A CIDADE E A CULTURA
UM
ESTUDO SOBRE PRÁTICAS CULTURAIS URBANAS
João
Teixeira Lopes, Universidade do Porto
Dissertação
de Doutoramento em Sociologia [1]
Porto,
Novembro de 1998
À memória de minha Avó, Eufrásia Pedro Teixeira
Lopes,
sereno exemplo de dignidade
"The times they are
a-changin"
Bob Dylan
"Eu não gosto do bom gosto
Eu
não gosto do bom senso
Eu
não gosto dos bons modos
Não
gosto
Eu aguento até rigores
Eu
não tenho pena dos traídos
Eu
hospedo infratores e banidos
Eu
respeito conveniências
Eu
não ligo pra conchavos
Eu
suporto aparências
Eu
não gosto de maus tratos
...
Eu aguento até os modernos
E
seus segundos cadernos
Eu
aguento até os caretas
E
suas verdades perfeitas
O que eu não gosto é do bom gosto
...
Adriana
Calcanhoto, Senhas
INTRODUÇÃO
FUGA E PARTITURA
OU UMA METÁFORA PARA UMA DISSERTAÇÃO
“I should imagine
that this kind of writing might make many and perhaps most of the readers of La
Distinction and of this book feel uncomfortable or angry. He is
talking about us or, at least, people
like us.”
Jim McGuigan, Culture and the Public Sphere
Este é
um trabalho de natureza científica. Obedece a cânones e a protocolos de regras
mais ou menos rígidos. Mas encontra-se vulnerável a uma certa margem de
imprevisto. Se, inicialmente, o nosso objecto consistia na análise dos públicos
urbanos, das suas práticas e dos modos de recepção, em cenários de interacção
diferenciados, cedo nos apercebemos do carácter restrito de tal intenção. De
facto, subjacente a esta delimitação, encontra-se um conceito fundamental: o
trabalho de mediação exercido pela
esfera simbólica no decorrer dos processos de mudança social. Mais do que mero
interface ou zona de fronteira, falamos, afinal, de uma mediação dialéctica, capaz de transformar os campos que coloca em
interacção, ao mesmo tempo que a si mesma se modifica[2]. Aliás, a esfera
simbólica remete-nos para um jogo de espelhos entre uma face visível e uma
outra recôndita – a evocação de algo ausente. Tornar esse
ausente presente é uma das motivações da análise sociológica do simbólico. Se é
verdade que a ordem simbólica é um veículo de expressão das sociedades, um
conjunto de representações que os agentes sociais elaboram a propósito de si
mesmos, da sua interrelação e do mundo em que habitam, então essa esfera
transporta consigo os processos de construção de sentido. Mas não se trata de
um sentido puramente abstracto, formal ou categorial. Existe uma
correspondência, não automática, não semelhante à reprodução em duplicata, face ao real e às práticas
sociais. Desta forma, estudar o simbólico e a complexa cadeia do sentido,
reenviar-nos-á, simultaneamente, para o homem concreto e real, condicionado
pelas suas condições materiais de existência e para o sujeito autónomo,
reflexivo, inventivo e imaginativo que, aproveitando brechas, campos de
possíveis ou mesmo subvertendo e alargando estreitas margens de manobra,
constrói quotidianamente a sociedade e o próprio real, afastando-se do modelo
do “sonâmbulo social”, dependente e
encarcerado pelas configurações sociais onde se move.
O
itinerário teórico que delineamos no capítulo
I (com seguimento, no capítulo II,
em termos de teorias de médio alcance que fazem o debate contemporâneo), viagem
pelo estudo do simbólico com direito a paragens para esclarecimento e acréscimo
de visibilidade, tendo por ponto de chegada (e simultaneamente eterno ponto de
partida...) a descoberta da complexidade e as teorias que com ela lidam (damos
apenas quatro significativos exemplos que têm o mérito de recuperar,
superando-o, praticamente todo o património teórico acumulado ao longo do
percurso), leva-nos a não encalhar nos dilemas “anterioridade do sujeito versus anterioridade do social”,
“conhecimento versus acção”, “sujeito
versus objecto”, “actividade versus reactividade, etc.[3].
Em suma,
se é verdade que uma sociologia da cultura e do simbólico deixaria de ser
sociologia se aceitasse de antemão a autonomia total da cultura e do simbólico
(enquanto estruturas de sentido auto-suficientes cuja compreensão seria
necessariamente interna[4]), não é menos
verdade que seriam tudo menos culturais e simbólicos, os fenómenos estritamente
isomórficos da base societal e dela totalmente prisioneiros. Esta concepção
encontra-se magnificamente ilustrada pela metáfora do homem como “músico de jazz”, proposta por certas
correntes da psicologia social: capaz de criar “uma verdadeira fuga e improvisação, que tem uma beleza e harmonia
próprias”, a acção do sujeito não está todavia “desligada do tema proposto pelo seu encontro com o ambiente, mas que
não reflecte, como se seguisse uma partitura”[5]. Corrigiríamos: “nem sempre reflecte”. Por vezes, quando a partitura é rígida e não permite
experimentações, a melodia segue-a de muito perto. No entanto, mesmo nessas
situações, dois intérpretes distintos construiriam duas “leituras” diferentes
dessa mesma partitura (é o que tentamos defender quando falamos no trabalho
dissimulado de produção patente na recepção cultural e nos vários usos que se
dão à cultura, como de resto se encontra patente nos capítulos III e XII). Melodia e partitura, texto e contexto,
caminham lado a lado. Um requer o outro. Parafraseando Giddens, diríamos que
não são dualismos, mas dualidades.
Admitem-se,
no entanto, situações de rápida mutação social, em que as partituras são
parcialmente esquecidas, realçando-se o carácter aberto, plurívoco, ambivalente
e aparentemente indeterminado das interpretações sociais. Segundo a leitura dos
dados que constam das contextualizações e enquadramentos que fazemos nos capítulos V, VI e VII, estamos na crista de uma dessas vagas de mudança. No entanto,
quem aprendeu a partitura jamais a esquecerá e, por formas tantas vezes
inusitadas e surpreendentes, a improvisação revela-se, afinal, contida dentro
de certos parâmetros. A força da partitura e a irrupção da fuga e da
improvisação, bem como o jogo que entre elas se estabelece, encontram-se
expostos no capítulo XI que deve ser
lido em conjunto com boa parte da reflexão conclusiva (termo um tanto ou quanto
absurdo para terminar uma dissertação, em especial quando ela nos inquieta mais
do que nos reconforta em certezas ou verdades inolvidáveis), designadamente ao
propor-se a existência de um “continuum
chamado (pós)modernidade” (capítulo XIII)
e a localização (em termos de tempo, espaço e estrutura social) dos movimentos
de mudança social.
Um dos
exemplos porventura mais desenvolvidos prende-se com as representações sociais
da noite. Como se terá ocasião de constatar, a partir da segunda parte do capítulo X, os discursos sobre a noite
são multivocais, salientando ora os
constrangimentos que impedem uma intensificação das saídas nocturnas (em boa
parte associados aos recursos de que os agentes dispõem), ora as possibilidades
de afirmação de identidade, mútuo
desvendamento e autenticidade.
Convém
explicitar, no entanto, de que práticas ou, seguindo o fluir da metáfora, de
que música nos ocupamos. Chamar-lhes urbanas não nos parece ser um delito
grave, mesmo estando conscientes da crescente substituição das velhas
dicotomias que cortam em dois o território por metáforas de redes e fluxos,
próprias de um mosaico de situações. Afinal, a música anónima de um saxofone
que se escuta numa esquina de duas ruas cosmopolitas será sempre diferente da
flauta pastoril...
Ao longo
de toda esta dissertação, mas em particular no capítulo IV, tentaremos reflectir sobre a recomposição do espaço
urbano e sobre as suas consequências ao nível da esfera pública e das relações
que desenvolve com o domínio privado, das políticas culturais, da imagem de cidade
e das práticas sociais que nela se desenrolam. Este processo está
igualmente longe de ser unívoco, existindo contradições várias e
incontornáveis, em especial quando o discurso da “recuperação e enobrecimento
urbano” esquece as transformações do espaço público e a emergência de uma “sociedade dual”.
Ocupar-nos-emos, igualmente, embora de forma
breve, com a história da cidade onde se desenrola e tece o enredo desta
dissertação (capítulo VIII). Numa
época em que a globalização é um lugar comum, mas em que se reavivam, por
oposição, localismos e paroquialismos vários, nada como a temporalidade para
traçar linhas de continuidade e ruptura, identificar
persistências estruturais, dar o devido valor a conjunturas ou episódios
esporádicos. Os capítulos V, VI, VII e
VIII, no seu conjunto, fornecem as coordenadas espácio-temporais desta
dissertação, a partitura dentro da qual certas interpretações se tornam mais
plausíveis do que outras.
Foi
dentro deste espírito de equilíbrio tenso, de procura de sínteses e complementaridades,
sem forçar ao desaparecimento artificial de movimentos de justaposição e/ou
conflitualidade entre tendências contraditórias, que organizamos a nossa
pesquisa. Os caminhos metodológicos (capítulo
IX) traduzem esse mesmo espírito de não recusar à partida a conjugação
daquilo que surge como incontornável aporia. Assim,
ao accionarmos a “imaginação
metodológica”, usufruímos da combinação de abordagens qualitativas e
quantitativas, intensivas e extensivas, “duras” e “moles”, única forma, afinal,
de respeitar a especificidade de cada dimensão do objecto de estudo. Umas
requerem aproximações interpretativas, minuciosas, “internas”; outras exigem
enquadramentos estruturais e institucionais. Umas e outras não são
independentes, tão-pouco se bastam a si mesmas. Possuem um carácter relacional,
característica fundadora da complexidade do objecto de estudo.
