VIRTUALIDADE E HETERONÍMIA.
AS AVENTURAS PESSOANAS DE ALICE

Luís Filipe Teixeira, Universidade Lusófona

1998


 

§ 1. A primeira vez em que, na história do pensamento Ocidental, se colocou o problema das fronteiras entre o «real» e o «virtual» foi, sem dúvida, seguindo a descrição de Ovídio nas suas Metamofoses (1), quando Narciso se contemplou nas águas secretas do seu próprio reflexo, situadas no fundo dos bosques, deixando-se seduzir, narcótica ( 2) e etnocentricamente, pelo Outro-de-si, sucumbindo à metamorfose na flor que leva o seu próprio nome ( 3).  A importância deste acontecimento pode ser visto a vários níveis, de que destacaremos apenas dois, interdependentes: o duplo desenvolvimento de uma «fenomenologia do espelho» (em que o rosto humano desempenha o instrumento de sedução) e, implicitamente,  de toda uma «hermenêutica teorética», que o mesmo será dizer, de uma «ciência comunicativa do Ver»( 4).
Em qualquer dos casos, o mito de Narciso remete-nos para os paradigmas do espelho, do olhar e da luz, tudo metáforas essenciais à estrutura da experiência teorética, metáforas essas tão antigas quanto a própria tradição do pensamento (Ocidental e Oriental). Esses paradigmas, enquanto associados à categoria da Visibilidade e, por arrasto, à própria faculdade imaginativa, não deixam de ser, hoje, categorias a salvar, como muito bem o constatou, por exemplo, Italo Calvino quando escreveu:     Actualmente, esta estratégia de associação do narcisismo à figura do espelho foi alargada à própria definição da cultura-vídeo, tomando-se como pressuposto que (inversamente ao que se passa com a televisão em que se visualiza ? mesmo que em «zapping» ? imagens globais do mundo externo) estamos perante a imagem do eu, o espelho da alma e «a porta de entrada para uma verdade interior» (Perniola). Como escreve Mario Perniola na sua obra acima citada,     Num excelente ensaio psico-fenomenológico sobre a imaginação da matéria, Bachelard tipifica as várias formas de «narcisismo» por relação com uma poética das águas e uma psicologia do espelho (7) . No entanto, este narcisismo, incluindo o tipificado pelo próprio Bachelard, tem sido interpretado ao contrário pois, inversamente às conclusões hermenêuticas extraídas do mito, no narcisismo não estamos perante um excesso de egoidade e de «amor por si» (Narciso não tinha consciência que aquela imagem seu duplo era a do seu rosto), mas antes uma total negação da própria identidade e dissolução subjectiva no Outro-de--si. Ou seja, em termos psicanalíticos, diríamos que, no mito de Narciso, se dá a total transferência libidinal para o objecto reflectido (re(a)presentação)  em detrimento da «flexão» (apresentação), isto é, do modelo que suporta o eu real. Ouçamos de novo Perniola sobre este ponto aplicado à vídeo-arte e ao «homem-espelho». Escreve ele:     Em termos de corolário, diríamos ser nesta época em que assistimos, nietzschianamente falando, a uma certa inversão do platonismo pela construção digital de universos virtuais, nos quais a «aparição» da Totalidade está na razão directa do controlo sobre o programa que se utiliza, que se torna urgente proceder a essa reflexão crítica sobre esta visibilidade (aparente) tornada realidade, a qual se designa mesmo, paradoxalmente, por Realidade Virtual.
    Também aqui se dá o retorno ao problema clássico da máquina universal, capaz de construir uma realidade «perfeita» só que, actualmente, o Livro perde o lugar paradigmático de mathesis universalis a respeito da Natureza, para dar lugar ao computador e à consequente redução ao universo algorítmico. Como escreve Woolley, E conclui:     Ora, tal como acontece no processo heteronímico, também em todas essas metáforas está presente a ambiguidade entre os regimes do ver/não-ver, desvelar/ocultar, Mesmo/Outro, real/virtual, etc.  