MULTICULTURALISMO E IMAGINÁRIO UMA LEITURA DO VIDEOCLIPE SANGUE DE BAIRRO CHICO SCIENCE E NAÇÃO ZUMBI – 1998

Paulo  Alexandre  Cordeiro Vasconcelos, Universidade Anhembi Morumbi


Na atualidade, o volume da produção  da imagem é de tamanha envergadura que a escrita a absorveu  para o seu convívio e nunca mais o discurso verbal se fez numa unilateralidade, ainda que consideremos apenas seu plano de expressão.

Sem dúvida, a energia elétrica  se  constituiu em um grande patrono para    permitir  suportes  que engendram tantos produtos, tendo-a como  moldura. O poder de movimento e de deslocamento que a energia elétrica permitiu alterou toda uma mecânica de produção das mais variadas expressões sejam: elas lingüísticas, sonoras ou imagéticas. A imprensa, principalmente, sofreu suas conseqüências, tendo por decorrência a quase obrigatoriedade de convívio com o casamento texto-palavra  com o texto-imagem.

Como diria  Foucault(1988), o caligrama, palavra e imagem, estava  ai pronto para produzir muito além desse  “simples” casamento. Disputa envergada e acirrada, dia a dia, na tentativa de supremacia  da imagem sobre o texto verbal.

O hibridismo discursivo, como estratégia de domínio de umas das partes – o do imagético, sobre os outros códigos – o sonoro e o verbal, advém do intenso investimento na imagem em movimento.

De um discurso imagético que já  desafiava uma sintaxe  mais simples, se é que  assim podemos  chamar, da imagem  fotográfica  no seu estático de forma e cores,  extrapola-se agora para uma movimentação dessas  formas, associada, entre outros, ao implemento do cromatismo que se põe em espéculos dinâmicos e ai aparece  o cinematógrafo.

O cinema vai permitir a popularização da imagem em movimento no sentido de que sua produção proporcionava a oportunidade de construções expressivas que se aproximassem da realidade cotidiana. Se socialmente a elite efetivamente consumia o diálogo palavra / imagem, o cinema veio dar dinamicidade a esse duplo, movimentando-os. Concomitantemente, o rádio, trabalhando a palavra em suas configurações diversificadas,  passava a abrir caminho para a indústria fonográfica, o disco.

Com a introdução da televisão, aproveita-se as explorações cinematográficas dentro do campo musical, por outro lado, a indústria fonográfica, detectando o poder televisivo, investe nesta mídia para aglutinar um elemento de  visualidade à música. Some-se a isso, o surgimento de técnicas de gravação, caso do videotape, possibilitando a captação do espetáculo in locu, numa estratégia de identificação entre os receptores do espetáculo e os receptores televisivos. Essa cultura da espetacularização vai respaldar o aparecimento do videoclipe, principalmente como procedimento de marketing da indústria fonográfica.

O grande investimento no experimentalismo que a publicidade patrocinou fez dessa expressão uma das mais profícuas vias de sedução para objetos que já não são exclusivos da produção industrial; a junção da comunicação social e do marketing se serve agora de expressões culturais cujos significados de base constróem identidades como direcionam modos de organização social, destacadamente no grupo de jovens e crianças.

Nosso intuito neste trabalho é, portanto, observar o videoclipe na sua estrutura discursiva, mediada por um hibridismo de linguagens quanto aos seus suportes, que são variados, transitando de formas sígnicas como o lingüístico, o sonoro e o imagético, à sua produção de sentidos. Ao mesmo tempo, e em decorrência desse apriori, vislumbrar o videoclipe como expressão do multiculturalismo e imaginário social recorrente na contemporaneidade.

Nesse sentido, buscaremos fincar nosso relato na dinâmica sígnica que faz erigir aquele discurso. Em que pese termos elegido as categorias discursivas ligadas ao campo verbal, buscaremos ampliar estas categorias conceituais para também vislumbrar os discursos imagéticos e sonoros.

As dificuldades dessa ampliação são das mais diversas ordens uma vez que as análises discursivas, em sua grande maioria, apontam para o campo verbal. Apenas os estudos de suporte semiótico, de base peirciana, já vislumbram o campo da imagem, tendo em vista os paradigmas conceituais sígnicos em Peirce permitirem as generalizações entre imagem e palavra, evidentemente guardadas as devidas especificidades discursivas.

VIDEOCLIPE – LINGUAGENS E SUPORTES

Se por um lado à contemporaneidade tem se caracterizado por um intenso desenvolvimento das mídias com seus suportes tecnológicos que por sua vez faz eclodir experimentos de linguagem, por outro, tais experimentos denunciam um caos semiótico em proporção direta à multifacetariedade sociocultural que vivemos.

