A espetacularização das culturas populares ou produtos culturais
folkmidiáticos
Osvaldo Meira Trigueiro1
Índice
1 Introdução
O homem comemora há centenas de anos os seus ritos de passagem, relembra
as suas datas festivas sagradas, profanas e de agradecimento. São essas
evoluções e evocações que chegam até os dias atuais, que
já estão incorporadas aos nossos calendários de tradição
religiosa e festiva. Ao longo do tempo essas práticas sempre fizeram
parte dos processos das transformações culturais e religiosas da
sociedade humana e das suas relações simbólicas entre a
realidade e a ficção, dando origem aos diversos protagonistas e suas
performances nos festejos populares. São essas práticas do passado
que chegam ao presente com as suas diversidades nacionais, regionais e
locais, de significados, de referências e de desdobramentos em processos
culturais de apropriações e incorporações de novos valores
simbólicos que vão construindo outras identidades. Identidade aqui
compreendida como um processo cultural em constante movimento entre os
espaços públicos e privados das instâncias sociais.
É nesses contextos que venho estudando os deslocamentos, as
teledistribuições de bens culturais populares materiais e imateriais
para as novas demandas de consumo no mundo globalizado. São os
diferentes circuitos de difusão e de mercado desses produtos culturais,
suas negociações e cumplicidades, que tenho observado. Já no
início dos anos de 1970, com a consolidação da indústria
cultural impulsionada pelos meios de comunicação de massa
principalmente pela televisão, a espetacularização das culturas
populares ou produtos culturais folkmidiáticos se intensifica, ganha
maior visibilidade no Brasil.
2 Produtos culturais folkmidiáticos
Acho interessante colocar o conceito de folkcomunicação do professor
e pesquisador Luiz Beltrão:
(...) conjunto de procedimentos de intercâmbio de
informações, idéias, opiniões e atitudes dos
públicos marginalizados urbanos e rurais, através de
agentes e meios direta ou indiretamente ligados ao folclore
(1980:24).
Em outra perspectiva da folkcomunicação tenho pesquisado
sistematicamente os processos de apropriação e
incorporação das manifestações culturais populares
pela mídia e, em movimento inverso, como os
protagonistas das culturas populares se apropriam das novas
tecnologias para reinventarem os seus produtos culturais. Essas
aproximações, das culturas populares e midiáticas no
mundo globalizado são cada vez mais intensas. A essas
cumplicidades culturais, geradas em campos híbridos, passei a
chamar de Produtos Folkmidiáticos. Nesses campos
estratégicos é que se dão as negociações
dialéticas, conflituosas e paradoxais mais importantes no
mundo globalizado. São campos operados por diferentes
instâncias de negociações que se deslocam em redes
capilares de comunicação comunitária interligadas
às redes midiáticas. Ou seja, é nesses campos
híbridos, folkcomunicacionais que se dão as
mediações entre as culturas midiáticas e populares
resultando em novos produtos de bens culturais de consumo. São
processos tensos e intensamente dialógicos mediados pelos
operadores das redes de comunicação cotidiana em
movimentos dinâmicos, onde se inventam e reinventam novas
manifestações culturais populares para as demandas de
consumo da sociedade midiática.
Folkmidiático é um conceito recente, ainda em construção na
tentativa de melhor se compreenderem essas estratégias multidirecionais
onde operam protagonistas de diferentes segmentos socioculturais, do massivo
e popular. É um conceito em construção e que nos últimos
anos vem se consolidando como instrumento de observação das
estratégias de produção, circulação e consumo de bens
culturais folkcomunicacionais.
As manifestações populares (festas, danças, culinária, arte,
artesanato, etc) já não pertencem apenas aos seus protagonistas. As
culturas tradicionais no mundo globalizado são também do interesse
dos grupos midiáticos, de turismo, de entretenimento, das empresas de
bebidas, de comidas e de tantas outras organizações socais,
culturais e econômicas.
