A imagem à superfície ou a modernidade da pintura


Paulo Viveiros, Universidade Lusófona e Universidade Nova de Lisboa


 
 

Resumo: A partir de Cézanne, considerado o pai da abstracção, a pintura regressou a si própria, depois do longo caminho renascentista. Isto é, começou a questionar-se como medium, independentemente da representação do espaço esterior. A abstracção será, então, uma histeria onde tudo está à superfície numa espécie de dança dionisíaca, onde não há profundidade nem narrativa temporal.
 
 

1. Cézanne e a pintura moderna

Qualquer tentativa de delimitar ou de determinar a origem da modernidade parece vã, justamente porque qualquer época tem o seu momento moderno, isto é, aquele que é eterno no transitório (Baudelaire).

Deste modo, a afirmação que Cézanne é o pai da pintura moderna é um exercício de retórica académica. Não deixa de ser verdade que na época os pintores estavam descomprometidos de patronos e tinham uma maior liberdade para se dedicarem às suas obcessões. Isto fez de Cézanne, porventura, o primeiro pintor a sistematizar algumas das ideias que iriam caracterizar uma modernidade na pintura. Mas também não deixa de ser verdade, que anteriormente a ele já tinha havido alguns esboços, embora tímidos, dessas características. Os grandes mestres do passado também tiveram o seu período moderno. Aliás, ninguém nasce com um estilo definido, porque isso implica um rigor e método de trabalho que se vai aperfeiçoando ao longo do tempo.

O que se passa com Cézanne é o desflorar de uma pintura autoconsciente enquanto pintura, cujo único sistema de referência é a sua própria paleta, ou seja, aquilo que verdadeiramente lhe dá corpo. Esse momento em que a cor irrompe em toda a sua voluptuosidade não é novo, já tinha acontecido em Veneza, por altura do Renascimento e continuada pelos maneiristas e barrocos, mas Cézanne fá-lo de uma forma mais vincada através de uma "tradução" da natureza que resulta numa outra mais geométrica.

O que aqui se formula é a célebre afirmação de Cézanne de dar solidez ao impressionismo, a essa impressão fugidia da incidência de uma luminosidade atmosférica sobre os objectos da natureza. Onde imagem cintilante seria substituida por uma obcessão pela forma geométrica, ou seja, os efeitos da natureza dariam lugar a uma operação do pintor de fundar o mundo como estilo. Daí que Cézanne já não queira captar os objectos, mas as coisas antes de se tornarem objecto — enquanto passíveis de comunicação.

De acordo com Maldiney, Cézanne rasgou o véu dos objectos. Ele já não vê as árvores. Através da cor e das formas revela um novo mundo, de modo que possamos comunicar com ele através das telas. Cézanne aspirava a pintar a virgindade do mundo através da sensação. Deste modo, a tarefa do pintor é libertar a sensação, é criar uma obra que funcione como um universo. Para que esse mundo virtual, que é o polo das sensações confusas e que se anunciam como estilo, se possa explicitar no universo, é preciso que esse estilo tome corpo num espaço. E esse espaço estilístico não poderá ser o espaço superficial e frágil do impressionismo, nem as formas que se estabelecem nele podem ser descritivas dos objectos desse espaço. Assim, o espaço deve ser sólido, porque é nessa solidez que a pintura da sensação toma corpo.

A pintura da sensação é uma das faces da pintura moderna, e esta opõe-se a uma pintura obcecada pela natureza como modelo e tiranizada pela perspectiva renascentista. A pintura moderna é impessoal e assignificante, suja e deforma o modelo e o tema, por fazer surgir um mundo interior criado pela cor. É uma pintura que se liberta da profundidade da perspectiva, fazendo regressar as coisas à superfície do quadro, e, neste sentido, recuperando as imagens egípcias e os ícones bizantinos. É uma pintura que se torna acção a partir do momento em que se liberta da passividade da reprodução de um mundo tornado objecto.

Assim, o pintor não está perante as coisas, mas comunica com elas através de uma realidade. Esta realidade não é um objecto, porque a objectivação abole a comunicação e desde que as coisas se tematizam em objectos, colocam-se à distância, fechadas sobre si. A arte já não é possível. Não há um mundo acabado, um mundo em si, como diz Maldiney. O real é o par que formamos com o mundo. É o real que dá o seu estilo ao olhar do pintor e que constitui o abrigo da visão. O artista não vê os objectos, é sensivel a um ritmo sob a forma do qual vive o encontro com as coisas e que corroi os objectos até à sua ligeireza, para poder entrar na dança e vir até nós (como o dionisíaco em Nietzsche). A realidade não é, portanto, a soma dos objectos que nos rodeiam. Ela situa-se num nível mais elementar, e é a irrupção desse nível no quotidiano que provoca a surpresa da Realidade. O Real é sempre aquilo que não esperamos (porque nos é dado).

