A espetacularização das culturas populares ou produtos culturais folkmidiáticos

Osvaldo Meira Trigueiro1

 

Índice

 

1  Introdução

O homem comemora há centenas de anos os seus ritos de passagem, relembra as suas datas festivas sagradas, profanas e de agradecimento. São essas evoluções e evocações que chegam até os dias atuais, que já estão incorporadas aos nossos calendários de tradição religiosa e festiva. Ao longo do tempo essas práticas sempre fizeram parte dos processos das transformações culturais e religiosas da sociedade humana e das suas relações simbólicas entre a realidade e a ficção, dando origem aos diversos protagonistas e suas performances nos festejos populares. São essas práticas do passado que chegam ao presente com as suas diversidades nacionais, regionais e locais, de significados, de referências e de desdobramentos em processos culturais de apropriações e incorporações de novos valores simbólicos que vão construindo outras identidades. Identidade aqui compreendida como um processo cultural em constante movimento entre os espaços públicos e privados das instâncias sociais.

É nesses contextos que venho estudando os deslocamentos, as teledistribuições de bens culturais populares materiais e imateriais para as novas demandas de consumo no mundo globalizado. São os diferentes circuitos de difusão e de mercado desses produtos culturais, suas negociações e cumplicidades, que tenho observado. Já no início dos anos de 1970, com a consolidação da indústria cultural impulsionada pelos meios de comunicação de massa principalmente pela televisão, a espetacularização das culturas populares ou produtos culturais folkmidiáticos se intensifica, ganha maior visibilidade no Brasil.

2  Produtos culturais folkmidiáticos

Acho interessante colocar o conceito de folkcomunicação do professor e pesquisador Luiz Beltrão:
(...) conjunto de procedimentos de intercâmbio de informações, idéias, opiniões e atitudes dos públicos marginalizados urbanos e rurais, através de agentes e meios direta ou indiretamente ligados ao folclore (1980:24).
Em outra perspectiva da folkcomunicação tenho pesquisado sistematicamente os processos de apropriação e incorporação das manifestações culturais populares pela mídia e, em movimento inverso, como os protagonistas das culturas populares se apropriam das novas tecnologias para reinventarem os seus produtos culturais. Essas aproximações, das culturas populares e midiáticas no mundo globalizado são cada vez mais intensas. A essas cumplicidades culturais, geradas em campos híbridos, passei a chamar de Produtos Folkmidiáticos. Nesses campos estratégicos é que se dão as negociações dialéticas, conflituosas e paradoxais mais importantes no mundo globalizado. São campos operados por diferentes instâncias de negociações que se deslocam em redes capilares de comunicação comunitária interligadas às redes midiáticas. Ou seja, é nesses campos híbridos, folkcomunicacionais que se dão as mediações entre as culturas midiáticas e populares resultando em novos produtos de bens culturais de consumo. São processos tensos e intensamente dialógicos mediados pelos operadores das redes de comunicação cotidiana em movimentos dinâmicos, onde se inventam e reinventam novas manifestações culturais populares para as demandas de consumo da sociedade midiática.

Folkmidiático é um conceito recente, ainda em construção na tentativa de melhor se compreenderem essas estratégias multidirecionais onde operam protagonistas de diferentes segmentos socioculturais, do massivo e popular. É um conceito em construção e que nos últimos anos vem se consolidando como instrumento de observação das estratégias de produção, circulação e consumo de bens culturais folkcomunicacionais.

As manifestações populares (festas, danças, culinária, arte, artesanato, etc) já não pertencem apenas aos seus protagonistas. As culturas tradicionais no mundo globalizado são também do interesse dos grupos midiáticos, de turismo, de entretenimento, das empresas de bebidas, de comidas e de tantas outras organizações socais, culturais e econômicas.

Temos como exemplo as festas populares juninas no Nordeste, especialmente em Campina Grande, na Paraíba, e Caruaru em Pernambuco; as Festas do Bumba-Meu-Boi em São Luiz, no Maranhão; Boi-Bumbá na Amazônia, especialmente em Parintins, Peão Boiadeiro em Barretos no Estado de São Paulo, a renovada literatura de cordel com os temas atuais que se apropriam dos acontecimentos midiáticos como a invasão do Iraque, o atentado de 11 de setembro nos Estados Unidos da América, a arte popular e o artesanato, os restaurantes fast-food de comidas típicas e tantas outras manifestações culturais populares, que agregam valores da sociedade midiática de consumo para se adequarem às demandas do mercado global na venda de produtos culturais diferenciados.