Temos como exemplo as festas populares juninas no Nordeste, especialmente em
Campina Grande, na Paraíba, e Caruaru em Pernambuco; as Festas do
Bumba-Meu-Boi em São Luiz, no Maranhão; Boi-Bumbá na
Amazônia, especialmente em Parintins, Peão Boiadeiro em Barretos no
Estado de São Paulo, a renovada literatura de cordel com os temas atuais
que se apropriam dos acontecimentos midiáticos como a invasão do
Iraque, o atentado de 11 de setembro nos Estados Unidos da América, a
arte popular e o artesanato, os restaurantes fast-food de comidas
típicas e tantas outras manifestações culturais populares, que
agregam valores da sociedade midiática de consumo para se adequarem
às demandas do mercado global na venda de produtos culturais
diferenciados.
Tenho abordado esse tema nos meus recentes trabalhos de pesquisa sobre as
tradições culturais populares e os processos midiáticos de
apropriações e (re)elaborações dos seus significados.
Podemos afirmar que a sua origem é muito mais antiga do que se pensa,
vem desde o uso das narrativas seriadas orais dos contos populares das mil e
uma noites -- as narrativas de Sherezade -- passando pelo teatro popular de rua -- Commedia Dell'Arte - pelos antigos
cortejos de carnavalização das festas populares -- na idade média -- pelos
folhetins com seus ganhos de interrupção das estórias ficcionais
no momento de maior tensão de suas tramas, dramaticidades e, mais
recentemente, passando pelo cinema e pela televisão. As
espetacularizações das culturas populares sempre fizeram e
continuarão fazendo parte dos desejos de brincar das classes populares
nos espaços públicos das ruas, ora como personagens de
Pantaleões, Capitães Espaventos, Pulicinelas, o Morto Carregando o
Vivo, as Burrinhas e os Ursos, Pierrôs, Arlequins e Colombinas, ora com
as deformidades dos bonecos gigantes, as grandiosidades e os exageros dos
carros alegóricos dos cortejos das charivaris que faziam parte das
festas de carnavalização medievais antecedendo o início da
Quaresma. Esses personagens das antigas brincadeiras jocosas continuam, na
sua maioria, presentes nos atuais festejos de momo espalhados pelas
diferentes regiões do Brasil.
3 A espetacularização das culturas populares
As manifestações culturais populares têm esse caráter de
ambigüidade entre o mal e o bem, a vida e a morte, que transborda na
nossa cotidianidade todos os limites dos exageros das emoções e
desejos da aproximação da realidade com a ficção criada pela
sociedade humana. São manifestações que estão associadas a
essas dualidades do mundo real da vida e o mundo ficcional do imaginário
simbólico, do disforme da natureza e as experiências oníricas
que sempre fizeram parte das nossas histórias de encantados no mundo da
infância e que chegam à vida adulta mais próximas da
racionalidade. É a hibridização de tudo isso que dá a
tônica à cultura popular no mundo globalizado pelos meios de
comunicação e pelos novos interesses de consumo de bens culturais.
O cordel por um longo tempo foi um importante meio de comunicação
popular e usado para atingir o maior número possível de pessoas.
Sempre houve uma mediação entre a produção cultural popular
e as classes hegemônicas. Por outro lado, mudaram as
negociações, os interesses, as formas, a velocidade do tempo e a
dimensão de alcance desses bens culturais nos nossos dias.
Atualmente, temos uma mediação midiática fortemente influenciada
pela televisão que se apropria das manifestações das culturas
populares para os seus mais diversos interesses.
Essa é a questão central da minha intervenção nesta mesa
redonda. Não trago novidades, apenas algumas constatações para
mostrar que a espetacularização das culturas populares não é
uma coisa tão nova como se pensa, a mudança é nos métodos de
produção, na velocidade da distribuição e no mercado de
consumo desses bens culturais. Hoje em dia a classe média consome mais
os produtos da cultura popular, a exemplo dos artefatos de
decoração, nas festas populares, no consumo de produtos naturais e a
crescente preferência por restaurantes de comidas regionais .