Nada
disto é novo e constitui já uma saudável rotina do discurso sociológico. Mesmo
a investigação empírica, um passo aquém todavia, fornece cada vez mais exemplos
destas fecundas imbricações.
Reivindicamos,
ainda assim, um pouco de originalidade. Não acreditamos que a produção
científica em ciências sociais se limite, como alguns defendem, a um exercício
de intertextualidade. Os discursos científicos sobre o social são distintos dos
textos literários, bebendo no racionalismo aplicado de Bachelard a fonte dessa
especificidade.
A nossa
abordagem das práticas culturais pretende actualizar criticamente as teorias
legitimistas do campo cultural patentes na obra de Bourdieu (claramente
desactualizada face às transformações que se vêm verificando quer na produção
cultural, quer no consumo, desde os anos 80), com a ajuda de recentes reflexões
sobre os novos mundos da cultura e o estudo da recepção, ofício que requer um praticante cultural e não um mero
consumidor. A pluralidade das culturas urbanas, a sua variação consoante os
cenários de interacção (razão que nos leva a insistir em três estudos de caso),
a emergência de novos padrões de gosto e a sua ligação quer a significativas
alterações da estrutura social portuguesa (e portuense), quer à centralidade
expressiva das redes de sociabilidade, impelem-nos a um questionar de relações
anteriormente estabelecidas em universos sociais mais estáticos, menos sujeitos
à circulação da novidade e mais cristalinos quanto à correspondência entre
práticas e classes sociais. A harmonia desse espaço social ordenado em nítidas
hierarquias, e fundado em arbitrários dissimulados, constituiu um desafio
poderoso a uma sociologia da cultura de intuitos críticos e desmistificadores.
No entanto, a emergência de novas lógicas sociais, tornando mais opaca a
ligação entre interpretação e partitura, para manter a metáfora, envolve-nos no
compromisso de manter elevada a imaginação sociológica.
Hoje,
coloca-se amiúde a questão do “valor” da cultura, ou do que falamos quando falamos de cultura. Terá validade a
iconoclasta afirmação do niilista russo Pisarev, de que “um par de botas equivale a Shahespeare”? A partir do urinol Fonte de Duchamp e das sopas Campbell de
Warhol, esta questão torna-se evidente no campo artístico. Mas ela é uma invariante da história desse campo: o
que deve, num dado momento e numa sociedade determinada, ser considerado como
Arte? Da mesma maneira, a questão reaparece no domínio das práticas culturais,
com o discurso catastrofista do nivelamento cultural, ou com a aura optimista
da “ideologia pluralista”.
Baudrillard refere-se a este propósito à “mercadoria
absoluta”; mais mercadoria do que a própria mercadoria, fundada no “êxtase do valor”: triunfo da
equivalência, indiferença perante a questão do valor, maximização de todos os
estilos. Em suma, se tudo é arte, a arte morre. Por um raciocínio paralelo, se
tudo é cultura (“anything-goes culture”),
a cultura desaparece, nada restando senão as suas carpideiras (os
“apocalípticos” de Eco), ou os seus bacantes festivos (os “integrados”).
Não
cremos que a cultura tenha morrido. Caso contrário, de nada serviria este
trabalho, a não ser como elegia de um passado que se revisita com nostalgia. De
qualquer modo, sobre essa polémica não adiantaremos muito mais. Guardamos
intactos os nossos juízos de valor. É um debate que não comandamos, que não
queremos comandar embora possamos porventura esclarecê-lo, situando os pontos
em discussão. Antes de mais, explicitando que a questão do valor nos remete
para os quadros de referência, os discursos e as práticas dos agentes.
Precisando em seguida um pouco melhor, ao acrescentarmos que esses esquemas de
análise, essas representações e essas acções são pontos de vista em relação
(Bourdieu, teoria do campo). Finalizando a incompleta intervenção, com a
consideração de que constituem o objecto por excelência da sociologia da
cultura. Por outras palavras, as condições sociais em que surgem as questões do
valor são, antes de mais, uma questão de pesquisa empírica.
Renunciamos
a um ponto de vista soberano. Não renunciamos, no entanto, (e mantemos ainda a
metáfora...), a analisar com a mesma minúcia e empenho analítico, a relação
aparentemente mundana e trivial que os sujeitos mantêm com uma canção pop da moda, ou as formas subtis de
recepção do que outrora se chamava a música com maiúscula.
CAPÍTULO
I
ITINERÁRIO TEÓRICO EM TORNO DA
PRODUÇÃO DOS FENÓMENOS SIMBÓLICOS
No
estudo da relação entre os fenómenos culturais e a estrutura social, têm os
primeiros sido vítimas de um erro teórico fundamental: ora são considerados
como uma entidade autónoma e desligada dos enraizamentos societais, ora são
reduzidos a um mero epifenómeno de outras instâncias com “verdadeiro” poder
explicativo, como se fosse possível hierarquizar os diferentes campos da
actividade humana em instâncias estanques e incomunicáveis. Estas duas
concepções funcionam, de facto, como irmãos gémeos, uma sendo o espelho
antinómico da outra, mas em ambos os casos dissolvendo‑se o que seria a
especificidade da ordem simbólica.
Como
Clifford Geertz refere, tentando explicar um atraso relativo das componentes
culturais, no estudo das relações entre a estrutura social e a ordem cultural,
é “mais difícil lidar cientificamente com
as ideias do que com as relações económicas, políticas e sociais”[6].
Duplamente difícil (e encontrando‑se, por isso, numa situação duplamente
periférica) é a análise das formas culturais anódinas e quotidianas, já que estas
se movem, por definição, no terreno do implícito, do não sistemático, do não‑dito,
do não discursivo.
Para
este efeito, terá contribuído uma deficiente (porque não totalmente
sistemática) e conflitual abordagem do simbólico por parte dos “clássicos” fundadores
da sociologia, a quem sempre regressamos quando se trata de delinear um
qualquer itinerário teórico.
No
entanto, grande parte do que hoje se escreve a respeito dos clássicos resulta,
muitas vezes, de abordagens descontextualizadoras do sentido da sua obra, ou
então, aspecto mais grave, de leituras em segunda ou terceira mão, o que, tendo
aparecido como resultado de uma bricolagem
teórica, nos aconselha a um prudente regresso ao original.
A
sociologia jamais abandonou, salvo raras excepções, os seus grandes mestres.
Aliás, muita da conflitualidade teórica interna encontra‑se já em
incubação nas obras de cada um deles, assumindo mesmo, como no caso de Max
Weber, a obsessão de um diálogo constante e implícito com Karl Marx.
Este
“ir beber à fonte” não acalenta a esperança de “descobrir” o que ainda não foi
descoberto. Trata‑se, apenas, de fazer regressar a conflitualidade sobre
os fenómenos simbólicos, não ao seu ponto de partida, tarefa que seria
inglória, mas aos pensadores que mais directamente se ligam à moderna teoria
social, mesmo que esta não reivindique explicitamente a sua herança.
1. Ponto de
partida: a trilogia dos fundadores.
1.1. Karl Marx e o materialismo
histórico
Ao
falar‑se de Marx e do materialismo histórico, ocorre‑nos sempre a
estereotipada ligação entre a infraestrutura, o conjunto das relações sociais
de produção, e o seu reflexo legitimador, a superestrutura, onde se enquadram
as formulações políticas, jurídicas, ideológicas, religiosas; as ideias, se
preferirmos, ou a cultura em sentido lato.
Para
esta visão simplificadora, muito contribuiu, por omissão, o próprio autor,
apesar do esforço posterior de Engels para esclarecer e “suavizar” o aparelho
conceptual marxista.
A
análise do “movimento histórico das relações de produção” e o combate às teses
idealistas constituem o motor da produção teórica marxiana. De facto, o
paralelismo quase isomórfico que se estabelece entre a produção material e a
produção intelectual, resulta, precisamente, da sua concepção de praxis e de mudança
social enquanto efeito das contradições e conflitos entre as forças produtivas
e as relações sociais de produção.
Karl
Marx recusa a absolutização dos conteúdos intelectuais e culturais, combatendo
todas as abstracções da razão pura desligadas das relações humanas reais e
concretas:
“As relações sociais estão intimamente
ligadas às forças produtivas. Adquirindo novas forças produtivas, os homens
modificam o seu modo de produção, e modificando o seu modo de produção, a sua
maneira de ganhar a vida, eles modificam todas as suas relações sociais (...)
Os mesmos homens que estabelecem as relações sociais de acordo com a sua
produtividade material, produzem também os princípios, as ideias, as
categorias, de acordo com as suas relações sociais. Assim, estas ideias, estas
categorias, são também tão pouco eternas quanto as relações que elas exprimem.
Elas são produtos históricos e transitórios”[7].
Em
A Ideologia Alemã, Marx e Engels são
extremamente claros na crítica aos jovens
hegelianos, denunciando tudo o que neles contribui para a autonomização
ilusória das representações, ideias e conceitos, esquecendo, deliberadamente ou
não, a ligação existente entre essas formas mentais e a realidade histórica (o “meio material”): “Nenhum destes filósofos se lembrou de perguntar qual seria a relação
entre a filosofia alemã e a realidade alemã, a relação entre a sua crítica e o
seu próprio meio material”[8].
Para estes autores, a produção mental depende, inequivocamente, das relações
sociais que os indivíduos mantêm no quadro de uma determinada actividade
produtiva. Esta é a realidade, ou
seja, a forma “como actuam partindo de
bases, condições e limites materiais determinados e independentes da sua
vontade”[9].