Tenho abordado esse tema nos meus recentes trabalhos de pesquisa sobre as tradições culturais populares e os processos midiáticos de apropriações e (re)elaborações dos seus significados. Podemos afirmar que a sua origem é muito mais antiga do que se pensa, vem desde o uso das narrativas seriadas orais dos contos populares das mil e uma noites -- as narrativas de Sherezade -- passando pelo teatro popular de rua -- Commedia Dell'Arte - pelos antigos cortejos de carnavalização das festas populares -- na idade média -- pelos folhetins com seus ganhos de interrupção das estórias ficcionais no momento de maior tensão de suas tramas, dramaticidades e, mais recentemente, passando pelo cinema e pela televisão. As espetacularizações das culturas populares sempre fizeram e continuarão fazendo parte dos desejos de brincar das classes populares nos espaços públicos das ruas, ora como personagens de Pantaleões, Capitães Espaventos, Pulicinelas, o Morto Carregando o Vivo, as Burrinhas e os Ursos, Pierrôs, Arlequins e Colombinas, ora com as deformidades dos bonecos gigantes, as grandiosidades e os exageros dos carros alegóricos dos cortejos das charivaris que faziam parte das festas de carnavalização medievais antecedendo o início da Quaresma. Esses personagens das antigas brincadeiras jocosas continuam, na sua maioria, presentes nos atuais festejos de momo espalhados pelas diferentes regiões do Brasil.

3  A espetacularização das culturas populares

As manifestações culturais populares têm esse caráter de ambigüidade entre o mal e o bem, a vida e a morte, que transborda na nossa cotidianidade todos os limites dos exageros das emoções e desejos da aproximação da realidade com a ficção criada pela sociedade humana. São manifestações que estão associadas a essas dualidades do mundo real da vida e o mundo ficcional do imaginário simbólico, do disforme da natureza e as experiências oníricas que sempre fizeram parte das nossas histórias de encantados no mundo da infância e que chegam à vida adulta mais próximas da racionalidade. É a hibridização de tudo isso que dá a tônica à cultura popular no mundo globalizado pelos meios de comunicação e pelos novos interesses de consumo de bens culturais.

O cordel por um longo tempo foi um importante meio de comunicação popular e usado para atingir o maior número possível de pessoas. Sempre houve uma mediação entre a produção cultural popular e as classes hegemônicas. Por outro lado, mudaram as negociações, os interesses, as formas, a velocidade do tempo e a dimensão de alcance desses bens culturais nos nossos dias.

Atualmente, temos uma mediação midiática fortemente influenciada pela televisão que se apropria das manifestações das culturas populares para os seus mais diversos interesses.

Essa é a questão central da minha intervenção nesta mesa redonda. Não trago novidades, apenas algumas constatações para mostrar que a espetacularização das culturas populares não é uma coisa tão nova como se pensa, a mudança é nos métodos de produção, na velocidade da distribuição e no mercado de consumo desses bens culturais. Hoje em dia a classe média consome mais os produtos da cultura popular, a exemplo dos artefatos de decoração, nas festas populares, no consumo de produtos naturais e a crescente preferência por restaurantes de comidas regionais .

As empresas que promovem entretenimento e turismo têm suas localizações cada vez mais abstratas, ou seja, são empresas que já não pertencem a um território. Mas, os produtores culturais populares locais continuam enraizados no seu chão, no seu lugar, porém sem perder de vista o mundo de fora, visibilizado pela mídia. Ao mercado e à sociedade global não interessa o universalismo simbólico das culturas, até porque os conceitos, como se pensava nos anos 1960, de ``aldeia global'' ou de instauração de um ``McMundo'' não vingaram, nem mesmo com a globalização cultural e, os acontecimentos culturais são cada vez mais regionalizados com a globalização.

Lia de Itamaracá, cantora pernambucana de temas folclóricos, só aos 59 anos ganha o seu espaço na mídia nacional e internacional depois que é descoberta pelos produtores de bens culturais do mercado global. É um exemplo claro dessa mediação cultural entre o popular e os processos midiáticos.