É que, se por um lado, enquanto «artefacto mecânico», o espelho é uma prótese, tal como os óculos ou os binóculos, tudo artefactos que servem para «magnificar» uma função enfraquecida de um orgão (10); por outro,  ao representar o «olhar pré-humano», isto é, simultaneamente, ao (dar a) ver, o espelho também enclausura em si aquilo que visiona. Merleau-Ponty chama a atenção para este ponto quando escreve: E, mais adiante, conclui, dizendo algo importante para o que escreveremos de seguida: O espelho é, por isso mesmo, um «lugar sem lugar», um espaço utópico (13), pois «vejo-me onde não estou» («outro-lado-do-espelho», como Alice (14)), embora, por retorno e regresso-a-si, a imagem me dê onde «eu realmente me visiono» (onde «os--olhos-me-trazem-a-mim»). Não deixa de ser interessante referir, mesmo que de passagem, ser neste «sacrifício» do modelo em favor da sua imagem que se fundamenta o docetismo, heresia que se desenvolveu até ao século III, que consiste na afirmação de que coube, não a Cristo, mas a uma sua imagem, fantasma ou simulacro, sacrificar-se na cruz. Ora, enquanto «lugar-sem-lugar», também se constitui como uma heterotopia (15),  pois  permite-me  reconstituir o  «lugar-em-que-estou».   Por exemplo, no quadro  «Las Meninas», de Velazquez (16), a inclusão do  espelho  permite, precisamente,  representar  essa  ambiguidade  entre «o-que-o-espectador-vê» e «o-que--o-pintor-vê». Só que, por um processo «interseccionista», como o quadro representa um pintor a pintar, então temos que essa duplicidade se redobra sobre si, em que, como escreve Foucault, Ou seja, estamos perante a ambiguidade entre o espaço da representação e o espaço ocupado pelo ver do espectador, mais precisamente, entre o ver do pintor que pinta o quadro (Velazquez); o «ver» do pintor representado no quadro; e o ver do espectador, ambiguidade esta amplificada pela duplicidade do espectador representada na figura enigmática que se esgueira pela porta do fundo, numa (inter)mediação constante entre contemplador e contemplado. Dir-se-ia que, ao inverso do ver-se ao espelho, presente no mito de Narciso e que conduz, utilizando uma expressão cara a Marx, à alienação, aqui estaríamos perante o especularismo, ou seja, a identificação simbólica do homem com o espelho, num puro exercício de mimetismo absoluto.
    No entanto, inversamente ao que se passa na arte, em que essa visibilidade se constitui em problema, no caso das estéticas interactivas, como nota José Miranda num artigo recente, Ou seja, a experiência contemporânea e o rápido desenvolvimento da Internet e das tecnologias da informação tem vindo a demonstrar a necessidade de análise do efeito dessa interactividade e da construção (mediada) dos «interfaces», associada à construção da realidade virtual e da vertigem da simulação do sujeito maquínico. Objectivamente, e dentro duma tradição do pensamento que remonta à caverna platónica, se o Espelho de Alice e os heterónimos pessoanos são a continuidade (interseccionista) de um «fora» e de um «dentro»; então, a mimetologia tecnológica, ao impor uma figura única e aparentemente neutra (a da interactividade) e, consequentemente, uma fusão, desloca essa constante reversibilidade para um ininterrupto stream of consciousness colectivo (ciberespaço, «aldeia global»), num fluir constante de imagens. Consequentemente, a divisão maquínica (digital) transforma o nosso espírito, já não num rio (heracliteano), mas sim num arquivo e numa database. Como escreve José Miranda nesse mesmo artigo acima citado, mas mais à frente, Ora, também em cada um dos  dispositivos heteronímicos se dá essa ambivalência, por exemplo, esse ver Mora através do que diz, vendo Pessoa (e cada um dos outros heterónimos) pelo que não está lá  (20), num constante jogo de reversibilidade figurativa e de produção (gradativa) da ilusão, segundo uma «geometria do abysmo» (Bernardo Soares). Acrescente-se que Fernando Pessoa foi, sem dúvida, dos poucos autores da Modernidade que melhor colocaram o problema da superfície e da ilusão enquanto processo demiúrgico de criatividade(21). Também aqui, nestes tempos da «realidade virtual», das redes cibernáuticas povoadas de «cyborgues» e do «corpo protésico», Pessoa ajuda-nos a encontrar portas de saída para esse «sujeito em crise» através dessa tal «metafísica das sensações», em que a multiplicidade das sensações (e, consequentemente, dos heterónimos) equivale à pluralidade dos deuses, e, por isso, ao Regresso dos Deuses  e à Reconstrucção do (Neo)Paganismo (22).
 