Torna‑se assim explícito que as categorias mentais não são mais do que a “linguagem da vida real”, invertendo‑se,
por conseguinte, o nexo causal defendido pelos idealistas alemães: são os
homens reais, isto é, os indivíduos
inseridos num determinado modo de produção quem produz as ideias e não o
contrário: “Contrariamente à filosofia
alemã, que desce do céu para a terra, aqui parte‑se da terra para atingir
o céu”[10].
Por outras palavras, “não é a consciência
que determina a vida, mas sim a vida que determina a consciência”[11].
Nada poderia ser dito de forma tão precisa, eliminando, de uma só vez, a
possibilidade de existência autónoma das religiões, da moral, da metafísica e
mesmo do Estado. A ideologia tende a surgir, então, como mistificação, “falsa
consciência”, espelho inverso da realidade, negação da verdade das condições
materiais de existência. Na mesma linha, a ideologia
dominante é a expressão da posição das classes dominantes, as quais, por
possuírem os meios de produção material são também detentoras dos meios de
produção intelectual, através dos quais apresentam os seus pensamentos e ideias
particulares como sendo universais e únicos: “Os pensamentos dominantes são apenas a expressão ideal das relações
materiais dominantes concebidas sob a forma de ideias”[12].
No
entanto, Marx e Engels complexificam o seu sistema teórico ao centrarem o
essencial da sua proposta na actividade humana criadora. As ideias não são
abstracções nem produtos da pura lógica, porque foram construídas na e pela
acção humana historicamente situada. Tão‑pouco os homens aparecem
desprovidos de consciência, como se fossem recipientes vazios. O que Marx
pretende, segundo algumas interpretações, é, afinal, a consagração do princípio
da determinação/construção social da actividade intelectual, o seu carácter
específico e irredutivelmente humano[13].
Por isso, critica em Feuerbach o conceito de Homem, preferindo falar dos “homens
de carne e osso” — “os homens históricos reais”, detentores de uma “consciência real, prática”, existente
sob a forma de linguagem e intimamente dependente da actividade social.
Marx
pretende ser, antes de mais, o historiador de uma “história real, profana”, restituindo aos homens o seu papel de “autores e actores do seu próprio drama”[14],
quando à sua época vingavam as descrições pormenorizadas sobre epopeias e
feitos heróicos das grandes figuras e dinastias, e os filósofos reinavam no
vazio das “grandes ideias”. A sua tese fundamental é, pois, a de que as
circunstâncias históricas em que decorre a actividade humana a influenciam de
forma irremediável, condicionando a percepção e a interpretação da realidade.
Não
se pretende reduzir aqui o marxismo a um humanismo bem intencionado. Mas não
podemos deixar de criticar um outro reducionismo, esse muito mais frequente: o
de equiparar o marxismo a um economicismo determinista que reduz tudo o resto a
um pálido reflexo da base suprema da realidade.
Engels,
já o dissemos, apressou‑se a combater essa interpretação simplista do
legado de Marx, acentuando a possibilidade de um “efeito de retorno” da
superestrutura sobre a infraestrutura, introduzindo o célebre conceito da “determinação em última instância”[15].
Mas o próprio Marx (isoladamente ou em parceria com Engels) enfatizou, inúmeras
vezes, o carácter activo da existência humana, tido como o principal traço
distintivo da espécie. Não é de admirar, por isso, que Marx e Engels admitam a
contínua modificação de “forças de
produção, de capitais e de circunstâncias” através das sucessivas gerações:
“(...) por consequência, é tão verdade
serem as circunstâncias a fazerem os homens como a afirmação contrária”[16].
Considerar
que o contributo marxista se reduz a uma engrenagem teórica mecânica de
explicação das sociedades é esquecer a pedra de toque do seu pensamento: a
dialéctica, a recusa das noções abstractas e vazias, a constante referência à
circunstância de o homem ser, simultaneamente, produto e produtor da sua
história. Althusser realça em especial este ponto: apesar de se opor à
dialéctica enganadora de Hegel, Marx deixa intacto o sentido da dialéctica em
si, dela expurgando as marcas idealistas. Desta forma, é errado pensar‑se
que a contradição é uma unidade simples. Existe, isso sim, uma acumulação de “circunstâncias” ou “contradições”, algumas de cariz “radicalmente heterogéneo” e actuando, por conseguinte, em sentidos
opostos[17].
Impossível conceber um modelo economicista ou tecnologicista, já que tal seria
equivalente ao “princípio espiritual
eterno” presente na dialéctica hegeliana que Marx tão veementemente
criticou. Assim, a dialéctica Capital/Trabalho não se apresenta como um esquema
simples e unidireccional, sendo “sempre
especificada pelas formas e as circunstâncias históricas concretas nas quais se
exerce”[18],
nomeadamente — e aqui Althusser mostra a sua preocupação com a importância das
situações conjunturais — as configurações da Superestrutura (Estado, ideologia,
religião, movimentos políticos organizados, etc.) e a situação histórica
interna e externa (esta última cada vez mais importante em contextos de
mundialização). Para este autor, sobredeterminação
é o conceito que melhor exprime a complexidade da dialéctica marxista,
recusando qualquer tipo de determinismo unidireccional e aproximando‑se,
por conseguinte, de um modelo circular de influências recíprocas: “Em Marx a identidade tácita (fenómeno —
essência — verdade...) do económico e do político desaparece em benefício de
uma nova concepção da relação das instâncias determinantes no complexo
estrutura‑superestrutura que constitui a essência de qualquer formação
social (...) de uma parte a determinação
em última instância pelo modo de produção (económico); de outra parte a
autonomia relativa das superestruturas e a sua eficácia específica”[19].
Não existe, em Marx, uma dialéctica económica em sentido puro. A sua análise
reenvia‑nos, constantemente, para a complexidade das relações recíprocas
entre estruturas sociais e formas de pensamento. A recusa dos princípios
redutores é essencial na sua obra, bem como a crítica mordaz à economia
política e à abstracção e desumanização patentes no seu conceito de homo oeconomicus, enquanto justificação
ideológica de um particular modo de produção.
Mas,
apesar do pensamento marxiano ser ele próprio complexo e contraditório, em
muito influenciado pelas circunstâncias históricas da sua época (que lhe
exigiam uma retórica de mobilização rápida e eficaz das classes trabalhadoras),
coaduna‑se o seu núcleo‑duro com esta “releitura”? Dito por outras
palavras, ao ser desta forma interpretado, não encontraremos mais facilmente
Althusser do que o próprio Marx? O debate vem já dos anos sessenta e seria
descabido desenvolvê‑lo aqui.
1.2. Émile Durkheim e a tendência para
a reificação da sociedade
Ao
contrário do que uma visão superficial possa sugerir, existem algumas
similitudes entre o pensamento de Durkheim e o pensamento marxiano, apesar do
menosprezo por parte do primeiro quanto à constituição de uma sociedade
dividida em classes, aspecto essencial para o materialismo histórico[20].
De
facto, tanto Durkheim como Marx recusam a ideia de que se possa encontrar no
indivíduo, nas suas ideias ou na sua consciência, a chave explicativa da
actividade social, procurando na sociedade e nas relações sociais os factores
de explicação da conduta humana[21].
Ambos reiteram o princípio da não consciência e do primado das relações
sociais. Como refere José Machado Pais, “Durkheim
adopta o lema escolástico individuum
est ineffabile, isto é, do que é
individual não pode falar‑se”[22].
Aliás, os indivíduos são tidos como tendencialmente egoístas, o que requer uma
coordenação que os transcenda e que parta de interesses comuns, assegurando o
objectivo primordial de manutenção da coesão social.
Nesta
linha, Durkheim considera que as representações e as significações são
socialmente construídas, colocando uma ênfase especial na sua partilha através
dos processos de integração social e de formação de uma consciência colectiva.
Desta forma, as ideias e os sentimentos são irredutíveis aos indivíduos,
devendo ser considerados como produtos impessoais, isto é, socialmente
construídos. A consciência colectiva, aliás, é por Durkheim considerada como um
“composto”, superiormente formado acima das mentes individuais. Ao ter vida
própria, jamais depende dos estados de consciência subjectivos, seguindo a
evolução das suas próprias leis e assumindo um carácter universal. A
consciência colectiva existe sempre, em qualquer estado societal. É célebre a
tese de Durkheim sobre a divisão social do trabalho[23],
de acordo com a qual a passagem de um tipo de solidariedade mecânica (baseada
na submissão das consciências individuais a um “tipo psíquico comum de sociedade”) à solidariedade orgânica
(assente na especialização das tarefas, na diferenciação dos papéis sociais e,
por conseguinte, na complementaridade entre indivíduos mutuamente dependentes)
não implica um enfraquecimento da coesão social, nem tão‑pouco o desaparecimento
da consciência colectiva. Ambos os tipos de solidariedade respondem, pois, à
mesma finalidade, ainda que por vias opostas: a reafirmação da ordem social e
moral. Assim, se é verdadeira a constatação de um declínio da religião nas
sociedades contemporâneas (fenómeno extremamente ligado ao enfraquecimento da
solidariedade mecânica), não é menos verdade que outros “substitutos
funcionais” se institucionalizarão[24].
A sociedade assumirá sempre, perante os indivíduos, um cunho sagrado. Aliás,
segundo o autor, o “culto do indivíduo” em torno do qual giram as modernas
sociedades, está intimamente ligado aos princípios morais da ética cristã,
apesar do reconhecimento da existência provisória de um “hiato moral”, o que exige a refundação de rituais e símbolos.
