Quando a Cultura se rende á Tecnologia Segundo Neil Postman

Fernando Teófilo

Outubro 1998



Quem é Neil Postman

Neil Postman é professor de "media ecology" e director do departamento de cultura e comunicação da universidade de Nova Iorque. Começou a sua carreira académica no campo da literatura inglesa, passando depois pela linguística. Hoje é uma das personalidades mais ouvidas na área da crítica da cultura e da comunicação. A sua escrita simples e o seu tornam-no muito procurado para congressos e seminários em todo o mundo.

Até hoje já publicou cerca de vinte títulos. O seu primeiro êxito foi "Teaching as a subversive activity". Esta obra teve a importância de fazer com que o meio académico lhe dedicasse mais interesse. Será em 1985, com o livro "Amusing ourselves to death", que Postman passa a atrair atenções provenientes de quadrantes além das suas fronteiras universitárias. Esta é uma obra que relaciona a evolução dos meios de comunicação com a decadência da cultura, e como o discurso público a acompanhou.

O texto que a seguir desenvolvo irá apresentar uma outra obra, mais recente, e que repete a ideia do fim da cultura, desta vez relacionada com a tecnologia. Refiro-me a "Technopoly - The surrender of culture to technology".
 
 

A vitória da técnica Em "Technopoly" Postman descreve a forma como a tecnologia se tem relacionado com a cultura, desde a era da ferramenta á tecnopolia, e avança com a terapia que julga ser a mais apropriada para contrariarmos o domínio tecnológico sobre a cultura.

No início do livro recuamos á antiguidade clássica para bebermos um pouco da sapiência dos diálogos de Sócrates, descritos por Platão no Fedro. Apresenta-nos a lenda do rei Tamuz e do seu encontro com o deus das invenções Thoth. Esta história mostra-nos que o dilema provocado hoje pela tecnologia não é de agora. Questionar os benefícios ou os malefícios da tecnologia é já actividade antiga.

Resumidamente a história de Tamuz é a seguinte:

Um dia o rei Tamuz recebeu o deus Thoth, inventor, entre muitas outras coisas, da escrita. Segundo o deus Thoth cada uma das suas invenções, particularmente a escrita, iriam tornar Tamuz um rei reconhecido e indispensável para o seu povo. No entanto, o rei quis saber da utilidade de cada uma das invenções, por exemplo, da escrita. Para Thoth a escrita era a maior façanha de todas, aquela que iria melhorar tanto a sabedoria como a memória do povo. Tamuz retorquiu que o inventor de uma arte não pode ser o melhor a ajuizar sobre o bem ou mal que esta provocará a quantos a aplicarem. Muitas vezes em vez do bem que se anuncia é o mal que chega. Para Tamuz a escrita é disso um exemplo: aqueles que a utilizarem deixarão de exercitar a memória e tornar-se-ão esquecidos, pois confiam que a escrita lhes trará á lembrança as coisas. Esta confiança nos sinais gráficos fá-los perder a confiança nos seus próprios recursos. A escrita serve assim para rememorar e não para desenvolver a memória. É ilusória a sabedoria que se espera. Os alunos terão fama de a possuirem mas isso não corresponde á verdade pois receberão uma quantidade de informação sem a instrução adequada. Considerar-se-ão muito conhecedores mas serão bastante ignorantes. Estão cheios do conceito de sabedoria mas não de verdadeira sabedoria.

Eis como a tecnologia que se anuncia como beneficente afinal prejudica. Este é também um ponto de partida utilizado por Postman para uma crítica da influência da tecnologia sobre as culturas onde são recebidas.

Para Tamuz a escrita era algo apenas negativo. Postman considera que é um erro supor que as inovações tecnológicas têm um efeito unívoco. A tecnologia pode ser ao mesmo tempo um mal e um bem. A tecnologia tem sempre esta biunivocidade sobre a cultura. Não se pode anunciar apenas um dos sentidos. O meio termo é o resultado que se obtem da negociação entre a cultura e a tecnologia.

Mas o resultado não tem sido o meio termo. Esta negociação não tem sido favorável á cultura. A prova é a subjugação a que a cultura se sujeitou. Segundo Postman a tecnologia efectua o seu domínio de duas formas, uma clara e outra menos perceptível porque para ele há tecnologias que são visíveis outras invisíveis. As visíveis são aquelas que todos consideramos como tecnologia. Exemplifica com a televisão, o automóvel e o computador. As invisíveis não são tecnologias com forma física, não têm um mecanismo técnico observável, são todavia técnicas e métodos que de uma forma sistemática e repetida condicionam a forma como pensamos o mundo que nos rodeia. A escrita pode ser disto um exemplo, mas Postman avança também com as técnicas de avaliação escolar, os horários de trabalho e os testes psicológicos.