As empresas que promovem entretenimento e turismo têm suas
localizações cada vez mais abstratas, ou seja, são
empresas que já não pertencem a um território. Mas, os
produtores culturais populares locais continuam enraizados no seu
chão, no seu lugar, porém sem perder de vista o mundo de
fora, visibilizado pela mídia. Ao mercado e à sociedade
global não interessa o universalismo simbólico das
culturas, até porque os conceitos, como se pensava nos anos
1960, de ``aldeia global'' ou de instauração de um
``McMundo'' não vingaram, nem mesmo com a globalização
cultural e, os acontecimentos culturais são cada vez mais
regionalizados com a globalização.
Lia de Itamaracá, cantora pernambucana de temas
folclóricos, só aos 59 anos ganha o seu espaço na
mídia nacional e internacional depois que é descoberta
pelos produtores de bens culturais do mercado global. É um
exemplo claro dessa mediação cultural entre o
popular e os processos midiáticos.
As festas populares na região nordestina transformam-se para atender
às demandas de mercado de consumo no mundo globalizado. Para atender a
esse segmento de mercado cultural da sociedade midiática, são
modificados os processos de apropriação e incorporação dos
novos valores estéticos populares. Nesse sentido, a cultura popular, o
folclore não são coisas engessadas, fechadas para serem simplesmente
preservadas ou resgatadas. É um processo cultural em movimento no
âmbito do campo social dos nordestinos, presente na vida cotidiana e que
se entrelaça com os produtos culturais globais ofertados pelos grandes
grupos econômicos por via das novas tecnologias da informação e
da comunicação, notadamente da televisão. A cultura popular
está sempre aberta a setores de produção cultural, a outros
significados, a novas práticas sociais, aos novos sistemas de
comunicação. Estamos vivendo no mundo em que quase tudo se torna
espetáculo. Vivemos numa sociedade midiatizada onde as culturas
populares são atrativos para o exibicionismo televisivo, onde quase
todos os acontecimentos da vida cotidiana poderão transformar-se em
espetáculos midiáticos, desde um acidente trágico -- mesmo que
só envolva pessoas anônimas das quais vai depender a sua
proporcionalidade -- a um casamento, ou funeral de celebridades e, sem
dúvida alguma, das festas populares. Quero dizer com isso que a
sociedade humana no mundo globalizado é inserida nos processos
midiáticos. São momentos de grandes celebrações desde as
campanhas eleitorais, competições desportivas, concentrações
religiosas, ritos de passagem (quando envolvem celebridades) ou
acontecimentos que estão fora do ordinário da vida cotidiana e entre
esses acontecimentos estão as festas profanas e religiosas.
Exemplos desses novos procedimentos são as ressignificações das
festas populares, do artesanato, da culinária, das cantorias de violas,
do cordel e de tantas outras manifestações da cultura tradicional
nordestina proporcionadas pelas novas lógicas de consumo do local,
alavancadas pela televisão. Ora, se por um lado são hegemônicos
os interesses de persuasão cultural dos megagrupos econômicos, por
outro os mediadores ativistas culturais locais criam estratégias
próprias de permanência nos seus pedaços e, como enfrentamento
do novo contexto, descobrem novas formas de comunicação para
divulgar os seus produtos culturais. Nos anos de 1940 Luiz Gonzaga, o ``Rei
do Baião'', reinventou a música nordestina para fazer sucesso no
rádio, na indústria fonográfica, no cinema e, posteriormente, se
consagrou na televisão sendo reconhecido pela intelectualidade
brasileira como um dos grandes inovadores da música nordestina (na
transição do rural para o urbano). Luiz Gonzaga na sua genialidade
dá sentido rurbano2 ao forró e ao baião. Portanto, não
é tão nova a estratégia de apropriação das tecnologias
de comunicação pelos produtores de cultura popular para recolocar o
local no mercado global.