O fato é que o caráter imagético das expressões, antes mesmo dos suportes tecnológicos que conhecemos existirem, já prenunciavam formas híbridas de enunciação. A própria palavra, contendo em si mesma o elemento icônico, evidencia esse aspecto(Santaella,1997).

A aceleração tecnológica proporcionou à imagem a dimensão da mobilidade e sua hibridação que, com a inserção das telecomunicações e da informática, impôs modos cada vez mais diferenciados de compreender o mundo na sua instabilidade e complexidade caóticas face às diversidades de tramas na e da linguagem.

Se de um lado a conjunção de códigos e tramas de linguagens, caso do videoclipe, viabiliza grandes complexidades expressivas, por outro, há nela uma fuga constante da normatividade. Enquanto as mensagens verbais são rigidamente estruturadas, na imagem, principalmente as suportadas tecnologicamente, as regras possuem grande flexibilidade.

Por outro lado, a sonorização melódica musical como a imagética e a verbal, possuindo em si mesmas estruturas normativas,  também possuem pontos de fuga nos quais se apóiam o discurso videográfico, ou seja, para a afirmação da linguagem videográfica é necessária a quebra, ou dobra (pontos de fuga), das várias linguagens outras que a constituem, amalgamando-se no híbrido videográfico (Machado, 1997).

Esse hibridismo é lido num transversamento do registro imaginário e o registro simbólico e suas inúmeras re-significações, neste sentido, as diferenças simbólicas ganham unidade pela possibilidade de releitura anárquica imaginária.

 Assim, o hibridismo videográfico é um fenômeno de significação e ressignificação norteado pela instabilidade das formas; e torna-se “um canal de expressão dentro da sociedade” (Machado,1997) operando numa região fronteiriça de interseção de linguagens cuja expressividade avança sempre e em múltiplas direções para outras expressões, relacionalmente.

Dentro de sua semantização, operam vários signos, que reformados transitam da denotação para a conotação. Dessa forma, a dinâmica  criadora da instância comunicativa videográfica faz com que seu sistema de significante – ou suportes -  opere por um repertório geral de tendências, testemunhando assim uma complexa simultaneidade de elementos os mais heterogêneos.

TEXTUALIDADE VIDEOGRÁFICA

Tradicionalmente, denomina-se texto a organização de mensagens que contenha unidade de significação, com coesão e coerência. Dizemos que um texto é coeso quando sua estrutura se compõe de partes inter-relacionadas, não havendo entre essas partes rupturas nem no nível da forma nem no do sentido. Quando se trata de sentido, estamos no campo da significação, e um texto é coerente quando as partes relacionadas (coesão) constroem conjuntamente o sentido do texto como um todo.

Observando, entretanto, a estrutura do videoclipe, pode-se afirmar que embora apresente rupturas no campo formal, sua coerência é garantida exatamente a partir dessas rupturas visto que, similar ao discurso poético, sua textualidade se dá nos desvios inerentes às linguagens, a verbal, a imagética e a sonora, em separado, mas que conjuntamente viabilizam seus pontos de fuga.

Assim, o sentido desse texto, o videoclipe, pode ser depreendido na análise de seus termos (signos), comparando uns aos outros; sintaticamente, o videoclipe opera uma circularidade predicativa na qual a imagem predica o sonoro que predica a palavra sucessiva e, ao mesmo tempo, reciprocamente.

Necessário entretanto entender que o texto principia numa intencionalidade anterior, todo texto contém um pronunciamento dentro de um debate de escala mais ampla, se estrutura em função desse propósito, mas só pode ser entendido na sua “unidade de significação”  para além do texto; dito de outra forma, a significação se realiza no contexto. Assim, nenhum texto pode ser visto isoladamente já que manifesta uma posição dentro da sociedade.

Todo texto marca a intenção de seu narrador e essas marcas nem sempre são explícitas. Quanto mais enviesadas, mais subjacentes, maior a necessidade de desvendar, muitas vezes por analogia, os sentidos possíveis de suas marcas.

Uma das marcas que indicam a intencionalidade do autor é a referência a outros textos. Nestas situações, um autor dialoga com outros autores, seu texto dialoga com outros textos, compreendendo assim uma intertextualidade. Essa atitude pode ser no sentido de diálogo positivo ou negativo, isto é, confirmando a intenção do outro e nela se apoiando ou ridicularizando-a como forma de desaprovação. Importante para nossos intentos também é observar que tais diálogos podem acontecer de maneira exclusivamente formal.

