do sociologismo, em vez de desmontar e resolver o problema, torná-lo-ia não só ainda mais inextricável como também vulnerável a um dos vícios que tem contagiado no entender de Apel todo o discurso racional da modernidade até hoje: a falácia abstractiva do cienticismo. A atitude cienticista consiste fundamentalmente em acreditar que se pode reduzir o sujeito humano da ciência a um objecto da ciência.

Se para o cienticismo, a teoria do uso pragmático do discurso científico tem então de ser necessariamente entregue às mãos de uma ciência social da ciência -entendida, tal como A. Naess defendeu, como estudo dos comportamentos do agente científico147-, não nos será legítimo refutar com Apel que desse modo a pragmática se converte disfuncionalmente em objecto semântico do sistema linguístico da ciência? E não resultará essa conversão semântica na perpetuação de um círculo vicioso que, em última análise, conduzirá à própria negação do sujeito científico?148

A própria atitude teórica de C. Morris reflecte bem esse impasse. Com efeito, enquanto como bom "behaveorista", afirma por um lado que as condutas dos utentes linguísticos (signicamente mediadas) constituem um objecto natural de investigação do mesmo modo que o são os objectos designados na dimensão semântica do significado, mas como fiel "semiótico", afirma por outro lado que o intérprete [interprtant], entendido como veículo sígnico que designa determinados tipos de objectos ou situações, não se auto-apreende como objecto desse conjunto designável, isto é, a descrição da dimensão pragmática não se pode aplicar à própria pragmaticidade da dimensão em que é usada. Daqui resulta que o último intérprete (de uma comunidade de intérpretes) é radicalmenteirredutivel a uma análise axiomática ou empírica.149

A virtualidade do pensamento transformacionista de Apel reside em mostrar que esse aporia com que Morris se debate é perfeitamente tematizável a partir de um retorno [turn] à reflexão transcendental, mas nunca poderá ser superável no eixo analítico do modelo binomial construção-descrição:


o problema do "intérprete último" na obra de Morris recorda-nos o problema da metalinguagem última na semântica construtiva; em ambos os casos, a concepção epistemológica fundamental só nos permite a alternativa entre construção ou descrição, mas não um conhecimento reflexivo-compreensivo: nesse sentido interdita-nos a possibilidade de dar conta de um saber a que se recorre sempre actualiter.150



C) O trânsito da transformação semiótica da filosofia transcendental para a transformação transcendental da pragmática.


A resposta à pergunta pelo sujeito da dimensão pramática da função sígnica representa um dos nós fundamentais do pensamento transformacionista de K.O. Apel.

Embora pertencendo ao foro estrito da teoria da linguagem, é para um plano justificacional de legitimação que Apel pretende interpor a questão do estatuto pragmático do sujeito linguístico à luz de uma reflexão transcendental.

A analítica de Wittgenstein reflecte em boa parte a urgência dessa solicitação.151 Todavia há que referir que o problema do sujeito na semiótica pragmática difere substancialmente do problema-limite do sujeito da linguagem pura no Tractatus no seguinte:

- enquanto no Tractatus o sujeito da interpretação não se reduz a um "ponto inextenso" de tal forma que só "subsiste" a "realidade coordenada com ele"152,

- já em relação à dimensão pragmática temos de considerar o sujeito sígnico numa óptica a todos os títulos surpreendente na medida em que obriga (qual imperativo "orto-lógico"...) a elevar a reflexão linguística ao "topos" justificacional: como condição de possibilidade antropológica e sócio-histórica para interpretar perspectivisticamente a realidade "como algo".

Esta clara divisão de águas entre a analítica e a pragmática parece-nos importante no pensamento apeleano porquanto ela traduz em toda a linha a "remissão" comunicacional do acordo pragmático: o acordo entre os sujeitos não implica apenas e necessariamente, como no-lo acena o Tractatus, um mero intercâmbio comutativo e multilateral de informações sobre o que "acontece"153, mas, primeiramente, um acordo prévio acerca de como interpretar omundo, ou seja, apreciá-lo, e valorá-lo como algo em função dos interesses e fins humanos.

É certo que perante este surpreendente problema do sujeito em torno da pragmática linguística complica-se também o problema de se saber até que ponto pode efectivamente a filosofia transcendental assumir-se como alternativa credível à abstracção "programática" do cienticismo: não seria muito mais natural reduzir o utente sígnico da ciência a um objecto de si própria, uma vez que -tal como mencionámos- é histórica e sociologicamente concebível como sujeito de uma dimensão pragmática?

Como resposta a esta pergunta, o modelo kanteano de filosofia transcendental só oferece uma alternativa compatível com a sua coerência arquitectónica:

a) ou o sujeito da ciência, enquanto experimentável, tem que se sujeitar às categorias objectivadoras da ciência natural - mormente à categoria de causalidade,

b) ou então não pode ser tematizado de modo nenhum, no sentido em que não pode ser experimentado, assumindo-se o sujeito da ciência, neste caso, como um "limite do mundo".

É de certa forma para obviar esta aparente antinomia cienticista que Apel fixa a dimensão pragmática da função sígnica numa perspectiva transcendental de recorte kanteano, tentando assim desmantelar o "efeito de estufa" de uma pragmática cienticista que enclausura o sujeito da ciência numa redoma intransponível de automatismos behavioristas.

Haverá, por conseguinte, na semiótica pragmática esse ponto de partida transcendental que Apel reclama "anti-cienticisticamente" para a pergunta pelo sujeito da função sígnica?

Para percebermos em que medida é que estamos em presença de uma proposta transformacionista da filosofia da linguagem temos de bipolarizar tensionalmente a questão em duas etapas inter-remissivas:

- numa primeira etapa onde se esclarece a ambiguidade do intuito peirceano de desmontagem semiótica da filosofia transcendental kanteana;

- numa segunda etapa onde, no limiar dessa ambiguidade, se recupera a demanda transcendental de legitimar o reajustamento pragmático da linguagem.


1. A ambiguidade da desmontagem semiótica da lógica trancendental kanteana realizada por C.S. Peirce.


Por muito curioso que pareça, a primeira etapa da bipolarização pragmática, que acabámos de apontar, foi desenvolvida detalhadamente por um filósofo contemporâneo do neo-kantismo alemão: Charles S. Peirce, o "Kant da filosofia americana" - como lhe chamou Apel.154

O mérito filosófico de Peirce consistiu em ter procedido a uma crítica da Crítica da Razão Pura na base da dedução semiótica de uma nova tábua das categorias [new list of categories] que procurava erigir a semiótica tridimensional de Morris como fundamento triádico de uma lógica da investigação [logic of inquiry].

Em parte encontravam-se já em Peirce os ingredientes da moderna lógica da ciência que apelava, como se sabe, para a substituição da metafísica -enquantocrítica do conhecimento, por uma analítica -entendidada como crítica do sentido . Todavia o pragmatismo peirceano desvincula-se radicalmente da análise lógica da linguagem no que toca de jure ao domínio linguisticamente intransitivo da justificacionalidade: não é possível discernir as condições de possibilidade e validade do conhecimento científico deitando mão exclusivamente ao invólucro formalístico da sintaxe e da semântica entre teorias e factos e desprezando o elemento intersubjectivo análogo à unidade transcendental da consciência kanteana. Neste inciso podemos dar-nos conta, ao fim e ao cabo, das rupturas e, ao mesmo tempo, do feixe de filamentos que atam subtilmente o pensamento de Peirce à filosofia kanteana.

Como interpreta Apel uma transformação peirceana de Kant no cenário mais abrangente e radical de uma transformação pragmática da filosofia transcendental?

Apel entende que existe no pensamento de Peirce não um, mas dois vectores transformativos da lógica transcendental de Kant, que suscitam uma leitura ambivalente dos desígnios teóricos da semiótica:


a) enquanto um aponta, por um lado, para uma substituição pura e simples dos "princípios constitutivos" kanteanos por "princípios regulativos" respeitantes, quer aos métodos de inferência sintética, quer aos métodos de construção interpretativa do consenso in the long run 155,


b) já o outro evidencia, por outro, a exigência interna de uma transformação transcendental das condições que, não se encontrando sujeitas ao critério falibilista (uma vez que são requeridas para a "falsificação" das teorias), constituem o próprio horizonte de possibilidade da experiência experimental 156.


Como "conciliar" estes dois momentos? Não residirá nesta dupla derivação uma ambiguidade "congénita"?

Se é verdade que a dilucidação do segundo vector peirceano é decisiva para uma interpretação cabal do alcance contemporâneo não só da filosofia de Apel157, como até mesmo de outros filósofos afins ao pensamento da "escola" de Frankfurt158, também é verdade que não fica suficientemente clarificado o modo como Peirce conjuga estruturalmente estes dois momentos transformacionais, aparentemente incompatíveis, na sua filosofia.

Convém salientar, não obstante, que é precisamente neste intervalo aporético que Apel, pretendendo aceder precisamente a uma "potenciação" pragmática da prespectiva transformacionista da liguagem, interpreta a transformação semiótica de Kant levada a cabo por Peirce159.

Quais os nós fundamentais que, segundo Apel, evocam nos fragmentos peirceanos essa transformação aporética de Kant?

Por um lado, podemos constatar em Peirce uma espécie de substituto para a síntese suprema kanteana: a categoria de terceiridade, entendida como sinónimo de representação [Repräsentation] e adoptada como fundamento da sua lógica semiótica. Enquanto representação mediada por signos, a "terceiridade" assume-se portanto para o intérprete [interpretant] linguístico comoequivalente da kanteana "unidade objectiva das representações [Vorstellungen] para uma auto-consciência". Na medida, pois, em que a "terceiridade" se reduz a um conceito estrutural abstracto da lógica, ela pode funcionar então como ponto supremo para uma dedução transcendental, pulverizando assim a doutrina kanteana segundo a qual a suprema legislação da natureza radica no entendimento do eu penso que deve acompanhar todas as representações.160

Por outro lado pode ser surpreendida nos escritos peirceanos uma outra leitura que torna a doutrina semiótico-pragmática muito mais tributária da filosofia transcendental de Kant do que aquilo que se poderia imaginar. Não é por acaso que em 1871 Peirce socorre-se filosoficamente da metáfora kanteana da "revolução copernicana" para extrair daí uma mais-valia justificacional para as suas teses: indeed -refere o pensador americano- what Kant called his Copernician step was precisely the passage from the nominalistic to the realistic wiew of reality. It was the essence of his philosophy to regard the real object as determined by the mind. That was nothing else than to consider every conception and intuition which entres necessarly into the experience of an object, and which is not transitory and accidental, as having objective validity.161

Consequente com esta apropriação da "revolução copernicana", Peirce recorrerá de 1868 a 1878 ao princípio supremo dos juizos sintéticos de Kant para responder à demanda -também ela eminentemente kanteana-: como são possíveis os juizos sintéticos a priori ? Nesse propósito refere Peirce: Whatever is universally true of my experience (...) is involved in the condition of experience.162

É em face destas duas passagens cruciais que Apel, mesmo ao arrepio da pretensa "inibição transcendentalista" de Peirce, extrai as consequências últimas de uma filiação doutrinal peirceana em relação a Kant.163

O movimento pendular a que já aludimos a propósito das rupturas e afinidades com a filosofia transcendental, colocam a questão, de resto decisiva, se com efeito a semiótica representa o culminar de uma transformação "superativa" de Kant ou se, pelo contrário, transporta em si mesma os germens de uma transformação auto-remissiva, quer dizer, uma transformação destinada dotar a semiótica de uma legitimação transcendental pragmaticamente destilada.

No entender de Apel a resposta teria de passar em primeira mão por uma clara percepção do sentido e do alcance filosófico da recusa transcendentalista secundada por Peirce. Significa essa recusa um indeferimento absoluto da "lição" trancendental kanteana?


A resposta consistiria no seguinte: a recusa peirceana do transcendentalismo não se refere de modo algum ao "ponto supremo" da "dedução transcendental", mas ao modelo -a meu ver- psicologista e circular do procedimento kanteano.164


Para fazer vingar a tese "transformacionista" face à tese "superacionista", Apel serve-se das investigações peirceanas que culminaram em 1868 na New List of Categories e nas quais se vislumbra, na sua opinião, uma clara adopção doutrinal não só da dedução transcendental, como também da dedução metafísica das categorias. Ao facto de Peirce reprovar a Kant that his method does not display that direct reference to the unity of consistency which alone gives validity to the categories165, não equivale diametralmente uma destituição da relevância justificacional da transcendentalidade. A esse respeito esclarece Apel:


A expressão "unity of consistency", que Peirce emprega na sua crítica a Kant, indica realmente o escopo em direcção ao qual ele próprio busca o "ponto supremo" da sua "dedução transcendental": não se trata agora obviamente da unidade objectiva das representações [Vorstellungen] numa auto-consciência, mas sim da consistência semântica de uma "representação" [Repräsentation] subjectivamente válida dos objectos, alcançada mediante signos (... ) que só podememos determinar a partir daquela dimensão interpretativa a que Morris deu o nome de pragmática.166


Os contornos do projecto Apeleano de uma transformação linguística da filosofia no interior de uma transformação filosófica da linguagem começam a desenhar-se com maior nitidez a partir desta interpretação transcendental de Peirce, segundo a qual a transformação semiótica de Kant não é "superativa" mas auto-remissiva : quer dizer, implica uma "reapropriação" pragmática da transcendentalidade na medida em que se situa ao nível de um permuta da unidade transcendental da auto-consciência representacional kanteana pela unidade transcendental da consistência semiótica.167

Essa permuta detectada por Apel

- não só é confirmada pelas palavras do próprio Peirce em Theory of Mind : consciousness a vague term (...) sometimes used to signify the I think, or unity in thought; but the unity is nothing but consistency, or the recognition of it. Consistency belongs to every sign, so far as it is a sign (...) there is no element whatever of man's consciousness which has not something corresponding to it in the word (...). The word or sign wich man uses is the man himself (...). The identity of a man consists in the consistency of what he does and thinks168,

- como dela extrai Peirce a conclusão que nos conduz ao ponto supremo (de indiscutível "inspiração" kanteana) da sua "dedução categorial", comunitariamente requerido a título de unidade semiótica da interpretação consistente : the existence of thought now depends on what is to be hereafter; so that it has only a potencial existence, dependent on the future thought of the community.169


A noção de comunidade desempenha no pensamento de Peirce um papel "canónico" tão decisivo como o que está reservado à apercepção transcendental no quadro lógico da dedução das categorias na "Analítica dos Conceitos" em Kant. Peirce expressou bem essa relevância através de uma formulação que precedeu, a bem dizer, em muitos anos a explícita estabilização teórica do pragmatismo: The real (...) is that which, sooner or later, information and reasoning would finaly result in, and which is therefore independent of the vagaries of me and you. Thus, the very origin of the conception of reality shows that this conception essentially involves the notion of a Community, without definite limits, and capable of a definite increase of knowledge.170 Dito de outra forma: é à noção de comunidade que deve ser legitimamente atribuida a competência crítica de se assumir como o almejado ponto supremo da transformação peirceana da filosofia transcendental kanteana. Na verdade, para a comunidade convergem concomitantemente dois postulados axiais de Peirce:

- o postulado semiótico da unidade supra-individual [que é o mesmo que dizer: plural ou dialógica] da interpretação e

- o postulado epistémico da confirmação experimental da experiência "in the long run".

Topamos pois neste duplo postulado com a mutação de paradigma que no entender de Apel deve resgatar o discurso filosófico acerca da linguagem da arbitrária tirania dos modelos solipsísticos e egológicos e elevá-lo justificacionalmente à instância comunicacional da comunidade de diálogo e interacção. Para Apel é Peirce quem fornece a chave desse resgate, já que a comunidade ilimitada de experimentação -como alías o seu correlato semiótico, a saber, a comunidade ilimitada de interpretação - adquire na sua doutrina um estatuto crítico nuclear na qualidade de sujeito quase-transcendental.171 Paara quem pretenda comportar-se logicamente, tal como é exigido pela peirceana lógica sintética da experiência possível, tem que -metaforicamente falando- sacrificar todas as veleidades privadas da sua finitude ao culto supremo da comunidade ilimitada, que é a única que pode alcançar a verdade como meta superior das aspirações humanas. Por conseguinte, he who would not sacrifice his own soul to save the whole world, is illogical in all his inferences, collectively.172

A alusão peirceana à suprema síntese comunitária da interpretação e experimentação consistentes constitui, em virtude disso, o passo decisivo em que Apel, mostrada a necessidade de uma transformação semiótica da filosofia transcendental, arranca para uma transformação transcendental da pragmática que lhe está justificacionalmente subjacente.


2. A legitimação pragmática da semiótica de Peirce: a "comunidade" como sujeito transcendental da função sígnica da ciência.


Analisemos agora o segundo momento estrutural da transformação semiótica da filosofia transcendental de Kant.

Vimos atrás porque razão o pensamento apeleano se caracteriza por declinar liminarmente uma "exegese superativista" em favor de uma "interpretação auto-remissiva", segundo a qual se procura sublinhar o facto de Peirce tirar filosoficamente partido do núcleo duro do projecto crítico de Kant mediante uma prévia filtragem semiótica.