Mas é preciso se chamar a atenção para as mudanças
por que passam atualmente essas festas populares (Natal, Carnaval,
Semana Santa, São João, Vaquejada, etc), que eram
realizadas espontaneamente pelos grupos locais e agora são
organizadas com a participação de grandes grupos
multimidiáticos, empresas de bebidas e comidas, promotores
culturais e empresas de turismo. É como se existissem duas
festas, uma dentro da outra, ou seja, a festa central
institucionalizada, de interesse econômico dos megagrupos
empresariais, políticos e até religiosos, e a outra
periférica, que continua sendo organizada através da
mobilização da comunidade, pelas fortes redes sociais de
comunicação, com a finalidade alegórica de rompimento
com o cotidiano e com o mundo normativo estabelecido. Ou seja, a
celebração para ``quebrar a rotina'', em tempo de festa
nos diferentes instantes da comunidade e outra no tempo do
espetáculo organizado para consumo global.
É nesse Nordeste das narrativas orais da seca, da morte ``matada'' pela
fome, do ``cabra da peste'', das astúcias dos ``João Grilo'' que
operam os imaginários populares do sertão. A cotidianidade das
pequenas cidades interioranas do Nordeste, quando adaptada para as
narrativas ficcionais do cinema, da televisão, do teatro ou da
literatura aproxima o Brasil urbano do Brasil rural, melhor dizendo, a
convivência de um Brasil rurbano.
São esses gêneros narrativos da oralidade popular
projetados pelas manifestações folclóricas (os mitos
messiânicos característicos das comunidades
rurais, as conversas entre compadres e vizinhos, as brigas de amor
e ódio, os ``fuxicos'' que circulam nas redes de
comunicação cotidiana entre os parentes e amigos etc) que,
ao longo do tempo, continuam enraizados na oralidade, ``correndo
de boca em boca'' do povo do semi-árido nordestino e
apropriados por escritores, autores e diretores, que reinventam
suas histórias em livros, teatro, contos, filmes, vídeos
e telenovelas. São esses processos de apropriação do
imaginário sociocultural brasileiro, nordestino/sertanejo que
a televisão continua reproduzindo para o mundo globalizado e
que dão bons resultados de audiência. O imaginário
cultural rural do Nordeste é um ``prato feito'' para a
teledramaturgia brasileira, por ser uma cultura polissêmica,
multicolorida, carregada de crenças, superstições, do
sagrado e do profano, do ecológico e do alegórico que
contrasta, quase sempre, com a miséria e o analfabetismo dos
seus protagonistas.
4 As novas demandas de consumo das culturas populares
Como já afirmei anteriormente a cultura nordestina é um fluxo de
significados oriundos do imaginário medieval e renascentista cujas
manifestações culturais de carnavalização autorizam a
extravagância e a obscenidade em oposição às regras
obedecidas cotidianamente. São festas, dionisíacas, luprecais e
saturnais, de entrudos e de outros eventos anteriores à Quaresma. É
essa hibridização das redes de comunicação do global e do
local que reinventa a cultura brasileira, a cultura nordestina/sertaneja do
semi-árido, que (re)significa as festas populares e as suas
espetacularizações.
O Brasil entra no mercado globalizado do entretenimento com as telenovelas
da Rede Globo de Televisão exibidas em mais de 100 países,
responsáveis por 95% do faturamento de exportação da
emissora. A telenovela, como um produto emblemático da Rede Globo,
recoloca ao mesmo tempo na rede mundial de consumo cultural um produto
brasileiro, regional, local e internacional. Esse é mais um dos muitos
exemplos que poderíamos demonstrar em que as culturas locais não
vão desaparecer com a globalização do mercado cultural, porque
também é do interesse econômico dos grandes grupos de
comunicação, do turismo e de promotores de eventos midiáticos a
venda de produtos culturais diferenciados. Esse interesse é que faz a
espetacularização das manifestações culturais populares no
mundo globalizado.
