Luís Filipe Teixeira, Universidade Lusófona
1998
§ 2. Um segundo ponto que importa reflectir diz respeito à criação heteronímica por relação com o problema da constituição do sujeito (de discurso), no nosso caso, de um «sujeito» que se manifesta, epifanicamente pela escrita (no papel ou no ecrã!), com as características de cada um dos heterónimos, isto porque é aí que ele se re(a)presenta enquanto figura-dispositivo (da consciência) heteronímica(23). É neste contexto que tem sentido esboçar-se uma reflexão em torno de uma «estética da produção», teorizando sobre o próprio conceito de Escrita e de noções como as de texto, escritor, autor(24). Neste contexto, teremos de dar resposta às seguintes questões: O que é cada um dos heterónimos, um autor? Um personagem virtual? Uma figura da Consciência? Um lugar (tópos) em que a Obra acontece? Um dispositivo de linguagem? Ou a estas outras, paradigmáticas da modernidade literária: O que deu origem à génese da obra? Qual o conteúdo a atribuir a conceitos tão díspares quanto «escorregadios» como os de inventividade, sinceridade, fingimento, virtualidade, simulacro, simulação, etc.? (25)
Desde cedo defendemos que cada uma das figuras heteronímicas faz parte do «jogo heteronímico», contextualizando uma analítica da experiência (da Linguagem) Moderna, a qual tem por tema primordial o problema da constituição do sujeito (que «aprendeu a desaprender», como diz Pessoa) e da sua relação com a Escrita. Quer isto dizer que se cada uma das figuras tem teorias ou pontos de vista (mais ou menos) coerentes e consistentes, eles terão de ser encarados sob um duplo sentido de autonomia (em relação a si isto é, a cada um dos vários heterónimos e ao outro--que-de-si, ou seja, ao ortónimo), pois estas coerência e consistência terão sempre de ser vistas por referência à Consciência do Pessoa ortónimo que, em última instância, é o palco ? no sentido pirandelliano do termo ? mediático (de medium) em que se desenrola (melhor seria dizer projecta) toda essa representação. Pensamos ser este o sentido hermenêutico das seguintes palavras de Fernando Pessoa, incluídas nos «Aspectos»:
§ 3. Dissemos que cada um dos heterónimos é uma figura-dispositivo. Mas, que entender por dispositivo? Ouçamos Deleuze acerca desta noção foucaultiana:
Ovídio, Les Métamorphoses, III, 339-510, sixième tirage, texte établi et traduit par Georges Lafaye, Paris, «Les Belles Lettres», 1980, pp. 80-86. regresso ao texto
Não nos esqueçamos que, etimologicamente, Narciso provém de narké, donde deriva narcose/narcótico, ajudando a explicar, por exemplo, a relação desta flor com os cultos infernais e as cerimónias de iniciação aos cultos a Deméter, ritualizados em Elêusis. Cf. Jean Chevalier/Alain Gheerbrant, «H à PIE», in Dictionnaire des symboles, 4 vols., Paris, Seghers, pp. 254-256. Sobre a relação entre Narciso e a virtualidade, ver Jean-Clet Martin, Limage virtuelle: Essai sur la construction du monde, Paris, Éditions Kimé, 1966. regresso ao texto
Saliente-se, de passagem, que esta «paixão» implicou, igualmente, uma rejeição por um outro duplo: o da sua voz (na ninfa Eco), acentuando-se, desse modo, simbolicamente, o privilégio do Ver sobre o Ouvir. Este facto, que nem sempre é convenientemente pensado, leva Mario Perniola, por exemplo, a escrever o seguinte: «Repensando o mito de Narciso, é a ninfa Eco quem mais se presta a constituir o modelo de sentir contemporâneo. Nela reencontramos os caracteres fundamentais que os psicanalistas atribuem ao narcisismo: a sua metamorfose em pedra é a metáfora da ausência de um sentir pessoal, a sua condenação a repetir imediatamente a voz está em conformidade com a perfeita adequação ao que é dado hic et nunc. Na ninfa Eco encontram-se reunidos os dois aspectos essenciais da experiência dos últimos vinte anos: o ser-se coisa e ao mesmo tempo participar de modo simulatório num horizonte sensorial colectivo e socializado.» E conclui: «Especularismo e ecolalia, ser-se um espelho e uma pedra que ressoa, ser-se uma coisa que reflecte e uma coisa que repete: para descrever o sentir da nossa idade estes modos parecem-me os mais adequados e os mais abrangentes.», Mario Perniola, Enigmas: O momento egípcio na sociedade e na arte, tradução de Catia Benedetti, Lisboa, Bertrand, 1994, p. 52. regresso ao texto
Entendemos aqui Hermenêutica como a «Ciência de Hermes» e «teorético» como etimologicamente derivado do verbo «theorein» (=«ver coisas divinas»).