Assim, não se pode em boa verdade considerar a semiótica como uma espécie de catarse filosófica que procura esconjurar da reflexão linguística o "espectro" da transcendentalidade, pelo menos com o mesmo ímpeto e fervor com que, em nome da análise lógica da linguagem, os empiristas lógicos e os neo-positivistas se insurgiram contra a metafísica.


Deste nihil obstat semiótico consignado à metafísica -entendida como é óbvio na sua expressão transcendental-, decorrem na óptica de Apel três consequências para uma fundamentação linguística da filosofia173:


- primeiro: não pode haver conhecimento de algo enquanto tal se não estiver em jogo a mediação real e material de uma função linguística veiculada por signos: nesta mediação linguística do conhecimento consiste a transformação semiótica da teoria do conhecimento em sentido restrito;


- segundo: o signo não pode exercer uma função de representação [Repräsentation] nos limites de uma consciência sem mundo real, dado que uma função representativa tem de ser necessariamente representável [repräsentierbar], isto é, cognoscível : esta consequência -típica, de resto, de um realismo crítico do sentido linguístico - surge, por seu turno, como desenlace da transformação semiótica da crítica do conhecimento atrás referida174;


- terceiro: não pode haver representação [Repräsentation] alguma de algo enquanto tal através da mediação sígnica se não se encontrar pragmaticamente disponível uma interpretação concretizada por um intérprete real: esta terceira consequência não só se constitui teoricamente como resposta à pergunta pelo sujeito da interpretação e experimentação científicas -suscitada de resto pela segunda consequência atrás aludida-, como ainda realça dois aspectos que tocam a questão da transformação auto-remissiva da semiótica pragmática: a) enquanto que, por um lado, revela em que medida o pragmatismo semiótico, enquanto teoria do conhecimento, preenche formalmente, tal como Apel defende, os requisitos exigidos pela filosofia transcendental kanteana, b) por outro lado, mostra até que ponto é que essa reapropriação transcendental permite ao pragmatismo semiótico subtrair-se à falácia naturalista e behaviorista do do pragmatismo empírico-cienticista.


O efeito potenciador da terceira consequência acima referida na proposta filosófica de Apel é inelutável. Assim, só uma legitimação transcendental da mediação linguística é que pode efectivamente conduzir a filosofia ao limiar de transformação com que Apel pretende autopsiar e sepultar as teses decadentistas e escatológicas do discurso "pós-moderno" sobre estatuto da racionalidade.

O recorte filosófico desse projecto transformacionista desenha-se já, no entender de Apel, na própria elevação justificacional da reflexão linguística à dimensão pragmática da utência sígnica. Com efeito, se é verdade que


a transformação semiótica do conceito de conhecimento requer, em primeiro lugar, um sujeito real que utilize os signos em detrimento de uma consciência pura; [também é verdade que], por outro lado, essa substituição da consciência do objecto por uma (...) interpretação mediada por signos, exige que se transcenda toda a subjectividade finita mediante o processo de conhecimento qua processo de interpretação.175


Já vimos que, segundo Peirce, a única instância capaz de sustentar criticamente essa trancensão gnoseológico-linguística dasubjectivade é o ideal pragmático decomunidade sem limites definidos 176.

O carácter trancendental dessa "investidura" comunitária da verdade advém precisamete do facto de a experiência experimental e interpretativa do sujeito da ciência ter de cumprir, a título de condição de possibilidade, dois requisitos justificacionais: uma determinação formal e uma exigência normativa. Essa determinação formal e essa exigência normativa não podem de modo algum ser redutíveis respectivamente nem a "imperativos psicologistas" de uma função fáctica, nem a "objectos naturalísticos" de uma descrição empírica, sob o risco de perderem transcendentalmente, quer o estatuto a priorístico da universalidade e necessidade da forma, quer o vínculo incondicional da imperatividade da norma. A este propósito refere Apel:


nunca poderemos levar a cabo, nem a definição crítica do sentido de realidade e de verdade, nem a fundamentação da validade dos processos sintéticos de inferência (...), se entendermos a função do conhecimento na comunidade como função fáctica e empiricamente descritível. Apenas à luz de uma convergência postulada normativamente é que podemos fazer convergir os processos de inferência e interpretação numa comunidade ilimitada. O consenso postulado pela crítica semiótico-pragmática do sentido é nesse sentido o garante da objectividade do conhecimento em substituição da acepção transcendental da "consciência em geral" kanteana; assim, o consenso funciona então como princípio regulativo que, enquanto ideal comunitário, só pode concretizar-se na e pela comunidade.177


Que ressonâncias produz o epicentro peirceano do ideal pragmático de comunidade na perspectiva transformacionista de Apel?

Acabámos de ver nesta segunda parte da nossa exposição em que moldes K.O. Apel equacionou a noção de transformação.

Em primeiro lugar, torna-se agora evidente que essa transformatividade se caracteriza por nos constrangir a deslocar transitivamente o centro gravitacional reflexivo da filosofia para a linguagem. Quer dizer: a transformação da filosofia tem que partir radical e originariamente de um rastreio crítico da mediação linguística.

Nesse sentido, fica assim legitimada racionalmente a desconstrução linguística da metafísica, desconstrução essa que Apel provou, por um lado, não poder ser imputável a toda a metafísica, e por outro não poder ser conduzível exaustivamente às últimas consequências, sob o risco de incorrer em défice justificacional.

Por conseguinte, a uma transformação da filosofia postulada linguisticamente, tem de corresponder previamente uma transformação da linguagem postulada filosoficamente.

A lição apeleana mostra até que ponto por uma desconstrução linguística da metafísica em nome da suspeita do défice de sentido, exige e em boa verdade até pressupõe correlativamente a contrapartida teórica de uma reconstrução metafísica da linguagem, que intenta responder à pergunta não só pelo critério de sentido dessa suspeita, como também pela legitimação justificacional da própria dimensão linguística.

As etapas dessa transformação linguística percorrem os três grandes eixos da mediação linguística: o da análise lógica [na sua respectiva tríplice manifestação histórica e estrutural: sintática, semântica e pragmática], o da hermenêutica fenomenológica e o da semiótica pragmática.

Ao impôr-se como singular destino da transformação reflexiva da linguagem, Apel prova que a reflexão transcendental tem nas mão a missão de restituir a metafísica à racionalidade configurada pela linguagem. Nessa restituição reside a segunda etapa do ciclo tranformaciona apeleano: a reconstrução metafísica da linguagem mediante uma transformação linguística da filosofia.

Não postula a analítica uma dimensão hermenêutica, no momento em que os limites da radicalização logística da sintaxe e da semântica se deparam metafisicamente com a transcendentalidade meta-proposicional da interpretação ao nível convencional do acordo dos jogos de linguagem?

Não postula a hermenêutica uma dimensão pragmática, no momento em que os limites da radicalização fenomenológica da existência se deparam metafisicamente com a transcendentalidade meta-compreensiva da utência sígnica ao nível intersubjectivo da quotidianeidade.

Não postula enfim a pragmática uma transformação transcendental da linguagem, no momento em que os limites da radicalização semiótica da consistência aplicativa do signo se deparam metafisicamente com a legitimação meta-interpretativa do consenso da comunidade ilimitada?

Não terá essa canonização pragmática do consenso comunitário de implicar necessariamente uma transformação estrutural do conceito de verdade e racionalidade, capaz de se substituir, quer ao optimismo ingénuo do discurso racionalista da modernidade, quer ao pessimismo anacrónico do discurso anti-racional(ista) da pós-modernidade?

Detenhamo-nos no modo como Apel desmonta e fundamenta essa "transformação estrutural".



Capítulo segundo:

a TRANSFORMAÇÃO DA FILOSOFIA como "reconstrução" metafísica da linguagem (da transcensão linguística à transcendência comunicativa)


I. A re-transcendentalização da linguagem como desfecho racional da transformação filosófica da linguagem.


Em 1987, referia K.O. Apel num conjunto de reflexões alinhavadas em jeito de "Consideração Preliminar" à edição francessa da sua obra L'Éthique à l'Âge de la Science :


Après un ultime détour par le "pragmatisme" de C.S. Peirce, ma pensée a fait re-tour vers une re-transcendantalization à laquelle la plupart des protagonistes et interprètes du tournant herméneutique et linguistico-pragmatique, tels H.-G. Gadamer et R.Rorty, pour ne pas parler des postmodernes, sont restés totalement étrangers. A vrai dire, il ne s'agit nullement pour moi d'un retour à la philosophie transcendantale classique de la conscience (au sens de Kant ou Husserl), mais d'une re-transcendantalization qui voudrait tenir compte des acquis du tournant herméneutique et linguistique dans une pragmatique trancendantale du langage.178


Quais as etapas que conduzem a reflexão linguística a essa re-transcendentalização?

Partindo do princípio que devem coincidir gradativamente com a própria inércia transformacional da linguagem, de que demos conta no capítulo precedente, a saber: 1. o trânsito da crítica clássica do conhecimento para a análise lógica da linguagem, 2. o trânsito da analítica para a hermenêutica da linguagem, e 3. o trânsito da hermenêutica para a pragmática da linguagem, então as etapas que conduzem à re-transcendentalização da linguagem terão pois de nos dar conta:

1. da consumação hermenêutica da analítica;

2. da consumação pragmática da hermenêutica; e finalmente

3. da consumação transcendental da própria pragmática, postulada por Apel no trecho acima referido.


A) A transcensão da analítica como consumação hermenêutica da linguagem no jogo linguístico: entre o acordo lúdico e a convencionalidade.


O problema central dos escritos do último Wittgenstein é porventura o que instala a Logic of science no trânsito desde a metafísica do atomismo lógico para o princípio do convencionalismo da semântica construtiva.

Wittgenstein é, de resto, o primeiro a manifestar de um modo radical o sentido filosófico desse trânsito: não é a interposição "supletiva" de uma onto-semântica ideal da linguagem pela qual o espaço lógico de figuração [Abbildung] de possíveis estados de coisas [Sachverhalte] é que estabelece a prioristicamente a determinação do sentido das proposições, mas pelo contrário: é o uso que os homens fazem dos signos que decide o sentido linguístico das combinatórias proposicionais.

Em suma: esta perspectiva wittgensteineana compaginou a mais radical aplicação do convencionalismo conhecida até agora na história da filosofia analítica. Não é só o facto de o significado dos signos depender de uma regra-de-aplicação, mas também, e antes de mais, o facto facto de o sentido da regra [-de-aplicação] depender previamente, e sem intermitências, de um acordo convencional sobre a sua aplicação.179

O tópico da convencionalidade, entendido em Wittgenstein como ... de uma semântica construtiva auxiliar, levanta todavia uma questão: essa ... não abrirá as portas, por exigência do próprio pressuposto "construtivista", a uma espécie de decisionismo arbitrário ?180

De onde extrair então, na analítica de Wittgenstein, não só o "antídoto" inibidor, como até mesmo a base justificacional possibilitadora, em última análise, dessa arbitrariedade "convencional"?

A lição de Apel revela-se decisiva para esclarecê-lo:


na obra do segundo Wittgenstein encontramos um tema que, a meu ver, pode ser interpretado como contraponto da versão irracionalista do convencionalismo (...): a concepção dos jogos linguísticos.181


Para a grande maioria dos estudiosos e comentadores da filosofia analítica, os últimos escritos de Wittgenstein parecem consumar a rescisão não só dos critérios de validação objectiva do discurso metafísico, como ainda as condições subjectivas de possibilidade da objectividade, em sentido kanteano. Todavia, a refutação liminar do solipsismo metódico, mediante a fundamentação analítica da convencionalidade nos jogos linguísticos, destroi essa aparência : na verdade, a não-legitimidade que subjaz ao facto de "um só e uma só vez" poder seguir uma regra [quem diz "regra", diz "fazer uma comunicação", "dar uma ordem", "compreendê-la, etc...182] e a consequente validação do princípio segundo o qual as acções, a interpretação do mundo e o uso da linguagem têm que se encontrar "entretecidos" nos jogos de linguagem, como elementos integrantes e integradores da forma de vida social [comunitária], constitui de facto o fulcro e o novo alento da "tardia" filosofia wittgensteineana.

Ora, precisamente porque em Wittgenstein não nos é oferecido de modo algum nenhuma garantia metafísica -seja ela objectiva, ou subjectiva- acerca do sentido dos signos e da validade das regras, Apel entende que a entronização do jogo linguístico como horizonte supremo de todos os critérios de sentido e validade, tem de possuir um valor transcendental, se não quiser incorrer em "défice" justificativo.183

Assumindo pois o ponto de vista apeleano do carácter transcensional do jogo linguístico, poderíamos dizer, então, parafraseando Sartre, que a totalidade dos entes dotados de linguagem estão inevitavelmente "condenados" a concordar ["verständingen", para usar uma categoria determinante en Apel] com os demais, no tocante aos critérios de sentido das convenções e à validade do conhecimento ...

Visto à luz, já não da transformação linguística da filosofia, mas de uma transformação filosófica da linguagem, é precisamente o sentido irrevogável dessa concordância que explica

a) quer a sobre-determinação convencional do atomismo, por um lado, e a transcensão da convencionalidade para a teoria dos critérios de aplicação das regras do jogo linguístico, por outro,

b) quer a elevação justificacional da função operativa do acordo ao patamar transcendental da comunicacionalidade.

A relevância desta dupla derivação teórica acentua à escala analítica uma constante do pensamento apeleano: a polarização tensional entre o nível des-construtivo da "análise linguística" sobre os critérios de verificacionalidade construtiva da expressão racional, por um lado, e o nível re-construtivo da "reflexão transcendental" acerca das condições de possibilidade da linguagem, por outro. As consequências últimas dessa tensionalidade não podem, ao nível de uma "análise da linguagem", ser extraíveis no domínio abdutor de uma alternativa de exclusão; têm de ser aferíveis no escopo de uma transformacionalidade. Por isso,


a possibilidade de estabelecer o acordo acerca dos critérios [paradigmata, standrs] para decidir correctamente em todas as situações possíveis da vida pressupõe, no meu entender, o seguinte: em cada jogo de linguagem possível, o próprio acordo encontra-se necessariamente vinculado a priori a regras que, apesar de não poderem ser estabelecidas mediante "convenções", possibilitam todavia a eficácia da "convenção". Na minha opinião, tais meta-regras de todas as regras convencionalmente estabelecidas não pertencem a um jogo linguístico ou a uma forma de vida determinados, mas ao jogo linguístico transcendental da ilimitada comunidade de comunicação.184


coloca-se uma questão: será suficiente o veredicto transcendentalmente comunicável do acordo para se obviar o embaraço do relativismo linguístico, isto é, a eventualidade de se poder efectivamente compreender cada jogo linguístico unicamente a partir dele mesmo ?

Para Apel a questão reveste-se de uma importância extrema, porquanto a índole transcendental do acordo não elimina de maneira nenhuma à partida uma eventual confrontação entre dois jogos linguísticos com regras totalmente incomensuráveis entre si. Sendo assim, não ficaria também o estabelecimento transcendental do acordo "praticamente" dependente de um pacto convencional ? Como se vê, teríamos assim aberto os precedentes de um círculo vicioso entre convenção e acordo, que cairia justificacionalmente num regressus ad infinitum ...

O problema do "confronto" dos jogos linguísticos deixa, portanto, de ser estritamente analítico para passar a apelar para a dimensão histórica da linguagem.

Ora como problema atinente à historicidade da mediação sígnica, só numa perspectiva hermenêutica é que pode ser desfeito o embaraço da incomensurabilidade das regras de jogo linguístico. Por conseguinte, o "evento" analítico da transcensão da convencionalidade para o acordo, encerra já em si o tópicohermenêutico fundamental de uma compreensão da equidistância de todos os jogos linguísticos historicamente possíveis.

A propósito da solvência hermenêutica dessa comutabilidade histórica dos jogos linguísticos, refere Apel:


demos já como justificada em princípio a necessidade de um jogo linguístico transcendental em todos os jogos linguísticos. No entanto, podemos conceretizar essa necessidade tendo em consideração a forma específica de participar em dois jogos linguísticos diferentes, e que consistiria em compreender hermeneuticamente uma forma de vida extrínseca à minha, (...) compreensão possibilitada por uma unidade transcendental de interpretação.185


É, pois, em face dessa "unidade transcendental de interpretação" que podemos então legitimar o postulado apeleano de uma consumação hermenêutica da analítica.

Além do mais, essa legitimação exige-nos ainda que situemos o pensamemto de Apel nas coordenadas teóricas da viragem transcendental [transcendental turn] do acordo analítico para a intersubjectividade hermenêutica.


B) A transcensão da hermenêutica como consumação pragmática da linguagem na disponibilidade sígnica: coexistência quotidiana e intersubjectividade.


O jogo transcendental de linguagem -postulado de Wittgenstein contra Wittgenstein- caracteriza a concepção fundamental apeleana segundo a qual pode ser utilizado

- por um lado, como pressuposto último de uma filosofia analítico-linguística e de uma crítica (correctamente entendida) à metafísica, e

- por outro lado, como base para uma transformação actual da clássica filosofia transcendental da consciência, perspectivada a partir da linguagam.