§ 2.  Um segundo ponto que importa reflectir diz respeito à criação heteronímica por relação com o problema da constituição do sujeito (de discurso), no nosso caso, de um «sujeito» que se manifesta, epifanicamente pela escrita (no papel ou no ecrã!), com as características de cada um dos heterónimos, isto porque é aí que ele se re(a)presenta enquanto figura-dispositivo (da consciência) heteronímica(23). É neste contexto que tem sentido esboçar-se uma reflexão em torno de uma «estética da produção», teorizando sobre o próprio conceito de Escrita e de noções como as de texto, escritor, autor(24).  Neste contexto, teremos de dar resposta às seguintes questões: O que é cada um dos heterónimos, um autor? Um personagem virtual? Uma figura da Consciência? Um lugar (tópos) em que a Obra acontece? Um dispositivo de linguagem? Ou a estas outras, paradigmáticas da modernidade literária: O que deu origem à génese da obra? Qual o conteúdo a atribuir a conceitos tão díspares quanto «escorregadios» como os de inventividade, sinceridade, fingimento, virtualidade, simulacro, simulação, etc.? (25)

    Desde cedo defendemos que cada uma das figuras heteronímicas faz parte do «jogo heteronímico», contextualizando uma analítica da experiência (da Linguagem) Moderna, a qual tem por tema primordial o problema da constituição do sujeito (que «aprendeu a desaprender», como diz Pessoa) e da sua relação com a Escrita. Quer isto dizer que se cada uma das figuras tem teorias ou pontos de vista (mais ou menos) coerentes e consistentes, eles terão de ser encarados sob um duplo sentido de autonomia (em relação a si isto é, a cada um dos vários heterónimos e ao outro--que-de-si, ou seja, ao ortónimo), pois estas coerência e consistência  terão sempre de ser vistas por referência à Consciência do Pessoa ortónimo que, em última instância, é o palco ? no sentido pirandelliano do termo ? mediático (de medium) em que se desenrola (melhor seria dizer projecta) toda essa representação. Pensamos ser este o sentido hermenêutico das seguintes palavras de Fernando Pessoa, incluídas nos «Aspectos»:

    Numa palavra, estas figuras-dispositivo (que Pessoa designa, no mesmo texto, mas mais adiante, por «companheiros de espirito»), não podem ser retiradas do contexto de referência (simbolicamente significativa) que as produziu e que, ao longo das nossas investigações, temos vindo a designar por «quadratura do círculo heteronímico» (28), isto por pensarmos serem elas como que átomos de uma mesma molécula (ou, se se preferir, multiplicidades virtuais) que se integram, por coincidência do Destino, naquele que se chamou Pessoa.

 § 3. Dissemos que cada um dos heterónimos é uma figura-dispositivo. Mas, que entender por dispositivo? Ouçamos Deleuze acerca desta noção foucaultiana:

Repare-se que esta noção de dispositivo é válida, quer para o sentido teórico a dar aos mecanismos heteronímicos quer, metodologicamente, para a própria constituição da trama crítica, isto é, para a arquitectura e mapeamento cartográfico do corpus heteronímico! Neste último caso, quando se trata de elaborar uma edição crítica dos seus documentos existentes no espólio, também é preciso instalarmo-nos sobre as próprias linhas, isto é, sobre cada um dos fragmentos, quer encarando cada um por si, segundo um princípio que se poderia designar por «totalidade fragmentária», realçando, deste modo, o carácter de «fragmentarismo sistemático» e de individualidade representado por cada um deles; quer por relação ao todo de que fazem parte ? quer a cada projecto em que se inserem, quer ao todo dos heterónimos (ou ortónimo, quando se trata de textos autografados como tal ou a ele criticamente atribuíveis), quer, ainda mais alargadamente, ao hiperespaço da criação heteronímica pessoana ? em que se inclui o próprio ortónimo. Por outro lado,  no contexto heteronímico, cada um deles funciona como sujeito de discurso criando regimes de enunciação diversos, com diferentes modos (figurativos) de subjectivação. Neste sentido, às variações heteronímicas ? por vezes de fronteiras bastante ténues, até para o próprio ortónimo deslindar ? correspondem outras tantas mutações do processo de subjectivação/figura- ção (30).  Daí que não se possa dissociar o comportamento figurativo do problema da linguagem, pois é, precisamente, nesta transiência (neste trânsito) do possível ao real, do formal ao figurativo, que se institui a arte criativa e todo o seu programa.(31) No entanto, como muito bem refere José Gil, A heteronímia é, assim, uma máquina de produzir multiplicidades (33)  e virtualidades (34), de «sentir tudo de todas as maneiras», numa operação de «cissiparidade em abismo» (José Gil) que se repete a cada instante, de tal modo que ninguém é o mesmo a cada momento.(35)  Assim se explica que a obra de cada um deles mais não seja do que os «meus livros doutros» (36), tratando-se de  «uma maneira nova de empregar um processo já antigo» (37); ou que, como escreve noutro fragmento pertencente ao mesmo projecto, Aliás, como já escrevemos várias vezes e em diferentes contextos, esta analogia entre o «sentir tudo de todas as maneiras» e a pluralidade dos deuses, que corresponde à pluralidade das formas e níveis de realidade (39), é um processo que fundamenta o politeísmo pagão da Grécia. Também aí presenciamos esse «interseccionismo» entre o natural e o espiritual. A abertura divina corresponde à abertura do mundo, de tal modo que leva Walter Otto, por exemplo, a falar duma «idealidade natural» ou de «naturalidade ideal» como síntese definidora do espírito grego. Mais recentemente, José Jiménez, num ensaio sobre a teoria da modernidade e a vida no final do século, aborda esta questão de um modo igualmente paradigmático. Escreve ele: E conclui: Percebe-se agora, como corolário e conclusão deste nosso ensaio, a evidência  de cada um dos heterónimos, embora de um modo especificadamente pessoano, mais não ser, pela «ordem do discurso» em que se constitui, do que o ventríloquo do ortónimo (isto é, uma sua virtualidade), «escondido» (mediaticamente) por detrás do «corpo da linguagem» (daquilo que diz) (=«corpo sem orgãos»(41)), tal como Cervantes se esconde por detrás de D. Quixote(42), Valéry do «Monsieur Teste», Borges de Pierre Ménard(43)  e Goethe de Eckermann(44).