Italo Calvino, «Visibilidade», in Seis propostas para o próximo milénio, 2ª edição, Lisboa, Teorema, 1994, p. 112
6 Mario Perniola, op. cit., p.46.
7 Gaston Bachelard, L'eau et les rêves: Essai sur l'imagination de la matière, Paris, Librairie José Corti, 1942 (edição brasileira, A água e os sonhos: Ensaio sobre a imaginação da matéria, São Paulo, Martins Fontes, 1989), sobretudo, pp. 34-45. Complemente-se com a obra de Gilbert Durand acerca dos regimes da imagem, Les structures anthropologiques de limaginaire: Introduction à la archétypologie générale, Paris, Bordas, 1969 (a referência a Narciso surge na página 109).
8 Mario Perniola, op. cit., p.49. Complemente-se isto com o texto de Gilles Lipovetsky, «Narciso ou a estratégia do vazio» in A era do vazio: Ensaio sobre o individualismo contemporâneo, tradução de Miguel Serras Pereira e Ana Luísa Faria, Lisboa, Relógio dÁgua, s.d., pp. 47-74.
9 Benjamin Woolley, Mundos virtuais: Uma viagem na hipo e hiper-realidade, trad. de Maria Adelaide Namorado Freire, Lisboa, Caminho, 1997, pp. 101-102. Da longa bibliografia sobre este problema crucial, destacamos, George Didi-Huberman, «A paixão do visível segundo Georges Bataille», in Revista de Comunicação e Linguagens, nº 5 «As Paixões», Novembro de 1987, pp. 7-21; G. Deleuze, Logique du sens, Paris, Minuit, 1969; Hermínio Martins, Hegel, Texas e outros ensaios de teoria social, Lisboa, Século XXI, 1996, sobretudo os dois excelentes ensaios sobre a técnica, respectivamente, «Hegel, Texas:Temas de filosofia e sociologia da técnica» (pp. 167-198) e «Tecnologia, modernidade e política» (pp. 199-250); Hermínio Martins, «O Deus dos artefactos: Sua vida, sua morte», in Hermetes Reis de Araújo (org.), Tecnologia, Ciências Humanas e políticas da natureza, São Paulo, Editora Estação Liberdade, 1998 (original cedido pelo autor); e de José Bragança de Miranda, «Da interactividade. Crítica da nova mimésis tecnológica», in Claudia Giannetti (ed.), Ars telemática: Telecomunicação, Internet e ciberespaço, Lisboa, Relógio d' Água, 1998, pp. 179-233.
10 Como escreve U. Eco, «a magia dos espelhos consiste no facto de que a sua extensividade-intrusividade não só nos permite ver melhor o mundo mas também vermo-nos a nós próprios tal como nos vêem os outros; trata-se de uma experiência única, a espécie não conhece outras semelhantes», Sobre os espelhos e outros ensaios, tradução de Helena Domingos e João Furtado, Lisboa, Difel, 1989, p. 20.
O Olho e o Espírito, tradução de Luís Manuel Bernardo, 2ª edição, Lisboa, Vega, 1997, p. 30.