Dado que só se pode afirmar a textualização diante dessa unidade de significação, no que diz respeito à textualidade videográfica, sua atividade só terá funcionalidade enquanto trabalho social que implica conflitos, reconhecimentos, relações de poder como identidade, etc. à medida que se constatar sua legibilidade.

Se a textualidade enquanto trama social extrapola a mera arquitetura semiótica, ou seus suportes, é porque uma expressão é tão capaz de dizer quanto calar sentidos, autorizados ou não, produzindo ou reproduzindo-os. Tal discurso, assim visto, é fraturado e sob aquilo que lhe é permitido ou possível manifestar, há um jogo inconsciente do querer dizer cuja reconstituição é um outro discurso que pode possibilitar a descoberta da palavra muda.

Se considerarmos que a legibilidade extrapola as qualidades do próprio texto, sem no entanto poder dispensá-las, o estatuto semiótico do videoclipe, até por sua condição de síntese demasiada, nos coloca diante de questões como: quais os mecanismos que estão sendo jogados?

Assim visto, tomar o videoclipe enquanto texto, portanto dentro de sua legibilidade,  impõe observarmos nessa aglutinação de códigos quais diálogos e/ou conflitos são gerados afim de atentar para seus sentidos subjacentes ou, dito de outra forma, a intencionalidade (ou intencionalidades) que o pontuam.

Se a linguagem enquanto fenômeno complexo, funciona na dimensão de tempo e de espaço, o produto que dela e com ela é operacionalizado – qual seja, o texto, compreende essa mesma complexidade, e da mesma forma que temos o intertexto, temos o interdiscurso. Diz-se discurso não o texto em si, mas algo que está para além do sentido do texto ou das formas utilizadas. O discurso opera num nível extra-semiótico, ou seja, ele liga o pronunciamento textual às condições sócio-históricas que o originaram. O discurso é de caráter estritamente ideológico.

Tratar o discurso é vê-lo sob a perspectiva do dialogismo e da interação, daí seu caráter social e histórico. Dinâmico, seu caráter ideológico atua como fator de integração e coesão social na medida em que proporciona reconhecimento e práticas sociais ao grupo que dele se serve como o alimenta.

Por este aspecto, o ideológico, o discurso é correlato à organização social e sua hierarquia, portanto a seus valores de modo que ele pode, em princípio, servir à quaisquer ideologias. Toda formação discursiva corresponde a uma formação ideológica contudo um texto pode ter formações discursivas diferentes e, nesse caso, haverá variações de sentido.

Esta relação entre discursos é o que se denomina interdiscurso. Pelo fato do discurso nunca ser insular, pelo fato dele circular entre pólos diferentes, manifestos ou não, todo texto é não só discursivo como interdiscursivo já que, nas suas subjacências, ele sempre dialoga com outras intencionalidades, confirmando e/ou negando-as.

À luz da videografia, considerando sua instabilidade formal, e tendo em vista que a legibilidade de um texto diz respeito diretamente ao processo de produção de sentido, como poder-se-ia operar sua interpretação e compreensão?

À medida que o texto videográfico opera por aglutinação e/ou justaposição de imagens e tendo em vista que seu suporte imediato – a tela em dimensão pequena, “impõe” reduzido número de informações, sua legibilidade deve considerá-lo estilizado, abstrato, sua legibilidade não é tão direta

Isto posto, considere também que na audiovisualidade há uma minimização de suas figuras (formas sígnicas)  de modo que quaisquer produções de sentido necessariamente irá extrapolar seus limites de expressão, isto porque a sintaxe videográfica funciona por paralelismos, ou seja, morfologicamente se dá a justaposição, requerendo de sua recepção que se articule as imagens dispostas por associação, o que nos leva uma vez mais à questão do contexto cultural.

Dito de outra forma, o discurso videográfico opera por parataxe cujo processo expressivo compreende a apreensão da imagem do todo nas partes; sua simultaneidade compreende aspectos como natureza, intensidade, duração ou extensão, numa multiplicidade em que há entre os seus elementos uma “zona comum”, são blocos de significação cuja relação não é explícita.

A significação que resulta é um processo de coordenação que obedece a um processo de justaposição. São painéis fragmentários e híbridos que circulam, reiterando as informações disponíveis, mas ao mesmo tempo, assumindo a dispersão como algo sempre latente, em quase independência do manifesto.