Ovídio, Les Métamorphoses, III, 339-510, sixième tirage, texte établi et traduit par Georges Lafaye, Paris, «Les Belles Lettres», 1980, pp. 80-86. regresso ao texto

Não nos esqueçamos que, etimologicamente, Narciso provém de narké, donde deriva narcose/narcótico, ajudando a explicar, por exemplo, a relação desta flor com os cultos infernais e as cerimónias de iniciação aos cultos a Deméter, ritualizados em Elêusis. Cf. Jean Chevalier/Alain Gheerbrant, «H à PIE», in Dictionnaire des symboles, 4 vols., Paris, Seghers, pp. 254-256. Sobre a relação entre Narciso e a virtualidade, ver Jean-Clet Martin, Limage virtuelle: Essai sur la construction du monde, Paris, Éditions Kimé, 1966.  regresso ao texto

Saliente-se, de passagem, que esta «paixão» implicou, igualmente, uma rejeição por um outro duplo: o da sua voz (na ninfa Eco), acentuando-se, desse modo, simbolicamente, o privilégio do Ver sobre o Ouvir. Este facto, que nem sempre é convenientemente pensado, leva Mario Perniola, por exemplo, a escrever o seguinte: «Repensando o mito de Narciso, é a ninfa Eco quem mais se presta a constituir o modelo de sentir contemporâneo. Nela reencontramos os caracteres fundamentais que os psicanalistas atribuem ao narcisismo: a sua metamorfose em pedra é a metáfora da ausência de um sentir pessoal, a sua condenação a repetir imediatamente a voz está em conformidade com a perfeita adequação ao que é dado hic et nunc. Na ninfa Eco encontram-se reunidos os dois aspectos essenciais da experiência dos últimos vinte anos: o ser-se coisa e ao mesmo tempo participar de modo simulatório num horizonte sensorial colectivo e socializado.» E conclui: «Especularismo e ecolalia, ser-se um espelho e uma pedra que ressoa, ser-se uma coisa que reflecte e uma coisa que repete: para descrever o sentir da nossa idade estes modos parecem-me os mais adequados e os mais abrangentes.», Mario Perniola, Enigmas: O momento egípcio na sociedade e na arte, tradução de Catia Benedetti, Lisboa, Bertrand, 1994, p. 52. regresso ao texto

Entendemos aqui Hermenêutica como a «Ciência de Hermes» e «teorético» como etimologicamente derivado do verbo «theorein» (=«ver coisas divinas»).

Italo Calvino, «Visibilidade», in Seis propostas para o próximo milénio, 2ª edição, Lisboa, Teorema, 1994, p. 112

6 Mario Perniola, op. cit., p.46.

7 Gaston Bachelard, L'eau et les rêves: Essai sur l'imagination de la matière, Paris, Librairie José Corti, 1942   (edição brasileira, A água e os sonhos: Ensaio sobre a imaginação da matéria, São Paulo, Martins Fontes, 1989), sobretudo, pp. 34-45. Complemente-se com a obra de Gilbert Durand acerca dos regimes da imagem, Les structures anthropologiques de limaginaire: Introduction à la archétypologie générale, Paris, Bordas, 1969 (a referência a Narciso surge na página 109).

8 Mario Perniola, op. cit., p.49. Complemente-se isto com o texto de Gilles Lipovetsky, «Narciso ou a estratégia do vazio» in A era do vazio: Ensaio sobre o individualismo contemporâneo, tradução de Miguel Serras Pereira e Ana Luísa Faria, Lisboa, Relógio dÁgua, s.d., pp. 47-74.