A negociação revela-se também difícil porque a tecnologia tende a eliminar qualquer alternativa a si própria, redefinindo assim o que entendemos por religião, arte, família, política, história, verdade, privacidade, etc., para que as nossas definições encaixem nas suas novas exigências. Quando chegamos a este ponto já nos encontramos num estádio monopolizado pela técnica. Postman chama-lhe Tecnopolia.

Para este autor os Estados Unidos são o exemplo máximo da tecnopolia. Os americanos vivem hoje numa sociedade que busca a sua autoridade na tecnologia, satisfaz-se na tecnologia e orienta-se pelas regras impostas pela tecnologia. É a rendição incondicional. A cultura rendeu-se com uma fé cega na ciência. Uma crença inabalável nas vantagens do progresso sem limites na tecnologia sem custos, substituindo a moral pela eficiência e o lucro.

Este é o final previsto por Postman para todas as culturas. Porém, antes de aqui chegarem terão de passar por aquilo a que Postman chama de estádios ferramentista e tecnocrático. A cada um deles corresponde um tipo de cultura e uma forma de relacionamento com a tecnologia. É possível ainda hoje encontrar populações a viver nestes patamares tecnológicos, mas o tipo ferramentista está cada vez mais próximo da extinção. A maioria vive numa tecnocracia e alguns estão já na tecnopolia. Pelas palavras de Postman ficamos com a impressão que apenas os Estados Unidos se encontram numa tecnopolia, mas, apesar deste estilo etnocêntrico, parece ser possível a aplicação deste conceito em outros países.

Nas culturas ferramentistas a técnica está ao serviço da cultura. As ferramentas são inventadas para resolver problemas específicos, como por exemplo o moínho, o arado, a roda dentada; Ou para servir o mundo simbólico na arte, no mito, no ritual. As ferramentas não atacam a integridade da cultura onde são introduzidas. Isto não significa que este tipo de culturas sejam tecnologicamente pobres. A técnica que existe é suficiente para as suas necessidades. A tecnologia não altera a cosmovisão já existente, pelo contrário, adapta-se. Para encontrarmos o melhor da cultura ferramentista, segundo Postman, temos de recuar até á idade média na Europa.

Este equilíbrio perde-se quando a tecnologia passa a desenpenhar um papel central no mundo do pensamento cultural. Nesse momento tudo cede caminho ao desenvolvimento da tecnológico, o social e o simbólico são progressivamente secundarizados. As "ferramentas" já não estão integradas na cultura, elas integram-na e a tradição tem de lutar para sobreviver. Este é o estádio denominado por Postman de Tecnocracia. É ainda no mundo medieval que surgem três tecnologias que viriam proporcionar a ultrapassagem da cultura: o relógio mecânico, os carecteres móveis e o telescópio. O relógio trouxe uma nova concepção do tempo, Gutenberg precepitou o fim da tradição oral, mas o telescópio foi talvez mais demolidor - destruiu proposições da teologia judaico-cristã que eram então fundamentais. Numa sociedade dominada pelo catolicismo, habituada a pensar em si mesma como o centro do universo, um invento óptico fê-la de repente sentir-se sózinha num cantinho minúsculo de uma obscura galáxia. Ironicamente um invento que serve para ampliar a nossa visão provocou a maior sensação de redução. Quanto mais amplifica mais pequenos nos faz sentir.

A tecnocracia caracteriza-se assim por uma erosão dos elos com a tradição. Mas a cosmovisão tradicional ainda coexiste. A tecnologia domina, há uma tensão permanente, mas não há uma subjugação total. Se tal acontecer então é porque já nos encontramos numa Tecnopolia.

Não é possível datar o início da tecnopolia nos Estados Unidos, mas Postman sugere o ano de 1911. Foi neste ano que o norte-americano Frederick Taylor publicou o seu livro "Principles of scientific management". Esta obra é hoje uma referência nas ciências da admnistração mas neste contexto a sua importância reside no facto de Taylor aqui ter apresentado a certidão de óbito da subjectividade. Segundo este engenheiro a meta do trabalho e do pensamento humano deve ser a eficiência. O cálculo técnico é mais fiável que o juízo humano, por isso o deve substituir. Tudo deve ser medido, o que não puder sê-lo não tem valor ou não existe mesmo, e essa função cabe aos especialistas.

Eis algumas das bases do pensamento traduzido na obra que marca o início da tecnopolia. A ideia de taylor foi aplicar toda esta teoria nas fábricas com o intuito de aumentar a produtividade, diminuir as horas de trabalho e aumentar os salários. Porém, o resultado foi bem diferente e não se confinou ás paredes fabris. O trabalho e o pensamento foram gradualmente substituidos pela máquina e por um sistema de regras cientificamente definidas. Aqui está o exemplo da técnica que veio para o bem e trouxe o mal, e de como de uma forma invisível se transforma o pensamento humano. Tamuz iria gostar de o ter citado.