As festas populares na região nordestina transformam-se para atender às demandas de mercado de consumo no mundo globalizado. Para atender a esse segmento de mercado cultural da sociedade midiática, são modificados os processos de apropriação e incorporação dos novos valores estéticos populares. Nesse sentido, a cultura popular, o folclore não são coisas engessadas, fechadas para serem simplesmente preservadas ou resgatadas. É um processo cultural em movimento no âmbito do campo social dos nordestinos, presente na vida cotidiana e que se entrelaça com os produtos culturais globais ofertados pelos grandes grupos econômicos por via das novas tecnologias da informação e da comunicação, notadamente da televisão. A cultura popular está sempre aberta a setores de produção cultural, a outros significados, a novas práticas sociais, aos novos sistemas de comunicação. Estamos vivendo no mundo em que quase tudo se torna espetáculo. Vivemos numa sociedade midiatizada onde as culturas populares são atrativos para o exibicionismo televisivo, onde quase todos os acontecimentos da vida cotidiana poderão transformar-se em espetáculos midiáticos, desde um acidente trágico -- mesmo que só envolva pessoas anônimas das quais vai depender a sua proporcionalidade -- a um casamento, ou funeral de celebridades e, sem dúvida alguma, das festas populares. Quero dizer com isso que a sociedade humana no mundo globalizado é inserida nos processos midiáticos. São momentos de grandes celebrações desde as campanhas eleitorais, competições desportivas, concentrações religiosas, ritos de passagem (quando envolvem celebridades) ou acontecimentos que estão fora do ordinário da vida cotidiana e entre esses acontecimentos estão as festas profanas e religiosas.

Exemplos desses novos procedimentos são as ressignificações das festas populares, do artesanato, da culinária, das cantorias de violas, do cordel e de tantas outras manifestações da cultura tradicional nordestina proporcionadas pelas novas lógicas de consumo do local, alavancadas pela televisão. Ora, se por um lado são hegemônicos os interesses de persuasão cultural dos megagrupos econômicos, por outro os mediadores ativistas culturais locais criam estratégias próprias de permanência nos seus pedaços e, como enfrentamento do novo contexto, descobrem novas formas de comunicação para divulgar os seus produtos culturais. Nos anos de 1940 Luiz Gonzaga, o ``Rei do Baião'', reinventou a música nordestina para fazer sucesso no rádio, na indústria fonográfica, no cinema e, posteriormente, se consagrou na televisão sendo reconhecido pela intelectualidade brasileira como um dos grandes inovadores da música nordestina (na transição do rural para o urbano). Luiz Gonzaga na sua genialidade dá sentido rurbano2 ao forró e ao baião. Portanto, não é tão nova a estratégia de apropriação das tecnologias de comunicação pelos produtores de cultura popular para recolocar o local no mercado global.

Mas é preciso se chamar a atenção para as mudanças por que passam atualmente essas festas populares (Natal, Carnaval, Semana Santa, São João, Vaquejada, etc), que eram realizadas espontaneamente pelos grupos locais e agora são organizadas com a participação de grandes grupos multimidiáticos, empresas de bebidas e comidas, promotores culturais e empresas de turismo. É como se existissem duas festas, uma dentro da outra, ou seja, a festa central institucionalizada, de interesse econômico dos megagrupos empresariais, políticos e até religiosos, e a outra periférica, que continua sendo organizada através da mobilização da comunidade, pelas fortes redes sociais de comunicação, com a finalidade alegórica de rompimento com o cotidiano e com o mundo normativo estabelecido. Ou seja, a celebração para ``quebrar a rotina'', em tempo de festa nos diferentes instantes da comunidade e outra no tempo do espetáculo organizado para consumo global.

É nesse Nordeste das narrativas orais da seca, da morte ``matada'' pela fome, do ``cabra da peste'', das astúcias dos ``João Grilo'' que operam os imaginários populares do sertão. A cotidianidade das pequenas cidades interioranas do Nordeste, quando adaptada para as narrativas ficcionais do cinema, da televisão, do teatro ou da literatura aproxima o Brasil urbano do Brasil rural, melhor dizendo, a convivência de um Brasil rurbano.