9 Benjamin Woolley, Mundos virtuais: Uma viagem na hipo e hiper-realidade, trad. de Maria Adelaide Namorado Freire, Lisboa, Caminho, 1997, pp. 101-102. Da longa bibliografia sobre este problema crucial, destacamos, George Didi-Huberman, «A paixão do visível segundo Georges Bataille», in Revista de Comunicação e Linguagens, nº 5 «As Paixões», Novembro de 1987, pp. 7-21; G. Deleuze, Logique du sens, Paris, Minuit, 1969; Hermínio Martins, Hegel, Texas e outros ensaios de teoria social, Lisboa, Século XXI, 1996, sobretudo os dois excelentes ensaios sobre a técnica, respectivamente, «Hegel, Texas:Temas de filosofia e sociologia da técnica» (pp. 167-198) e «Tecnologia, modernidade e política» (pp. 199-250); Hermínio Martins, «O Deus dos artefactos: Sua vida, sua morte», in Hermetes Reis de Araújo (org.), Tecnologia, Ciências Humanas e políticas da natureza, São Paulo, Editora Estação Liberdade, 1998 (original cedido pelo autor); e de José Bragança de Miranda, «Da interactividade. Crítica da nova mimésis tecnológica», in Claudia Giannetti (ed.), Ars telemática: Telecomunicação, Internet e ciberespaço, Lisboa, Relógio d' Água, 1998, pp. 179-233.

10 Como escreve U. Eco, «a magia dos espelhos consiste no facto de que a sua extensividade-intrusividade não só nos permite ver melhor o mundo mas também vermo-nos a nós próprios tal como nos vêem os outros; trata-se de uma experiência única, a espécie não conhece outras semelhantes», Sobre os espelhos e outros ensaios, tradução de Helena Domingos e João Furtado, Lisboa, Difel, 1989, p. 20.

O Olho e o Espírito, tradução de  Luís Manuel Bernardo, 2ª edição, Lisboa, Vega, 1997, p. 30.

ibidem, p. 31.

Sobre este conceito aplicado a Pessoa, ver o nosso ensaio  «O Espírito da utopia como paradigma pessoano», in O nascimento do Homem em Pessoa, pp. 169-180 (2ª versão: «A Mensagem ou o Espírito da Utopia como paradigma pessoano», in Mensagem-Poemas esotéricos, edição crítica coordenada por José A. Seabra, Madrid, UNESCO/Fund. Eng. A. Almeida, colecção «Archivos», 1993, pp. 314-328; reedição em Pensar Pessoa, Porto, Lello & Irmão, 1997, pp. 15-36)

No tal lugar em que, os livros, por exemplo, sendo como os «de cá», contudo, o são de modo «invertido» (cf. com  texto de U. Eco que colocámos em  epígrafe). Diz Alice sobre a Casa-Espelho: «Os livros são como os nossos, só que as palavras estão escritas de trás para diante; sei isto porque pus um dos nossos livros em frente do espelho e eles fizeram o mesmo na outra sala.», Lewis Carroll, Alice do outro lado do espelho, 3ª edição, Lisboa, Estampa, 1977, p.17.

Utilizamos este conceito com o sentido que lhe é dado num excelente artigo escrito por Foucault na Tunísia em 1967, mas que só autorizou a publicação em 1984, intitulado «Des espaces autres», Conférence au cercle détudes architecturales, 14 Mars 1967 (1ª edição: «Architecture, mouvement, continuité», nº 5, Oct. 1984, pp. 46-49; 2ª edição: Michel Foucault, Dits et écrits, vol. IV, Paris, Gallimard, pp. 752-762). Agradeço ao José Miranda o ter-me chamado a atenção para este ensaio.

É por demais conhecida a análise que Foucault faz de «Las Meninas» de Veláquez. Esse texto, inicialmente editado no Mercure de France (1221/2, 1965, pp. 368-384 - a cópia existente no Centre Michel Foucault possui a cota 287/1987; esta referência encontra-se no artigo de José A. Bragança de Miranda, «Foucault e Velazquez: A função do argumento estético em Foucault», in  Revista de Comunicação e Linguagens, nº 19 «Michel Foucault: Uma analítica da experiência», Lisboa, Edições Cosmos, Dezembro de 1993, p. 62, nota 18); e, posteriormente (dois anos depois) (com alterações), como é sabido, a abrir As palavras e as coisas (pp. 57-71), trata do problema da representação ou, para se ser mais rigoroso, toma o quadro de Velazquez como base para uma caracterização da epistême da «época clássica» como época da representação. Ora, uma das figuras que domina esse quadro de Velazquez, devidamente teorizada por Foucault, é a de um espelho, no qual está bem presente essa ambivalência representativa, simultaneamente, de ver enclausurando. Sobre este ponto particular, ver José A. Bragança de Miranda, «Foucault e Velazquez: A função do argumento estético em Foucault», op.cit., pp. 47-67; Bernardo Pinto de Almeida, O plano de imagem: Espaço da representação e lugar do espectador, Lisboa, Assírio & Alvim, 1996, pp.45-55 e 85-89.