Desta
forma, os factos sociais são exteriores ao indivíduo exercendo sobre ele um
poder coercitivo. Exteriores porque anteriores, resultado de um permanente
processo de aprendizagem e de interiorização de uma moral superior através de
processos educativos. Para Durkheim, e como refere Giddens, “a análise funcional de um fenómeno social
implica o estabelecimento de uma correspondência entre o social e as ideias
colectivas”[25].
Assim, tal como em Marx, encontramos no autor francês uma clara afirmação da dependência
das ideias, representações e fenómenos mentais face aos processos sociais que
estão na sua génese: “Para compreender a
maneira como a sociedade se representa a si própria e ao mundo que a rodeia, é
a natureza da sociedade, e não a dos particulares, que devemos conceber. Os
símbolos com que ela se pensa mudam de acordo com o que ela é”[26].
Todas as categorias do pensamento são construções sociais, sendo de alguma
forma o resultado da morfologia institucional de uma dada sociedade. Desta
forma, o autor rejeita as teses filosóficas que defendem o apriorismo dos conceitos e ideias. No entanto, este ponto não se
afigura totalmente claro, uma vez que Durkheim, ao falar da exterioridade e do
constrangimento que os fenómenos sociais (incluindo as ideias e as
representações) exercem sobre o indivíduo, refere, como já mencionámos, que
eles são‑lhe, ao mesmo tempo, anteriores, preexistindo‑lhe. Aliás,
é precisamente por esse mesmo facto (a anterioridade) que podem ser
considerados exteriores ao indivíduo. De qualquer forma, existe aqui a margem
de ambiguidade suficiente para que se possa falar de um idealismo não desejado
no pensamento durkheimiano – as ideias e as representações antes do indivíduo.
Essa
mesma ambiguidade persiste quando analisamos a correspondência entre os
fenómenos culturais e os processos societais. Apesar de os primeiros estarem
dependentes da evolução dos segundos, não podemos apressadamente afirmar a
existência de um “materialismo mecânico”
em Durkheim. É o próprio que afirma que “a
consciência colectiva é (...) algo mais do que um mero epifenómeno da sua base
morfológica, tal como a consciência individual é algo mais do que uma simples
eflorescência do sistema nervoso”[27].
Além do mais, a sociedade está em permanente devir, resultando da interdependência
de instituições e agrupamentos. Assim, e mesmo considerando uma tendência
fixista da ordem social (já que todas as categorias são produto da sociedade,
entendida como um Ser com identidade
própria), Durkheim aceita a evolução social.
A
ambiguidade continua a existir na própria concepção de actor social. Apesar de
os reduzir frequentemente a uma espécie de robots
sem vontade própria nem intencionalidade, ocasiões existem em que as motivações
pessoais dos actores adquirem um papel relevante. De qualquer forma, é clara em
Durkheim a tentação de reificação e mitificação do “organismo social”, caindo, por isso mesmo, no que Augusto Santos
Silva apelida de “posição espiritualista”[28],
ao construir uma espécie de “metafísica
da sociedade”, considerando esta como uma entidade ontologicamente superior
ao indivíduo e irredutível à sua soma. O conceito de totalidade é, para este
autor, a “categoria por excelência”,
assumindo “indubitavelmente uma concepção
holística e sistémica” e “situando‑se
numa corrente de pensamento sociológico vulgarmente designada por estrutural‑funcional”[29].
Esta “crença” numa realidade superior leva Machado Pais a falar num sentimento
de sagrado patente na teoria
durkheimiana; um sagrado “que dá sentido à ordem do mundo” e que
apenas os sociólogos, detentores de um habitus
científico rigorosamente controlado poderão conhecer e explicar, descobrindo e
formulando as leis do seu funcionamento[30].
Conhecimento que se torna, por isso, esotérico,
distanciado do senso comum e assente “na
consolidação de corpos doutrináveis”, no “culto prioritário de «cortes epistemológicos»”, em “formas elementares de religiosidade
(dogmática)”[31].
Ainda
assim, o próprio Durkheim, alimentando uma vez mais equívocos e incertezas, num
movimento que vai do radical sociologismo a posições consideravelmente mais
moderadas, considera que o indivíduo tem um papel importante na génese das “maneiras colectivas de agir e de pensar”:
“Pelo facto de as crenças e as práticas
sociais nos chegarem do exterior, não quer dizer que as recebamos passivamente
e sem as submetermos a modificações. Ao pensarmos as instituições colectivas,
ao assimilá‑las, individualizamo‑las e incutimo‑lhes em maior
ou menor grau o nosso cunho pessoal, é assim que, ao pensarmos o mundo
sensível, cada um de nós lhe dá um colorido à sua maneira e que sujeitos
diferentes se adaptam de um modo diferente a um mesmo meio físico. Eis porque
cada um de nós cria, em certa medida, a sua moral, a sua religião,
a sua técnica. Não há conformismo social que não comporte toda uma gama de
matizes individuais. O que não impede que o campo das variações permitidas seja
limitado”[32].
Afinal,
a liberdade individual está longe de ser aqui negada, aparecendo mesmo, noção
que muitos autores irão mais tarde desenvolver, como um campo limitado de
possíveis. Se esta nota de rodapé figurasse no corpo principal do texto, talvez
Durkheim (e com Durkheim a própria abordagem sociológica) não fosse tão
frequentemente acusado de um anti‑individualismo e de um sociologismo
radicais.
No
entanto, há que contextualizar a produção teórica durkheimiana no jogo de
forças dos subcampos académico e científico de início do século. A atitude
“imperialista” de unificar os procedimentos de conhecimento do social é
indissociável da necessidade de conferir legitimidade institucional à análise
sociológica, convenientemente delimitada da psicologia, da filosofia social e
do direito. Daí a explicitação do método,
a definição dogmática de um caminho, a clarificação rigorosa de fronteiras “entre a natureza e a história; o racional e
o irracional; o sagrado e o profano; o normal e o patológico; entre a ciência e
a metafísica; entre sapiens e
demens”[33];
a obsessão da procura da ordem, coerência e regularidade do tecido social, sem
margem para desvios subjectivistas ou tentações de ecletismo.
Importa,
ainda, referir uma outra limitação do modelo durkheimiano. Se, de facto, todas
as representações colectivas (filosofia, religião e a própria ciência) e
crenças tendem a ser funcionais, no
sentido de obediência à integração na realidade social colectiva, então há que
levar tal raciocínio até às suas últimas consequências. O que implica,
nomeadamente, o reconhecimento dos “limites
presentes na ciência, como forma parcial de conhecimento ligada a contextos
sociais específicos”[34].
Por outras palavras, subsiste a ilusão de um conhecimento independente do
sujeito que conhece, como se este, com o seu quadro de representações, valores
e pressupostos, não interferisse no próprio processo de observação.
Em
suma, para o autor a cultura e as formas simbólicas em geral são indissociáveis
da própria sociedade. Nas palavras de Franco Crespi, “quando Durkheim se refere a esta última, pensa, de facto, nas formas
culturais (representações, normas, modelos de comportamento, etc.), que a constituem
na sua objectividade relativamente independente”[35].
Concepção que, se por um lado exerceu uma notável influência em posteriores
modelos teóricos de base não psicologista, contribuiu, por outro lado, para o
esquecimento da força expressiva do agir social e da importância dos processos
de interacção social e de reconhecimento do
e pelo outro na construção de
identidade[36].
1.3. Max Weber e a produção de sentido
Ao
contrário de Karl Marx e de Émile Durkheim, encontramos em Max Weber uma clara
subordinação do objecto face ao sujeito, bem como a afirmação da especificidade
da conduta humana e da ordem cultural. Aliás, a análise da obra de Weber
afigura‑se de uma importância acrescida se pensarmos que ela exerce, mais
do que os outros autores referidos, uma importância decisiva na teoria social
contemporânea.
A
grande revolução conceptual de Weber, tanto mais ousada quanto nela haveria a
tentação de afirmação da análise sociológica, face, designadamente, à
psicologia e à filosofia, encontra‑se desde logo na definição da própria
disciplina: “uma ciência que pretende
entender, através da interpretação, a acção social para assim a explicar
causalmente no seu desenvolvimento e nos seus efeitos”[37].
Por acção entende‑se toda a conduta a que o sujeito confere um sentido subjectivo; por acção social, um
comportamento cujo sentido se orienta pelo sentido da acção dos outros. Além do
mais, apesar de privilegiar o tipo‑ideal da acção racional, Weber faz
questão de não ignorar importantes territórios da análise sociológica, em
especial aqueles que se situam no que Giddens chama de “consciência prática”, ao considerar que “os limites entre uma acção com sentido e um modo de conduta
simplesmente reactivo (...) são inteiramente elásticos. Uma parte muito
importante dos modos de conduta de interesse para a sociologia (...) faz‑se
na fronteira entre ambos”[38].
Com
estas considerações, Weber recusa‑se a deixar de lado elementos tão
importantes para a análise sociológica como a gestualidade, a expressão
corporal, todos os comportamentos não verbais e, em suma, as aparentemente
insignificantes condutas quotidianas.
A
metodologia weberiana, em clara ruptura com a tradição positivista, opera
através da interpretação, sendo esta considerada como a compreensão intelectual
de uma “conexão de sentido”. E só o
indivíduo tem competência para produzir uma acção significativa, sendo as
estruturas (e restantes entidades colectivas, como o “Estado”, a “família” ou a
“Igreja”) produto da “actuação social de
singulares”. Por outro lado, se a compreensão visa a análise do sentido
implicado numa acção, o objecto da sociologia é o mundo cultural numa acepção
ampla, incluindo tanto os artefactos materiais, obras da actividade humana,
como os comportamentos e as acções orientados para a prossecução de
determinados fins, e até mesmo os rituais, os afectos e as modalidades
“irracionais” da acção.