Dito de outra forma, a parataxe não admite a figura do receptor passivo visto que sua estrutura, sendo anárquica e polissêmica, requer certa autonomia do leitor que poderá articular seus sentidos em direções as mais variadas possíveis. O foco de sua narratividade obedece aos critérios de percepção, seleção e compreensão a que cada receptor se proponha. Visto por este prisma, o texto videográfico possibilita total subversão no sentido de reinventar funções e finalidade do aparato tecnológico.

DECUPANDO O VIDEO

Para efeito de explicitação das categorias aqui expostas, tomamos como referência o videoclipe Sangue de Bairro, com direção de Lirio Ferreira e Paulo Caldas,  tematizando faixa do mesmo nome do cd intitulado Afrociberdelia (1996) do grupo Chico Science e Nação Zumbi[1].

A linha temática do videoclipe percorre a proposta de se comparar à performance do grupo musical num contexto urbano e problemático – o manguetown, ou Recife, à performance do grupo de cangaceiros liderado por Lampião, num contexto agreste e sertanejo.

O videoclipe, tomando por base o filme Baile Perfumado, se constrói por seqüências imagéticas do bando de Lampião, em encenação cinematográfica, intermediadas por imagens recuperadas, feitas por cineasta armador, e imagens do grupo musical tanto em estúdio como em palco.

Em suas dimensões expressivas, qual seja, a lingüística, a sonora e a imagética, Sangue de bairro é fundamentalmente essa justaposição. Se sua letra é formada por justaposições de nomes próprios que se afiguram caracterizadores, o processo de adjetivação que ocorre não apresenta conexões sintáticas extensivas; na maior parte do texto não há termos regentes e regidos. Embora em seu fechamento (última estrofe) pouca sintaxe se apresente, ainda aí a concomitância é verificada através de aspectos semânticos alternativos[2].

De igual modo, imageticamente filme (Baile Perfumado) e vÍdeo se interpõem, depreende-se em ambas referências a polaridade novo/velho, bando/grupo, Lampião/Chico Science em que a realização de um campo de significados  evoca estruturalmente a incorporação de referências díspares temporal e espacialmente (Chico/Lampião), mas não permite o isolamento de um significante (Chico ou Lampião), estimulando, através do uso de plano fechado na fisionomia de ambos, a apreensão de um pelo outro e vice versa (Chico e Lampião). 

Chico Science, Lampião, ao mesmo tempo em que serve de ícone para rebelde, serve para bandido. Dependendo das relações que lhes são atribuídas, Lampião será visto como bandido, numa relação com valores de preservação, de propriedade privada, de segurança, entretanto Lampião como rebelde aponta para a relação adversativa entre instituídos versus expropriados.

Ora, se a palavra como a imagem está, no texto videográfico, a serviço da música, em Sangue de bairro, sonoramente, o que se depreende é paralelo maracatu – rock, donde se sobressai o maracatu enquanto tradição que pode ser traduzida como compasso cardíaco de uma corporeidade cultural abatida, mas não morta. Por outro lado, o rock é o agito do sangue que faz pulsar as raízes afro ainda que por todo um multiculturalismo que ele representa.

O IMAGINÁRIO DO TEXTO E O IMAGINÁRIO DO RECEPTOR INFANTO-JUVENIL

O imaginário no texto videográfico se coloca tanto no criador como no receptor, se a condição imaginária é inerente ao criador, ela o ratifica na interação com o receptor. O traço marcante dessa interação está no aspecto de ludicidade que envolve a ambos. Ou seja, o imaginário do criador se predica nas apostas de sentidos que caracterizam o videoclipe; apostar em sentidos significa colocar em situação lúdica.

Nesse sentido, o texto videográfico se configura em teia de aposta de sentidos em busca de uma interdiscursividade para quem cria e para quem recepciona à medida que disponibiliza grande número de possibilidades de significação.

A música ou o sonoro, sendo um campo propício à divagação, à transgressão, quando associada à imagem, outro código, ganha uma potencialidade imaginária muito maior. A junção de dois ou mais códigos só o faz na condição de tradutibilidade que também contém em si a imaginação, visto que traduzir pode ser lido como transporte de algo de um campo para outro.

Se considerarmos que a faixa infanto-juvenil compreende o período em que essa não normatividade é mais acentuada, o videoclipe, em sua anarquia polissêmica, traduz eficientemente esse imaginário, corroborando-o.

 

CONCLUINDO...

A partir das colocações feitas e, considerando ainda que a formação cultural de jovens e crianças têm sido fomentadas por expressões como o videoclipe cuja dinâmica favorece toda uma recepção sinestésica das mensagens veiculadas por este meio, depreende-se a necessidade de reflexões que subsidiem leituras críticas dos meios como forma de mediação entre os sentidos, quase sempre autorizados, que são veiculados e a produção social desses mesmos sentidos.