2. A abstracção e a sensação

A pintura moderna está, historicamente, demasiado colada à abstracção como oposição à figuração. Os abstraccionistas geométricos (Kandinsky, Mondrian e Malevitch) criaram um universo de uma abstracção demasiado intelectual e racional, devido ao rigor do seu método: a acção do ponto, da linha e do plano rigidamente controlados impedem qualquer imagem figurativa, em Kandinsky; o neoplasticismo de Mondrian que origina o signo na tentativa de criar uma ética para a pintura e de impedir a racionalidade da cor; e o célebre Quadrado Branco sobre Fundo Branco de Malevitch, alertando para o perigo da esterelidade da abstracção geométrica poder levar a pintura para o seu próprio fim. Por outro lado, contemporaneamente à Segunda Guerra uma nova concepção da abstracção surge ligada ao irracional com o expressionismo abstracto na sua vertente monocromática (Rothko e Klein) e gestual (Pollock).

Ora, para Deleuze, esta definição de abstracção opera apenas a nível cerebral e intelectual, daí ser necessário uma outra face para a pintura moderna que funcione simultaneamente a nível nervoso. O que pode pode actuar a esse nível é a sensação, porque ela actua directamente no corpo.

A sensação deriva de uma abstracção enquanto acto vital da arte e não como dado moderno, isto é, representa o poder de interioridade e de excesso do plano visual sem o qual não há arte. Abstrair é extrair do mundo arrítmico da acção, os elementos capazes de se emocionar e de se mover ritmicamente, segundo Maldiney. A abstracção não é apenas o não figurativo, é a acção transfiguradora e reveladora do ritmo sob as formas onde se incarna. Elas perdem as suas qualidades iniciais que têm da visão prática, para ressurgir revestidas de qualidades essenciais que o ritmo lhes dá. Ou melhor: as formas são adaptadas pela acção purificadora do ritmo no mundo transcendente que devem exprimir, nesse mundo que está presente como estilo na sensação primeira. Eis o verdadeiro sentido da abstracção: ela não consiste em suprimir sem mudar o mundo, mas antes em transformar, em transpor as formas da semelhança. A abstracção é sinónimo de criação onde o artista dá à dignidade do real apenas aquilo que pode entrar na dança e em sintonia com o ritmo.

A captação de ritmos ou de forças que está na origem da sensação deve-se a uma utilização da cor e a um retorno à figura (não é o mesmo que figuração porque não se pretende narrar ou ilustrar uma qualquer estória), porque a abstracção pura, no sentido académico, é uma confusão. Daí se perceber que Cézanne buscasse a realidade sem deixar de lado a sensação numa espécie de suicídio, isto é, visava a realidade deixando de parte os meios que lhe permitiam isso. Ao preferir a cor ao desenho, Cézanne entregou-se ao caos das sensações.

Sintetizando, não é no jogo livre e desincarnado da luz e da cor (impressões) que está a sensação, pelo contrário, ela está no corpo (mesmo que seja o de uma maçã). A cor e a sensação estão no corpo e não no ar. A sensação é o que está pintado, e o que está pintado no quadro é o corpo, não representado como objecto, mas como viveu experimentando aquela sensação. Com Cézanne, a pintura torna-se uma fisiologia. Há algo que chega com a sensação, por isso ela afecta. Deleuze diz que a sensação, em Cézanne, aponta para duas coisas: para o sujeito, através do choque fisiológico do olhar, isto é, o sujeito é estimulado pelo choque da semelhança; e para o objecto, através da factualidade (corpo e lugar) do objecto. Ou melhor, tem a ver com os dois indissoluvelmente, porque transformo-me na sensação e qualquer coisa chega com ela. No limite, é o mesmo corpo que a dá e que a recebe, que é simultaneamente objecto e sujeito. O espectador apenas experencia a sensação entrando no quadro, ou deixando que o quadro entre nele. Isto é, a sensação provoca um atraso, na medida em que incomoda o espectador, que se sente obrigado a demorar diante dela, ou a passar rapidamente por ela, porque se transforma pelo choque que ela emana.

A sensação é o que se transmite directamente, evitando o rodeio e o enfado de contar uma história. Mas essa transmissão directa pode gerar deformação, por isso a sensação é especialista das deformações, particularmente do corpo. Por isso é necessário regressar à figura, como Bacon fez durante o apogeu do expressionismo abstracto.