São esses gêneros narrativos da oralidade popular projetados pelas manifestações folclóricas (os mitos messiânicos característicos das comunidades rurais, as conversas entre compadres e vizinhos, as brigas de amor e ódio, os ``fuxicos'' que circulam nas redes de comunicação cotidiana entre os parentes e amigos etc) que, ao longo do tempo, continuam enraizados na oralidade, ``correndo de boca em boca'' do povo do semi-árido nordestino e apropriados por escritores, autores e diretores, que reinventam suas histórias em livros, teatro, contos, filmes, vídeos e telenovelas. São esses processos de apropriação do imaginário sociocultural brasileiro, nordestino/sertanejo que a televisão continua reproduzindo para o mundo globalizado e que dão bons resultados de audiência. O imaginário cultural rural do Nordeste é um ``prato feito'' para a teledramaturgia brasileira, por ser uma cultura polissêmica, multicolorida, carregada de crenças, superstições, do sagrado e do profano, do ecológico e do alegórico que contrasta, quase sempre, com a miséria e o analfabetismo dos seus protagonistas.

4  As novas demandas de consumo das culturas populares

Como já afirmei anteriormente a cultura nordestina é um fluxo de significados oriundos do imaginário medieval e renascentista cujas manifestações culturais de carnavalização autorizam a extravagância e a obscenidade em oposição às regras obedecidas cotidianamente. São festas, dionisíacas, luprecais e saturnais, de entrudos e de outros eventos anteriores à Quaresma. É essa hibridização das redes de comunicação do global e do local que reinventa a cultura brasileira, a cultura nordestina/sertaneja do semi-árido, que (re)significa as festas populares e as suas espetacularizações.

O Brasil entra no mercado globalizado do entretenimento com as telenovelas da Rede Globo de Televisão exibidas em mais de 100 países, responsáveis por 95% do faturamento de exportação da emissora. A telenovela, como um produto emblemático da Rede Globo, recoloca ao mesmo tempo na rede mundial de consumo cultural um produto brasileiro, regional, local e internacional. Esse é mais um dos muitos exemplos que poderíamos demonstrar em que as culturas locais não vão desaparecer com a globalização do mercado cultural, porque também é do interesse econômico dos grandes grupos de comunicação, do turismo e de promotores de eventos midiáticos a venda de produtos culturais diferenciados. Esse interesse é que faz a espetacularização das manifestações culturais populares no mundo globalizado.

As telenovelas não são apenas narrativas ficcionais com tramas de desejo, amor e ódio, mas produtos estratégicos de venda de bens de consumo materiais e imateriais. As tramas ficcionais vendem alimentos, bebidas, roupas, músicas, espetáculos de teatro e shows protagonizados pelos artistas da TV Globo que se transportam em ``carne e osso'' para vários países onde são exibidas as suas telenovelas. Não é por acaso que as telenovelas brasileiras de maior audiência, também no exterior, são as de época e de temática rural agregadas de valores das nossas tradições culturais. É um produto que atende à segmentação de mercado de bens midiáticos e de demandas no mundo globalizado.

A Rede Globo de Televisão é vista, atualmente, em 99,84% dos 5.561 municípios brasileiros, com audiência média nacional de 64% da população, detendo 75% da fatia do mercado publicitário para televisão, sendo uma das maiores produtoras de programas para televisão do mundo. São mais de quatro mil horas de telenovelas, minisséries, shows de variedades e jornalismo que vão ao ar anualmente. Nessa contabilidade não estão incluídos os filmes em longa-metragem que representam cerca de dois mil por ano. A sociedade brasileira convive com essa realidade onde, independente de classe social e econômica, seus atores sociais estão cotidianamente na frente da televisão se informando e se entretendo horas e horas de dia e de noite. É esse cotidiano, é esse modo de vida e essa cumplicidade entre o global e o local que vai construindo a nossa identidade, a nossa cultura em todos os níveis, se assim podemos dizer.