Entendida, portanto, em Apel, como pressuposto último e fundamentante da desconstrução linguística da metafísica, a concepção normativa do jogo linguístico transcendental e da correspondente comunidade ilimitada de comunicação pode assumir-se ainda como contraponto hermenêutico à hipostatização ôntica de uma suposta unidade ideal do significado das palavras. Na verdade, só a partir do ponto de vista transformacional de uma consumação hermenêutica da analítica, é que poderemos encontrar resposta para as questões verdadeiramente essenciais da filosofia. Nesse sentido, nunca poderia ser levada a cabo a dissolução filosófica do milenário síndroma problematológico da "essência", da "definição", da "ideia", do "conceito", do "significado", e outros termos que tais, se, com efeito, ela tivesse que ser consumada a partir da descrição nominalista das palavras, em vez do postulado normativo (implícito, sem dúvida em todo o "uso" das palavras) de um acordo intersubjectivo entre os virtuais participantes no jogo linguístico sobre as regras ideais do uso das palavras.186

Ora, a apeleana interpretação normativa do jogo linguístico, segundo a qual a "essência" das coisas radica no "uso" da palavra só pode ser teoricamente aduzida na base de uma decantação hermenêutica da linguagem, na medida em que choca frontalmente com o tópico da já referida pluralidade dos jogos linguísticos [versão recente da "diversidade das construções linguísticas humanas" de W. von Humboldt]. Sem essa "decantação hermenêutica", como poderíamos, mediante um "discurso universal", harmonizar a pluralidade histórica dos sistemas linguísticos? Cederíamos, então, à "tentação" logística de considerar que os diversos sistemas sintático-semânticos já introduzem "por si próprios" vários caminhos descritivos para a construção do acordo linguístico, incorrendo assim no "círculo vicioso" do regressus ad infinitum entre descrição-construção?

Ainda que fosse possível conceber os sistemas linguísticos -de modo especial com o gesto idealista de adoptar como modelo o dispositivo formal das linguagens artificiais- como uma pauta de gradações incumensuráveis para a possível formação, por exemplo, de conceitos, essa concepção nunca poderia ser aplicada nos limites inter-comprensivos do jogo linguístico.

Por conseguinte, partindo com Apel do princípio de que a utência sígnica -aferida heremeneuticamente por Heidegger e extrapolada por Gadamer- se pode efectivamente disponibilizar [isto é, "permanecer à mão"...] como unidade quase-pragmática, entretecida intersubjectivamente com a praxis quotidiana de uma comunidade de compreensão 187, não deixa de ser absurda a expectativa "cumulativista" de uma síntese dos diversos modos de compreender linguisticamente o mundo, quando na verdade aquilo que está efectivamente em causa, no plano da competência comunicativa (cuja performatividade, para Apel, não depende só das virualidades da linguagem particular, mas também, tal como o revela qualquer tradução, de universais pragmáticos )188, é tão só o acordo intersubjectivo sobre a aplicabilidade quotidiana do sentido sígnico numa comunidade linguística de compreensão.

Esclarece Apel:


Se acentuamos a força das estruturas semânticas imanentes à linguagem (por exemplo, a de "campo semântico", ou a de "conteúdo") -força essa que configura previamente toda a compreensão do sentido no plano da utência linguística-, é preciso assinalar também que essa configuração (...) só é possível porque as linguagens, entendidas como sistemas, não se encontram obviamente à revelia da "interpretação", (...) responsável em última análise por reestruturar a componente semântica da linguagem "viva", mediante o acordo sobre o sentido pragmaticamente alcançado ao nível do uso da linguagem.189


É a atenção justificacional às condições possibilitadoras dessa capacidade humana (capacidade essa que, como vimos, se traduz em termos apeleanos e habermasianos por "competência comunicativa") para operar quotidianamente com uma pauta de sistemas linguísticos, sem que isso introduza factores de ruptura no tecido linguístico, que leva Apel a postular o gesto transcendental que deve não só consumar, como ainda legitimar, o trânsito linguístico da intersubjectividade hermenêutica para o consenso pragmático. Esse trânsito é exigido por Apel não porque se negue à hermenêutica a legítima aspiração para, mediante uma analítica existencial do acto de "compreender", se assumir como contraponto à redução logístico-cienticista da mediação histórica da tradição, mas porque o contributo pragmático da semiótica peirceana exige, do ponto de vista da própria historicidade da comunidade de interacção, que sujeitemos criticamente a dimensão hermenêutica da linguagem ao seguinte feixe de questões190:

a. Bastará que clarifiquemos a sucessiva e incessante tradição histórica do sentido, intersubjectivamente ligada à situação concreta do "jogo linguístico" e à "prudutividade temporal" da "fusão de horizontes", para se produzir um resultado sempre distinto da "aplicação" prática da significatividade?

b. Bastará tão só e apenas uma análise da "historicidade" da compreensão -análise essa, no entender de Apel, paradoxalmente convertida por Gadamer em postulado "quase-metodológico" da hermenêutica- para se inferir a necessidade de uma "consciência linguística histórico-efectiva"?

Perguntas, aliás, que em termos transformacionais equivalem ao seguinte:

a. O intérprete que tem consciência da sua própria função no desenrolar histórico-efectivo do processo interpretativo e que, portanto, sabe que se torna imprescindível "aplicar" a sua compreensão à praxis histórica, não terá ele de concertar a sua actividade sígnica com um possível acordo operado ao nível meta-hermenêutico de uma comunidade de interacção linguística?

b. Não precisará esse "intérprete" de um princípio regulativo-normativo, metodologicamente relevante, para que a sua actividade sígnica se abra histórico-efectivamente a um um progresso ilimitado, identificado em última análise com o valor-limite da verdade absoluta da interpretação?


C) A transcensão da pragmática como consumação transcendental da linguagem na interpretação do interesse cognitivo: interacção comunitária e consenso.


A resposta ao feixe de questões atrás referido começa por nos introduzir linguisticamente no âmago daquilo que Apel chama de teoria pre-semiótica do conhecimento, na qual teremos que incluir Kant, o positivismo clássico e a própria hermenêutica.191

Esta chamada de atenção prévia é de capital importância para se perceber o alcance contemporâneo da filosofia apeleana, porquanto dela depende o nó argumentativo que explica "transformacionalmente" a consumação transcendental da linguagem na pragmática. Quer dizer: a reconstrução metafísica da linguagem para que aponta o projecto filosófico de Apel no interior mesmo de uma suposta e pretensa desconstrução linguística da metafísica, arranca precisamente da antecipação fáctica de uma "teoria pre-semiótica do conhecimento".

Na verdade, aquela memorável tradição da gnoseologia nominalista, que via unicamente no signo um apetrecho instrumental para comunicar o conhecido, não fez mais do que rebaixar a linguagem à condição de veículo e suporte universais do conhecimento de "algo enquanto tal".

Assim, a mesma teoria que permite relegar hermeneuticamente a mediação intersubjectiva da tradição para uma aplicação interpretativa da linguagem nos actos de conhecimento perceptivo-aperceptivos, é precisamente a mesma que legitima o conhecimento apartir de uma relação sujeito-objecto: com efeito, na origem de ambas vigora a falácia solipsista da unidade e evidência do objecto para uma auto-consciência que, no limite,


é incapaz -esclarece Apel- de se precaver acerca do facto de a relação sujeito-objecto do conhecimento aperceptivo de se encontrar já em si mesma previamente mediada por signos, e, por conseguinte, sustentada pela relação sujeito--sujeito do conhecimento interpretativo.192


No escopo de uma consideração reflexiva, que se pretende racional sem deixar de ser anti-linguística, percebe-se, em suma, porque razão uma interpretação hermenêutica sem abertura a uma dimensão pragmático-transcendental, pode eventualmente tropeçar no analítico e "pseudo-transcendental" recurso à mera "convenção-sem-acordo".

A ponderação gnoseológica desse risco é evidente, na filosofia de Apel.

Na verdade, os incondicionais adeptos de um estrito "revisionismo convencionalista" da teoria gnoseológica, não se apercebem do flagrante contra-senso implicado numa sobre-determinação "convencional" do conhecimento: a "convenção" apenas representa uma soma de decisões unilaterais ["atómicas", se quiséssemos parafrasear a terminologia analítica...] de sujeitos des-referenciados que interpretam dados; ela não atinge, no fundo, a pretendida e tão almejada realização dessa concordância [Übereinkunft] intersubjectiva que formata meta-linguisticamente qualquer aplicação interpretativa da linguagem. E não atinge porque, segundo Apel, esquece o facto crucial de fixar no


acordo [Verständingung] intersubjectivo, qua mediação da tradição numa "comunidade de interpretação", a condição hermenêutico-transcendental de possibilidade e validade de todo o conhecimento que intente uma orientação objectiva.193


Nessa linha de esquecimento "transcendental", Apel inclui o próprio ... heideggeriano do "estar-com" [mit-sein], por mais contraditório que pareça. A razão é que, quando em Sein und Zeit (cf. §30) as "formas de conhecimento" são consideradas "derivados existenciais" da compreensão originária, compreensão essa que possibilita a constituição da "abertura do sentido" [Sinneröffnung] e que recebe a sua "luminosidade" do "por-causa-de" do "poder-ser" [Seinkönnen] e do "ter-que-ser" [Zuseinhaben], parece, no entender de Apel, e não obstante a insistência no "estar-com", que


Heidegger está manietado a um tipo ontológico-rxistencial de solipsismo metódico: (...) na unidade básica da compreensão qua abertura ao mundo, não é suficientemente tida em conta a tensão entre "interpretação pública" do mundo, mediada linguisticamente, e "experiência" do mundo.194


Esse insuficiência que hermenêutica revela, pode ser, no entender de Apel, perfeitamente colmatável mediante uma reflexão transcendental pragmático-semioticamente transformada.195

Só uma filosofia transcendental transformada pragmaticamente pode, com efeito, ter em suficiente linha de conta que qualquer circuncuscrição hermenêutica de problemas filosóficos tem de arrancar de uma teoria do interesse pelo acordo, complementar com o interesse do conhecimento, para a qual contribui em larga escala, tanto a semiótica pragmática de Peirce, como a concepção hegeliana segundo a qual o auto-conhecimento depende do conhecimento alheio .196

Como já tivemos ocasião de referir, a "máxima pragmática", enquanto parte intgrante de uma lógica normativa, encontra-se relacionada desde o início, quer com a experiência experimental de uma "comunidade de científicos", quer com o interesse cognitivo de uma "comunidade de intérpretes". Assim, só poderemos acreditar num sentido, na medida em que pudermos ilustrar tal sentido mediante experiências, ou interpretações,

- projectáveis no marco teleológico de um "comportamento em vista de fins",

- executáveis no marco comunitário de "sujeitos intercambiantes" e

- controláveis no marco pragmático dos "resultados".

Ora, é partindo do princípio que a contextura destes três marcos permitiu a Peirce descobrir que a interpretação tem de subsumir no fim de contas a categoria da "terceiridade", isto é, que a estrutura triádica da interpretação reflecte diametralmente a estrutura triádica de uma "comunidade cognitiva " não de um, mas de "três sujeitos"197, que Apel entende que a estrutura que caracteriza o pensamento solitário tem, também ela, de se encontrar triadicamente fundamentada e justificada num horizonte comunitário:


o "diálogo da alma consigo mesma" [Platão], no qual alguém [A] se [B] entende [verständigt]consigo mesmo [C], deve integrar dialogicamente a mediação de uma comunidade de interpretação.198


O próprio Peirce reconhece, de resto, a própria fragilidade e precaridade do discurso solipsístico: a identidade de uma homem -sublinha o pensador americano- reside na consistência do que faz e pensa... O homem individual, não passa de uma negação e de uma manifestação de ignorância e erro, posto que a sua existência separada dos demais é vista como algo distinto da dos seus semlhantes e daquilo que eles devem ser.199

O acesso pragmático ao patamar dialógico de uma comunidade de interpretação não se caracteriza apenas por prescindir totalmente de uma "consciência em geral" de tipo kanteano, entendida como sujeito da verdade objectiva, mas também por pressupor aquele acordo produzido in the long run, que Peirce postula para consumar semioticamente a substituição da "apercepção transcendental" por um consensus omnium que garanta a validade da "máxima pragmática", tal como se encontra sugerido em The Fixation of Belief. 200 É por isso que a pulverização do falso dualismo, vertido na história do pensamento ocidental desde a época clássica, entre "teoria" e "prática", "pensamento" e "acção", "natureza" e "liberdade"..., encontra na teoria peirceana do acordo pragmático um precedente incontornável. O momento dialógico da constituição do sentido que deve coordenar "regulativa e normativamente" o "interesse cognitivo" de uma comunidade linguística, tem a ver, não propriamente, ou não tanto, com uma questão teórica, mas com uma questão eminentemente práxica : o acordo acerca do sentido encontra-se umbilicalmente ligado à experiência da produção sígnica, numa comunidade de sujeitos intercambiantes.

Ora, o problema que se coloca do ponto de vista transformacional de Apel, tem a ver com o seguinte reparo: se o pragmatismo tiver que oferecer resposta à pergunta pela instância que deve legitimar e validar entre o momento práxico da produção e utência sígnica e o momento dialógico da experimentação e interpretação comunitárias, onde teremos de radicar justificacionalmente o fundamento do "acordo pragmático"?

Para Apel esta questão ... em termos transformacionais duas consequências:

-uma consequência linguística cujo desfecho se salda numa transformação filosófica da linguagem pragmática, e

-uma consequência filosófica cujo desfecho determina a consumação transcendental da pragmática, anteriormente postulada por Apel.

No que respeita à primeira consequência -ou seja, à pertinência de uma transformação filosófica da pragmática exigida por uma ascensão justificacional dos pressupostos dialógicos- não há dúvida de que para Apel a instância que pode validar e legitimar as condições de possibilidade do acordo pragmático é a comunidade de interacção. Na verdade, se partirmos do princípio que num diálogo um interlocutor tem de contar com a reacção que cabe esperar do outro no momento em que projecta o seu discurso e lhe confere sentido, enquanto que ao outro interlocutor caberá entender esse discurso a partir da perspectiva de que algo pode ser conseguido na base dessa mútua relação, quer dizer então que a interpretação daí resultante tem de ser pragmaticamente instituida no âmbito de uma interacção constituidora do sentido. Para Apel, é à luz dessa "interacção" e das "experiências" que ela implicitamente possibilita que


as expressões linguísticas não podem ser consideradas como veículos que (...)expressam um sentido cuja interpretação pode ser universalmente aceite, mas sim como partes intergrante da práxis irreversível da interacção.201


Mas se tivermos, porém, em linha de conta que, para assumir até às últimas consequências a exigência crítica da justificacionalidade, não basta à semiótica transcende-se pragmaticamente numa comunidade de interacção, uma vez que em nome dessa "interacção" cada um dos interlocutores de uma comunidade interpretativa poderia aduzir "razões" para impor arbitrariamente a sua própria vontade mediante o uso faccioso de estratégias linguísticas de argumentação202, é preciso em função disso que esteja dotada transcendentalmente de uma reflexão que lhe permita aceder às condições de possibilidade dessa "interacção". E aqui entramos no segundo ponto atrás matizado por Apel: partindo da sua dimensão pragmática, em que medida pode a linguagem aceder a uma reflexão transcendental não só acerca das suas condições de possibilidade, mas também sobre o sujeito do jogo analítico, da disponibilidade hermenêutica e da interpretação comunitária dos signos, sem prejuízo dos seu pressupostos auto-legitimadores?

Sobre este nó decisivo no pensmento apeleano reservaremos um ponto particular onde analisaremos em que medida é que


não devemos confiar a sua realização a um discurso auto-suficiente, mas sim a uma mediação entre experiência hermenêutica e praxis interactiva, guiadas filosoficamente.203



II. A linguagem como tema e via de acesso à reflexão transcendental


De entre o amplo debate que suscita a intersecção contemporânea da filosofia e da linguagem, importa destacar uma questão de cuja a resposta depende em larga escala o recto entendimento da moção apeleana de uma transformação linguística da filosofia, entendida como efectiva reconstrução metafísica da linguagem: pode a filosofia da linguagem assumir hoje em dia a função de filosofia transcendental em sentido kanteano, quer dizer, a função de "prima philosophia "?

Para os conhecedores da recente produção filosófica parece simples e relativamente trivial admitir que a preocupação pela linguagem acabou por se substituir e implantar à preocupação dos filósofos pela consciência, preocupação, de resto, característica e estruturante da própria modernidade.

Desta feita, tal reorientação parece pois abonar em favor de dois factos aparentemente consumados:

- em primeiro lugar, a mutação histórica do espírito do tempo [Zeitgeist] moderno para o contemporaneo;

- em segundo lugar, a emancipação epistémica da mundividência [Weltanchauung] linguística face à teoria clássica do conhecimento.

Esta mutação histórica, implicada na respectiva emancipação epistemológica do problema linguístico, ... manifesta portanto que a filosofia da linguagem não se limitou só a destronar e a ocupar o lugar vago da crítica tradicional do conhecimento, nem sequer a abordar epistemicamente o fenómeno linguístico como um objecto gnoseológico a par de outros tantos, mas pretendeu outrossim afirmar-se como garante crítico e ... reflexivo das condições linguísticas de possibilidade do conhecimento. Se quiséssemos verter esse evento teórico noutro termos, dirámos que a teoria da linguagem não se contentou apenas a erigir-se como objecto gnoseologicamente relevante, mas também, e sobretudo, como sucedânio crítico da consciência na tarefa legitimadora do próprio conhecimento.