As telenovelas não são apenas narrativas ficcionais com tramas de
desejo, amor e ódio, mas produtos estratégicos de venda de bens de
consumo materiais e imateriais. As tramas ficcionais vendem alimentos,
bebidas, roupas, músicas, espetáculos de teatro e shows
protagonizados pelos artistas da TV Globo que se transportam em ``carne e
osso'' para vários países onde são exibidas as suas
telenovelas. Não é por acaso que as telenovelas brasileiras de maior
audiência, também no exterior, são as de época e de
temática rural agregadas de valores das nossas tradições
culturais. É um produto que atende à segmentação de mercado
de bens midiáticos e de demandas no mundo globalizado.
A Rede Globo de Televisão é vista, atualmente, em 99,84% dos
5.561 municípios brasileiros, com audiência média nacional de
64% da população, detendo 75% da fatia do mercado
publicitário para televisão, sendo uma das maiores produtoras de
programas para televisão do mundo. São mais de quatro mil horas de
telenovelas, minisséries, shows de variedades e jornalismo que vão
ao ar anualmente. Nessa contabilidade não estão incluídos os
filmes em longa-metragem que representam cerca de dois mil por ano. A
sociedade brasileira convive com essa realidade onde, independente de classe
social e econômica, seus atores sociais estão cotidianamente na
frente da televisão se informando e se entretendo horas e horas de dia e
de noite. É esse cotidiano, é esse modo de vida e essa cumplicidade
entre o global e o local que vai construindo a nossa identidade, a nossa
cultura em todos os níveis, se assim podemos dizer.
Mas, temos que olhar o outro lado da questão. Os produtores de culturas
populares se apropriam da mídia (jornal, revista, fotografia, cinema,
rádio e televisão, com predominância dos dois últimos), por
constituir meio de informação e entretenimento de maior alcance
popular ultrapassando a necessidade de domínio dos códigos
escritos. O poeta popular Tio Honorato, lá de São José de
Espinharas, cidadezinha do sertão paraibano, afirma que ``o rádio e
a televisão abre as portas do mundo é um grande professor numa casa.
É um professor que pode ser bom ou ruim, cada qual escolhe o que quer
aprender''
A apropriação das novas tecnologias de comunicação pelos
autores populares não é incompatível com os seus modos de
produção cultural, assim como a apropriação dos meios de
comunicação popular por autores ``consagrados'' na sua
produção cultural. São incontáveis os exemplos de
apropriação pela indústria cultural de elementos da cultura
popular e vice-versa. Não existe novidade nesse sentido, o que existe de
novo, como já disse anteriormente, é a velocidade dos
acontecimentos, do consumo em escala mundial desses novos produtos
culturais. Gabriela, personagem vivida por Sônia Braga na telenovela da
Rede Globo em 1975, virou tema de literatura de cordel e foi um sucesso nas
feiras nordestinas nos versos do poeta paraibano Manoel D'Almeida Filho.
Os intelectuais ``consagrados'' se apropriam das narrativas populares orais,
para escrever seus livros, romances, roteiros para cinema, novelas e teatro.
Os intelectuais ``não consagrados'' se apropriam, fazem uso da
mídia, principalmente da televisão, para reinventar os seus
produtos culturais, o cordel, as cantorias, os folguedos, o artesanato, a
culinária e as suas alegorias que enriquecem os cortejos populares. As
quadrilhas juninas são mais um exemplo desses movimentos de
(re)significações culturais, assunto esse já tratado em outro
trabalho e que não cabe aqui detalhar neste momento.
Tomo aqui por empréstimo a afirmação de Umberto Eco sobre o que
é o intelectual, ``quem exerce uma atividade criativa nas ciências
ou nas artes, o que inclui, por exemplo, um agricultor que tem uma idéia
nova sobre a rotação dos cultivos''. O que não falta aos
produtores das culturas populares, na maioria analfabetos, é talento,
criatividade e novas idéias para a construção dos seus mundos
reais, ficcionais, alegóricos e de narrativas inesgotáveis
cocanianas que a globalização não conseguiu acabar. Dessa forma,
intelectuais até então ``não consagrados'' pela academia são
também os que produzem a cultura popular e que operam nas redes de
comunicação cotidiana como mediadores ativistas no processo
dialético da hibridização cultural entre o moderno e o
tradicional, o rural e o urbano, o global e o local.