Desta
forma, opera‑se uma nítida ruptura face às ciências naturais. Como
menciona Frank Parkin, “ao contrário das
moléculas e dos planetas, as pessoas têm motivos para as suas acções. O seu
comportamento é orientado por significados subjectivos. Mais ainda, os actores
sociais têm as suas próprias ideias e explicações acerca da razão pela qual se
comportam de determinado modo e essas ideias e essas explicações são uma parte
indispensável de uma análise compreensiva das condutas”[39].
Assim, ao considerar que o indivíduo e as
suas acções devem constituir o objecto por excelência da sociologia
(individualismo metodológico), Weber afirma‑se, por conseguinte, contra
todas as tentativas de reificação da sociedade e da estrutura social: “acção como orientação significativamente
compreensível da própria conduta só existe para nós como conduta de uma ou
várias pessoas individuais”[40].
A oposição a Durkheim não poderia ser mais clara, na recusa da lógica
unilateral do determinismo sociologista. Como refere Peter Hamilton, o
pensamento weberiano caracteriza‑se por uma “falta de fé na possibilidade de alguma vez obter respostas
irrevogáveis para as questões sociológicas”[41].
As
“ciências da cultura”, na quais se incluem tanto a sociologia como a história
(e Weber sempre demonstrou um particular interesse pela sociologia histórica)
devem preocupar‑se com a singularidade histórica, entendida como “meio de conhecimento da essência geral das
experiências”[42].
O facto histórico consiste, afinal, na natureza particular de um determinado
fenómeno, sendo heuristicamente ricas as pistas e as ilações que se podem
retirar para outras situações ou individualidades históricas[43].
Esta ligação do individualismo metodológico com a análise histórica leva A.
Teixeira Fernandes a considerar que “se é
lícito falar em E. Durkheim de uma tendência para um reducionismo naturalista,
será igualmente lícito falar de uma tendência em M. Weber para um reducionismo
histórico”[44].
Trata‑se,
no fundo, de descobrir o que num dado meio social e numa dada época se reveste
de uma natureza particular, singular ou típica em relação a outros meios
sociais e a outras épocas.
Ilustrando
este raciocínio com a análise das cartas de Goethe à Sr.ª Stein, Weber
considera, num primeiro momento, ser fundamental conhecer as condições gerais
nas quais essas cartas foram escritas, bem como o “conjunto da vida cultural do mundo «envolvente»”[45] para,
num segundo momento, interpretar a experiência individual dos valores e das
normas dominantes actualizadas pelo criador dessas cartas.
Assim,
de uma assentada, Weber rejeita tanta as modalidades de análise sociológica que
consideram o indivíduo de forma a‑histórica e descontextualizada, preocupando‑se
sempre em inseri‑lo no conjunto da envolvente societal, como as versões
que ignoram as vivências, as experiências e as emoções individuais. Frank
Parkin faz notar, a esse respeito, a distinção e a complementaridade que Weber
estabelece entre “a compreensão actual do
sentido visado de um acto (actuelles Verstehen)” e a “compreensão
explicativa (erklarendes Verstehen)”[46].
Enquanto que a primeira se pode ilustrar pela “capacidade que temos de compreender que alguém está irritado pela
simples leitura da sua expressão facial”, mediante a intuição patente no
acto observacional, a segunda requer a inclusão num contexto cultural mais
vasto, “um quadro de conhecimento
alargado”, dentro do qual se torna possível compreender o fenómeno social[47].
Em
síntese, a compreensão da acção humana preocupa‑se com os objectos
culturais, isto é, orientados por valores e motivações (factor distintivo das
“ciências da cultura” face às “ciências da natureza”), mas sempre enquadrados
numa determinada individualidade histórica. Este método pretende, assim, captar
a “constelação única de características
que definem a originalidade de cada conduta ou instituição social, num certo
momento histórico”[48].
Essa constelação, não o esqueçamos, encontra‑se sempre ligada a um
universo pleno de sentido e subjectivamente vivido e elaborado. É essa
característica típica e exclusivamente humana — a produção de sentido ‑,
que nos leva a salientar a seguinte definição de cultura: “(...) segmento finito de entre a infinitude sem sentido do devir do
mundo, segmento a que os seres
humanos conferem sentido e
significação (...) A pressuposição transcendental de toda a ciência cultural não repousa sobre a nossa opinião acerca do valor de uma certa cultura ou
da «cultura» em geral, mas sim do facto de sermos seres culturais dotados da
capacidade e da vontade de tomar uma atitude deliberada perante o mundo e de
lhe atribuir significação”[49].
Deste modo, as ciências sociais – e a sociologia em particular – são formas de
conhecimento duplamente interpretativo, ou, nas palavras de Parkin, uma “actividade de segundo nível”, já que “se reporta a teorias e concepções dos
actores sociais e não aos comportamentos desses actores, em bruto, tal como
são”[50].
Assim, os significados subjectivos da acção são, por si mesmos, ingredientes
indispensáveis para a sua própria explicação, valendo como factos sociais. É a
vez de Weber acentuar, como de resto faz recorrentemente, embora nem sempre de
forma explícita, a sua distância face a Marx, designadamente à sua noção de
ideologia como mistificação, ilusão ou falsa consciência. Mas a demarcação vale
também em relação a Durkheim, em especial no que se refere à sua exigência de
ruptura face ao senso comum[51].
A
análise complexifica‑se quando o autor se pretende demarcar da intenção
nomotética da ciência experimental "positivista". De facto, Weber
defende que qualquer operação científica está impregnada de juízos de valor e
de “concepções do mundo”, ideais “que são tão sagrados para os outros como os
nossos o são para nós”[52].
Daí, a afirmação muito clara da dependência da ciência face a “determinadas perspectivas especiais e
parciais” que seleccionam as manifestações sociais que são objecto de
investigação. Nas palavras do autor, “uma
parte ínfima da realidade individual adquire novo aspecto de cada vez que é
observada por acção do nosso interesse condicionado por tais ideias de valor”[53].
Essa parte da realidade é a que se encontra ligada, precisamente, ao quadro
cultural de referência, aos interesses e às “atitudes
significativas” do cientista. Por conseguinte, todo o trabalho científico
parte de uma orientação subjectiva, a qual, por sua vez, está intimamente
ligada ao “espírito” de uma determinada época histórica. Desta forma, Weber
critica as leis amplas e abstractas que, no seu entender, são as mais vazias de
conteúdo e as mais distanciadas da realidade. Pelo mesmo motivo, recusa todas
as imputações causa/efeito de cariz unilateral, presente tanto no monismo
sociologista de Durkheim, como no mecanicismo materialista de Karl Marx. Daí apontar
para o carácter pluralista e probabilista da causalidade.
Como
alternativa, Weber propõe a construção de tipos‑ideais,
enquanto conceitos genéticos que se
afastam da realidade empírica para melhor captar a sua “significação cultural específica”, através da acentuação
unilateral de certas características, a partir de um ou mais pontos de vista.
No entanto, o procedimento deverá ser lógico e jamais normativo – segundo
Weber, “existem ideais‑tipo tanto
de bordéis como de religiões”[54]. Cada
exercício de pesquisa deverá, partindo do tipo‑ideal construído,
verificar o seu grau de adequação aos factos concretos. Desta forma, como a
própria ciência, o conceito é sempre provisório. Contudo, como acentua Frank
Parkin, é possível acentuar unilateralmente determinados critérios, obtendo‑se,
no limite, tipos‑ideais totalmente diferentes apesar de se basearem no
mesmo fenómeno. Assim, a “afirmação de
que os tipos‑ideais nos dizem menos acerca da realidade social do que
acerca dos preconceitos interiores é, no mínimo, defensável”[55].
Uma
outra questão, provavelmente a mais polémica na obra de Weber e transversal,
aliás, à maior parte dos seus escritos, prende‑se com o lugar da cultura
na determinação dos fenómenos sociais. É notório que Weber valoriza a dimensão
cultural dos factos históricos, como acontece quando analisa a emergência do
capitalismo, mas parece‑nos errado considerar essa componente como sendo
exclusiva. Parkin diz mesmo que é injustificada a sua tão divulgada “reputação antimaterialista”[56].
De
facto, Weber é muito claro quando defende a pluralidade causal. O próprio
conceito de individualidade histórica, anteriormente referido, aponta no mesmo
sentido: “complexo de relações na
realidade histórica, congregadas num todo conceptual sob o ponto de vista do seu
significado cultural”[57].
No entanto, ao analisar a génese do capitalismo, Weber coloca a ênfase no espírito do capitalismo, considerando‑o
como a verdadeira origem da acumulação de capital; um capitalismo racional,
baseado no raciocínio económico legitimado pela ética protestante do trabalho,
fenómeno que se insere no movimento mais geral de alargamento da dominação
racional e legal, indissociável da constatação, lúcida mas algo melancólica, do
“desencantamento do mundo”, uma vez
que o funcionamento do social se reduz à obediência de regras impessoais e não
ao encanto mágico e carismático das sociedades mais antigas. Ainda assim, é de
salientar, ao contrário do que afirmam algumas críticas vulgares, que Weber
defende a complexidade e a multidimensionalidade dos fenómenos sociais,
recusando as perspectivas unilaterais, sejam elas materialistas ou
espiritualistas: “...com ambas se presta
um mau serviço à verdade histórica, se forem consideradas como ponto de chegada
e não de partida da investigação”[58].
Ponto de partida que, já o referimos, é sempre provisório (instituído numa dada
singularidade histórica) e jamais uma
verdade eterna.