A composição aparentemente simples em Bacon, constituida por camadas de tinta uniformes (a lembrar a pintura monocromática) que fazem a sua estrutura e um contorno que envolve a figura e a separa da estrutura, mas que não a tornam imóvel, evidencia a excessiva proximidade ao primeiro plano da imagem. A uniformidade da cor não funciona como fundo, está no mesmo plano da figura, tal como nas imagens egípcias e medievais. Por outro lado, essa composição reforça a acção de forças sobre a figura que a deformam. Ela torna-se um devir-animal, através da sensação.

Filomena Molder dizia "que com o impressionismo começa tuda a pulsar e a estremecer, a perder os contornos exactos, com Cézanne a indiferença ao desenho correcto dá origem a uma súbita invasão de forças de espíritos animais caóticos, que a pintura tinha dominado soberanamente". Bacon acentuou aquilo que com Cézanne começou a tomar forma como intento sistemático, como estilo.

Cézanne operou uma viragem na pintura: libertou-a de uma função óptica com o regresso das coisas à superfície da imagem, ao habilitar o olho com uma função háptica, isto é, um espaço onde à superfície da tela os volumes só existem pela utilização e disposição de cores diferentes. Foi assim que tornou visível a força da ondulação das montanhas, a força da germinação da maçã, a força térmica da paisagem... Estas "forças" dão visibilidade ao invisível, são elas que fazem emergir os quadros de um caos. Por isso, o que o motivava não era apenas a perspectiva, ou a geometria, ou as leis da decomposição das cores, mas todos os gestos que pouco a pouco faziam um quadro, não havia apenas um único motivo, mas a paisagem na sua totalidade e na sua plenitude absoluta que era o "motivo".

Para Deleuze, o motivo cézanniano tem um equivalente no diagrama de Bacon. O diagrama é um caos, mas também uma ordem e um ritmo. É um caos violento em relação à figuração, mas uma fonte de ritmo em relação à pintura da sensação. Jackson Pollock tinha expandido o diagrama à totalidade da tela, numa função ainda manual do olho. Mas a sua abstracção leva a uma confusão, daí que Bacon circunscreva a sensação apenas à figura. O diagrama, em Bacon, parte de uma forma figurativa para misturá-la, dando origem a uma outra forma de natureza diferente que é a figura. Deste modo, o diagrama sendo catástrofe não pode provocar a catástrofe, nesse sentido, o dripping de Pollock assemelha-se a um zoom à figura de Bacon e daí a confusão, são os salpicos da deformação ou os vestígios da libertação do animal e da energia devido à acção de forças invisíveis — o dripping são os pedaços de placenta, sangue e esperma. O essencial do diagrama é que ele solte a figura, porque tem de estar localizado no tempo e no espaço, para não recobrir a totalidade do quadro como no expressionismo abstracto.

Portanto, o diagrama desfaz o mundo óptico, mas deve ser injectado na visão para produzir um mundo háptico, e a função háptica do olho é aquela onde à superfície da tela, os volumes só existem pela utilização e disposição de cores diferentes. Embora o diagrama seja também uma mistura, não pode misturar as cores apenas romper os tons pelos quais a figura procura unir-se à estrutura.

Digamos, então, que a pintura de Bacon, herdeira da sensação de Cézanne, acentua uma histeria ligada a pintura moderna caracterizada por essa função háptica. Histeria devido à excessiva presença das formas e volumes de Cézanne e do corpo sem orgãos de Bacon à superfície, fruto do desaparecimento do espaço profundo da perspectiva e do desenho renascentista e da presença da cor. A cor começa a ficar rugosa em Cézanne e Van Gogh, a sair literalmente da tela. A cor das figuras de Bacon começa a vomitar a tinta. A pintura começa a transbordar.

A pintura moderna é essa efervescência da cor. Como já não há profundidade que a sustente, ela brota da superfície. Portanto já não se pode definir a pintura através do dicionário. A partir do momento que ela começa a sair da tela, torna-se noutra coisa. Ganha profundidade, mas na direcção contrária, na do espectador. Por isso o afecta e o incomoda com essa torrente de sensações que o chocam. Essa espacialidade invertida torna-se instalação, ganha movimento contínuo (como na arte vídeo herdeira da colagem), mistura-se ou deriva de outros media; isto é, se a modernidade obrigou a uma revisão dos conceitos, fazendo com que teorias globais já não se ajustem a uma constante fragmentação e metamorfose dos objectos de análise, impondo a alegoria como a figura mais capaz de definir teoricamente a modernidade, nesse caso também a pintura já não é o que era.

Paulo Viveiros, Mestre em Ciências da Comunicação com uma dissertação sobre arte vídeo. Docente de Metodologias de Análise da Imagem na Universidade Lusófona, e de História da Imgem na Universidade Nova de Lisboa.