Sobre este conceito aplicado a Pessoa, ver o nosso ensaio «O Espírito da utopia como paradigma pessoano», in O nascimento do Homem em Pessoa, pp. 169-180 (2ª versão: «A Mensagem ou o Espírito da Utopia como paradigma pessoano», in Mensagem-Poemas esotéricos, edição crítica coordenada por José A. Seabra, Madrid, UNESCO/Fund. Eng. A. Almeida, colecção «Archivos», 1993, pp. 314-328; reedição em Pensar Pessoa, Porto, Lello & Irmão, 1997, pp. 15-36)
No tal lugar em que, os livros, por exemplo, sendo como os «de cá», contudo, o são de modo «invertido» (cf. com texto de U. Eco que colocámos em epígrafe). Diz Alice sobre a Casa-Espelho: «Os livros são como os nossos, só que as palavras estão escritas de trás para diante; sei isto porque pus um dos nossos livros em frente do espelho e eles fizeram o mesmo na outra sala.», Lewis Carroll, Alice do outro lado do espelho, 3ª edição, Lisboa, Estampa, 1977, p.17.
Utilizamos este conceito com o sentido que lhe é dado num excelente artigo escrito por Foucault na Tunísia em 1967, mas que só autorizou a publicação em 1984, intitulado «Des espaces autres», Conférence au cercle détudes architecturales, 14 Mars 1967 (1ª edição: «Architecture, mouvement, continuité», nº 5, Oct. 1984, pp. 46-49; 2ª edição: Michel Foucault, Dits et écrits, vol. IV, Paris, Gallimard, pp. 752-762). Agradeço ao José Miranda o ter-me chamado a atenção para este ensaio.
É por demais conhecida a análise que Foucault faz de «Las Meninas» de Veláquez. Esse texto, inicialmente editado no Mercure de France (1221/2, 1965, pp. 368-384 - a cópia existente no Centre Michel Foucault possui a cota 287/1987; esta referência encontra-se no artigo de José A. Bragança de Miranda, «Foucault e Velazquez: A função do argumento estético em Foucault», in Revista de Comunicação e Linguagens, nº 19 «Michel Foucault: Uma analítica da experiência», Lisboa, Edições Cosmos, Dezembro de 1993, p. 62, nota 18); e, posteriormente (dois anos depois) (com alterações), como é sabido, a abrir As palavras e as coisas (pp. 57-71), trata do problema da representação ou, para se ser mais rigoroso, toma o quadro de Velazquez como base para uma caracterização da epistême da «época clássica» como época da representação. Ora, uma das figuras que domina esse quadro de Velazquez, devidamente teorizada por Foucault, é a de um espelho, no qual está bem presente essa ambivalência representativa, simultaneamente, de ver enclausurando. Sobre este ponto particular, ver José A. Bragança de Miranda, «Foucault e Velazquez: A função do argumento estético em Foucault», op.cit., pp. 47-67; Bernardo Pinto de Almeida, O plano de imagem: Espaço da representação e lugar do espectador, Lisboa, Assírio & Alvim, 1996, pp.45-55 e 85-89.
Michel Foucault, As palavras e as coisas, p. 64.
Michel Foucault, op. cit., p. 66.
José Bragança de Miranda, «Da interactividade. Crítica da nova mimésis tecnológica», in Claudia Giannetti (ed.), Ars telemática: Telecomunicação, Internet e ciberespaço, Lisboa, Relógio d'Água, 1998, pp. 195-196. Veja-se, como complemento, o seu artigo sobre «Virtualização do arquivo», in Memória e Tradição, Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, nº 9, 1996, pp. 95-118.
Em termos da génese desta ambivalência estará o processo de «derivação oposta» que Pessoa descreve na célebre carta a Casais Monteiro sobre a génese da «génese dos heterónimos». Sobre isto ver, por exemplo, José Gil, Fernando Pessoa ou a Metafísica das sensações, pp. 191-204. Acerca da «viagem da anagogia pessoana», ver o nosso ensaio O nascimento do Homem em Pessoa, pp. 77-89.