1.4. Breve Balanço.
Da
análise destes três autores—“uma espécie
de trindade secular de sociólogos, deificada onde quer que se ensine
sociologia”[59] ‑,
constata‑se que muitas das críticas que lhes foram dirigidas carecem de
fundamento. De facto, a sua obra é complexa e o seu pensamento vai além da
habitual vulgata que muitas vezes se insiste em lhes atribuir. Aliás, a sua
obra contém em si mesma elementos de superação de certos aspectos mais
criticados: Marx insiste antes de mais no enraizamento social da actividade
humana e luta contra os preconceitos do homem oeconomicus e as leis económicas universais; Durkheim admite a
criatividade e a diferença individuais; Weber defende o cruzamento de várias
lógicas com efeito causal.
O
principal problema reside nalguma imprecisão conceptual que os caracteriza,
marcada por avanços e recuos, afirmações e rectificações. Por outro lado, o
único autor a desenvolver uma teoria sistemática sobre a actividade cultural,
conferindo‑lhe um grau assinalável de autonomia, é Max Weber. Ainda
assim, e tal como os outros dois autores, a sua teoria, enquanto grande
edifício conceptual, suscita um vasto leque de dificuldades de
operacionalização e de conversão para uma linguagem propícia à pesquisa
empírica.
No
entanto, as principais questões que levantam continuam a ser as grandes
inquietações da análise sociológica: sujeito versus objecto, idealismo versus
materialismo, finalismo versus
mecanicismo, consenso versus
conflito...
Estudar
criticamente as suas obras não é, por isso, um exercício de procura da
arqueologia da escrita sociológica mas sim, pelo contrário, mergulhar
plenamente na actualidade do debate sociológico, encontrando pontes de contacto
com a contemporaneidade e procurando incentivo tanto na exemplaridade de certas
análises, como nas formas e métodos
ora complementares, ora conflituais de
abordagem da realidade. Sem descurar o que, em tais propostas, existe de
erróneo, contraditório, precipitado ou simplesmente desadequado. Nas palavras
de Peter Hamilton: “A sociologia tem,
pelo menos, a pretensão de ser uma ciência – e nenhuma ciência pode permitir‑se
considerar o trabalho dos seus principais pensadores como inviolável e imune a
críticas. Só explorando os erros dos seus antepassados uma ciência pode
progredir”[60].
2.
Tendências actuais da sociologia no estudo da cultura.
2.1. A
análise da vida quotidiana: fenomenologia social, etnometodologia e
interaccionismo simbólico.
Uma
das principais correntes actuais da sociologia, ramificada em várias escolas de
pensamento, encontra a sua origem na análise compreensiva das sociedades,
herdando os ensinamentos de Husserl (pela banda da fenomenologia), de Heidegger
e Gadamer (pela banda da hermenêutica), de Dilthey, Rickert, Simmel e,
principalmente, de Weber. A actividade humana entendida como acção consciente,
dotada de sentido e subjectivamente orientada, é o grande traço de união entre
a fenomenologia social, a etnometodologia e o interaccionismo simbólico. Desta
forma, a realidade social é encarada como o resultado da actividade dos
sujeitos, enquanto construção social que resulta da sua contínua produção do
mundo, imbuída de intencionalidade comunicativa, base das relações
intersubjectivas. Segundo Franco Crespi, estas teorias proporcionam um melhor
conhecimento da génese da cultura e da sua dinâmica intrínseca.
No
que se refere à fenomenologia social, impõe‑se uma referência à obra de
Alfred Schutz, enquanto busca pioneira dos fundamentos da vida quotidiana e da
razão prática. Para Schutz, “o mundo da
vida quotidiana é a região da realidade na qual o homem se empenha e que pode
modificar quando nela opera”[61].
Considerando que a realidade se encontra dividida em províncias ou regiões
finitas de sentido (a ciência, o sonho, a arte, a vida quotidiana, etc.),
Schutz preocupa‑se especialmente com o que apelida de realidade primeira:
o mundo da vida quotidiana, universo no qual agimos e em relação ao qual
adoptamos uma atitude “natural” de confiança. Universo aproblemático até
demonstração em contrário (“until further
notice”), é um mundo fundamentalmente igual para mim e para os outros, e
que permite, por isso, a compreensão mútua, o contacto intersubjectivo e a
troca de posições e de perspectivas através de uma série de realidades dadas
como adquiridas. Mundo comum, interpretado, apreendido e construído de acordo
com um “stock” prévio de experiências
e vivências, mas impondo limites à actuação dos indivíduos, já que as suas
acções, apesar de subjectivamente orientadas, criam objectos que exercem
constrangimentos à livre acção dos outros e vice‑versa. O stock de
conhecimento, funciona como guião de referência para a acção prática, isto é,
pré‑reflexiva, através da qual damos um sentido à realidade envolvente: “O mundo da vida, compreendido na sua
totalidade como um mundo natural e social, é a arena, bem como a entidade, que
fixa os limites da minha e da nossa acção recíproca”[62].
De
facto, as significações consideradas como adquiridas e partilhadas pelos vários
sujeitos no mundo da vida quotidiana impedem uma atitude, que seria
insustentável, de permanente questionamento de tudo o que nos rodeia. Os outros
aparecem como “corpos dotados de
consciência, homens «como eu»”[63]
e a realidade apenas se torna problemática quando surge algum acontecimento que
não encaixa no meu esquema (“stock”)
de referência. Nós sabemos o que o outro faz e porque o faz, já que existe uma
reciprocidade de perspectivas que nos permite prever e antecipar a sua acção. A
consciência reflexiva actua sempre a
posteriori, quando penso nas acções em que estive envolvido e surge a
necessidade de as tornar inteligíveis.
A
forma que possuímos para aceder ao comportamento e à motivação dos outros liga‑se,
indissociavelmente, às suas performances corporais. É então que todo um
conjunto de condutas, rituais e linguagens, inclusivamente não‑verbais,
passam a ser considerados, não só como objectos legítimos da análise
sociológica, mas também como sinais de orientação nas rotinas quotidianas. É à
volta desse mundo da vida, assente no corpo[64],
que gira toda a teoria de Schutz, negligenciando o fascínio de muitos
pensadores pelas magníficas construções do conhecimento “culto” ou erudito,
afinal uma “província finita de realidade”. Schutz e a fenomenologia social
ocupam‑se de tudo o que seja conhecimento socialmente produzido e
partilhado, centrando a sua atenção nos “pormenores” supostamente
insignificantes e anódinos da vida de todos os dias. Nesta linha, há uma clara
aproximação aos esquemas cognitivos e mentais do senso comum, às realidades
tidas como adquiridas (taken‑for‑granted),
ao pensamento que não se pensa. Para estes autores, ao contrário dos
racionalistas, não há qualquer necessidade de romper com o senso comum para
iniciar um processo de construção científica; pelo contrário, o senso comum é o
objecto por excelência da análise sociológica e esta deve‑se adequar aos
seus esquemas de referência. Em termos fenomenológicos, não é relevante que as
interpretações e construções do senso comum sejam erróneas e mistificadoras; o
que interessa é o seu papel na percepção e edificação da realidade quotidiana,
a realidade primeira e tida como evidente e ordenada, ainda que assim o não
seja. Mesmo as experiências que transcendem esta realidade primeira (a
experiência científica, estética, religiosa, etc.) acabam por ser apropriadas
de acordo com a linguagem da vida “vulgar”. Tal como no teatro, quando desce o
pano, assim a consciência regressa à realidade da vida quotidiana,
transformando as outras experiências em intervalos mais ou menos curtos: “A realidade dominante envolve‑as por
todos os lados (...) e a consciência sempre retorna à realidade dominante como
se voltasse de uma excursão”[65].
Durante o decorrer de um dia, viajamos por várias províncias finitas de
significado, experimentando “choques” que resultam do confronto de sentidos ou “estilos cognitivos”[66]
diferentes (sonhar, acordar, estar activo, ler um livro ou ouvir música, etc.).
Como refere Giddens, apesar de ocorrerem com frequência, estes “choques” fazem
parte das rotinas dos agentes, já que estes estão habituados a transitar, de
forma habitualmente serena, entre diferentes tipos de linguagem[67].
No
mundo da vida quotidiana, também ela uma província finita de sentido, a
actividade, o estar‑se activo e em vigília é a principal característica
do estilo cognitivo. Desta forma, a acção humana empenhada traduz‑se por
actos performativos (“acts of performing”)
que transformam a realidade. As minhas performances
permitem‑me aceder ao mundo da vida, alterando‑o e apresentando‑o
aos outros com o poder de uma facticidade externa e objectiva, que limita tanto
as suas acções como as deles limitam as minhas. De facto, o comportamento
intersubjectivo decifra‑se através de determinadas manifestações
exteriores que funcionam como signos e sistemas de signos que objectivam,
através da comunicação, significados inicialmente subjectivos. Estes, da parte
de quem age, traduzem‑se por esquemas expressivos
que permitem ao interlocutor e/ou ao observador, accionar os seus esquemas interpretativos, baseados em
codificações de experiências anteriores. Desta forma, reduz‑se a
complexidade da realidade social e permite‑se, apesar da intrínseca
indeterminação do agir humano, uma certa previsibilidade recíproca dos
comportamentos[68].
A
cultura, nesta perspectiva, não é apenas constituída pelas obras que
transcendem o “aqui e agora” da realidade quotidiana. As grandes obras da
experiência estética, com os seus imponentes nomes e tradições são apenas uma “quasi‑realidade”, uma “província finita de sentido”, entre
muitas outras. Não existe, pois, nenhuma justificação para lhe conferirmos uma
superioridade ontológica. A cultura não é concebida apenas em termos de
objectos ou artefactos, ela é uma “cultura‑acção”[69],
eminentemente relacional e intersubjectiva, constantemente actualizada e
instantaneizada nas nossas actuações quotidianas. Assim, e em síntese, a
abordagem fenomenológica assenta, não tanto na expressão de um mundo interior,
mas, antes de mais, no carácter intencional da acção, mediado pela linguagem
enquanto “canal da actividade social
prática diária”[70].