Nesse jogo negociado entre o local e o global os autores populares
também projetam na mídia as suas obras literárias,
musicais e teatrais. Por sua vez a mídia se apropria das
expressões do imaginário cultural popular com o sentido da
``espetacularização'' direcionando para a grande
audiência uma diversidade de mercados de consumo. A
televisão -- mídia que opera com muita competência --
faz esse jogo de apropriação das tradicionais culturas
populares, integral ou parcialmente, refuncionalizando suas formas
e conteúdos para atrair maior audiência e
conseqüentemente mais patrocinadores e maiores lucros. É
um negócio cultural de interesse mercantilista.
Mas, ainda precisamos observar com mais intensidade os movimentos de
deslocamento nas diferentes redes de comunicação, do local e do
global, como são realizadas as negociações de cumplicidade e
como são mediadas nas instâncias das produções culturais
midiáticas e populares.
As manifestações culturais populares têm as suas origens nas
comemorações comunitárias -- festas religiosas ou profanas. Para
atender à nova ordem econômica do mundo globalizado, de
produção e consumo de bens materiais e imateriais transformam-se em
acontecimentos midiáticos que envolvem as redes de televisão, o
interesse das grandes marcas de bebidas, dos políticos, do turismo e
até dos pequenos comerciantes temporários, na maioria desempregados
ou subempregados, que aproveitam as espetacularizações das festas
para obter alguma renda e reorganizar a economia familiar por algum tempo.
Um desses pequenos comerciantes do Parque do Povo, espaço onde é
realizado o maior São João do Mundo, diz: ``a gente sai do sufoco
por um bom tempo com o que apura aqui nesses trintas dias de festa e sem
falar da Micarande (carnaval fora de época de Campina Grande, que
acontece antes do São João). São essas festas que ajuda muito a
gente aqui manter a família trabalhando" 3 Os organizadores das festas populares e
as redes de televisão operam em função do poder local e do
global, evidentemente numa lógica de relação de desigualdade em
que predominam os negócios de interesse das indústrias de
entretenimento.
Nesse processo de troca de valores simbólicos, os dois sistemas de
produção cultural envolvidos nas negociações e
articulações são paradoxais, porque os interesses para a
realização das festas são convergentes, mas os procedimentos
para a sua celebração são opostos e conflituosos. Para os
promotores locais, a celebração das festas continua tendo os
significados lúdico, mítico, mágico e religioso mas, nos
últimos anos também passaram a existir os interesses dos
negócios.
Para os agentes externos o interesse é prioritariamente econômico,
transformando as festas em produtos de consumo de escala global. Para a
mídia e os mega-grupos econômicos a cultura tradicional não
deve ser apenas popular, mas popularesca, consumida por maior número de
pessoas e espetacularmente exibida. Ou seja, quanto maior o seu consumo,
melhor será o resultado e, portanto, a sua espetacularização e
carnavalização são estratégias para o consumo desses
produtos culturais, cuja demanda é crescente no Brasil e no mundo
globalizado.
Nos últimos dez anos no Nordeste e no Norte os grupos econômicos
``faturam'' cada vez mais com o tempo do não-trabalho, promovendo festas
juninas, vaquejadas, carnavais tradicionais e fora de época. As festas
populares nessas duas regiões brasileiras aquecem, mesmo que
temporariamente, a frágil economia da região.
5 Considerações finais
Os interesses desses negócios culturais são contraditórios
porque na recepção desses significados midiáticos, os mediadores
-- produtores da cultura folkmidiática -- interagem nas organizações sociais, apropriam-se e fazem uso dos
textos televisivos para reinventar novas leituras na recepção, que
muitas vezes não são as desejadas pela produção televisiva.