Mas, temos que olhar o outro lado da questão. Os produtores de culturas populares se apropriam da mídia (jornal, revista, fotografia, cinema, rádio e televisão, com predominância dos dois últimos), por constituir meio de informação e entretenimento de maior alcance popular ultrapassando a necessidade de domínio dos códigos escritos. O poeta popular Tio Honorato, lá de São José de Espinharas, cidadezinha do sertão paraibano, afirma que ``o rádio e a televisão abre as portas do mundo é um grande professor numa casa. É um professor que pode ser bom ou ruim, cada qual escolhe o que quer aprender''

A apropriação das novas tecnologias de comunicação pelos autores populares não é incompatível com os seus modos de produção cultural, assim como a apropriação dos meios de comunicação popular por autores ``consagrados'' na sua produção cultural. São incontáveis os exemplos de apropriação pela indústria cultural de elementos da cultura popular e vice-versa. Não existe novidade nesse sentido, o que existe de novo, como já disse anteriormente, é a velocidade dos acontecimentos, do consumo em escala mundial desses novos produtos culturais. Gabriela, personagem vivida por Sônia Braga na telenovela da Rede Globo em 1975, virou tema de literatura de cordel e foi um sucesso nas feiras nordestinas nos versos do poeta paraibano Manoel D'Almeida Filho.

Os intelectuais ``consagrados'' se apropriam das narrativas populares orais, para escrever seus livros, romances, roteiros para cinema, novelas e teatro. Os intelectuais ``não consagrados'' se apropriam, fazem uso da mídia, principalmente da televisão, para reinventar os seus produtos culturais, o cordel, as cantorias, os folguedos, o artesanato, a culinária e as suas alegorias que enriquecem os cortejos populares. As quadrilhas juninas são mais um exemplo desses movimentos de (re)significações culturais, assunto esse já tratado em outro trabalho e que não cabe aqui detalhar neste momento.

Tomo aqui por empréstimo a afirmação de Umberto Eco sobre o que é o intelectual, ``quem exerce uma atividade criativa nas ciências ou nas artes, o que inclui, por exemplo, um agricultor que tem uma idéia nova sobre a rotação dos cultivos''. O que não falta aos produtores das culturas populares, na maioria analfabetos, é talento, criatividade e novas idéias para a construção dos seus mundos reais, ficcionais, alegóricos e de narrativas inesgotáveis cocanianas que a globalização não conseguiu acabar. Dessa forma, intelectuais até então ``não consagrados'' pela academia são também os que produzem a cultura popular e que operam nas redes de comunicação cotidiana como mediadores ativistas no processo dialético da hibridização cultural entre o moderno e o tradicional, o rural e o urbano, o global e o local.

Nesse jogo negociado entre o local e o global os autores populares também projetam na mídia as suas obras literárias, musicais e teatrais. Por sua vez a mídia se apropria das expressões do imaginário cultural popular com o sentido da ``espetacularização'' direcionando para a grande audiência uma diversidade de mercados de consumo. A televisão -- mídia que opera com muita competência -- faz esse jogo de apropriação das tradicionais culturas populares, integral ou parcialmente, refuncionalizando suas formas e conteúdos para atrair maior audiência e conseqüentemente mais patrocinadores e maiores lucros. É um negócio cultural de interesse mercantilista.

Mas, ainda precisamos observar com mais intensidade os movimentos de deslocamento nas diferentes redes de comunicação, do local e do global, como são realizadas as negociações de cumplicidade e como são mediadas nas instâncias das produções culturais midiáticas e populares.

As manifestações culturais populares têm as suas origens nas comemorações comunitárias -- festas religiosas ou profanas. Para atender à nova ordem econômica do mundo globalizado, de produção e consumo de bens materiais e imateriais transformam-se em acontecimentos midiáticos que envolvem as redes de televisão, o interesse das grandes marcas de bebidas, dos políticos, do turismo e até dos pequenos comerciantes temporários, na maioria desempregados ou subempregados, que aproveitam as espetacularizações das festas para obter alguma renda e reorganizar a economia familiar por algum tempo. Um desses pequenos comerciantes do Parque do Povo, espaço onde é realizado o maior São João do Mundo, diz: ``a gente sai do sufoco por um bom tempo com o que apura aqui nesses trintas dias de festa e sem falar da Micarande (carnaval fora de época de Campina Grande, que acontece antes do São João). São essas festas que ajuda muito a gente aqui manter a família trabalhando" 3 Os organizadores das festas populares e as redes de televisão operam em função do poder local e do global, evidentemente numa lógica de relação de desigualdade em que predominam os negócios de interesse das indústrias de entretenimento.