Sobre este ponto, ver o prefácio escrito por José Bragança de Miranda ao nosso livro Pensar Pessoa, pp. 5-15 e a nossa «Nota ao Leitor», pp. 21-23 (o texto do prefácio está aqui disponível com o título «Pensar com Pessoa»)
José Gil já chamou a atenção para este ponto que tem constituído, aliás, um dos leitmotiv do nosso programa investigativo. Escreveu ele: «haveria vantagem em analisar toda a questão do neopaganismo em Pessoa sob este ângulo: a pluralidade dos deuses relaciona-se com a das sensações e com a dos heterónimos (entre os deuses e os homens, já não há acção heróica, mas apenas acontecimentos de sensações); finalmente, porque Pessoa escreveu um dia esta frase isolada: 'Desejo ser um criador de mitos, que é o mistério mais alto que pode obrar alguém da humanidade (data provável, 1930)», op. cit., p. 219 nota. Tratámos este assunto em vários textos, inclusivé, tomando-o por pressuposto teórico. No entanto, o primeiro em que o investigámos foi no nosso ensaio O nascimento do Homem em Pessoa, pp. 100-114. Como escrevemos já várias vezes, é esta figuração dos deuses como epifania das várias maneiras de (se) sentir que faz Álvaro de Campos-Pessoa dizer: «Cada canto da minha alma (é) um altar a um deus diferente».
Entendemos o conceito de Figura como categoria essencial de mediação, isto é, como «um todo que engloba mais do que a soma das suas partes» (título do terceiro capítulo da Primeira Parte da obra O Trabalhador de E. Jünger, tradução francesa de Julien Hervier, Paris, Christian Bourgois Éditeur,1994, pp. 61-78 - sem dúvida, a quem se deve uma das mais fascinantes análises sobre esta noção escrita neste século), e, neste sentido, sinónima dos conceitos hegeliano de figura do Espírito, goetheano de figura originária (Urbild) e schilleriano de figura viva (lebende Gestalt), nos antípodas, portanto, da noção cartesiana de figura, mera expressão de uma exterioridade e corporeidade e, por isso mesmo, fundadora da ideia de «experiência da modernidade» (central a autores como Proust, Kafka, Musil, Lyotard, etc.). Da vasta bibliografia sobre este tema ver, sobretudo: Goethe, A metamorfose das plantas, tradução, introdução, notas e apêndices de Maria Filomena Molder, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1993 (com especial atenção, também, para o excelente estudo introdutório de Filomena Molder); F. Schiller, On the aesthetic education of man, tradução de E. M. Wilkinson e L. A. Willoughby, Oxford, Clarendon Press, 1967; Cassirer, Rousseau.Kant.Goethe.Two essays, tradução do alemão por J. Gutmann, Paul Oskar Kristeller e J. Hermann Randal, Jr., Princeton, Princeton University Press, 1970; Gilles Deleuze/Felix Guattari, O anti-Édipo:Capitalismo e esquizofrenia, tradução de Joana Moraes Varela e Manuel Carrilho, Lisboa, Assírio e Alvim, s.d. (1ª edição 1966), sobretudo o capítulo II, sobre as três modalidades da síntese inerentes a toda a figurabilidade (síntese conectiva, disjuntiva e conjuntiva), pp. 71-118; Maria Filomena Molder, «O pensamento da forma: consentimento e louvor do caminho intermédio», in Filosofia e Epistemologia, nº 5, Lisboa, Publicações D. Quixote, 1984, pp. 109-135; Id., «A propósito de Mimésis», Estudos filosóficos I, Universidade Nova de Lisboa, Maio de 1982, pp. 67-85; Maria Filomena Molder, O pensamento morfológico de Goethe, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1995 (em especial: toda a segunda parte: pp. 181-302 e, da terceira, as páginas 354 e sgs.); Stefano Zecchi, «Il Tempo e la Metamorfose», in La magia dei saggi: Blake, Goethe, Husserl, Lawrence, Milano, Jaca book, 1984, pp. 29-49; José A. Bragança de Miranda, «Algumas anotações sobre a ideia de figura», in Revista de Comunicação e Linguagens, nº 20 Figuras, Lisboa, Edições Cosmos, 1994, pp. 53-67 (a quase totalidade dos artigos deste número trazem achegas para esta problemática, mesmo que em perspectivas diversas); e o nosso ensaio O nascimento do Homem em Pessoa: A heteronímia como jogo da demiurgia divina, Lisboa, Cosmos, col. «Cosmovisões», 1992, sobretudo, pp. 59 e sgs.
Será
nesta linha que se coloca o problema hermenêutico da escrita como
actividade, pela via, respectivamente, do triplo sentido: material,
cognitivo e estético. A este respeito, ver Almuth Grésillon,
Eléments de critique génétique, Paris, PUF,
1994, p. 18.