A questão todavia não deixa de ser ambígua para K.-O. Apel, por mais insistente que seja o intuito ou a missão -consoante se assume a tarefa filosófica- de a simplificar.

Podemos obviamente optar por uma leitura descontinuista, resolvendo assim, pela "lei do menor esforço", a relação entre linguagem e filosofia (entendida como teoria clássica do conhecimento). Todavia, perguntamos: não corresponderá a postura teórica que tenta diluir a problemática da linguagem na tarefa prometeica de se apossar das prerrogativas da consciência e de se assumir como instância moderadora do conhecimento, a uma leitura unilateral, no mínimo mutilante, do problema? Até que ponto é que os resultados alcançados transformacionalmente pelas sucessivas ascenções justificacionais da análise lógica (fundamentada no acordo convencionalizado dos jogos de linguagem), da hermenêutica (legitimada na partilha intersubjectiva do utensílio sígnico) e da pragmática (caucionada pela interacção consensual da comunidade interpretante e experimentante), não nos constrangirá, a partir do credo filosófico de Apel, a colocar o problema na óptica continuista de uma transformação linguistica da filosofia mediante o retorno a umareconstrução metafísica da linguagem ?

Se atendermos à circunstância determinante de que, com efeito, as equações "linguagem-filosofia" e "conhecimento-consciência" não podem ser resolvidas num discurso dual de exclusão que vê na linguagem uma estrutura inibidora da filosofia e da consciência ou vice-versa, mas num discurso bipolar de transformação que destina à linguagem a mediação racional da filosofia e à filosofia a remissão transcendental da linguagem, podemos concluir com Apel que


o aspecto fundamental da mutação operada da crítica do conhecimento qua análise da consciência para a crítica do conhecimento qua análise da linguagem apoia-se no seguinte facto: o próprio problema do valor de verdade deixa de se identificar com o problema da evidência ou da certeza (certitudo) para uma consciência solitária em sentido cartesiano, nem tão pouco com o problema da validade objectiva (...) para uma consciência em geral em sentido kanteano, para passar a identificar-se originariamente com o problema de uma formação intersubjectivado consenso, em virtude do acordo linguístico.204


Seguindo na peugada de Apel poderíamos então assumir como linha de princípio que existe uma clara continuidade (pelo menos uma "continuidade parcial") na dilucidação filosófica do debate teorico acerca do nexo entre uma teoria clássica do conhecimento e uma filosofia contemporânea da linguagem que a pretende inviabilizar, superar e substituir. Essa "continuidade" não é "contígua" (limítrofe) mas "contínua" (interina), quer dizer: não se decide tanto ao nível filosófico de um discurso "sobre" a linguagem (como se a filosofia tropeçasse no fenómeno linguístico e o tentasse dissecar do "exterior"), mas sobretudo ao nível filosófico de um discurso que disponibiliza a linguagem para uma reflexão transcendental, por muito paradoxal que isso pareça. Formulada


em conexão com Kant, essa continuidade -elucida Apel- consistiria na reflexão sobre as condições de possibilidade do conhecimento: a linguagem teria por isso de constituir-se actualmente como tema e meio da reflexão transcendental (como antes o foi a consciência); não só, mas ainda, enquanto meio de reflexão válida, como tema da própria reflexão! 205


Face à posição teórica de Apel -que, como se vê, equaciona o problema sem a exasperante indulgência dos falsos compromissos- importa questionar então: em que moldes se terá de verter teoricamente a tese apeleana de uma "reflexão transcendental da linguagem" de modo a entender a mediação linguística como reflexão sobre as condições de possibilidade do conhecimento?

Não é fácil aceder a uma solução unívoca para esta questão, tanto mais que a dificuldade começa à partida por se encontrar insinuada e camuflada no prório processo histórico de transformação filosófica da linguagem.


A) Reflexão transcendental e análise lógica da linguagem.


O tópico da transcendentalidade desde cedo se tornou um problema incontornável no marco histórico da filosofia analítica. Contudo, pese embora o facto de ter recebido um tratamento teórico cauteloso mas firme (mormente com Wittgenstein), a posição da analítica revela e denota uma irresoluta ambiguidade em relação ao problema se tivermos em consideração dois pontos:

- por um lado, parece indiscutível que a chamada "filosofia analítica da linguagem", em todas as suas múltiplas fases e expressões tentou assumir a função reflexiva da crítica do conhecimento no panorama da filosofia ocidental contemporânea;

- por outro lado, porém, a essa tentativa opõe-se o facto de a reflexão constituir para a analítica um dos aspectos suspeitos da teoria clássica do conhecimento que importa superar mediante uma "análise lógica da linguagem"...206

Wittgenstein foi o primeiro a reconhecer -pelo menos assim o dá a entender no Tractatus - que nesta bivalência se aloja um paradoxo : o mesmo procedimento analítico que permitesubstituir por um lado a teoria do conhecimento por uma "crítica da linguagem" [cf. 4.0031; 4.1121] e instituir por outro uma "lógica" designada de "transcendental" [cf. 6.13], é o mesmo procedimento que interdita uma reflexão linguisticamente formulável acerca da forma lógica da linguagem [cf. 4.121]. Curiosamente, Apel faz notar que o paradoxo é desfeito no último Wittgenstein a partir de uma reposição das funções trancendentais da linguagem ao nível descritivo da "gramática profunda" dos jogos linguísticos entrelaçados com as "formas de vida" e as "interpretações do mundo".207

Que implicações introduz esse retorno transcendental no domínio da filosofia analítica da linguagem?

Para Apel a índole mais logicista do pensamento analítico do primeiro Wittgenstein não deixa de ter o indiscutível mérito de dirigir uma suspeita implacável contra os equívocos inerentes ao solipsismo. Um indivíduo não pode solitariamente pensar "algo enquanto tal" partindo das sua próprias produções de consciência. Por conseguinte,


um filósofo que tenha passado pela moderna análise da linguagem -clarifica Apel- dificilmente subscreverá a tese cartesiana (e inclusivamente husserliana) segundo a qual se pode reflectir a partir de um lugar situado fora dos vínculos da linguagem (ou de um sistema cultural linguisticamente plasmado), escudando-se numa auto-reflexão radical tal como a entende o solipsismo metódico.208


Mas se é verdade que a inspecção analítica da linguagem lança por terra os andaimes e fundamentos da teoria gnoseológica da consciência, não é menos verdade que o concurso supletivo da teoria dos jogos linguísticos só por si também não basta para instaurar o ponto supremo de uma reflexão transcendental gnoseológica. Para isso a tarefa crítica, quer da análise lógica, quer da "gramática profunda" dos jogos linguísticos, ter-se-iam de assumir logo à partida como legítimas detentoras das condições linguísticas de possibilidade do seu próprio desempenho.

Porém, não é isso que se constata na doutrina analítica.

Se o lugar da consciência auto-reflexiva é efectivamente ocupado pela crítica da linguagem, já a pretensão analítica de verificar objectivamente linguagens formalizadas ou teorias linguísticas condicionadas mediante a construção de uma infinita hierarquia lúdica de meta-linguagens ou meta- teorias, cria contudo um vicioso círculo regressivo de impossível superação.209 Na medida em que prescinde da auto-reflexividade em favor do círculo vicioso da construtividade verificacional, a analítica da linguagem cava o fosso que a impede de aceder às condições de possibilidade não só do conhecimento, como ainda da própria análise a que se propõe.

Na verdade, a dificuldade com que se debate uma análise verificativo-construtiva da linguagem, advém apenas do facto de os sistemas linguísticos analizáveis objectivamente, além de serem efectivamente "idênticos" às linguagem analizantes exigidas para a sua análise, poderem ser "utilizáveis" subjectivamente, sem que para tal a análise linguística nos dê reflexivamente conta da diferença absoluta entre uma acepção linguística entendida como objecto do conhecimento e uma acepção linguística entendida como condição subjectiva do mesmo.

A questão é que, para Apel, estamos em presença de formulações dialécticas que, de modo algum, podem ser "formalisticamente" verificáveis, nem, muito menos, "construtivamente" justificáveis. Assim, o problema inerente a um adequado equacionamento da relação entre linguagem e reflexão depende tão só da disposição transcendental para


assumir a sério as considerações dialécticas sobre a linguagem como paradigma da identidade entre sujeito e objecto no âmbito das ciências humanas.210


O apelo apeleano à manutenção dialéctica do sujeito parece simples: quem queira efectivamente conhecer tem, qua sujeito do conhecimento, de crer- se capaz de verdade. Todavia, essa capacidade deve ser entendida não no sentido de uma anexação individual do objecto, mas no de uma apropriação crítica da reflaxão sobre a possibilidade e validade do conhecimento configurado nessa relação dialéctica.

O sentido apeleano de uma transformação da filosofia -entendida como reconstrução metafísica da linguagem- não pulveriza de forma alguma o veredicto moderno da emancipação do sujeito pensante. Ele continua válido, mesmo no contexto contemporâneo de uma reconversão linguística da racionalidade. O que Apel procura sublinhar é que a temática e o acesso que a linguagem faculta à reflexão transcendental deve exigir da filosofia uma redefinição do estatuto crítico do sujeito.

Se o erro da filosofia moderna consiste em acreditar que a consciência pensante é capaz de refectir solitariamente à margem do vínculo linguístico, surge então o problema: como instaurar no âmbito linguístico a reflexão sobre a pretensão universal da validade do conhecimento subjectivo ? Para o filósofo da Escola de Frankfurt o projecto analítico fracassa no contributo linguístico para essa "redefinição instaurativa" do conhecimento, na medida em que a analítica da linguagem -na sua vertente sintático-semântica- intenta precisamente promover o descrédito da reflexão como carente de sentido.211

Uma razão para essa atitude teórica radicou na ideia logística da linguagem-cálculo.

Um dos intentos da "linguagem-cálculo" visa a eliminação a priorística de toda a possível contradição do pensamento mediante o respeito integral das regras semânticas. Foi, de resto, essa "ideia reguladora" que levou, por exemplo, Russel a inviabilizar teoricamente toda e qualquer auto-referencialidade da linguagem.

Todavia, uma teoria que pretenda sustentar por um lado todas as proposições "com sentido", e suprimir por outro toda a "autoreferencialidade linguística", é uma teoria que -como o denunciou muito bem M. Black- incorre em contradição consigo mesma.212

É precisamente essa auto-contradição que torna ilegítimo um "cânone proposicional" sobre a forma lógica das proposições e explica, no entender de Apel, o paradoxo fundamental do sem-sentido de toda a filosofia no Tractatus do primeiro Wittgenstein.213 Paradoxo, a nosso ver, porque a filosofia se vê constrangida a falar acerca daquilo que, por imperativo da analítica, "devemos calar" [cf. Tractatus, 7]: isto é, sobre a forma lógica da linguagem e do mundo que a linguagem tem de descrever.

Se reflectirmos, de facto e de jure, sobre o facto de ser impossível a comunicação humana apenas nos limites de uma "linguagem-cálculo", compreenderemos o verdadeiro alcance do impacto transformacionista de Apel na contemporânea filosofia da linguagem: a ideia analítica de uma "linguagem-cálculo" é radicalmente incompatível com a exigência transcendental de uma auto-reflexão da linguagem que lhe permita não só substituir-se ao moderno primado da consciência, como também erigir-se como instância crítica do conhecimento.

Na verdade, se nos é possível -à luz da cartilha analítica- intercambiar objectivamente "puras" informações sobre "estados de coisas" na base de um cálculo e expressar simultaneamente uma "atitude subjectiva", é porque já se encontra transcendentalmente pressuposto que nos pusémos de acordo não só sobre as "regras características e funcionais" da linguagem, mas também sobre a sua "aplicação" a estados de coisas experienciáveis, mediante o emprego da "linguagem ordinária" do quotidiano.

A inflexão wittgnsteineana para a fase analítica dos "jogos linguísticos" reflecte já essa concessão teórica a uma tutela transcendental. Com efeito é só ao nível comunicacional da convencionalidade sobre o acordo prévio acerca do contexto de aplicação vital das "regras construtivo-verificativas" da linguagem-cálculo, que a analítica pode efectivamente aceder transformacionalmente à reflexão linguística sobre e mediante a linguagem. Para Apel


isto pressupõe que os jogos linguísticos (...) levam implícita a possibilidade de autotranscender-se mediante a auto-reflexão, e que tal autotranscensão é efectivamente provocada pela comunicação entre os distintos jogos linguísticos ou formas de vida até chegar não só à reflexão filosófica como à crítica da sociedade.214


Podemos ver nessa autotranscensão apontada por Apel o possível nexo transformativo que legitima o trânsito justificacional da analítica para a hermenêutica da linguagem.


B) Reflexão transcendental e hermenêutica da linguagem


Embora diferindo substancialmente do ponto de partida da analítica, a matriz teórica da hermenêutica da linguagem -tal como foi embrionariamente concebida por M. Heidegger e desenvolvida por H.-G. Gadamer- pode ser vista como herdeira da doutrina filosófica do último Wittgenstein, respeitante ao acordo meta-proposicional dos "jogos de linguagem".215 Com efeito, já na originária abertura linguística ao mundo, encontra-se manifesta a relação intersubjectiva de uma comunicacionalidade signicamente mediada pela relação reflexiva dos homens consigo mesmos. Dito de outra forma: se os homens não se aproximassem já do mundo sem a antecipação linguística de uma inter-compreensão, seria impossível de todo o conhecimento de "algo enquanto tal".

Também a hermenêutica da linguagem tenta "redimir-se" teoricamente numa crítica do conhecimento, à imagem do que pretendeu fazer a analítica. A "síntese hermenêutica" -que subjaz à "sintese predicativa" da analítica e tenta dissolver a "síntese suprema da consciência"- pretende instalar o "ser-aí" numa radical e fundamental significatividade. Todavia, essa "posição" significativa da existência apenas decorre justificacionalmente da possibilidade de os utentes sígnicos partilharem quotidianamente de um horizonte reflexivo co-existencial. Daí que a leitura apeleana da hermenêutica não se esgote fenomenologicamente nas condições existenciais de interpretação e compreensão -apanágio, de resto, do "fundamentalismo" existencial da doutrina heideggeriana e gadameriana216-, mas requeira um grau de fundamentação suficientemente válido para permitir à hermenêutica um domínio transcendental de reflexão. Para Apel esse domínio não pode ser criticamente auto-instituido pela hermenêutica, mas justificado pela contextura pragmática da linguagem:


é evidente -comenta Apel- que o suposto hermenêutico da "sintese" da co-existência com a pré-compreensão tem de poder verificar-se hermeneutico-linguisticamente, na medida em que nos precavermos que temos de ser capazes de conceber a estrutura semântica de qualquer linguagem historicamente desenvolvida como corolário de uma experiência pragmática da significatividade.217


Para Apel parece não existir qualquer impedimento teórico para admitir que essa "culminância pragmática" é que coloca a hermenêutica no limiar reflexivo da justificação trancendental: desta forma, esclarece Apel,


a unificação da consciência do objecto e da auto-consciência que devemos pressupôr -segundo Kant- como condição de possibilidade da experência, é a que subjaz também, na hermenêutica, à possibilidade de abertura linguística do mundo.218


É evidente que esta elevação trancendental da hermenêutica é basicamente distinta do figurino transcendental da crítica kanteana. Não podemos, portanto, adoptar a síntese originária do mundo linguisticamente pré-dado como "condição subjectiva de possibilidade e validade" para uma "consciência pura", no sentido em que a entendeu Kant e Husserl: tal consciência nunca poderia obter hermeneuticamente do mundo qualquer índice de significatividade.

Entendemos, por conseguinte, que é no vislumbre desse défice significativo em que incorre hermeneuticamente a crítica clássica do conhecimento, que temos de intender em Apel o postulado transformacional de uma continuidade reflexionante entre a analítica e a hermenêutica da linguagem. Essa continuidade -integrada no círculo problemático da reflexão linguística sobre e mediante a linguagem - é posta em trânsito na medida em que a teoria wittgensteineana dos "jogos linguísticos", ao conceder um valor pragmático-transcendental à convergência sígnica entre trabalho, interacção e comunicação, antecipa e reclama reflexivamente, por assim dizer, a tese hermenêutica da intersubjectividade da utência sígnica.219


Quais as consequência teóricas de uma apropriação analítica e hermenêutica do ponto de vista crítico do conhecimento, apropriação essa pragmaticamente entendida para Apel como tema e via de acesso à reflexão transcendental? Poderão a análise da linguagem e a hermenêutica da linguagem assumir-se impunemente, à revelia da linguagem filosófica, como instâncias monopolizadoras dessa reflexão?


C) A relevância transcendental da "reflexão filosófica sobre e mediante a linguagem" e os limites da analítica e da hermenêutica. Um regresso a Kant ?


A reflexão linguística sobre e mediante a linguagem -de que a analítica e a hermenêutica dão pragmaticamente para Apel um testemunho inequívoco- não anda distante do nascimento da própria filosofia, inseparável por seu turno da própria génese histórica das "ciências do discurso" (Lógica, Gramática e Retórica).

Nesse sentido, o tópico que nos tem ocupado acerca do modo como Apel equaciona a possibilidade filosófica de uma "reflexão linguística sobre e mediante a linguagem", confunde-se estruturalmente com a pergunta pela possibilidade da própria filosofia e, a fortiori, da própria racionalidade discursiva.

