CRÍTICA DA RAZÃO PÓS-MODERNA.
EM DEFESA DO «REGRESSO DOS DEUSES» (ESBOÇO)

Luís Filipe Teixeira, Universidade Lusófona

1997

I

Um dos primeiros pontos, senão o primeiro, que importa discutir a respeito do pós-modernismo é o de saber, não só «o que significa», mas também, sobretudo, em caso de significar algo, «qual o sentido daquilo que significa» (que se pressupõe ser diferente daquilo que é designado por outros conceitos e/ou paradigmas). Ora, o prefixo «pós-», se é certo que pretende expressar, antes de mais, uma resposta à modernidade, quer como forma de oposição quer como sua continuidade diferenciada, também remete, numa primeira abordagem, para um certo esgotamento das taxinomias. Assim sendo, como não se muda de paradigma como quem muda de camisa, importa investigar se, a limite, se pode mesmo falar do pós-modernismo como novo paradigma e, em caso afirmativo, em que consiste e como conceber esse novum constitutivo da sua essência. De entre a vintena de acepções que pode tomar o conceito de «paradigma» - dispersas pelo livro de Thomas S. Kuhn, The structure of scientific revolutions -, destacaríamos aquelas que o encaram ora como modelo epistemológico geral ora como caracteriza-dor de um campo específico da realidade. Quer num caso quer no outro, o paradigma assume-se como um modo de olhar (com a consistência e a coerência suficientes para se constituir como uma determinada verdade), modo de olhar este que arrasta consigo a existência de uma ontologia, na medida em que «o modo de olhar» prefigura (sempre) o «modo de ser olhado» [incluir algo sobre «As Meninas» de Velazquez ]. É neste sentido que, não só o paradigma pode (ou não) basear e servir de fundamento à elaboração de uma certa teoria, como, igualmente, a mudança de paradigma implica, necessariamente, a alteração do registo ontológico. Daqui resulta uma diferença fulcral, defendida por Kuhn, entre as noções de paradigma e de teoria. Percebe-se assim, e como corolário, que a existência (ou não) de uma teoria pós-moderna está dependente da aceitação (ou não) de um paradigma pós-moderno. E é aqui que as coisas se complicam. Senão vejamos. Repare-se bem no que John Perreault escreveu a Michael Kohler: Fui obrigado a usar o termo pós-moderno em meados dos anos 60 porque desejava discutir obras de arte de todos os géneros, que não pareciam porém incluir-se nas regras do modernismo na arte...O pós-modernismo não é um estilo particular, mas um conjunto de tentativas para ultrapassar o modernismo. O que nalguns casos significa um «revival» de estilos artísticos «riscados» pelo modernismo, noutros significa arte anti-objectual ou qualquer outra coisa. Sem dúvida que uma síntese se aproxima.

Ora, como é que se pode aceitar a existência de um paradigma que, por um lado, «não é um estilo particular», ou seja, não possui no seu interior o leitmotiv do seu próprio fundamento (Grund) e impulso (Trieb), ficando-se apenas por «um conjunto de tentativas para...»; por outro, significa «qualquer outra coisa», isto é, não estabelece, a partir de si, a sua quididade, antes se elege como modo de inclusão de tudo o que não cabe (ou que se pensa não caber...) no interior do conceito de modernidade, mas que, por outro lado, permanece com o «cheiro» de um retorno a algo «déja vu» ; e, last but not least, ainda não é uma síntese, pois se já o fosse, não se estaria à espera da aproximação de uma nova síntese? Este facto torna-se facilmente compreensível quando se sabe que a dimensão epocal do modernismo (de que o «pós-» pretende designar uma ruptura) se joga nessa tensão entre o niilismo pressuposto na ideia de (eterno) retorno de Nietzsche e na, consequente, (necessidade de) superação (Verwindung) da metafísica, proposta por Heidegger - mas de uma superação que o não é. Como muito bem refere Vattimo na sua obra O fim da Modernidade,

Assim sendo, poder-se-á dizer que a «pós-modernidade» filosófica surgiu, antes de mais, como tentativa de superar o próprio conceito de superação e nessa sua tarefa, que coincidiu com o seu programa, deu de caras com o Minotauro do próprio Labirinto em que se meteu!

 

II

Houve quem quisesse ver no pós-modernismo aquela «Filosofia da Manhã» de que nos fala Nietzsche no final do seu Humano demasiado Humano, que terá por base, quer a afirmação nietzschiana da impossibilidade de estabelecimento de uma qualquer origem ou fundamento; quer, por outro lado, e seguindo agora a lição hei-deggeriana, a impossibilidade do Ser já não poder funcionar como fundamento (Grund) devido ao seu carácter «epocal» , implicitando uma carência de perspectivismo . No entanto, o problema reside no facto de este perspectivismo transcendental e esta «escatologia», inerente ao conceito de «moderno», tomarem agora uma nova forma: a dos princípios reguladores e dos processos de legitimação. Assim sendo, não se trata de procurar a fundamentação mas antes, como está indicado no título de uma das obras de Hans Blumenberg, a Legitimação da Idade Moderna . São dele as seguintes palavras que espelham bem o carácter inédito desta tarefa essencial:

A idade moderna foi a primeira e única que se compreendeu como uma época e, ao fazê-lo, criou simultaneamente as outras épocas.