São essas reinvenções que enriquecem as manifestações
culturais brasileiras e agregam novos valores às identidades nacionais.
Portanto, quero dizer mais uma vez que não é comendo Big Mac, Pizza
Hut, vestindo calças jeans ou roupas de vaqueiro americano nos rodeios ou nas
vaquejadas, na espetacularização das festas populares, ou
reinventando as próprias grifes ou consumindo produtos piratas que o
brasileiro vai deixar de ser brasileiro.
A globalização não elimina as diferenças e não equaciona
as desigualdades culturais. Ao contrário, nesses processos de
hibridização a apropriação pela mídia das
tradições populares brasileiras e especialmente as nordestinas,
não ocorre passivamente, porque os campos da recepção são
tencionados no interior dos subsistemas dos campos culturais, que se
interligam pelas redes de comunicação do local, onde operam os
mediadores ativistas na apropriação, incorporação e
conversão dos bens culturais midiáticos para as suas práticas da
vida cotidiana. São manifestações culturais que estão em
constante processo de mudança de significado. Portanto, não faz mais
sentido essa preocupação de estudar, fora desses contextos, as
possíveis ``deturpações'', ``descaracterizações'' das
manifestações das culturas populares nas sociedades midiatizadas ou,
como queiram, na sociedade dos espetáculos.
Não se pode negar a existência de uma cultura global que só
é global porque não existe uniformidade cultural. A
globalização só tem sentido se existir a diversidade e não a
homogeneização cultural. É nesse contexto contemporâneo que
as culturas populares, estão sendo reinventadas, num jogo de
negociação dialético entre o local e o global. A televisão
impulsiona essa outra forma do fazer cultural, mas as astúcias, os
consentimentos estão nas intenções mediadas, nos desejos, nos
processos de negociação dos constituintes das diferentes escalas
geográficas e em tempos variados, em qualquer lugar do mundo
globalizado, inclusive nas comunidades rurbanas do interior paraibano.
6 Referência
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Sergipe, 1994.
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2000.
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- BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
- COSTA, Maria Cristina Castilho. Ficção, comunicação e mídias. São Paulo: Editora SENAC São Paulo,
2002.
- DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
- DICIONÁRIO da TV Globo: Programas de dramaturgia & entretenimento. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, v. 1, Projeto
memória das Organizações Globo.
- ECO, Umberto. A função dos intelectuais. Época n. 246, p. 22-23,3 fev.
2003.
- FERREIRA, Felipe. O livro de ouro do carnaval brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.
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Paulo: Companhia das Letras, 1998.
- LIMA, Elizabeth Christina de Andrade. A fabricação dos sonhos: a invenção da festa junina no
espaço urbano. João Pessoas: Idéia, 2002.
- MATTELART, Armand. A globalização da comunicação. Bauru, SP: EDUSC, 2000.
- SEGALEN, Martine. Ritos e rituais contemporâneos. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002.
- SODRÉ, Muniz. Antropológica do espelho: uma teoria da comunicação linear em rede.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.
- 1
- Professor
Adjunto do Departamento de Comunicação e Turismo da
Universidade Federal da Paraíba. Doutor em Ciências da
Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos
Sinos/UNISINOS em São Leopoldo/RS; Pesquisador da Rede
Brasileira de Folkcomunicação e membro da Comissão
Paraibana de Folclore. Comunicado apresentado no Seminário
Nacional de Políticas Públicas para as Culturas
Populares, fev./ 2005 em Brasília --DF. Evento promovido pelo
Minc.
- 2
- Neologismo criado por Gilberto Freire para
definir a transição do rural para o urbano. Ou seja o que não
é rural nem urbano.
- 3
- Depoimento de
barraqueiro, 46 anos com segundo grau completo, que comercializava comidas e
bebidas no Parque do Povo, durante os trintas dias da Festa de São
João (Campina Grande/PB, 2004).