Como interpreta Apel essa emergência "congénita" da linguagem e da filosofia?

Em primeiro lugar Apel entende que a hermenêutica da linguagem, pese embora o facto de admitir a título justificacional a potenciação pragmática da interacção sígnica- revela-se porém insuficiente quando se trata de equacionar o círculo dialéctico entre o nível linguístico da interpretação filosófica e o nível filosófico da linguagem interpretativa. Quer dizer: podemos admitir

- por um lado, que a reflexão linguística da filosofia é o resultado de uma contínua potenciação e enriquecimento de uma reflexão linguística "efectiva" que actua, desde o começo da filosofia, no próprio escopo comunicativo da linguagem, e

- por outro, que a reflexão filosófica sobre e mediante a linguagem é o resultado hermenêutico da continuidade histórica do diálogo humano.


Na verdade, reside precisamente aqui para Apel um paradoxo residual, a saber:

- ou a filosofia se "abre" à historicidade das instâncias discursivas mas cede à hermenêutica a sua legítima aspiração em se constituir como discurso universal;

- ou a filosofia "assume" o destino de tematizar universalmente, quer a individualidade, quer a própria historicidade, através da mediação linguística do conceito, mas transgride o tópico hermenêutico da incarnação temporal da razão na tecitura sígnica do quotidiano.

Mais do que ocultar-se no sossego de uma resposta, este paradoxo desoculta, na sua aporeticidade, um indício:


a imperiosa necessidade de resolver o paradoxo (...)para legitimar o jogo linguístico da filosofia, revela os limites do enfoque hermenêutico-linguístico (...) e que a filosofia alcançou um nível de reflexão linguística que não pode ser subestimado por uma filosofia hermenêutica.220


Assim, alternativa transcendental de incumbir ou à filosofia ou à linguagem a "reflexão sobre e mediante a linguagem", não pode ser decidida de acordo com uma lógica disjuntiva de exclusão. À ditadura moderna da consciência não se pode responder com o absolutismo contemporâneo da linguagem. Só no âmbito transformacional de uma auto-remissividade entre filosofia e linguagem é que se pode com efeito empreender uma reflexão "sobre e mediante a linguagem", reflexão essa que teremos de situar tensionalmente, tanto no polo linguístico da razão discursiva, como no polo filosófico da linguagem racional, se não queremos enredar essa circularidade aporética em contradições insolúveis.

Desta forma, sempre que pretender exercer de forma legítima e consciente as competências de uma efectiva reflexão e, mediante ela, assegurar criticamente, na peculiar situação filosófica do momento presente, o seu próprio método e a sua pretensão universal de validade -garantia, de resto, exigida por Descartes, Kant e Husserl- a filosofia terá necessariamente de respeitar dois requisitos transcendentais :

1. reflectir criticamente sobre as condições de possibilidade da experiência linguística mediante uma justificação racional e

2. reflectir criticamentesobre as condições de possibilidade da experiência racional mediante uma justificação linguística.


Implicará esta fundamentação auto-remissiva um regressus ad infinitum, libelo, de resto, reiteradamente digerido e dirigido contra a solução filosófica transformacionista ?221

A resposta de Apel parece clara: esta argumentação


não implica qualquer regressus ad infinitum, como hoje parece admitir-se (...).Porque enquanto reflexão sobre o supremo grau de universalidade do sentido linguístico pensável, que podemos alcançar reflectindo filosoficamente mediante a linguagem, não se identifica com uma reflexão psicológica -perpetuada até à exaustão- sobre o acto privado de pensar. Pelo contrário: constitui sim uma consideração [Besinnung], definitiva pela sua forma, que o pensamento ligado à linguagem realiza sobre si mesmo como condição de possibilidade da sua pretensão universal de validade. Enquanto vista como consideração [Besinnung] transcendental, esta reflexão constitui, a meu ver, a auto-fundamentação possível da filosofia, e só da filosofia. Como tal, não podemos confundi-la com a fundamentação que se atinge através de regressões dedutivas.222


Apel confirma portanto a relavância crítica da "regra de ouro" da concepção transformacionista da racionalidade: sempre que intentarmos responder à pergunta pelo fundamento da validade do princípio racional, é suficiente e definitiva a consideração [Besinnung] acerca da antecipação fáctica da comunicacionalidade, consideração essa que, no entender de Apel, podemos consumar transcendentalmente na linguagem, mediante uma auto-gradação reflexiva223 que parte do acordo convencional (analítico) dos jogos de linguagem para a coexistência intersubjectiva (hermenêutica) da utência sígnica, e desta para o consenso interactivo (pragmático) da interpretação comunitária.

Qual o impacto teórico de semelhante "consumação transcendental" da comunicacionalidade na filosofia contemporânea?


Ignorando as regras de jogo da comunicação, nem mesmo, por exemplo, perguntas como a seguinte -é comunicável, em última análise, tudo aquilo que pode ser meramente pensado na consciência? (Dito de outra forma: poderá dar conta, de facto, o acto comunicativo de um "mundo externo" e de "interlocutores"?), poderão ser sustentadas. Hoje em dia teremos de mostrar ao pensador solítário, que para manter o seu solipsismo metódico, tem de operar previamente nos limites do jogo linguístico público, responsável em última análise por conferir consistência aos argumentos que têm validade para ele.224


Partindo então com Apel da tese que postula e determina uma fundamentação transcendental da comunicacionalidade, poderemos falar verdadeiramente de um regresso a Kant?

Que sentido atribuir, a partir do ponto de vista apeleano, a esse "regresso"?

Que passagens podem, na economia do pensamento kanteano, revelar indícios que autorizem uma fundamentação comunicacional da verdade?

Podemos situar o pensamento "transformacionista" de K.-O. Apel no filão que percorre a filosofia alemã a partir de 1865 com o advento do neo-criticismo e atinge contemporaneamente a sua máxima expressão nas tentativas mais ou menos isoladas de reabilitar o pensamento kanteano contra "o escatologismo anti-racional", exaustivamente profetizado pela auto-denominada "pós-modernidade".

O teor da expressão "regresso a Kant" foi imortalizada a partir de 1865 com a publicação deKant e os Epígonos de Otto Liebmann. Com efeito, essa obra celebrizou o seu autor pelo repto insistente que servia de remate a cada capítulo: "temos de regressar a Kant..." [Es muss auf Kant zurückgegangen werden...].225

É no contexto dessa ressonância neocriticista que temos de integrar a recuperação apeleana da transcendentalidade.

O Kant que Apel recupera não é, parafraseando Liebmann, o Kant da "letra" da arquitectónica da razão pura, mas o Kant do "espírito" do projecto crítico. Assim se compreende que para Apel a fundamentação última da comunicacionalidade tenha de assumir necessariamente as regras de jogo do aparato transcendental das formas a priori -requeridas, segundo Kant, como condição de possibilidade de toda a experiência-, se efectivamente pretende atingir o nó justificacional da auto-gradação reflexiva da linguagem.226

Se, com o intuito crítico de esclarecer filosoficamente as condições de possibilidade da experiência, Kant havia canonizado de "necessária" a Lógica transcendental, interessa agora, na era da linguagem, para uma perspectiva transformacionista da filosofia, instaurar a legitimação crítica da razão discursiva, não a reduzindo já a uma apercepção sintética da consciência em geral (versão "crítica" da falácia solipsista, filosoficamente induzida por Descartes através da dissolução metodologista do saber na evidência do "cogito"), mas reconduzindo-a às condições de possibilidade da síntese comunicacional 227, linguisticamente decorrentes datranscensão :

- do acordo (analítico), ao nível convencional das "regras" de jogo,

- da intersubjectividade (hermenêutica), ao nível coexistencial da "disponibilidade" sígnica, e

- do consenso (pragmático), ao nível interactivo dos "interesses" cognitivos da comunidade.

Em suma, o sentido filosófico de um "regresso a Kant" -implicitamente insinuado no pensamento de Apel- não autoriza, por conseguinte, uma leitura, nem de "gratuitas incompatibilidades", nem tão pouco de "falsos compromissos", mas sim uma abordagem "crítica" que respeita a "plataforma de diálogo" permitida pela indiscutível "intemporalidade" da filosofia kanteana.

"Retorno" a Kant não significa, portanto, "regressão" a Kant. Enquanto esta atitude "exegética" limita-se a "olhar para trás para recuar", aquela tenta "servir-se do retrovisor para avançar sem sobressaltos".

Assim, é precisamente em virtude do "retorno a Kant" que, da mesma forma que o projecto crítico kanteano se erigiu epistemologicamente como discurso legitimador das prerrogativas da ciência newtoneana (tal como o projecto fundamentador cartesiano o fôra para as pretensões da ciência galilaica), também o projecto transformacional de Apel não deixa de ter implicações epistemológicas ao nível de uma validação justificacional da "logic of science" contemporânea:


a dimensão linguística da pragmática representa para a moderna "logic of science" o análogo semiótico da "síntese transcendental da apercepção" postulada por Kant. A meu ver, do mesmo modo que Kant, como analítico da consciência, se viu constrangido a postular com anterioridade a toda a crítica do conhecimento que é possível alcançar algo semelhante à unidade da consciência do objecto (e da auto-consciência), os modernos lógicos da ciência, que partem partem de uma base semiótica ou analítico-linguística, teriam que postular, por seu turno, a possibilidade de alcançar mediante a interpretação dos signos a lgo semelhante a uma interpretação do mundo intersubjectivamente unitária.228


Com o objectivo crítico de tornar compreensível a validade objectiva da ciência para qualquer consciência em geral, é sabido que Kant substitui a psicologia empirista do conhecimento de Locke e Hume por uma lógica transcendental do conhecimento, cujo método de dedução [metafísica e trancendental] se encontra referida a um ponto unitário supremo que Kant designou de síntese transcendental da apercepção, quer dizer, um eu penso que deve acompanhar todas as minhas representações.

Ora, em que medida é que os escritos kanteanos se podem assumir filosoficamente como antecipação histórica da tese apeleana da transcendentalidade comunicacional, em detrimento do teor egológico da clássica doutrina da consciência?

Poderão as virtualides da filosofia crítica tutelar tal paradigma sem comprometer a identidade da ortonomia kanteana?

A refutação racional (crítica, entenda-se) daquilo que Apel rotulou de "falácia abstractiva do solipsismo" tem em Kant duas vertentes:

1. uma,dialecticamente jogada no contexto doutrinal da Crítica da Razão Pura e dos Prolegómenos a toda a metafísica futura, atingindo portanto o que convencionalmente consideramos ser o núcleo duro da sua filosofia;

2. a outra,criticamente aferível em escritos que, pelo facto de serem menos referenciados, não signigica que sejam refractários ao sistema unitário do seu pensamento.

Na priameira vertente Kant refuta a falácia solipsista em termos "dialécticos", isto é, no domínio daquilo que é posto de facto pela razão em termos transcendentes, mas não tem de jure qualquer validade em termostranscendentais. É, pois, nessa linha o subjectivismo cartesiano surge transcendentalmente inviabilizado em Kant ao nível crítico de três instâncias:

- ao nível do "idealismo problemático de Descartes"229;

- ao nível do "paralogismo psicologista da consciência"230;

- ao nível da "aparência dialéctica de uma inteligência pura"231.

A refutação do psicologismo empírico da consciência é ainda retomada nos Prolegómenos a toda ametafísica futura no âmbito da rescisão filosófica, quer do "idealismo material do sujeito absoluto"232, como das "ideias psicológicas".233

É no entanto ao nível da segunda vertente que Kant empreende uma impugnação especulativa do subjectivismo egológico, do ponto de vista "quase-crítico" da comunicacionalidade.

Existem, com efeito, dois excertos textuais dos escritos de Kant que nos autorizam a colocar a questão da comunicacionalidade no filão histórico do desenvolvimento do próprio idealismo germânico.234

O primeiro excerto, extraido da obra Antropologia de um ponto de vista pragmático, tem a ver com a dissolução do egoismo [lógico, estético e moral] no horizonte pragmático da comunidade:

Du jour où l'homme commence à dire Je, il fait apparaître partout (...) son bien-aimé; l'égoïsme progresse irrésistiblement d'une manière sinon manifeste, du moins enveloppée (...).

L'égoïsme peut comporter trois formes de présomption: celle de l'entendement, celle du goût, celle de l'intérêt pratique, c'est-à-dire qu'il peut être logique, esthétique ou pratique.

L'égoïste logique ne tient pas pour nécessaire de vérifier son jugement d'après l'entendement d'autrui, comme s'il n'avait pas aucun besoin de cette pierre de touche (d'un criterium veritatis externum). (...)

L'égoïste esthétique est celui qui se contente de son propre goût (...). Il se dérobe à tout perfectionnement, s'isolant dans son jugement, s'aplaudissant liu-même et ne cherchant qu'en soi le critère de la beauté artistique.

L'égoïste moral, enfin, est celui qui ramène tiutes les fins à soi, qui ne voit d'utilité qu'en ce qui lui est utile, et qui, par eudémonisme, ne fonde la destination suprême de son vouloir que sur son utilité, sur son bonheur personnel, et non sur la représentation du devoir. (...)

A l'égoïsme, on ne peut opposer que le pluralisme : cette manière de penser consiste à ne pas se considérer ni se comporter comme si on enfermait en soi le tout du monde. (...) Si en effet on posait la question de savoir si, comme être pensant, je suis fondé à accepter en dehors de la mienne l'existence d'un tout des autres êtres formant avec moi une communauté (appelée le monde), ce serait là une question non pas anthropologique, mais purement métaphysique.235


O segundo excerto, extraido da obra Crítica da Faculdade de Julgar, introduz-nos na esfera comunicacional do "sensus communis", ao nível crítico do teor reflexivo dos juízos estéticos [KU, § 40].

Assim em § 40 lemos:

Sous cette expression sensus communis on doit comprendre l'Idée d'un sens commun à tous [die Idee eines gemeinschaftlichen Sinnes], c'est-à-dire d'une faculté de juger, qui dans sa réflexion tient compte en pensant (a priori) du monde de représentation de tout autre homme, afin de rattacher pour ainsi dire son jugement à la raison humaine tout entière et échapper, ce faisant, à l'illusion, résultant de conditions subjectives et particulières pouvant aisément être tenues pour objectives, qui exercerait une influence néfaste sur le jugement.236


A partir destes acenos kanteanos, teremos em suma que abordar a problemática da comunicacionalidade -introduzida contemporaneamente por K.O. Apel- não apenas como mera epifania de uma reflexão filosófica redutoramente "localizada" e "especializada" no fenómeno, quer da mediação linguística da razão, quer da justificação racional da linguagem, mas como escopo da tarefa histórica da própria indagação pelos fundamentos últimos da racionalidade.

1 Cf. APEL Karl-Otto, Linguagem e verdade na situação actual da filosofia, o.c., I, 133-148.

2 Cf. Id., Linguagem e ordem: análise da linguagem versus hermenêutica da linguagem, o.c., I, 161-162.

3 Ibid., o.c., I, 162.

4 Cf. LOHMANN Johannes, L'origine du langage, in Revue de Théologie et de Philosophie, Lausanne IX (1959) 322-337.

5 Cf. LEIBNITZ G. W., Essai de Calcul logique (1689?), in Opuscules et fragments inédits, Louis COUTURAT (ed.), Darmstadt (1988) 250; Sur la charactéristique et la Langue universelle (1690?), in Ibid., 284; Calculus ratiotinator (1695?) in Ibid., 236.

6 Cf. KNEALE William and Martha, The devlopment of Logic, Oxford (1978) 320-332.

7 APEL Karl-Otto, Linguagem e ordem: análise da linguagem versus hermenêutica da linguagem, o.c., I, 163.

8 Cf. WITTGENSTEIN Ludwig, Tractatus Logico-philosophicus, o.c., 3.315.

9 RUSSEL Bertrand, Introdução ao Tractatus Logico-philosophicus, o.c., 1.

10 Cf. CARNAP Rudolf, Le dépassement de la métaphysique..., o.c., 169-175.

11 WITTGENSTEIN Ludwig, Tractatus Logico-philosophicus, o.c., 2.

12 Ibid., 2.01

13 Ibid., 2.11

14 Ibid., 3.

15 Ibid., 3.12

16 Ibid., 3.2

17 Ibid., 1.13

18 Ibid., 3.14

19 Ibid., 4.

20 Ibid., 4.001

21 O nome não pode ser decomposto através de nenhuma definição: é um sinal primitivo (Ibid., 3.26).

22 A proposição pode representar a realidade inteira, mas não pode representar aquilo que elea tem de ter em comum com a realidade, para a poder representar, - a forma lógica. Para podermos representar a forma lógica, teríamos de nos situar com a proposição fora da lógica, isto é, fora do mundo (Ibid., 4.12).