Consequentemente, o que os defensores do pós-modernismo não viram (ou não quiseram ver) foi que o que está em causa não é a instauração de um «novo» paradigma, mas antes a manifestação de um novo conceito de experiência (Erfahrung) - e, por isso mesmo, o enriquecimento do paradigma existente -, na medida em que o que é requerido é uma nova experiência da Verdade (entendida como Erro e/ou Virtualidade). É este facto que faz com que o conceito de «moderno» se desenvolva a partir de uma nova perspectivação do cepticismo, isto é, de uma forma original de encarar a observação e a reflexão (skeptis). É nele que se dá a emergência do Sentido encarado como ultrapassagem do destino da auto-afirmação moderna (Malraux diria, a transformação do destino em destinação), ou seja, em superação/rememoração da «época das representações do mundo» . O que cresce por essa época é a vontade de verdade, fonte germinal do niilismo, passando esta verdade ao reino do vivido (Erlebnis), isto é, passa a ser entendida como algo de epifânico (no seu modo de ser), chamando a atenção para a «imanentização» dos processos cognitivos e para o problema da finitude da razão e das suas possibilidades, retomando, de certo modo, em perspectivas diferentes mas convergentes, o trabalho conceptual desenvolvido pelo romantismo alemão (que desembocará, por exemplo, na Filosofia do Inconsciente de Hartmann, obra essa que, entre nós, influenciará os pensamentos de um Antero e de um Sampaio Bruno) e o sentido que Kant deu ao conceito de aisthesis: trata-se de encarar o objecto como um work in progress, como um trabalho processual de des-velamento (Alétheia, Verdade ). É no interior deste quadro (que remonta à crise da «razão iluminista» e do absolutismo do poder da racionalidade) que se desenvolverão as «filosofias da consciência», herdeiras da noção hegeliana de «imanência do Espírito», imanência esta que subjaz a toda a evolução orgânica e que tem a dialéctica triádica como seu motor .

 

III

Percebe-se assim que a instauração «epocal» do modernismo passa por uma «desconstrucção» construtiva da dualidade irredutível (Antero) sujeito/objecto, a qual implica uma maior extensão do paradigma da experiência [nota do livro de JBM sobre a noção de «experiência], perspectivando o conceito de Transcendental, de que a tentativa pessoana de (reconstrução do) Paganismo Transcendental é um exemplo entre outros . Este novo «ponto de vista» implica, por seu lado, o retomar da crítica ao cientismo positivista e à «técnica das minas» - visível nas observações de Heidegger, de E. Jünger e de Spengler, entre outros, a respeito da noção de técnica -, presente na instauração das ciências humanas e do vitalismo voluntarista (Nietzsche) como Modelo das ciências (ditas) físicas. Com efeito, o configurar do «humano» como objecto científico coloca, desde a sua génese, o problema de saber como é que a interioridade, isto é, o metafísico («o que está para além do físico», da Natureza) pode ser elevado à categoria de ciência (epistême) e, em caso afirmativo, qual o modelo a adoptar. Será de salientar que esta inversão do modelo paradigmático do pensar científico arrasta consigo um perigo de não menor importância do que o que pode ser observado pela sua inversa, pois pode conduzir a uma consequente fragmentação da consciência pela autonomização do sujeito relativamente ao objecto. Daí a necessidade de se acautelar o elemento mediador de todo este processo. Em termos fenomenológicos, talvez tenha sido a consciência deste perigo que fez com que Pessoa sentisse a necessidade de criar um Mestre (Caeiro) - que, enquanto Mestre-heteronímico, se situa no centro acentrado de toda a «geometria do abysmo» de «ser eu», sinónimo niilista de se «ser tudo de todas as maneiras», logo, mediador por excelência de todo o processo - como forma de não fugir (pelo carácter centrípeto que possibilita) à coesão do seu projecto cultural.

Por tudo isto, e como conclusão geral poder-se-á dizer que o algoritmo da modernidade mais não é do que o contínuo e perpétuo desejo de se experienciar a sua própria reescrita, resistindo, como disse Lyotard, «à escrita dessa suposta pós-modernidade» . Daí que, a reescrita da modernidade tome a forma de um rememorar (An-denken) o Novo mais Antigo, isto é, o trazer à efectividade da Memória presente a essência anamnésica da Tradição moderna, não como re-torno ao ponto de partida, mas antes como trabalho intersticial, transiente , entre um passado (proteron, anterior) e um futuro (husteron, posterior), entre o «defeito» (de se apresentar «demasiado cedo») e o «excesso» (de se manter até «demasiado tarde»), situado no presente que se institui como um novum . É, por isso mesmo, simultaneamente, perspectivo e prospectivo como Janus. Ora, o meio específico que a humanidade criou para narrar essa «modernidade» do que «sempre foi» é, precisamente, o Mito, «esse Nada que é Tudo», como escreveu o Poeta. É ele que permite colocar a sequência temporal num quadro de continuidade e de intemporalidade. Daí o desejo, tipicamente moderno, de se querer ser um criador de mitos (Pessoa) e de se desejar o «Regresso dos Deuses», pela consciência de que «cada canto da minha alma é um altar a um deus diferente».

A limite, é esta a razão essencial por que é impossível conceber-se a modernidade como acesso (ou interrupção) de um determinado tempo histórico. Ela é, outrossim, o dar forma e configurar de um paradigma experiencial em constante regresso a si e, paradoxalmente, em contínua metamorfose nem que, para tanto, se tenha de colocar como sua própria negação, isto é, se tenha de perder para se encontrar, gritando como Kafka: Encontrou o ponto arquimediano, mas utilizou-o contra si mesmo; ao que parece, esta era a condição para o encontrar.


© Luís Filipe B. Teixeira