Michel Foucault, As palavras e as coisas, p. 64.

Michel Foucault, op. cit., p. 66.

José Bragança de Miranda, «Da interactividade. Crítica da nova mimésis tecnológica», in Claudia Giannetti (ed.), Ars telemática: Telecomunicação, Internet e ciberespaço, Lisboa, Relógio d'Água, 1998, pp. 195-196. Veja-se, como complemento, o seu artigo sobre «Virtualização do arquivo», in Memória e Tradição, Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, nº 9, 1996, pp. 95-118.

Em termos da génese desta ambivalência estará o processo de «derivação oposta» que Pessoa descreve na célebre carta a Casais Monteiro sobre a génese da «génese dos heterónimos». Sobre isto ver, por exemplo, José Gil, Fernando Pessoa ou a Metafísica das sensações, pp. 191-204. Acerca da «viagem da anagogia pessoana», ver o nosso ensaio O nascimento do Homem em Pessoa, pp. 77-89.

Sobre este ponto, ver o prefácio escrito por José Bragança de Miranda ao nosso livro Pensar Pessoa, pp. 5-15 e a nossa «Nota ao Leitor», pp. 21-23 (o texto do prefácio está aqui disponível com o título «Pensar com Pessoa»)

José Gil já chamou a atenção para este ponto que tem constituído, aliás, um dos leitmotiv do nosso programa investigativo. Escreveu ele: «haveria vantagem em analisar toda a questão do neopaganismo em Pessoa sob este ângulo: a pluralidade dos deuses relaciona-se com a das sensações e com a dos heterónimos (entre os deuses e os homens, já não há acção heróica, mas apenas acontecimentos de sensações); finalmente, porque Pessoa escreveu um dia esta frase isolada: 'Desejo ser um criador de mitos, que é  o  mistério  mais  alto  que pode obrar  alguém da humanidade (data  provável, 1930)»,  op. cit.,   p. 219 nota.  Tratámos este assunto em vários textos, inclusivé, tomando-o por pressuposto teórico. No entanto, o primeiro em que o investigámos foi no nosso ensaio O nascimento do Homem em Pessoa, pp. 100-114. Como escrevemos já várias vezes, é esta figuração dos deuses como epifania das várias maneiras de (se) sentir que faz Álvaro de Campos-Pessoa dizer: «Cada canto da minha alma (é) um altar a um deus diferente».

Entendemos o conceito de Figura como categoria essencial de mediação, isto é, como «um todo que engloba mais do que a soma das suas partes» (título do terceiro capítulo da Primeira Parte da obra O Trabalhador de E. Jünger, tradução francesa de Julien Hervier, Paris, Christian Bourgois Éditeur,1994, pp. 61-78 - sem dúvida, a quem se deve uma das mais fascinantes análises sobre esta noção escrita neste século), e, neste sentido, sinónima dos conceitos hegeliano de figura do Espírito, goetheano de figura originária (Urbild) e schilleriano de figura viva (lebende Gestalt), nos antípodas, portanto, da noção cartesiana de figura, mera expressão de uma exterioridade e corporeidade e, por isso mesmo, fundadora da ideia de «experiência da modernidade» (central a autores como Proust, Kafka, Musil, Lyotard, etc.). Da vasta bibliografia sobre este tema ver, sobretudo: Goethe, A metamorfose das plantas, tradução, introdução, notas e apêndices de Maria Filomena Molder, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1993 (com especial atenção, também, para o excelente estudo introdutório de Filomena Molder); F. Schiller, On the aesthetic education of man, tradução de E. M. Wilkinson e L. A. Willoughby, Oxford, Clarendon Press, 1967; Cassirer, Rousseau.Kant.Goethe.Two essays, tradução do alemão por J. Gutmann, Paul Oskar Kristeller e J. Hermann Randal, Jr., Princeton, Princeton University Press, 1970; Gilles Deleuze/Felix Guattari, O anti-Édipo:Capitalismo e esquizofrenia, tradução de Joana Moraes Varela e Manuel Carrilho, Lisboa, Assírio e Alvim, s.d. (1ª edição 1966), sobretudo o capítulo II, sobre as três modalidades da síntese inerentes a toda a figurabilidade (síntese conectiva, disjuntiva e conjuntiva), pp. 71-118; Maria Filomena Molder, «O pensamento da forma: consentimento e  louvor do caminho intermédio», in Filosofia e Epistemologia, nº 5, Lisboa,  Publicações D. Quixote, 1984, pp. 109-135; Id., «A propósito de Mimésis», Estudos filosóficos I, Universidade Nova de Lisboa, Maio de 1982, pp. 67-85;  Maria Filomena Molder, O pensamento morfológico de Goethe, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1995 (em especial: toda a segunda parte: pp. 181-302 e, da terceira, as páginas 354 e sgs.);   Stefano Zecchi, «Il Tempo e la Metamorfose», in La magia dei saggi: Blake, Goethe, Husserl, Lawrence, Milano, Jaca book, 1984, pp. 29-49; José A. Bragança de Miranda, «Algumas anotações sobre a ideia de figura», in Revista de Comunicação e Linguagens, nº 20 Figuras, Lisboa, Edições Cosmos, 1994, pp. 53-67 (a quase totalidade dos artigos deste número trazem achegas para esta problemática, mesmo que em perspectivas diversas); e o nosso ensaio O nascimento do Homem em Pessoa: A heteronímia como jogo da demiurgia divina, Lisboa, Cosmos, col. «Cosmovisões», 1992, sobretudo, pp. 59 e sgs.