O entendimento das manifestações culturais da contemporaneidade implica em elucidar seu caráter de multiplicidade visto que há tantas culturas quantos diferentes modos de configuração da vida social evidenciando que as formas interativas de comunicação, caso das poéticas digitais, vêem desmistificando a homogeneidade na qual a época presente tanto tem investido. Se a modernidade tende mostrar as coisas sem conceituá-las aprioristicamente, é preciso entender que esta  forma indireta de referendar o mundo faz de sua percepção uma espécie de aparato para os sentidos que se possa construir a partir dela.

A comunicação e a cultura, à medida que se revestiram do aparato tecnológico, fizeram apagar a antiga fronteira entre a alta cultura e a de massa, e até mesmo a popular; atualmente tem prevalecido entretanto um “modo centrífugo” no qual tudo vem do centro, de maneira fixa ou fixadora de normas que são instituídas em forma de leis, numa via descendente e hierárquica, o que pode fazer com que  as expressões culturais deixem de ser vistas como parte de práticas sociais, portanto de caráter absolutamente político.

Na atualidade, o valor máximo se centra na inovação das formas, o que impõe considerar que a não transparência expressiva ou simbólica atuais pode dificultar a viabilidade de formas  culturais como meio de compreensão e atuação humana sobre a realidade.

Dentre as várias manifestações culturais infanto-juvenis, a música particularmente tem se mostrado representante de toda essa mistura de vertentes, colocando o massivo e o popular como interfaces da realidade expressa; quando incorporada à imagem, caso do VIDEOclipe, seu hibridismo fica ainda mais acentuado, criando uma intervenção muito favorável não só quanto à cultura popular como para suas causas mais diretas. A exemplo disto, temos a figura do caranguejo que, nas classes populares de Recife que habitam as zonas de mangue, representa elemento lúdico da comunidade infanto-juvenil.

Nesse sentido, a recuperação videográfica desta imagem cria a identidade imaginária juvenil, todavia buscando retraduzi-la para um caráter político de mundialização em que aquele elemento aquático tem potência para interagir no multiculturalismo.

Tal constatação ficou ratificada em nossas abordagens de pesquisa junto às crianças inquiridas na qual todas as crianças nordestinas exclamam por esta figura, destacadamente aquelas de origem recifense.  Noutros momentos, as crianças que não descendem de pais nordestinos associam o caranguejo e a musicalidade (maracatu) a uma batida de samba “que não é daqui”, ou seja, não pertence ao repertório cultural próprio do sudeste. De qualquer forma, por uma via ou outra, na recepção do videoclipe Sangue de Bairro, fica claro para os alunos seus aspectos culturais enquanto nossos visto que a “africanidade” nele contido foi amplamente detectada.

Se por um lado o hibridismo videográfico compreende uma complexidade semiótica que busca exprimir o modo de conhecimento do homem contemporâneo, por outro, toda essa produção deslancha para uma interconexão com o imaginário, elastecendo as estruturas discursivas para movimentos de deslocamento e condensação, tal fato repercute na recepção dos videoclipes nas faixas infanto-juvenis exatamente por provocar uma identidade com a estrutura do imaginário destes.




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[1] Chico Science e Nação Zumbi, grupo pernambucano pertencente ao denominado Movimento Manguebeat, criado no ano de 1991, e transformado em Nação Zumbi a partir da morte de seu líder Francisco de Assis Viana, o Chico Science, em fevereiro de 1998. A faixa a que nos reportamos, Sangue de bairro, é de autoria de Science e a música do grupo ao qual pertencia. Esta composição foi incorporada à trilha sonora do filme Baile Perfumado(1997) dos mesmos autores do VIDEOclipe.

[2] Besouro, Moderno, Ezequiel, Candeiro, Cela Preta, Labareda, Azulão / Arvoredo, Quina, Bananeira, Sabonete/ Catingueira, Limoeiro, Lamparina, Mergulhão, Corisco/ Volta Seca, Jararaca, Cajarana, Viriato/ Gitirana, Moita-Brava, Meia-Noite, Zabelê/ Quando degolaram minha cabeça/ Passei mais de dois segundos vendo meu corpo tremendo/ e não sabia o que fazer/ morrer, viver, morrer, viver! (Chico Science, Sangue de Bairro, In: Afrociberdelia, Rio de Janeiro, Chaos/Sony Music, 1996 - 66493110)