Os actos comunicativos e a constante produção de significado constituem, por
isso, o fazer quotidiano da sociedade, entendida como “uma realização engenhosa dos actores”[71].
A
etnometodologia, neologismo criado por Harold Garfinkel[72],
preocupa‑se, por seu lado, com os implícitos subjacentes à acção
quotidiana, partindo do princípio, igualmente presente na fenomenologia social,
de que os agentes sociais apreendem e constroem a realidade tendo em vista
objectivos essencialmente práticos: “Utilizo
o termo «etnometodologia» para me referir à investigação das propriedades
racionais das expressões de indicalidade (indexicality) e outras acções práticas”[73].
Utilizando situações quasi‑experimentais,
Garfinkel consegue trazer ao de cima os significados implícitos da acção
prática, significados de natureza pré‑reflexiva e não exprimíveis
discursivamente. Agindo sempre na fronteira do normal e do desviante, este
autor tem como objectivo resgatar os tais significados taken‑for‑granted que os actores utilizam nas rotinas
diárias; significados que, apesar de surgirem como “naturais” (e por isso não
explícitos), provam a centralidade da componente cultural da natureza humana,
moldada por um poderoso, lento e permanente processo de socialização e de
adequação às normas e padrões dominantes; socialização que consiste, não tanto
na sujeição às normas, mas na sua interpretação — interpretação que, por sua
vez, confere um sentido ao mundo da vida. Ora, através dos processos
constitutivos dessas interpretações, o sociólogo consegue aceder aos métodos
socialmente contextualizados de construção da realidade. Para isso, provoca
transgressões à situação estabelecida e observa a reacção ao imprevisto por
parte dos actores sociais quando sentem como “estranhos” os quadros mais
habituais. Desta forma, ao discutirem‑se as regras usualmente mais
pacíficas, compreende‑se o carácter de permanente negociação a que estão
submetidas.
A
melhor prova da centralidade das convenções (uma convenção, por natureza, é uma
marca cultural) reside no facto de as pessoas perderem a orientação cognitiva
quando as aparentemente insignificantes regras do dia‑a‑dia são
questionadas ou violadas. De facto, forma‑se uma sensação desconcertante
quando alter não corresponde ao
comportamento esperado por ego. Por
momentos, e antes mesma do ruído ser assimilado e porventura compreendido, é
como se um universo inteiro de regras e convenções subjacentes à mais anódina
interacção desmoronasse, e com ele arrastasse os actores sociais envolvidos. A
situação resvala sempre para um contexto de anomia quando não existe uma
correspondência entre o acontecimento real e o acontecimento esperado: “o acontecimento é anómico quando não tem um
sentido nos termos das regras do jogo (...) o delinquente é posto fora do jogo:
o que lhe é censurado não é ter infringido as regras, mas ter‑se
comportado de um modo tal que as regras comummente aceites não permitem
interpretar os acontecimentos surgidos, e regular a sua conduta de acordo com
essa interpretação”[74].
De facto, são essas regras ou convenções que organizam as situações de
interacção, tornando‑as congruentes com as expectativas recíprocas que
estão na base da previsibilidade do comportamento humano.
Nestas
alturas, quando a ordem convencional é subvertida, o senso comum trai‑se,
revelando os pressupostos raramente pensados sob os quais repousa a sua
actividade. O senso comum, aliás, pode ser definido como o pensamento em acção
nas rotinas diárias; um pensamento que raramente reflecte nos seus alicerces
mais profundos porque está em situação de permanente performance.
Uma
vez mais, a análise científica não opera pela definição de um sistema de
relações objectivas que enquadram a actividade humana; pelo contrário, a
metodologia científica deve partir da compreensão empática, a partir do
interior (“from within”). Desta
forma, aceita‑se como metodologicamente possível a identificação empática
entre observador e observado. As técnicas de observação são, por isso,
utilizadas em situação de exclusividade, de forma a poder captar tanto a
linguagem verbal, como a não‑verbal, tanto a palavra como o gesto, tanto
o discurso como o corpo. Aliás, o “observador
social deve, de vez em quando, fazer por usar uma linguagem que seja coerente
com a dos sujeitos observados, evitando sobrepor à realidade específica
analisada categorias abstractas, elaboradas independentemente do contexto
social que se pretende estudar”[75].
Assim, respeita‑se o princípio da indicalidade, que impede generalizações
abusivas, já que todas as explicações são contigentes e devem ser interpretadas
de acordo com o contexto específico em que foram emitidas[76].
As
estruturas são aqui reduzidas aos processos de atribuição de sentido por parte
dos actores sociais, enquanto mero produto das suas interacções e da sua
percepção e interpretação da vida social: “fenómenos
estruturais como o rendimento, a distribuição pelas profissões, a organização
familiar, as classes sociais e as propriedades estatísticas da linguagem, são
produtos que emergem de uma grande quantidade de comunicações, percepções,
juízos e outras «tarefas acomodativas» pelas quais as pessoas concertadamente
encontram a partir do interior, os meios sociais com os quais a sociedade as
confronta, mantém, restaura e altera as estruturas sociais que são os produtos
amalgamados do curso temporalmente prolongado das acções dirigidas para esses
meios sociais”[77].
De
facto, só o agir pode ser considerado como relativamente autónomo (ele depende
também dos contextos em que se exerce) e é nele, ou melhor, nas suas
interpretações, que assenta a ordem social que, como já referimos, é instável e
sujeita a subversões constantes, o que nos afasta de todo e qualquer modelo
estático das relações entre cultura e estrutura social.
Finalmente,
e para completar este breve olhar sobre as correntes que se situam do lado da
produção ritualizada e quotidiana da sociedade e da cultura, importa referir o
papel do interaccionismo simbólico e, em particular, de Erving Goffman.
Estudando
a interacção social como representação, Goffman suscitou sobre si dúvidas
acerca da legitimidade científica da sua obra, dúvidas essas que devem ser
compreendidas no âmbito das lutas pela consagração no interior do campo
científico e do sub‑campo da sociologia académica americana. Utilizando
um vocabulário pleno de analogias dramatúrgicas, não se coibindo de recorrer à
“pequena história” e às suas fontes, ilustrando os seus conceitos com anedotas
ou excertos de romances, Goffman não poderia ter deixado de suscitar reacções
de repulsa e de desconfiança. No entanto, ele é o primeiro a afirmar o carácter
integrado da sua pesquisa, demonstrando mesmo a convicção de que constitui uma
nova perspectiva de conjunto sobre a vida social, “um quadro de referência que poderá ser aplicado a qualquer
configuração social concreta”[78].
O
cerne da sua análise situa‑se no estudo dos papéis sociais, enquanto
quadros no interior dos quais se exprimem e se individualizam as personalidades
individuais dos actores: “Considerarei o
modo como o indivíduo em situações de trabalho habituais se apresenta a si
próprio e à sua actividade perante os outros, as maneiras como orienta e
controla a impressão que os outros formam dele, as diferentes coisas que poderá
ou não fazer enquanto desempenha perante os outros o seu papel”[79].
Existem
três entidades fundamentais no estudo do tipo‑ideal da interacção social:
os dois actores (ou personagens...) em presença e ainda a audiência ou público.
Cada actor tem como tarefa a gestão da sua apresentação pública, cabendo à
audiência o papel de sancionar ou consagrar essa representação. Como refere
Nicolas Herpin, “o Eu só se
substancializa pela mediação do público. Os actores de teatro, por melhor que
saibam os seus papéis e por mais vezes que os tenham representado com sucesso
têm sempre medo; o que não é mais do que reconhecer obscuramente o peso
decisivo de cada público na substancialização do papel apresentado”[80].
A projecção de uma dada impressão, e a interpretação dessa impressão,
constituem dois momentos fundamentais no processo de interacção. O actor, mesmo
em situação de silêncio, não deixa de transmitir uma impressão: “Os actores podem deixar de se expressar,
mas não podem impedir‑se de exprimir alguma coisa”[81].
Existe aqui, de forma muito clara, uma ênfase nos processos de comunicação e na
mediação exercida pela linguagem. A impressão adquire um determinado
significado, o que a remete para o seu carácter eminentemente simbólico. Já H.
Mead referia o poder constitutivo da ordem simbólica, através do quadro de
referências contido na objectivação de significados patente no conceito de outro generalizado, face ao qual os
indivíduos formam as suas identidades e incorporam os seus papéis[82].
No
entanto, a interpretação da impressão transmitida não depende apenas da
representação. Existem, igualmente, o que Goffman chama de “portadores” ou
“indícios” de informação, como por exemplo a relação que se pode estabelecer
entre a aparência e o estatuto sócio‑económico do actor ou entre
determinados comportamentos e os rótulos (labels)
ou estereótipos associados ao papel em representação (pense‑se,
designadamente, no conjunto de rótulos que se associam a um determinado papel
desde que ele é representado por uma mulher). Assim, é natural que exista uma
selecção por parte dos actores antes de escolherem os seus papéis, de acordo
com a valoração positiva ou negativa que fazem dos rótulos que lhes estão
intimamente associados.
Desta
forma, Goffman admite ir mais longe do que os fenomenólogos e os
etnometodólogos, ao considerar a pertinência da interferência de certos
factores exteriores à situação de interacção; factores vincadamente estruturais
e, por isso, de índole macrossociológica. Aliás, o autor preocupa‑se com
as regras que estão na base da definição da situação de interacção, de maneira
a que seja possível prever reciprocamente o agir dos intervenientes, mantendo a
ordem social[83].