Será nesta linha que se coloca o problema hermenêutico da escrita como actividade, pela via, respectivamente,  do triplo sentido: material, cognitivo e estético. A este respeito, ver Almuth Grésillon, Eléments de critique génétique, Paris, PUF, 1994, p. 18.
    Quanto a esta problemática por relação com uma «estética da recepção» (Jauss, Iser), que pensa a interpretação como repetição da criação em detrimento duma teoria do Génio tal como esta é perspectivada pela hermenêutica do séc. XIX, em que o autor é encarado como analogon do Criador e, em especial, com uma hermenêutica borgeana, ver Raphaël Lellouche, Borges ou lhypothèse de lauteur, Paris, Éditions Balland, 1989, passim.

Como escreveu Deleuze, «a linguagem é ela própria um duplo último que exprime todos os duplos, o maior simulacro», «Klossowski ou o corpo-linguagem», in O Mistério de  Ariana,  Lisboa,  Vega, 1996,  p. 16. Sobre esta noção de simulacro, ver o excelente texto de Jean Baudrillard, «Simulacros e ficção científica», in Simulacros e simulação, tradução de Maria J. da C. Pereira, Lisboa, Relógio d´Água, 1991, pp. 151-158.  Sobre Alberto Caeiro como «sujeito-Caeiro sem subjectividade, sujeito da heteronímia», ver José Gil, «O corpo, a arte e a linguagem: O exemplo de Alberto Caeiro», in Comunicação e Linguagens, números 10/11, O corpo, o Nome, a Escrita, Março de 1990, pp. 59-70. Sobre esta noção de dialéctica sinceridade/fingimento a respeito da morfogénese do processo heteronímico, ver o nosso ensaio O nascimento  do  Homem  em Pessoa, em  especial,pp. 100-114.

E será preciso lembrar que António Mora, por exemplo, «clinicamente não se afasta em nada do typo de paranoico, ou da marcha conhecida da paranoia. É verdade que não é simplesmente um paranoico. É tambem um hysterico. Mas a paranoia é algumas vezes acompanhada de uma psychonevrose intercorrente»  (2719B3-4r), mesmo se esse delírio é de uma espécie original (ou seja, mais de acordo com a origem)? Sobre o modo como deverá ser encarado este conceito de origem, ver o nosso ensaio O nascimento do Homem em Pessoa, pp. 49-58.

20-70r-72r. Sobre este ponto, veja-se o seu opúsculo «O neo-paganismo portuguez e a mythologia nova» publicado por nós em Fernando Pessoa e o ideal neo-pagão: subsídios para uma edição crítica,  recolha, organização e transcrição de Luís Filipe B. Teixeira, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian/Acarte, 1996, pp. 1-11.

Com esta expressão pretendemos chamar a atenção para o carácter «ourobórico» da heteronímia pessoana, tomando por base o contexto dos estádios mitológicos da evolução da Consciência, na linha dos trabalhos de Cassirer (sobretudo, La philosophie des formes symboliques, trad. Jean Lacoste, Paris, Ed. Minuit, col. Sens Commun, 3 vols, respectivamente, 1972, 1979 e 1972) e Erich Neumann (em especial The Origins of Consciousness, with a foreword by C. G. Jung, translated from the german by R. F. Hull, New York/Princeton, Princeton University Press, Bollingen Series XLII,  1973). Sobre este ponto ver, por exemplo, o nosso livro O nascimento do  Homem  em  Pessoa,  p. 38  (nota 7)  e  pp. 69-72. Mais recentemente, tratámos deste conceito por referência às noções de esotérico e de processo de individuação e experiencialização da Consciência. Para tal, tomou-se por base, respectivamente, os textos de Mora, em especial 21-56r-60r sobre «Theoria dos deuses. O que são  os  deuses?»;  e  os  do  ortónimo  sobre  a  escala da despersonalização e os graus de iniciação. Cf. «Ciência e Esoterismo em Fernando Pessoa» (comunicação proferida na «Casa Fernando Pessoa» em 27/10/94),  in  Tabacaria,  Casa  Fernando  Pessoa/Contexto,  número zero,  Fevereiro de 1996, pp. 26-35 (reeditado no livro Pensar Pessoa: A dimensão filosófica e hermética  da  obra  de Fernando Pessoa, Porto, Lello & Irmão, colecção «Mocho de Papel», 1997, pp. 153-176).