23 Cada linguagem tem, como o sr. Wittgenstein diz, uma estrutura respeito da qual, na linguagem, nada pode ser dito; mas pode haver uma outra linguagem, que se ocupe da estrutura da primeira, e que tenha por sua vez uma nova estrutura - para esta hierarquia da linguagem não existe um limite. O sr. Wittgenstein responderia, claro, que a sua teoria se aplica sem modificações à totalidade destas linguagens. A única resposta seria negar que existe uma tal totalidade. As totalidades acerca das quais o sr. Wittgenstein afirma que é impossível falar logicamente [de facto, o todo (...) é o místico (Tractatus..., 6.45)], são, no entanto pensadas por ele como existentes, e são o conteúdo do seu misticismo. A totalidade que resulta da nossa hierarquia seria não apenas logicamente inexprimível, mas uma ficção (...). Esta hipótese é bastante difícil e consigo ver objecções a ela às quais, de momento, não sei responder [RUSSEL Bertrand, Introdução ao Tractatus, o.c., 23].

24 APEL Karl-Otto, Linguagem e ordem: análise da linguagem versus hermenêutica da linguagem, o.c., I, 164.

25 Cf. L.c.

26 Cf. CARNAP Rudolf, Le dépassement de la métaphysique..., o.c., 175-177.

27 APEL Karl-Otto, Linguagem e ordem: análise da linguagem versus hermenêutica da linguagem, o.c., I, 165.

28 Esclarece Apel: não está aqui em causa, de modo algum, o acesso a uma única ordem do mundo no qual as coisas permanecem independentes da linguagem, mas sim a ordem de um aspecto do mundo que só se constitui originariamente na linguagem - donde a perpectiva dessa constituição permanece em princípio fora da ordem formal garantida pela construção artificial de uma linguagem [cf. L.c.].

29 WITTGENSTEIN Ludwig, Tractatus Logico-philosophicus, o.c., 6.53

30 Cf. APEL Karl-Otto, Wittgenstein e Heidegger: a pergunta pelo sentido do ser e a suspeita de carência de sentido dirigida contra toda a metafísica, o.c., I, 221.

31 Ibid., 4.003

32 APEL Karl-Otto, Wittgenstein e heidegger: a pergunta pelo sentido do ser e a suspeita de carência de sentido dirigida contra toda a metafísica, o.c., I, 222.

33 WITTGENSTEIN Ludwig, Tractatus Logico-philosophicus, o.c., 4.003

34 CARNAP Rudolf, The Logical Syntax of Language, transl. by Amethe SMEATON, London (1971) § 72, 278-279.

35 La conception scientifique du monde. Le cercle de Vienne, in Manifeste du Cercle de Vienne et autres écrits, o.c., 117-118.

36 Cf. STEGMÜLLER W., Rudolf Carnap e o Círculo de Viena, in As Correntes Principais da Filosofia Contemporânea, vol. I, cap. 9, 346 ss.; trad. por António FIDALGO [versão dactilografada e fotocopiada], Lisboa (1990-91) 10-13.

37 Cf. APEL Karl-Otto, Linguagem e ordem: análise da linguagem versus hermenêutica da linguagem, o.c., I, 168-177.

38 WITTGENSTEIN Ludwig, Tractatus Logico-philosophicus, o.c., 4.121

39 APEL Karl-Otto, Linguagem e ordem: análise da linguagem versus hermenêutica da linguagem, o.c., I, 221.

40 Ibid., I, 222.

41 Carnap tentou superar de modo irrefutável o teor ontológico desta asserção wittgensteineana substituindo o enunciado pseudo-objectivo "O mundo é a totaliade dos factos" (Tractatus..., 1.1) pelo enunciado sintático "A ciência é um sistema de proposições" (The Logical Sintax..., 303). Esta permuta é comentada por Apel do seguinte modo: Esclareçamos que o intento de Carnap em escapar ao modo de falar ontológico coincide e está de acordo com a concepção carnapeana do chamado modo de falar formal, que como tal apenas fala da forma externa, dada através dos sentidos, das proposições e dos nomes. Contudo se levamos a sério esta concepção, a tradução carnapeana perde imediatamente a sua justificação radicada na íntima correspondência entre as proposições sobre o mundo e as proposições sobre a linguagem. (...) Com efeito, só em virtude da correspondência semântico-categorial com a estrutura ontológico-categorial de um facto real se pode conceber a proposição linguística (...) como reprodução figurativa da realidade [APEL Karl-Otto, Wittgenstein e Heidegger: a pergunta pelo sentido do ser e a suspeita de carência de sentido dirigida contra toda a metafísica, o.c., I, 222-223].

42 Cf. LOCKE John, An Essay Concerning Human Understanding, Vol. II, coll. and annot. by Alexander FRASER, Oxford (1844) book III, chap. 1, 3-7.

43 JACQUES Francis, Philosophie analytique, in o.c., 291.

44 Apel entende que as condições positivas de possibilidade do sentido e da compreensão das proposições linguísticas reduzem-se para Wittgenstein -de acordo com a síntese da logística com a tradição empírica- a dois pressupostos de carácter absoluto:

a) a forma lógica (comum à linguagem e ao mundo) regula a combinação sintática dos signos linguísticos no mesmo tempo em que prescreve a forma categorial dos factos mundanos que se descrevem;

b) os objectos (entendidos como significados dos nomes, isto é, dos elementos combinados na proposição) constituem, por seu turno, a substância formal do mundo.

A questão, no entender de Apel é que subjacente à epígrafe de "forma lógica" de linguagem -e, também por isso, do mundo- reaparece em Wittgenstein o problema kanteano de uma "lógica transcendental" do mundo da experiência. Só que agora já não se trata primariamente das condições lógico-psicológicas de possibilidade de representação de objectos ou acontecimentos no espacio ou no tempo, mas de condições lógico-linguísticas da representação unívoca de factos possíveis. Mediante estas condições fica então decidida para Wittgenstein a forma a priori dos objectos ou acontecimentos no espaço e no tempo sem que seja necessário admitir conhecimentos objectivos verdadeiros a priori (juízos sintéticos a priori). O simples facto de os "objectos" serem "pensáveis" num "estado de coisas", isto é, por meio de preposições, equivale a converter o "espaço lógico" da constituição linguística do sentido no a priori da experiência possível espácio-temporal (cf. Tractatus, 2.011-2.0141). Todavia, com isto apenas fica estabelecida a possibilidade, mas não a necessidade de determinadas categorias como condições de possibilidade das experiências espácio-temporais descritíveis (...); tal conexão fica relegada à psicologis. O passo da lógica leibnitziana dos mundos possíveis à lógica transcendental da experiência possível ocorre em Wittgenstein, não mediante o recurso a uma "consciência em geral", mas mediante o recurso à "linguagem em geral"(3.031) [APEL Karl-Otto, Wittgenstein e o problema da compreensão hermenêutica, o.c., I, 325 (n.8)].

45 Para situar as referências de Apel às Investigações Lógicas servir-nos-emos da já citada edição portuguesa do Tractatus de Wittgenstein.

46 Cf. APEL Karl-Otto, Wittgenstein e o problema da compreensão hermenêutica, o.c., I, 339.

47 Cf. WITTGENSTEIN Ludwig, Tractatus Logico-philosophicus, o.c., 4.112 e 6.53.

48 APEL Karl-Otto, Wittgenstein e o problema da compreensão hermenêutica, o.c., I, 341.

49 L.c.

50 WITTGENSTEIN Ludwig, Investigações Filosóficas, o.c., § 67.

51 Cf. APEL Karl-Otto, Wittgenstein e o problema da compreensão hermenêutica, o.c., I, 342.

52 Como paradigmas desse socorro metafísico conceptual do jogo linguístico Apel extrai das Investigações Filosóficas, por exemplo, as duas seguintes teses gerais: A essência manifesta-se na gramática (§ 371); e Que espécie de objecto uma coisa é, di-lo a gramática (§ 373) [cf. APEL Karl-Otto, Wittgenstein e o problema da compreensão hermenêutica, o.c., I, 342 (n.24)].

53 Ibid., I, 342 (n.25).

54 WITTGENSTEIN Ludwig, Investigações Filosóficas, o.c., § 65.

55 APEL Karl-Otto, Wittgenstein e o problema da compreensão hermenêutica, o.c., I, 343-344.

56 Ibid., o.c., I, 353. Reforçando a sua posição, Apel sublinha: Poderíamos falar de jogos linguísticos hermenêuticos -na acepção de Wittgenstein- no caso, por exemplo, da narração de uma história vivida ou transmitida, ou no caso da tradução no âmbito de uma conversação, ou no da interpretação de um texto antigo (exegese), (...) ou no do comportamento institucionalmente regulado do público que assimila a compreensão em forma falada, executada ou ostentada e que só desse modo completa a aplicação da compreensão hermenêutica [L.c.].

57 Ibid., o.c., I, 325 (n.8). Um claro paralelismo -explica Apel- com a evolução de Wittgenstein, exibe-o a introdução e desenvolvimento, levados a cabo igualmente nos anos 30, da "dimensão pragmática" na semiótica de Charles Morris (cf. Foundations of Theory of Signs, Chicago, 1938) [Ibid., o.c., I, 345 (n.27)].

58 La conception scientifique du monde..., in Manifeste du Cercle de Vienne et autres écrits, o.c., 118.

59 Acerca da princípio da intersubjectividade na comunicação científica, refere Steegmüller: o neo-positivismo lógico destingue-se das outras correntes científicas anti-metafísicas através de uma maior radicalidade, pois que não contesta somente a existência de "intelecções de ordem superior" necessárias à fundamentação de enunciados metafísicos, mas que também nega a validade (o sentido) das expressões metafísicas. Sob esta segunda tesa mais dura esconde-se um velho problema filosófico já formulado pelos sofistas e cépticos gregos -por exemplo, Górgias- a saber, o chamado problema da comunicação : não existe ciência quando alguém reflecte em privado sobre algo, ela só surge quando essas reflexões forem comunicáveis, a fim de que possam dar azo a uma discussão com outros. Portanto, o sentido intersubjectivo de ciência não significa apenas que existem métodos obrigatórios e gerais para a verificação de enunciados científicos, mas também e sobretudo que as expressões utilizadas na ciência têm de ser intersubjectivamente compreensíveis. A ciência só existe onde a discussão fôr possível; e para chegar a uma discussão entre mim e outro, tenho de ser capaz de esclarecer o significado das expressões por mim utilizadas, tal como o outro terá de me explicar o significado das suas palavras [STEEGMÜLLER W., Rudolf Carnap e o Círculo de Viena, in o.c., 14].

60 APEL Karl-Otto, Verdade versus método? Valorização da hermenêutica transcendental de Heidegger e Gadamer, o.c., I, 21.

61 Cf. HUSSERL Edmund, Meditationes cartesianas, trad. de José GAOS, Mexico (1942) §§ 30, 31 e 36.

62 APEL Karl-Otto, Verdade versus método? Valorização da hermenêutica transcendental de Heidegger e Gadamer, o.c., I, 23.

63 L.c.

64 HEIDEGGER Martin, L' être et le temps, trad. et annot. par Rudolf BOEHM et Alphonse de WAELHENS, Paris (1964) § 27 [129] - [130].

65 Ibid., I, 22.

66 Cf. Ibid., I, 23; embora Heidegger não utilize ipsis-verbis a noção de "pre-estruturalidade da compreensão", ela encontra-se fenomenologicamente implícita na ideia de estrutura antecipativa da compreensão : La révélation du "là" dans la compréhension est elle-même un mode du povoir-être de l'être-là. Lorsque, d'un même coup, celui-ci pro-jette son être vers ce en vue de quoi il est et vers la significabilité (du monde), il constitue, en général, la révélation de l'être. Tout pro-jet de l'être-là vers ses possibilités anticipe déjà une compréhension de l'être [HEIDEGGER Martin, L' être et le temps, o.c., § 31 [147]].

67 HEIDEGGER Martin, L' être et le temps, o.c., § 12 [53].

68 Ibid., § 12 [57].

69 Ibid., § 26 [118].

70 Ibid., § 26 [119].

71 Sobre o problema do nexo entre conhecimento e interesse, cf. APEL Karl-Otto, Die Idee der Sprache in der Tradition des Humanismus, von Dante bis Vico, Bonn (1963), Introd. [cit. in APEL Karl-Otto, Verdade versus método? Valorização da hermenêutica transcendentalde Heidegger e Gadamer, o.c., I, 23 (n.22)], e ainda o importante estudo de HABERMAS Jürgen, Connaissance et intérêt, in La technique et la science comme "idéologie", trad. par Jean-René LADMIRAL, Paris (1973) 133-162.

72 LIPPS Hans, Untersuchungen zu einer hermeneutischen Logik, Werke II, Frankfurt (1976). [Nota do autor]

73 GADAMER Hans-Georg, Verdad y Método, vol. II, trad. por Manuel OLASAGASTI, Salamanca (1992) 60.

74 Id., L' Art de Compprendre, trad. par Marianna SIMON, Paris (1982) 31.

75 APEL Karl-Otto, Verdade versus método? Valorização da hermenêutica transcendental de Heidegger e Gadamer, o.c., I, 25.

76 Cf. GADAMER Hans-Georg, Verdad y Método, vol. II, o.c., 14.

77 Ibid., 114-115.

78 Ibid., 68.

79 Ibid., 110-111.

80 Na verdade, é precisamente o "esquecimento" e o "desdém" desta dimensão hermenêutica do acordo quase-transcendental da comunidade de interpretação que suscita da parte de Apel uma tomada de posição teórica perante as críticas que lhe são dirigidas por Hans Albert: A meu ver, o facto de não ter compreendido isto constitui a cegueira de Hans Albert. Albert tem a sensação de que é "trivial" o meu recuo a partir da relação sujeito-objecto do conhecimento científico para a relação sujeito-sujeito da "comunidade de interpretação" dos cientistas -relação que é meta-científica e "complementar"- dado que ele só pode imaginar o progresso metódico de uma hermenêutica científica como progresso na "explicação" da "compreensão". [cf. ALBERT Hans, Plädoyer für kritischen Rationalismus, Munich (1971) 106 ss. - Nota intercalada de Apel] O enfoque hermenêutico-transcendental não nega de modo algum que seja possível ou inclusive desejável uma "explicação" científica da "compreensão"; ou, mais precisamente ainda, das suas condições sine qua non empíricas, por exemplo, psico-linguísticas ou fisiológicas. A tese da "complementaridade" trivializada por Albert significa antes de tudo o seguinte: o progresso cognoscitivo da dimensão sujeito-objecto na descrição e na explicação -progresso em si ilimitado- nunca se poderá impor ao aperfeiçoamento metódico do acordo na dimensão sujeito-sujeito, posto que precisamente a pressupõe. Daqui se infere a tese -de modo algum trivial, mas decisiva em hora de prognósticos- segundo a qual a questão hermenêutica do acordo intersubjectivo não deve, na era do progresso científico-tecnológico, ser reduzida a um problema de explicação, como Albert em última análise parece querer sugerir; pelo contrário, adoptará dimensões completamente novas, suscitando possivelmente novas "ciências do acordo intersubjectivo" [Verständingungwissenschaften] no âmbito da teoria da ciência, da história da ciência, da sociologia crítico-hermenêutica da ciência, da didáctica universitária e da política de investigação [APEL Karl-Otto, Verdade versus método? Valorização da hermenêutica transcendental de Heidegger e Gadamer, o.c., I, 25-26 (n.27)].

81 Cf. HEIDEGGER Martin, Lettre sur l'humanisme, trad. par Roger MUNIER, Paris (1964).

82 Id., L'être et le temps, o.c., §§ 4 [13] e 35 [169].

83 Diagnóstico reiteradamente defendido por W.STEEGMÜLLER no seu estudo Haupströmungen der Gegenwartsphilosophie, Stuttgart (1965) XIII [cit. por APEL Karl-Otto, A radicalização filosófica da "hermenêutica" em Heidegger e a pergunta pelo "critério de sentido" da linguagem, o.c., I, 265 (n.1)].

84 Posição amplamente assumida por H.-G. Gadamer e partilhada por outros pensadores reunidos no 8º Congresso Alemão de Filosofia: cf. GADAMER H.-G. (ed.), Das Problem der Sprache; 8. Deutschen Kongress für Philosophie, Heidelberg (1966) - Munich (1967) [cit. por APEL Karl-Otto, A radicalização filosófica da "hermenêutica" em Heidegger e a pergunta pelo "critério de sentido" da linguagem, o.c., I, 265 (n.2)].

85 Cf. APEL Karl-Otto, A radicalização filosófica da "hermenêutica" em Heidegger e a pergunta pelo "critério de sentido" da linguagem, o.c., I, 266.

86 Ibid., o.c., I, 267.

87 Id., Wittgenstein e Heidegger: a pergunta pelo sentido do ser e a suspeita de carência de sentido dirigida contra toda a metafísica, o.c., I, 229.

88 L.c.

89 L.c.

90 Ibid., o.c., I, 230.

91 Ibid., o.c., I, 231.

92 C'est porquoi l'ontologie fondamentale, dont toutes les autres ne peuvent que dériver, doit être cherchée dans l'analytique existenciale de l'être-là [HEIDEGGER Martin, L'être et le temps, o.c., § 4 [13]].

93 APEL Karl-Otto, Wittgenstein e Heidegger: a pergunta pelo sentido do ser e a suspeita da carência de sentido dirigida contra toda a metafísica, o.c., I, 231.