Quanto a
esta problemática por relação com uma «estética
da recepção» (Jauss, Iser), que pensa a interpretação
como repetição da criação em detrimento duma
teoria do Génio tal como esta é perspectivada pela hermenêutica
do séc. XIX, em que o autor é encarado como analogon do Criador
e, em especial, com uma hermenêutica borgeana, ver Raphaël Lellouche,
Borges ou lhypothèse de lauteur, Paris, Éditions Balland,
1989, passim.
Como escreveu Deleuze, «a linguagem é ela própria um duplo último que exprime todos os duplos, o maior simulacro», «Klossowski ou o corpo-linguagem», in O Mistério de Ariana, Lisboa, Vega, 1996, p. 16. Sobre esta noção de simulacro, ver o excelente texto de Jean Baudrillard, «Simulacros e ficção científica», in Simulacros e simulação, tradução de Maria J. da C. Pereira, Lisboa, Relógio d´Água, 1991, pp. 151-158. Sobre Alberto Caeiro como «sujeito-Caeiro sem subjectividade, sujeito da heteronímia», ver José Gil, «O corpo, a arte e a linguagem: O exemplo de Alberto Caeiro», in Comunicação e Linguagens, números 10/11, O corpo, o Nome, a Escrita, Março de 1990, pp. 59-70. Sobre esta noção de dialéctica sinceridade/fingimento a respeito da morfogénese do processo heteronímico, ver o nosso ensaio O nascimento do Homem em Pessoa, em especial,pp. 100-114.
E será preciso lembrar que António Mora, por exemplo, «clinicamente não se afasta em nada do typo de paranoico, ou da marcha conhecida da paranoia. É verdade que não é simplesmente um paranoico. É tambem um hysterico. Mas a paranoia é algumas vezes acompanhada de uma psychonevrose intercorrente» (2719B3-4r), mesmo se esse delírio é de uma espécie original (ou seja, mais de acordo com a origem)? Sobre o modo como deverá ser encarado este conceito de origem, ver o nosso ensaio O nascimento do Homem em Pessoa, pp. 49-58.
20-70r-72r. Sobre este ponto, veja-se o seu opúsculo «O neo-paganismo portuguez e a mythologia nova» publicado por nós em Fernando Pessoa e o ideal neo-pagão: subsídios para uma edição crítica, recolha, organização e transcrição de Luís Filipe B. Teixeira, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian/Acarte, 1996, pp. 1-11.
Com esta expressão pretendemos chamar a atenção para o carácter «ourobórico» da heteronímia pessoana, tomando por base o contexto dos estádios mitológicos da evolução da Consciência, na linha dos trabalhos de Cassirer (sobretudo, La philosophie des formes symboliques, trad. Jean Lacoste, Paris, Ed. Minuit, col. Sens Commun, 3 vols, respectivamente, 1972, 1979 e 1972) e Erich Neumann (em especial The Origins of Consciousness, with a foreword by C. G. Jung, translated from the german by R. F. Hull, New York/Princeton, Princeton University Press, Bollingen Series XLII, 1973). Sobre este ponto ver, por exemplo, o nosso livro O nascimento do Homem em Pessoa, p. 38 (nota 7) e pp. 69-72. Mais recentemente, tratámos deste conceito por referência às noções de esotérico e de processo de individuação e experiencialização da Consciência. Para tal, tomou-se por base, respectivamente, os textos de Mora, em especial 21-56r-60r sobre «Theoria dos deuses. O que são os deuses?»; e os do ortónimo sobre a escala da despersonalização e os graus de iniciação. Cf. «Ciência e Esoterismo em Fernando Pessoa» (comunicação proferida na «Casa Fernando Pessoa» em 27/10/94), in Tabacaria, Casa Fernando Pessoa/Contexto, número zero, Fevereiro de 1996, pp. 26-35 (reeditado no livro Pensar Pessoa: A dimensão filosófica e hermética da obra de Fernando Pessoa, Porto, Lello & Irmão, colecção «Mocho de Papel», 1997, pp. 153-176).
Gilles Deleuze, «O que é um dispositivo?», in op. cit., pp. 83 e 84.