A técnica pode pensar por nós, e com mais rigor. Esta é a segurança que nos anuncia Taylor. Esta crescente desconfiança no pensamento humano começou ainda no século XIX. Marx retirou-nos o direito de sermos nós os donos do nosso destino, este é propriedade da história. Nietzsche anunciou a morte de Deus. Darwin disse que a natureza é que selecciona as espécies. A livre vontade afinal é uma ilusão, avisou Watson. E para corolar este guião sobre a fraqueza humana surge Einstein que "quanticamente" nos descansou: não vale a pena procurar a certeza absoluta, não há meios absolutos para julgar absolutamente nada. Então não podemos confiar em nada?

Não, numa coisa podemos confiar: na tecnologia. "A máquina tem sempre razão", esta é uma ideia cada vez mais enraizada em nós, sendo que hoje a "máquina" é o computador. Como podemos nós acreditar no que produzimos não acreditando em nós próprios. Isto parece-me ser o argumento ideal para uma tragédia simmeliana.

O computador, o ícone da tecnopolia segundo Postman, é a causa do desaparecimento de uma narrativa cultural coerente. O computador aumentou geometricamente o volume de informação que recebemos, mas sem qualquer contextualização que nos permita absorvê-la com sentido. É apenas informação massificada dirigida a todos mas a ninguém em particular. Produzimos computadores que pruduzem informação que só outros computadores conseguem "entender" porque só estes têm capacidade para processar tamanho fluxo de dados. Perdemos a nossa capacidade mediadora, agora confiada á máquina. Assim descontextualizada a informação não só é inútil como potencialmente perigosa. Há um ditado americano que diz: "A um homem com martelo tudo se parece com um prego" . Se em vez de um martelo o homem tiver um computador então tudo se parece com dados.

Não conseguindo nós próprios processar toda a informação que nos enviam, fizémos surgir profissionais para desenvolverem essa actividade. São os especialistas, cuja tarefa é filtrar e tratar a informação que devemos de facto absorver. São estes então que decidem qual a informação relevante. Transformam-se em verdadeiros sistemas de controle da informação. São mediadores da própria mediação. O seu trabalho é concretizado em estudos de mercado, de audiências, de opinião, de impacto ambiental, e até de inteligência. Os resultados são aceites como verdadeiros porque acreditamos que tudo é mensurável. Um Sim traduz-se num 1 e o Não num 0. Postman duvida de todo este processo. A nossa opinião não são necessáriamente as nossas respostas a um questionário porque as perguntas podem obter resultados diferentes em função da forma como são feitas. Não existe neutralidade num questionário nem no conteúdo deste. Postman dá o exemplo anedótico de dois padres que querem saber se podem fumar e rezar ao mesmo tempo. Ambos escrevem uma pergunta ao Papa, mas de uma forma diferente. Por isso obtiveram respostas contraditórias para a mesma dúvida.

Um dos padres perguntou: É permitido fumar enquanto rezo? - Não, enquanto se ora deve estar-se completamente concentrado na oração.

O outro padre perguntou: É permitido rezar enquanto fumo? - Claro que sim, todos os momentos são apropriados para rezar.

Cada vez mais acreditamos que a nossa opinião é aquela que surge nas sondagens e isso é falsear a forma como as pessoas opinam. A gravidade está no facto de a nossa opinião ser a base da sociedade democrática de hoje. Falsear a nossa opinião é manipular o sistema democrático.

Na tecnopolia de Postman a técnica produz a sua influencia não só no campo social como no campo psicológico. Ela cria um estado mental obcecado com as vantagens da tecnologia na educação, na medecina, na linguagem, na ciência, convergindo sempre para um cenário sombrio de subjugação total. Podiamos ter citado a religião mas não é necessário: a técnica é já uma religião. A máquina é já aceite como um deus. É na tecnologia que depositamos a nossa fé e temos razão para o fazer. Afinal a tecnologia funciona mesmo e faz aquilo que lhe pedimos. A espiritualidade deu lugar á fé na racionalidade e cremos que será através do progresso que se chegará a uma melhor forma de vida. As religiões tradicionais resolvem o problema da morte mas só depois no além. A técnica fá-lo aqui e agora, adiando-a cada vez mais. Há-de chegar o dia em que o adiamento será desnecessário.

Como poderemos resistir a este domínio avassalador da tecnologia sobre a cultura. Segundo Postman o caminho da resistência está no romantismo. A solução é assumirmos a atitude de um "resistente romântico". É melhor ser o próprio a descrever o que entende por isto: "a palavra romântico, neste caso, significa que (...) devemos manter sempre manter ao pé do coração as narrativas e os símbolos que uma vez fizeram dos Estados Unidos a esperança do mundo." Postaman dá o exemplo da estátua da liberdade que foi desenhada pelos estudantes chineses nos confrontos de Tianamen.