94 Do ponto de vista de uma filosofia transcendental tradicional, não deixa de ser "insólito" para Apel o facto de também o Tractatus parecer identificar as condições formais de possibilidade de toda a experiência com a forma lógica em sentido analítico-tautológico. Na verdade, a "lógica formal" deve, ao que parece, desempenhar o que em Kant é tarefa de uma "lógica transcendental". Todavia, a ser assim, o problema da constituição da objectividade para uma consciência, ou mesmo o problema de uma unidade da consciência do objecto (e ao mesmo tempo da auto-consciência) não permanece explicitamente posicionado em Wittgenstein. (...) Com isto descobrimos a verdadeira razão pela qual a filosofia transcendental do primeiro Wittgenstein não pode formular nenum discurso com sentido da linguagem sobre si próprio e da sua relação com o mundo, o que significa o seguinte: não pode sustentar nenhuma linguagem com sentido acerca da filosofia transcendental [APEL Karl-Otto, Wittgenstein e Heidegger: a pergunta pelo sentido do ser e a suspeita da carência de sentido dirigida contra toda a metafísica, o.c., I, 232-233].

95 Cf. APEL Karl-Otto,Wittgenstein e Heidegger: a pergunta pelo sentido do ser e a suspeita da carência de sentido dirigida contra toda a metafísica, o.c., I, 237-238.

96 Cf. a conferência de Heidegger Das Ding, in Vorträge und Aufsätze, Pfullingen (1954) 163-181 [nota de Apel].

97 APEL Karl-Otto, Wittgenstein e Heidegger: a pergunta pelo sentido do ser e a suspeita da carência de sentido dirigida contra toda a metafísica, o.c., I, 241.

98 Cf. APEL Karl-Otto, Verdade versus método? Valorização da hermenêutica transcendental de Gadamer e Heidegger, o.c., I, 24.

99 A propósito das implicações filosóficas desse "acordo metacientífico" cf. os excelente estudo de K.O.APEL, Communication and the foudations of the Humanities, in Acta Sociologica, (1971) nº1; cf. tb. a versão ampliada deste artigo in Man and World, 5 (1972) nº1.

100 APEL Karl-Otto, Verdade versus método? Valorização da hermenêutica transcendental de Gadamer e Heidegger, o.c., I, 24.

101 GADAMER Hans-Georg, Verdad y Metodo, vol. I, o.c., XV [a tradução do castelhano é da nossa responsabilidade].

102 APEL Karl-Otto, Verdade versus método? Valorização da hermenêutica transcendental de Gadamer e Heidegger, o.c., I, 32.

103 Id., Wittgenstein e Heidegger: a pergunta pelo sentido do ser e a suspeita de sentido dirigida contra toda a metafísica, o.c., I, 241-242.

104 PLATÃO, Théétète, trad. par Auguste DIÈS, Les Belles Lettres, Paris (1950) 201e-202a.

105 APEL Karl-Otto, Wittgenstein e Heidegger: a pergunta pelo sentido do ser e a suspeita de sentido dirigida contra toda a metafísica, o.c., I, 245.

106 HEIDEGGER Martin, Dépassement de la Métaphysique, in Essais et Conférences, trad. par André PRÉAU, Paris (1958) I, 80-81.

107 Ibid., o.c., III, 82-83.

108 Ibid., o.c., IX, 90.

109 Cf. Ibid., o.c., I, 248.

110 L.c.

111 O segundo Wittgenstein tenta consegui-lo procurando não expor em absoluto nenhuma tese objectiva à maneira da ciência; Heidegger procurando reflectir, primeiro na nova dimensão de um sistema conceptual inusitado, e de um modo geral fortemente provocador, e posteriormente, tentando tomar de empréstimo à etimologia ou à poesia imagens e metáforas tão chocantes que, precisamente por isso, acabam por superar e interditar a aparência metafórica da ontologia da objectividade já antecipada na nossa linguagem [APEL Karl-Otto, Wittgenstein e Heidegger: a pergunta pelo sentido do ser e a suspeita de sentido dirigida contra toda a metafísica, o.c., I, 248].

112 Cf. APEL Karl-Otto, Wittgenstein e Heidegger: a pergunta pelo sentido do ser e a suspeita de sentido dirigida contra toda a metafísica, o.c., I, 248.

113 HEIDEGGER Martin, Was ist Metaphysik?, Introd. à 5ª ed. [cit. por APEL Karl-Otto, in Wittgenstein e Heidegger: a pergunta pelo sentido do ser e a suspeita de sentido dirigida contra toda a metafísica, o.c., I, 248]; a tradução do castelhano é da nossa responsabilidade.

114 Id., Identität un Differenz, 72 [cit. por APEL Karl-Otto, in Wittgenstein e Heidegger: a pergunta pelo sentido do ser e a suspeita de sentido dirigida contra toda a metafísica, o.c., I, 249]; a tradução do castelhano é da nossa responsabilidade.

115 HEIDEGGER Martin, Dépassement de la Métaphysique, o.c., IX, 90-91.

116 APEL Karl-Otto, Verdade versus método? Valorização da hermenêutica transcendental de Gadamer e Heidegger, o.c., I, 26.

117 Ibid., o.c., I, 27.

118 Ibid., o.c., I, 30; Se relacionarmos -esclarece Apel noutro passo- a constituição do sentido,tal como Heidegger a equaciona,com o interesse cognoscitivo quase-transcendental (ou seja, com o "cuidado" do ser-aí enquanto condição de "significatividade"), damos de caras com os equacionamentos levados a cabo dentro da tradição da "antropologia filosófica" e da "sociologia do saber" que, desde M. Scheler, tentou unificar as sugestões do pragmatismo americano com as da crítica marxista da ideologia, numa teoria sobre as (...) "formas do saber" e os "interesses do conhecimento" [Ibid., o.c., I, 28].

119 Esta teorização -refere Apel, apontando já claramente para a sua teoria transcendental da comunicacionalidade- não deveria desterrar a problemática da validade do conhecimento para um sujeito cognoscente, mas tenderia a tematizá-la novamente como problemática da formação do concenso na comunidade transcendental de comunicação, tal como o exige uma transformação semiótica da problemática kanteana do sujeito transcendental [APEL Karl-Otto, Verdade versus método? Valorização da hermenêutica transcendental de Gadamer e Heidegger, o.c., I, 28].

120 L.c.

121 Cf. APEL Karl-Otto, Wittgenstein e Heidegger: a pergunta pelo sentido do ser e a suspeita de sentido dirigida contra toda a metafísica, o.c., I, 254.

122 Como seria -questiona-se Wittgenstein- se efectivamente as pessoas não exteriorizassem as suas dores? Então não seria possível ensinar a uma criança o uso da expressão "dor-de-dentes" [WITTGENSTEIN Ludwig, Investigações Filosóficas, o.c., § 257].

123 L'être-là -esclarece Heidegger- n'arrive jamais à s'affranchir de cette explicitation quotidienne, dans laquelle il lui faut d'abord grandir. C'est en elle, à partir d'elle et contre elle que s'acocomplissent toute compréhension authentique, toute explicitation, toute communication, tout redécouvrement, toute appropriation nouvelle [HEIDEGGER Martin, L´être et le temps, o.c., § 35 [169]].

124 No entender de Apel podemos cotejar o pragmatismo implícito na fenomenologia heideggeriana do quotidiano do "ser-no-mundo" e do "ser-em-cuidado" (...) com o critério wittgensteineano do sentido baseado nos jogos linguísticos que funcionam ao nível da praxis vital [APEL Karl-Otto, Wittgenstein e Heidegger: a pergunta pelo sentido do ser e a suspeita de sentido dirigida contra toda a metafísica, o.c., I, 256-257].

125 WITTGENSTEIN Ludwig, Investigações Filosóficas, o.c., § 199.

126 HEIDEGGER Martin, L´être et le temps, o.c., § 17 [82].

127 A ratio esserendi tem duas partes: unam inveniendi alteram judicandi... (CÍCERO, Topica, II, 6) Neste trecho encontra-se já para Apel insinuada e implícita o aceno clássico às propriedades "performativas" de que a retórica se apropriou, e a consequente distinção em relação aos atributos "judicativos" da dialéctica [cf. APEL Karl-Otto, Linguagem e verdade na situação actual da filosofia, o.c., I, 149].

128 Segundo Vico é na poiesis que radica a constituição originariamente criadora do mundo. è com efeito por intermédio das palavras que o cultor da ciência, misticamente unido à "Palavra" da Divina providência, pode reconstruir compreensivamente a realidade (cf. VICO Giambattista, La scienza nouva e attri scriti, a cura di N. ABAGNANO, Toriono (1976). Para Apel, a teoria da verdade entendida como adequação é substituida em Vico, no âmbito da problemática cognitiva da linguagem, por um conceito "poiético" de verdade [ APEL Karl-Otto, Linguagem e verdade na situação actual da filosofia, o.c., I, 156].

129 A propósito da relação estruturante entre humanismo e linguagem cf. o estudo de APEL Karl-Otto, Die Idee der Sprache in der Tradition des Humanismus von Dante bis Vico, Bonn (1963); cit. por APEL Karl-Otto, Linguagem e verdade na situação actual da filosofia, o.c., I, 149 (n.19).

130 AMMONIO, In Aristotelis De Interpretatione Commentarius, ed. de A. BUSSE, Berlin (1887) p. 65, c. 31-66, c. 10 [cit. por APEL Karl-Otto, Linguagem e verdade na situação actual da filosofia, o.c., I, 148 (n.18)].

131 APEL Karl-Otto, Linguagem e verdade na situação actual da filosofia, o.c., I, 155.

132 Ibid., o.c., I, 153-154.

133 Para uma visão mais precisa e sobre o primado da historicidade nos limites da hermenêutica cf. a interessante compilação de estudos levada a cabo por GADAMER Hans-Georg (ed.), Vérité et Historicité, Entretiens de Heidelberg (Sept. 1969) - Institut International de Philosophie, La Haye (1972).

134 Essa intuição da linguisticidade que ocorre em Heidegger não significa na opinião de Apel que tenha de existir uma equivalência formal entre a hermenêutica fenomenológica e a analítica semiótica: a hermenêutica do ser em Heidegger -que "pensa com a linguagem"- surge necessariamente distinta do "método semiótico" pelo simples facto de não tratar a linguagem como um sistema objectivamente disponível, isto é, como medium quod do conhecimento, mas por mobilizar originariamente a função a priorística do medium quo da linguagem corrente para a pré-compreensão ontológica do mundo (quer dizer, para o pensar historicamente essencial), função essa que se oculta na aporia da metalinguagem última da construção logística [APEL Karl-Otto, Linguagem e verdade na situação actual da filosofia, o.c., I, 158].

135 APEL Karl-Otto, Linguagem e verdade na situação actual da filosofia, o.c., I, 158.

136 Cf. Ibid., o.c., I, 158-160.

137 Cf. HEIDEGGER Martin, A origem da obra de arte, Lisboa (1989).

138 Cf. Ibid., 25.

139 APEL Karl-Otto, Cienticismo ou hermenêutica transcendental? A pergunta pelo sujeito da interpretação dos signos ma semiótica do pragmatismo, o.c., II, 171.

140 L.c.

141 L.c.. A obra de T. Kuhn A Estrutura das Revoluções científicas [cf. KUHN Thomas, The Structure of Scientific Revolutions, Chicago (1962)] inspirado nas doutrinas filosóficas do último Wittgenstein e do pragmatismo americano oferece um exemplo cabal da tónica pragmática a que Apel se refere no rastreio da transformação filosófica da análise lógica da linguagem.

142 Outras mais razões foram detectadas e dissecadas exaustivamente por Apel a propósito de uma dissolução pragmática da metafísica implícita do positivismo lógico : cf. APEL Karl-Otto, A radicalização filosófica da hermenêutica em Heidegger e a pergunta pelo "critério de sentido" da linguagem, o.c., I, 295-311.

143 APEL Karl-Otto, Cienticismo ou hermenêutica transcendental? A pergunta pelo sujeito da interpretação dos signos ma semiótica do pragmatismo, o.c., II, 172.

144 A propósito da apropriação neo-positivista da pragmática, cf. CARNAP Rudolf, On Some Concepts of Pragmatics, in Philosophical Studies, VI (1955) 85-91.

145 APEL Karl-Otto, Cienticismo ou hermenêutica transcendental? A pergunta pelo sujeito da interpretação dos signos ma semiótica do pragmatismo, o.c., II, 173.

146 Ibid., o.c., II, 173-174.

147 Cf. NAESS A., Science as Behavior: Prospects and Limitations of a Behavioral Metascience, in Benjamin WOLMAN (ed.), Scientific Psychology, Basic Books Publishing (1965).

148Posto que o sujeito da linguagem científica -esclarece Apel- apenas pode ser compreendido por seu lado como objecto, e sempre assim sucessivamente ad infinitum, o cienticismo conduz a uma eliminação reducionista do sujeito da ciência [APEL Karl-Otto, Cienticismo ou hermenêutica transcendental? A pergunta pelo sujeito da interpretação dos signos ma semiótica do pragmatismo, o.c., II, 174].

149 MORRIS Charles, The Logic Syntax of Language, o.c., 34.

150 APEL Karl-Otto, Cienticismo ou hermenêutica transcendental? A pergunta pelo sujeito da interpretação dos signos na semiótica do pragmatismo, o.c., II, 174.

151 A lógica é "transcendental"... [WITTGENSTEIN Ludwig, Tractatus Logico-philosophicus, o.c., 6.13

152 Cf. Ibid., 5.64

153 Ibid., 4.024

154 APEL Karl-Otto, De Kant a Peirce: a transformação semiótica da filosofia transcendental, o.c., II, 155.

155 Refira-se que, segundo Apel, esta direcção transformativa, tem como consequência o falibilismo radical e o aperfeiçoamento ilimitado no âmbito epistemológico da construção pragmática das teorias científicas [APEL Karl-Otto, De Kant a Peirce: a transformação semiótica da filosofia transcendental, o.c., II, 157 (n.12)].

156 Cf. APEL Karl-Otto, De Kant a Peirce: a transformação semiótica da filosofia transcendental, o.c., II, 157 (n.12).

157 Com efeito, é na medida em que a possibilidade da experiência experimental na óptica de Peirce não se fundamenta exclusivamente no reconhecimento dos "juizos sintéticos a priori ", com no caso vertente de Kant, mas sim, pelo contrário, na sujeição a uma construção semiótica do consenso in the long run, que fica aberto o caminho a uma refundamentação metafísica da razão no escopo da transcendentalidade comunicacional.

158 J. Habermas, por exemplo, destacou energicamente esta segunda vertente da transformação peirceana de Kant, insistindo na ideia de que as condições de possibilidade da experiência experimental, remetendo a "referência básica" do sentido da realidade para o contexto da praxis instrumental, introduzem heuristicamente o polo quase-transcendental -constitutivo dos objectos- do "interesse técnico do conhecimento" [cf. HABERMAS Jürgen, Connaissance et Intérêt, in o.c., chap.s 5 e 6].

159 De facto a "exegese" apeleana do pensamento semiótico-pragmático de Peirce tira filosoficamente o máximo partido dessa zona doutrinalmente indeterminada que a oscilação pendular dos seus escritos permite: temos de admitir por via disso que Peirce nunca levou a cabo um exposição glogal e sistemática da sua filosofia, facto que permite aos intérpretes dos seus fragmentos -nem sempre consistentes- uma ampla margem de reconstrução [APEL Karl-Otto, De Kant a Peirce: a transformação semiótica da filosofia transcendental, o.c., II, 158].

160 PEIRCE Charles, Collected Papers, o.c., 5. 105

161 Ibid., 8. 15

162 Ibid., 2. 691; cf. também 5. 223 (n.)

163 Se assim não fosse,como seria possível -esclarece Apel- compaginar essa recusa explícita de Peirce do "occult Transcendentalism" com os enfoques típicos de uma filosofia transcendental? [APEL Karl-Otto, De Kant a Peirce: a transformação semiótica da filosofia transcendental, o.c., II, 160].

164 APEL Karl-Otto, De Kant a Peirce: a transformação semiótica da filosofia transcendental, o.c., II, 160.

165 Fragmento citado in MURPHEY M., The Devlopment of Peirce's Philosophy, Cambridge-Mass. (1961) 65. Peirce caracteriza a "unidade de consistência" por ele visada do seguinte modo: We find that every judgement is subject to a condition of consistency; its elements must be capable of being brought to a unity. This consistent unity since it belongs to all our judgements may be said to belong to us. Or rather since it belongs to the judgements of all mankind, we may be said to belong to it [cit. in MURPHEY M., o.c., 89]; cf. também a propósito PEIRCE Charles, Collected Pepers, 5. 289.

166 APEL Karl-Otto, De Kant a Peirce: a transformação semiótica da filosofia transcendental, o.c., II, 160.

167 Cf. Ibid., o.c., II, 160-161.

168 PEIRCE Charles, Collected Papers, o.c., 5. 313-316

169 Ibid., 5. 316

170 Ibid., 5. 311

171 Cf. APEL Karl-Otto, De Kant a Peirce: a transformação semiótica da filosofia transcendental, o.c., II, 165.

172 PEIRCE Charles, Collected Papers, o.c., 5. 354; cf. também a propósito, 2.654 ss.

173 Cf. APEL Karl-Otto, Cienticismo ou hermenêutica transcendental? A pergunta pelo sujeito da interpretação dos signos na semiótica do pragmatismo, o.c., II, 179-181.