Nesse processo de troca de valores simbólicos, os dois sistemas de produção cultural envolvidos nas negociações e articulações são paradoxais, porque os interesses para a realização das festas são convergentes, mas os procedimentos para a sua celebração são opostos e conflituosos. Para os promotores locais, a celebração das festas continua tendo os significados lúdico, mítico, mágico e religioso mas, nos últimos anos também passaram a existir os interesses dos negócios.

Para os agentes externos o interesse é prioritariamente econômico, transformando as festas em produtos de consumo de escala global. Para a mídia e os mega-grupos econômicos a cultura tradicional não deve ser apenas popular, mas popularesca, consumida por maior número de pessoas e espetacularmente exibida. Ou seja, quanto maior o seu consumo, melhor será o resultado e, portanto, a sua espetacularização e carnavalização são estratégias para o consumo desses produtos culturais, cuja demanda é crescente no Brasil e no mundo globalizado.

Nos últimos dez anos no Nordeste e no Norte os grupos econômicos ``faturam'' cada vez mais com o tempo do não-trabalho, promovendo festas juninas, vaquejadas, carnavais tradicionais e fora de época. As festas populares nessas duas regiões brasileiras aquecem, mesmo que temporariamente, a frágil economia da região.

5  Considerações finais

Os interesses desses negócios culturais são contraditórios porque na recepção desses significados midiáticos, os mediadores -- produtores da cultura folkmidiática -- interagem nas organizações sociais, apropriam-se e fazem uso dos textos televisivos para reinventar novas leituras na recepção, que muitas vezes não são as desejadas pela produção televisiva. São essas reinvenções que enriquecem as manifestações culturais brasileiras e agregam novos valores às identidades nacionais.

Portanto, quero dizer mais uma vez que não é comendo Big Mac, Pizza Hut, vestindo calças jeans ou roupas de vaqueiro americano nos rodeios ou nas vaquejadas, na espetacularização das festas populares, ou reinventando as próprias grifes ou consumindo produtos piratas que o brasileiro vai deixar de ser brasileiro.

A globalização não elimina as diferenças e não equaciona as desigualdades culturais. Ao contrário, nesses processos de hibridização a apropriação pela mídia das tradições populares brasileiras e especialmente as nordestinas, não ocorre passivamente, porque os campos da recepção são tencionados no interior dos subsistemas dos campos culturais, que se interligam pelas redes de comunicação do local, onde operam os mediadores ativistas na apropriação, incorporação e conversão dos bens culturais midiáticos para as suas práticas da vida cotidiana. São manifestações culturais que estão em constante processo de mudança de significado. Portanto, não faz mais sentido essa preocupação de estudar, fora desses contextos, as possíveis ``deturpações'', ``descaracterizações'' das manifestações das culturas populares nas sociedades midiatizadas ou, como queiram, na sociedade dos espetáculos.

Não se pode negar a existência de uma cultura global que só é global porque não existe uniformidade cultural. A globalização só tem sentido se existir a diversidade e não a homogeneização cultural. É nesse contexto contemporâneo que as culturas populares, estão sendo reinventadas, num jogo de negociação dialético entre o local e o global. A televisão impulsiona essa outra forma do fazer cultural, mas as astúcias, os consentimentos estão nas intenções mediadas, nos desejos, nos processos de negociação dos constituintes das diferentes escalas geográficas e em tempos variados, em qualquer lugar do mundo globalizado, inclusive nas comunidades rurbanas do interior paraibano.

6  Referência

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1
Professor Adjunto do Departamento de Comunicação e Turismo da Universidade Federal da Paraíba. Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos/UNISINOS em São Leopoldo/RS; Pesquisador da Rede Brasileira de Folkcomunicação e membro da Comissão Paraibana de Folclore. Comunicado apresentado no Seminário Nacional de Políticas Públicas para as Culturas Populares, fev./ 2005 em Brasília --DF. Evento promovido pelo Minc.
2
Neologismo criado por Gilberto Freire para definir a transição do rural para o urbano. Ou seja o que não é rural nem urbano.
3
Depoimento de barraqueiro, 46 anos com segundo grau completo, que comercializava comidas e bebidas no Parque do Povo, durante os trintas dias da Festa de São João (Campina Grande/PB, 2004).