Ora aqui surge-nos um problema: então para resistir á tecnopolia temos de saber quais os símbolos e as narrativas americanas ? Porque não os símbolos portugueses ? Porque não os italianos ? O melhor é condescender e pensar que assim será quando Portugal, Itália, ou qualquer outro país, atingir aquilo a que Postman considera uma tecnopolia. Há quem possa pensar que Postman, tal como outros americanos, dirigirem-se sempre para eles próprios, não conseguindo comunicar para o mundo. Isso não é verdade. Eles dirigem-se a todo o mundo, o problema é que para eles o mundo são eles, o resto são arredores.

Não se pense que Postman ficou apenas por apontar o caminho para a resistência romântica. Ele desenhou também a melhor rota, prescrevendo a prática de um resistente. Aqui ficam alguns excerptos daquilo que se pode considerar um verdadeiro manual para o bom resistente romântico segundo Neil Postman.

Os Resistentes Românticos devem:

Agora só faltava ficarmos em sentido dizermos em uníssono: JURO !

Não se pense que esta cartilha paternal é suficiente para resistirmos com sucesso. É necesário, segundo Postman, que se alterem também os curriculae escolares. A resistência tem de começar de pequenino e na escola com programas que juntem a arte e a ciência, sempre numa perspectiva histórica. A descrição da "ascenção da humanidade" é fundamental na estratégia desenhada pelo autor. Só assim se pode regressar ao tempo em que a cultura ainda não se tinha rendido á tecnologia.

Apesar de tão pormenorizada descrição de como a cultura deve assumir de novo o poder Neil Postman termina o seu livro duvidando do êxito deste empreendimento. No entanto servirá sempre para "começar um diálogo sério que nos distancie dessa cosmovisão e então criticá-la e modificá-la."


Comentário

Postman talvez se tenha esquecido que já não é preciso "começar" esse "diálogo sério" porque antes dele já outros o iniciaram e também eles conseguiram "distanciar-se". Estou neste momento a pensar em Henri Bergson e Georg Simmel. Dois autores que não precisaram de viver a tecnopolia para prospectivar o abismo que a cultura perseguia.

Bergson, na sua busca pela boa forma de vida, pela "joie", também se deparou com este dilema entre a cultura e a técnica. Para ele a técnica é culturalmente problemática porque, apesar de útil, cria desejos e necessidades artificiais. Uma coincidência com o pensamento de Postman: também ele afirmou que nos satisfaziamos na tecnologia. Todavia, segundo Bergson, são satisfações efémeras que se extinguem a si próprias e que surgem fora de uma dinâmica cultural. A técnica não serve, portanto, para se alcançar a "joie". A técnica leva á destruição da cultura, em particular as culturas tradicionais, mas só na cultura podemos encontrar a solução do problema. Postman teria certamente subscrito. Para Bergson era só uma questão de tempo, mais cedo ou mais tarde o problema seria resolvido porque para ele a cultura evolui num movimento pendular. Agora pode estar a técnica em supremacia mas depois voltará a cultura. Se assim não fosse nunca se poderia escapar á ética estática. Talvez pudéssemos impulsionar esse movimento pendular a favor da cultura se colocássemos a técnica ao serviço das necessidades da humanidade. Da fome por exemplo. Se caminharmos para uma vida simples o fascínio actual pela técnica seria ultrapassado. É tudo uma questão de vontade. Bergson é um optimista.

O mesmo já não se pode dizer de Georg Simmel. Quem escreve "A tragédia da cultura" não pode ser um optimista. Para Simmel a base do problema estava no fim do fluxo de subjectivização. A técnica implantou um sistema de produção massiva dos objectos mas sem conteúdo cultural. O sujeito participa ainda na produção dos objectos mas a sua subjectividade não se transpõe para os objectos. A subjectivização não se concretiza nos objectos. A técnica marginaliza o sujeito. Se antes eram os objectos que se adaptavam ás necessidades do sujeito a técnica inverteu esta relação. Tal como Postman afirmou, as nossas definições é que devem encaixar-se no discurso técnico. Para Simmel a técnica dita o rumo do sujeito, mas dando ao sujeito tudo o que ele quer, não lhe rejeitando nada. O problema é que este "tudo" é demais. É demasiado para que o sujeito os consiga fruir. Aparentemente tem tudo, mas no fim não tem nada. Como diria Postman "dirigido a todos mas a ninguém em particular".

Tanto a ética de Bergson como a "tragédia" de Simmel advinham muitos dos efeitos descritos por Postman.