174 Esta postura -esclareçe Apel- (...) permite substituir o conceito kanteano de perguntas sem respostas (...) pelo conceito de perguntas sem sentido, sem que com isso se tenha de considerar toda a metafísica como carente de sentido, como a haveriam de a considerar Wittgenstein e os neopositivistas [APEL Karl-Otto, Cienticismo ou hermenêutica transcendental? A pergunta pelo sujeito da interpretação dos signos na semiótica do pragmatismo, o.c., II, 180].

175 APEL Karl-Otto, Cienticismo ou hermenêutica transcendental? A pergunta pelo sujeito da interpretação dos signos na semiótica do pragmatismo, o.c., II, 181.

176 Cf. PEIRCE Charles, Collected Papers, o.c., 5. 311; em 8. 13 Peirce esclarece ainda: o consensus catholicus, que institui a verdade, não pode estar limitado de modo algum à vida terrena do homem ou ao género humano, mas tem de se estender necessariamente à comunidade de todos os seres inteligentes à qual pertencemos, e que provavelmente inclui alguns seres cujo sentir difere amplamente do nosso [cit. por APEL Karl-Otto, Cienticismo ou hermenêutica transcendental? A pergunta pelo sujeito da interpretação dos signos na semiótica do pragmatismo, o.c., II, 181 (n.30); a tradução do castelhano é da nossa responsbilidade].

177 APEL Karl-Otto, Cienticismo ou hermenêutica transcendental? A pergunta pelo sujeito da interpretação dos signos na semiótica do pragmatismo, o.c., II, 182.

178 APEL Karl-Otto, Avant-Propos à L'Éthique à l'Âge de la Science. L' apriori de la communauté communicationnelle et les fondements de l'éthique, trad. par Raphaël LELLOUCHE et Inga MITTMANN, Lille (1987) 9-10.

179 Acerca da primazia da "convencionalidade aplicacional" na analítica de Wittgenstein, cf. STEGMÜLLER W., Ludwig Wittgenstein: Philosophie II, in Hauptströmungen der Gegenwartsphilosophie, Stuttgart (1965) 685 ss. [cit. por APEL Karl-Otto, A Comunidade de Comunicação como pressuposto transcendental das ciências sociais, o.c., II, 233 (n.51)].

180 A pergunta é de decisiva importância para se compreender, quer o trânsito [turn] analítico do nominalismo para o convencionalismo, como a "transcensão analítica" do convencionalismo para a doutrina dos jogos de linguagem e do seu implícito pré-acordo, porquanto, segundo Apel, se interpretássemos estas reflexões à luz do solipsismo metódico, teríamos de ser forçados a reconhecer que o convencionalismo de Wittgenstein constitui a extrema expressão de um decisionismo arbitrário e irracional de inspiração nominalista [APEL Karl-Otto, A Comunidade de Comunicação como pressuposto transcendental das ciências sociais, o.c., II, 233].

181 APEL Karl-Otto, A Comunidade de Comunicação como pressuposto transcendental das ciências sociais, o.c., II, 234.

182 Cf. WITTGENSTEIN Ludwig, Investigações Filosóficas, o.c., §§ 197 ss.

183 Cf. APEL Karl-Otto, A Comunidade de Comunicação como pressuposto transcendental das ciências sociais, o.c., II, 234.

184 Id., A Comunidade de Comunicação como pressuposto transcendental das ciências sociais, o.c., II, 234-235.

185 Ibid., o.c., II, 244.

186 A propósito da "normatividade" que deve configurar os jogos linguísticos, refere Apel: se uma definição filosoficamente relevante (isto é, não arbitrária) tem que poder sujeitar-se sempre ao uso vigente das palavras (quer da linguagem ordinária, quer da linguagem-tipo da filosofia) de um modo inteligível, não obstante, ele necessita também de incorporar as mais recentes aportações da experiência e da discussão sobre o assunto e antecipar, na esfera de um determinado jogo linguístico, a estrutura do jogo ideal de linguagem, que poderia e deveria julgar todos os seres racionais [APEL Kar-Otto, O conceito hermenêutico-transcendental de linguagem, o.c., II, 333].

187 Cf. APEL Kar-Otto, O conceito hermenêutico-transcendental de linguagem, o.c., II, 33.

188 J. Habermas terá sido contemporaneamente o autor que se debruçou mais atentamente sobre a índole "competencional" da comunicação: cf. a propósito HABERMAS Jürgen, Vorbereitende Bemerkungen zu einer Theorie der kommunikativen Kompetenz, in J. HABERMAS u. N. LUHMANN, Theorie der Gesellschaft oder Sozialtechnologie, Frankfurt (1971) 101-141 [cit. por APEL Kar-Otto, O conceito hermenêutico-transcendental de linguagem, o.c., II, 335 (n.6)].

189 APEL Kar-Otto, O conceito hermenêutico-transcendental de linguagem, o.c., II, 335.

190 Cf. APEL Karl-Otto, Cienticismo ou hermenêutica transcendental: a pergunta pelo sujeito da interpretação dos signos na semiótica do pragmatismo, o.c., II, 203.

191 Cf. Ibid., o.c., II, 189.

192 L.c.

193 Ibid., o.c., II, 190.

194 Ibid., o.c., II, 191 (n.50).

195 Cf. Ibid., o.c., II, 192.

196 Cf. Ibid., o.c., II, 190.

197 A saber, um [A] que assume a função de "intérprete mediador", que explica -ou "traduz", se o quisermos- a um segundo [B] o que pretende dizer -ou o que "disse"- um terceiro [C].

198 APEL Karl-Otto, Cienticismo ou hermenêutica transcendental: a pergunta pelo sujeito da interpretação dos signos na semiótica do pragmatismo, o.c., II, 194.

199 PEIRCE Charles, Collected Papers, o.c., 5.315-317.

200 Cf. Id., The Fixation of Belief.

201 APEL Karl-Otto, Cienticismo ou hermenêutica transcendental: a pergunta pelo sujeito da interpretação dos signos na semiótica do pragmatismo, o.c., II, 198.

202 Adverte Apel reflectindo precisamente a propósito desse uso falacioso do princípio pragmático da interacção: o tipo de argumentação que ignora o autêntico aspecto fundamental de um diálogo que depende da interacção -como a argumentação de tipo cienticista em sentido amplo- parte do pressuposto tácito, metodicamente solipsista, de que o acordo prático entre sujeitos pode (ou tem que) pressupor uma pré-compreensão do eu e da correspondente vontade auto-afirmativa da interlocução individual, capazes de fundamentar um intento de manipulação recíproca e instrumental em função de veleidades pessoais [APEL Karl-Otto, Cienticismo ou hermenêutica transcendental: a pergunta pelo sujeito da interpretação dos signos na semiótica do pragmatismo, o.c., II, 198].

203 APEL Karl-Otto, Cienticismo ou hermenêutica transcendental: a pergunta pelo sujeito da interpretação dos signos na semiótica do pragmatismo, o.c., II, 206.

204 Id., A linguagem como tema e meio da reflexão transcendental, o.c., II, 298.

205 L.c.

206 Com efeito, enquanto que, desde Descartes [cf. DESCARTES René, Meditationes de prima philosophia, ed. Adam et Tannery, Paris (1964): Adeo ut, omnibus satis superque pensitatis, denique statuendum sit hoc pronutiatum, Ego sum, ego existo, quoties a me profertur, vel mente concipitur, necessarrio esse verum (VII, 25)] a Husserl [cf. HUSSERL Edmund, Meditaciones cartesianas, o.c.: La autoexhibición "fenomenológica" que se leva a cabo en mi ego, la de todas sus constituciones y la de todos los objetos existentes para él, ha tomado por necesidad la forma metódica de una autoexhibición apriorística (§ 41, 149-150)], a reflexão do sujeito cognoscente sobre si mesmo se conota como a última instância da reflexão metodológica, já na filosofia analítica da linguagem topamos com o rótulo de "psicologismo" [ A teoria do conhecimento é a filosofia da psicologia (4.1121)] aplicado a termos tais como consciência, sujeito, intenção, reflexão, etc. (cf. 5.5421).

207 Cf. APEL Karl-Otto, A linguagem como tema e meio da reflexão transcendental, o.c., II, 299-300.

208 Ibid., o.c., II, 301.

209 Referindo-se a propósito deste "círculo vicioso" gerado no cerne da própria analítica, questiona Apel: Será possível admitir por um lado como adquirida uma linguagem susceptível de ser objectivamente analizada e por outro pretender reconstrui-la com pretensões de rigor científico? [APEL Karl-Otto, A linguagem como tema e meio da reflexão transcendental, o.c., II, 302].

210 APEL Karl-Otto, A linguagem como tema e meio da reflexão transcendental, o.c., II, 303.

211 Cf. Ibid., 304.

212 Cf. BLACK Max, Language and Philosophy, Ithaca-N.Y. (1949) 14

213 Cf. APEL Karl-Otto, A linguagem como tema e meio da reflexão transcendental, o.c., II, 304.

214 Ibid., o.c., II, 307.

215 Sobre as afinidades teóricas entre a analítica e a hermenêutica, cf. APEL Karl-Otto, Witgenstein e Heidegger..., o.c., I, 217-264, e ainda Id., Wittgenstein e o problema da compreensão hermenêutica, o.c., I, 321-362.

216 Sobre esse "fundamentalismo" da hermenêutica, cf. APEL Karl-Otto, A radicalização filosófica da hermenêutica..., o.c., I, 265-320.

217 APEL Karl-Otto, A linguagem como tema e meio da reflexão transcendental, o.c., II, 308.

218 Ibid., o.c., II, 309.

219 Cf. L.c.

220 Cf. Ibid., o.c., II; 310-311.

221 K. Popper parte acertadamente da impossibilidade teórica em atingir uma auto-fundamentação dedutiva da sua própria posição, isto é, do "racionalismo crítico". Deste ponto de partida extrai a seguinte conclusão: se o racionalista crítico quer distinguir-se do racionalista dogmático, tem que reconhecer, em princípio, que a posição do seu adversário [por exemplo, a de um "obscurantista" que não assuma as regras de jogo da "discussão crítica"...] ostenta os mesmos direitos que a sua posição. Segundo Popper, o racionalista crítico que se dê ao trabalho de reflectir sobre as condições de possibilidade da sua posição, chega à conclusão que tem de partir da base "electiva" de uma "decisão moral" -"irracional"- diante da alternativa entre o "criticismo" e o "obscurantismo" [cf. POPPER Karl, The Open Society and its Enemies, 231 ss.]. Acerca da "irracionalidade" desta fundamentação "decisionista" comenta Apel: o facto de se reconhecer a inelutabilidade da decisão ético-existencial, não implica que a decisão a favor do racionalismo crítico constitua uma "decisão irracional" consumada perante a alternativas basicamente equivalentes. Porque se é certo que o funcionamento das regras de jogo do racionalismo crítico pressupõe já uma decisão ética [atenda-se ao facto de C.S.Peirce ter mostrado pragmaticamente que o funcionamento das regras de jogo de uma "comunidade de intérpretes e experimentadores científicos" pressupôr já um compromisso ético por parte dos membros de tal comunidade (cf. PEIRCE Charles, Collected Papers, o.c., V, §§ 354 ss.)...], também é certo o contrário, isto é, que a decisão ética sugerida pelo racionalismo crítico perante uma alternativa, pressupõe já, para ser compreensível, uma efectiva antecipação das regras de jogo de uma comunidade de comunicação. (...) Posto que Popper introduz a decisão na discussão, parte do princípio que se encontra jogado aí um acto de razão [e não um acto "irracional" como está suposto], o qual pode ser confirmado ou desmentido na escolha de um dos polos da alternativa [APEL Karl-Otto, A linguagem como tema e meio da reflexão transcendental, o.c., II, 313].

222 APEL Karl-Otto, A linguagem como tema e meio da reflexão transcendental, o.c., II, 311-312.

223 Cf. Ibid., o.c., II, 314.

224 Ibid., o.c., II, 301.

225 Por essa época escrevia Liebmann: noi abbiamo sempre ripetuto: "Si deve ritornare a Kant!" Nella Critica della Ragion Pura sono gettate norme per le tendenze di tutti i secoli (...). Indubbiamente, il grande critico, il nemico di ogni dogmatismo non autonomo, vuole anche lui, essere trattato criticamente, non dogmaticamente. Senza dubbio, non dobbiamo guardarci dal criticarlo là dove, secondo il nostro piú avanzato sapere, egli ha torto; dobbiamo intenderlo secondo il suo spirito, non secondo sua lettera; e quindi si deve parecchio approfondire, vagliare, completare, ad esempio, il concetto a priori, la dottrina delle categorie, la genesi dell'intuizione. Il legittimo si dimostrerà già nel criterio dell'opinione giunta alla persuasione; l'ilegittimo non può essere sufficientemente condannato prima del tempo. (...) Kant appartiene a quegli incomparabili spiriti che resplendono oltre l'orizzone della loro epoca (...). Esprima ognuno la sua convinzione; ma anche solo la sua convinzione. Ed ecco qui la mia convinzione personale: - Si deve ritornare a Kant! [LIEBMANN Otto, Kant und die Epigonen, Berlin (1912) 214; cit. por NEGRI Antimo, Il Neocriticismo, in Michele F. SCIACCA (dir.), Grande Antologia Filosofica, Vol. XXII: Il Pensiero Contemporaneo, Milano (1975) 112-113].

226 Cf. APEL Karl-Otto, O desenvolvimento da "filosofia analítica" da linguagem e o problema das "ciências do espírito", o.c., II, 72.

227 Cf. Id., Cientística, hermenêutica e crítica das ideologias. Projecto de uma teoria da ciência a partir da perspectiva gnoseo-antropológica, o.c., II, 97.

228 APEL Karl-Otto, De Kant a Peirce..., o.c., II, 152.

229 O idealismo problemático de Descartes -refere Kant- (...) só admite como indubitável uma única afirmação empírica ("assertio"), a saber, eu sou [KANT Immanuel, Crítica da Razão Pura, trad. por A. MORUJÃO, Lisboa (1985) 243; o sublinhado é do autor]

230 O processo da psicologia racional -esclarece Kant- está dominado por um paralogismo que é representado pelo seguinte silogismo: A) o que só pode ser pensado como sujeito, só como sujeito existe e é portanto substância; B) ora, um ser pensante, considerado unicamente como tal, só pode ser pensado como sujeito; C) portanto, só existe como tal, isto é, como substância. Na premissa maior referimo-nos a um ser, que pode ser pensado em geral, em todas as relações e, por conseguinte, também como tal pode ser dado na intuição. Na premissa menor, porém, há referência a esse mesmo ser enquanto se considera si próprio como sujeito, apenas relativamente ao pensamento e à unidade da consciência, mas não simultaneamente em relação à intuição pela qual é dado como objecto ao pensamento. Eis porque a conclusão se obtém por sophisma figurae dictionis, ou seja, mediante um raciocínio capcioso [KANT Immanuel, Crítica da Razão Pura, o.c., 342-343].

231 A aparência dialéctica na psicologia racional -comenta Kant- assenta na confusão de uma ideia da razão (isto é, na ideia de uma inteligência pura) com o conceito, a todos os títulos indeterminado, de um ser pensante em geral. Penso-me a mim próprio com vista a uma experiência possível, abstraindo-me de toda a experiência real, e daí concluo que posso ter consciência da minha existência, fora da experiência e das condições empíricas da mesma [KANT Immanuel, Crítica da Razão Pura, o.c., 369].

232 Explica Kant: Parece que na consciência de nós próprios (no sujeito pensante) possuimos um elemento substancial (...), pois todos os predicados do sujeito interno se referem ao eu, como sujeito, e este não pode ser mais pensado como predicado de qualquer outro sujeito. Assim, a totalidade na relação dos conceitos, dados como predicados a um sujeito, parece aqui ser fornecida pela experiência, não de uma simples ideia, mas de um objecto, a saber, o próprio sujeito absoluto. No entanto, esta expectativa é ludibriada, pois o "eu" (...) não pode ser o conceito determinado de um sujeito absoluto [KANT Immanuel, Prolegómenos a toda a metafísica futura, trad. por A. MORÃO, Lisboa (1989) § 46].

233 Cf. KANT Immanuel, Prolegómenos a toda a metafísica futura, o.c., §§ 47-49.

234 Além de Kant, outros pensadores podem efectivamente assumir a "paternidade" idealista da questão da comunicacionalidade. Schelling refere, por exemplo: L'unique objectivité que le monde peut avoir pour l'individu consiste en ce que le monde a été intuitionné par des intelligences exterieures à cet individu. (...) Le monde est indépendent de moi, car il repose pour moi sur l'intition d'autres intelligences dont le monde est archétype dont seul l'accord avec mes représentations est vérité. (...) Seules des intelligences en dehors de l'individu et une action réciproque incessante avec elles parachèvent la conscience entière avec toutes ses déterminations [SCHELLING F.W.J., Le Système de l'Idéalisme Transcendantal, trad. et annot. par Christian DUBOIS, Louvain (1978) 197].

235 KANT Immanuel, Anthropologie du point de vue pragmatique, trad. par Michel FOUCAULT, Paris (1970) § 2, 18-19.

236 Id., Critique de la Faculté de Juger, trad. par A. PHILONENKO, Paris (1968) § 40, 127.