Gilles Deleuze, «O que é um dispositivo?», in op. cit., pp. 83 e 84.

Como especifica Deleuze, «os dispositivos têm por componentes linhas de visibilidade, linhas de enunciação, linhas de força, linhas de subjectivação, linhas de brecha, de fissura, de fractura que se entrecruzam e se misturam, acabando umas por dar noutras, ou suscitar outras, por meio de variações ou mesmo mutações de agenciamento», idem, p. 89.

Sobre este ponto, ver o nosso ensaio O nascimento do Homem em Pessoa, sobretudo, pp. 107-108. Sobre a negatividade inerente ao processo de subjectivação, relacionado com a morfogénese goetheana, ver Stefano Zecchi, La magia dei saggi: Blake, Goethe, Husserl, Lawrence, pp. 29-49.

José Gil, Fernando Pessoa ou  a metafísica das sensações, Lisboa, Relógio dÁgua, s.d., p. 228.

Segundo esta perspectiva, o problema essencial está, como se lê numa passagem acerca da produção de multiplicidades ao nível da máquina literária, incluída no primeiro capítulo do Anti-Édipo de Deleuze/Guattari, em saber «como produzir e pensar fragmentos que tenham entre si relações de diferença enquanto tal, que tenham como relações entre si a sua própria diferença, sem haver referência a uma totalidade original ainda que perdida, nem a uma totalidade resultante ainda que a realizar?» E conclui-se paradigmaticamente: «Só a categoria da multiplicidade, empregue como substantivo e superando tanto o múltiplo como o Uno, superando a relação predicativa do Uno e do múltiplo, será capaz de explicar a produção desejante: a produção desejante é multiplicidade pura, ou seja, afirmação irredutível à unidade», O Anti-Édipo, p. 43.

Sobre a virtualidade da recordação (anamnese) e sua actualização, ver Henri Bergson, Matière et mémoire, Oeuvres, 4ª ed., Paris, PUF, 170, sobretudo os capítulos II e III, pp. 223-316.

Esta ideia da irrepetibilidade do tempo, inversamente à de eterno retorno nietzscheano, constituirá mesmo o fundamento da atitude filosófica de Reis. Para um estudo mais aprofundado acerca da natureza das multiplicidades em Pessoa, é imprescindível a leitura de Mille Plateaux de Deleuze e Guattari. José Gil, na nota 74 da página 171 do seu livro acima referido, já chamou a atenção para este ponto teórico. Também aqui se trata apenas de uma breve aproximação a esta problemática pessoana.

20-70r-v.

Ibidem.

48C-29r-v.

Na arquitectura heteronímica pessoana, como pensamos ter demonstrado no nosso ensaio «Ciência e esoterismo em Fernando Pessoa» (publicado em Pensar Pessoa, pp. 169-192), esta analogia toma três formas interdependentes, a saber: 1) como experiencialização da Consciência num percurso noético (em que cada heterónimo mais não é do que uma forma simbólica, segundo o sentido conceptual que lhe é dado por Cassirer); 2) como processo iniciático (ou seja, aspiração ascética de Adepto Menor a Maior);  3) e como  (auto-)Realização da Obra, em que cada um dos heterónimos prepara os vários estádios operativos (sobre isto, ver supra, nota 28).

José Jiménez, A vida como acaso, tradução de Manuela Agostinho, Lisboa, Vega, 1997, p.70.

Ver, por exemplo, Anti-Édipo, pp. 14-21, 336-355.

Sobre este ponto, ver Michel Foucault, As palavras e as coisas: Uma arqueologia das ciências humanas, Lisboa, Edições 70,1988, pp.101-104.

Ver R. Lellouche, Borges ou lhipothèse de lauteur, pp. 171-210.

Sobre este tema da ventriloquocidade, em especial, de Goethe-Eckermann, ver Avital Ronell, Dictations:On hunting writing, Lincoln and London, University of Nebraska Press, 1993 (1ª ed. 1986); e Id., The telephone book: Technology, schizophrenia, electric speech, Lincoln and London, University of Nebraska Press, 1989. Como nota, refira-se que Jaron Lanier definiu a realidade virtual como o «telefone do futuro», ver Rudy Rucker, R. Sirius & Queen, Mondo 2000: A user's guide to the new eddge, New York, Harper Collins Publishers, 1992, p.254.

© Luís Filipe B. Teixeira