Como especifica Deleuze, «os dispositivos têm por componentes linhas de visibilidade, linhas de enunciação, linhas de força, linhas de subjectivação, linhas de brecha, de fissura, de fractura que se entrecruzam e se misturam, acabando umas por dar noutras, ou suscitar outras, por meio de variações ou mesmo mutações de agenciamento», idem, p. 89.
Sobre este ponto, ver o nosso ensaio O nascimento do Homem em Pessoa, sobretudo, pp. 107-108. Sobre a negatividade inerente ao processo de subjectivação, relacionado com a morfogénese goetheana, ver Stefano Zecchi, La magia dei saggi: Blake, Goethe, Husserl, Lawrence, pp. 29-49.
José Gil, Fernando Pessoa ou a metafísica das sensações, Lisboa, Relógio dÁgua, s.d., p. 228.
Segundo esta perspectiva, o problema essencial está, como se lê numa passagem acerca da produção de multiplicidades ao nível da máquina literária, incluída no primeiro capítulo do Anti-Édipo de Deleuze/Guattari, em saber «como produzir e pensar fragmentos que tenham entre si relações de diferença enquanto tal, que tenham como relações entre si a sua própria diferença, sem haver referência a uma totalidade original ainda que perdida, nem a uma totalidade resultante ainda que a realizar?» E conclui-se paradigmaticamente: «Só a categoria da multiplicidade, empregue como substantivo e superando tanto o múltiplo como o Uno, superando a relação predicativa do Uno e do múltiplo, será capaz de explicar a produção desejante: a produção desejante é multiplicidade pura, ou seja, afirmação irredutível à unidade», O Anti-Édipo, p. 43.
Sobre a virtualidade da recordação (anamnese) e sua actualização, ver Henri Bergson, Matière et mémoire, Oeuvres, 4ª ed., Paris, PUF, 170, sobretudo os capítulos II e III, pp. 223-316.
Esta ideia da irrepetibilidade do tempo, inversamente à de eterno retorno nietzscheano, constituirá mesmo o fundamento da atitude filosófica de Reis. Para um estudo mais aprofundado acerca da natureza das multiplicidades em Pessoa, é imprescindível a leitura de Mille Plateaux de Deleuze e Guattari. José Gil, na nota 74 da página 171 do seu livro acima referido, já chamou a atenção para este ponto teórico. Também aqui se trata apenas de uma breve aproximação a esta problemática pessoana.
Na arquitectura heteronímica pessoana, como pensamos ter demonstrado no nosso ensaio «Ciência e esoterismo em Fernando Pessoa» (publicado em Pensar Pessoa, pp. 169-192), esta analogia toma três formas interdependentes, a saber: 1) como experiencialização da Consciência num percurso noético (em que cada heterónimo mais não é do que uma forma simbólica, segundo o sentido conceptual que lhe é dado por Cassirer); 2) como processo iniciático (ou seja, aspiração ascética de Adepto Menor a Maior); 3) e como (auto-)Realização da Obra, em que cada um dos heterónimos prepara os vários estádios operativos (sobre isto, ver supra, nota 28).
José Jiménez, A vida como acaso, tradução de Manuela Agostinho, Lisboa, Vega, 1997, p.70.
Ver, por exemplo, Anti-Édipo, pp. 14-21, 336-355.
Sobre este ponto, ver Michel Foucault, As palavras e as coisas: Uma arqueologia das ciências humanas, Lisboa, Edições 70,1988, pp.101-104.
Ver R. Lellouche, Borges ou lhipothèse de lauteur, pp. 171-210.
Sobre este tema da ventriloquocidade, em especial, de Goethe-Eckermann, ver Avital Ronell, Dictations:On hunting writing, Lincoln and London, University of Nebraska Press, 1993 (1ª ed. 1986); e Id., The telephone book: Technology, schizophrenia, electric speech, Lincoln and London, University of Nebraska Press, 1989. Como nota, refira-se que Jaron Lanier definiu a realidade virtual como o «telefone do futuro», ver Rudy Rucker, R. Sirius & Queen, Mondo 2000: A user's guide to the new eddge, New York, Harper Collins Publishers, 1992, p.254.