De igual modo, rejeita a utilização de dimensões psicológicas e/ou
existenciais, atribuindo um grande relevo à comunicação exercida em consonância
com a cena social.
Esta
mesma tendência verifica‑se quando considera a importância dos factores
contextuais nas situações de interacção. É conhecido o seu modelo de análise
baseado na consideração da oposição entre a fachada
(ou região frontal) e os bastidores (ou região de traseiras). A linguagem, as condutas, as performances verbais, variam
acentuadamente de uma região para a outra, o que nos leva necessariamente à
análise (ainda que tal não seja explicitamente referido por Goffman) da sua
configuração estrutural e da importância do espaço na vida social[84].
Aliás,
a célebre afirmação de Goffman, de que o “Eu
é um efeito dramático” remete‑nos, precisamente, para a constatação
de que a representação não se identifica necessariamente com o ego. Para uma
correcta análise da situação de interacção, devemos considerar o contexto em
que esta ocorre: a região, o papel e a constituição do público, os indícios
transmitidos, etc. João Arriscado Nunes defende mesmo que Goffman considera a
articulação entre a ordem social e a ordem da interacção através de um “«vínculo fraco» (loose coupling) entre as
duas ordens, estabelecido através de processos de transformação dos elementos
próprios da ordem estrutural em elementos característicos da ordem da
interacção”[85].
Pode‑se ainda acrescentar que as próprias variações nas situações de
interacção remetem inevitavelmente para a presença de mecanismos
institucionais. No entanto, ao procurar essa articulação, Goffman respeita o
princípio de que ela “deve ser procurada
nos elementos invocados nos próprios episódios de interacção, sem recorrer a
uma mudança de procedimentos de análise ou a uma mudança na escala de análise”[86].
Desta forma, é nas próprias situações microssociológicas que devemos procurar
as variáveis explicativas das práticas sociais, considerando‑as como
sistemas sociais auto‑suficientes[87].
Assim,
existe um acordo fundamental entre o interaccionismo simbólico e as análises
fenomenológicas e etnometodológicas: o objecto de estudo é o homem na sua vida
quotidiana e no incessante trabalho de produção simbólica e cultural. A
realidade social não é predeterminada do exterior; ela é sempre o resultado da
percepção, interpretação e avaliação dos actores[88].
Do mesmo modo, a comunicação exerce um papel mediador fundamental, enquanto
veículo de significados com a força de símbolos, sem com isso retirar ao
sujeito o seu papel activo, designadamente nas interpretações que fornece. Se,
por um lado, o actor social está imbuído das regras e convenções dominantes
numa dada sociedade (a cultura é o seu “ambiente”), por outro lado ele não
cessa de produzir novos horizontes de vida, alterando o quadro de referências
de que é portador. Aliás, ao colocarem a sua ênfase na génese e funcionamento da
cultura, as motivações subjectivas da acção acabam por ser realçadas face às
suas determinações objectivas.
2.2. A sociedade como totalidade:
funcionalismo, estruturalismo e
pós‑estruturalismo.
Nos
antípodas das correntes anteriormente mencionadas, situam‑se os
paradigmas que encaram a sociedade e os sistemas simbólicos como totalidades.
Esta análise holística, de cariz objectivista, isto é, baseada na ruptura face
aos saberes e condutas quotidianas dos actores, assenta num campo semântico
onde pontificam conceitos como o de função, estrutura ou sistema. O seu
principal objectivo é a procura das regularidades, padrões institucionais ou
“invariantes” que pautam o fluxo das relações sociais, recusando uma
continuidade entre os dados “sensíveis” das experiências vividas e a lógica da
explicação científica.
Mesmo
quando se referem aos actores, como acontece com Parsons, tais perspectivas
acabam por privilegiar a situação, sendo esta constituída por um conjunto de “valores, normas e regras definido a nível
supra‑individual”[89].
Os actores interiorizam, mais ou menos passivamente e através de processos de
institucionalização, um conjunto de modelos e padrões simbólicos que lhes são
exteriores e os condicionam. Em vez da análise dos indivíduos em termos da sua
livre acção social, isenta de determinações, Parsons defende a obediência a “conjuntos específicos de valores,
codificados e institucionalizados em papéis sociais”[90],
ou, como refere Madureira Pinto, a “um
redutor determinismo idealista”[91]
que tudo limita aos valores dominantes numa dada sociedade, inclusivamente a
própria divisão do trabalho e o sistema de estratificação social. Desta forma,
o funcionalismo apaga o sujeito enquanto agente activo, limitando‑lhe o
campo de acção ao espartilho pré‑definido de um determinado leque de
papéis sociais, em obediência à reprodução do sistema social. Esquecendo, como
refere Giddens, “o carácter negociado das
normas enquanto abertas a «interpretações» conflituais e divergentes”[92],
fenómeno extremamente ligado a uma desigual repartição do poder no seio dos
sistemas sociais. Preocupando‑se, exclusivamente, com a “integração dos valores comuns”.
Esta
concepção de cultura e de sociedade tem óbvios efeitos ideológicos. Se entre o
indivíduo e as normas, valores e regras dominantes existe uma continuidade e
não uma ruptura, a tendência dos sistemas sociais será para a evolução
homeostásica. Os conflitos e os mecanismos de negociação nos processos de
interacção que as correntes subjectivistas anteriormente referidas postulavam são
aqui negados pelo próprio peso das sanções que se exercem sobre os
comportamentos desviantes.
A
noção de uma totalidade integrada, harmoniosa e coerente que precede o estudo
das partes é essencial para a compreensão do funcionalismo. De facto, o sistema,
enquanto todo composto por partes interdependentes, de forma a que uma
modificação numa delas acarreta modificações nas restantes e no próprio todo,
evita a entropia e tende para a integração. Tal como um organismo, os sistemas
sociais asseguram a sua perpetuação pela satisfação das necessidades que lhe
são inerentes, acentuando‑se, por isso, o seu carácter sincrónico. Mesmo
quando existem disfunções, o sistema assegura a sua unidade através da
substituição do elemento que “funciona mal” por um outro que lhe é equivalente[93].
Nesta
perspectiva, a produção da cultura deve ser procurada no todo social, em íntima
relação com os restantes sistemas ou subsistemas, e nunca como entidade
autónoma ou enquanto produto do sentido que os indivíduos subjectivamente atribuem
à sua acção. A “função” da cultura, mesmo quando é considerada como um sistema
relativamente autónomo (Parsons), esgota‑se na orientação normativa do
agir individual, controlando‑o e uniformizando‑o.
O
estruturalismo, enquanto análise holística, assegura uma continuidade face aos
pressupostos do funcionalismo. Contudo, reconhece preferencialmente a
totalidade como uma entidade em relação e, muitas vezes, em conflito — mais do
que as posições dos elementos constituintes da sociedade, importa definir as
suas relações e as leis que as regulam. Além disso, liga‑se
indissociavelmente à linguística, em particular a de raiz saussuriana.
Giddens
considera fundamental para a compreensão das limitações do estruturalismo, a
explicitação da concepção saussuriana de língua (langue) e fala (parole).
Enquanto forma estrutural, enquanto sistema, a primeira, estática, deve ser
separada dos seus múltiplos usos ou desempenhos, aquilo que constitui o “lado executivo da linguagem”. A língua,
aliás, é definida como “sistema de signos
cujo único traço essencial é a união dos significados e das imagens acústicas”[94].
Desta forma, e como Giddens refere, a linguagem aparece como um sistema
abstracto e idealizado, fortemente desligado dos seus contextos, aplicações ou
usos concretos. Assim, a linguagem desenvolve‑se num jogo de diferenças
internas, divorciada das suas instantaneizações. O significado deriva, apenas,
das diferenças estabelecidas entre essa palavra e as demais. Consequentemente,
as palavras não significam os seus objectos (tese do carácter arbitrário do
signo): a linguagem é forma e não substância. Qualquer elemento para ser
compreendido deve, por isso, ser enquadrado no interior do sistema, despossuído
que se encontra de autonomia ou existência enquanto entidade singular[95].
Desta
forma, a concepção de estrutura remete para um conjunto de posições em
permanente relação, derivando o “lugar” de cada posição desse jogo
ininterrupto. Assim, os sítios, lugares ou posições possuem um estatuto
ontologicamente superior ao dos sujeitos que os ocupam. É por ocupar um dado
lugar, e não pelas suas idiossincrasias, que um determinado sujeito pensa,
imagina ou sonha de uma forma particular: “Em
suma, os sítios num espaço puramente estrutural são primeiros em relação às
coisas e aos seres reais que os vêm ocupar e também em relação aos papéis e aos
acontecimentos sempre um pouco imaginários que necessariamente surgem quando
eles são ocupados”[96].
Por outro lado, esta abordagem topológica e relacional considera os sujeitos
como estando numa fila para ocupar diferentes lugares na estrutura, moldando a
sua personalidade e o seu habitus de
acordo com as características intrínsecas de cada um desses lugares. Desta
forma, e porque se trata de uma cadeia ou fila de posições em permanente relação
(e mutação), o sujeito ocupa sempre o lugar
do morto, o espaço que no momento seguinte será de outro. Assim, o sentido
é sempre o efeito de uma posição. O anti‑humanismo do estruturalismo não
consiste tanto na eliminação do sujeito, mas sim na sua transformação em
sujeito nómada, circulante e encarnando de forma impessoal as propriedades
associadas aos lugares ou posições. Desta forma, a acção é tida como uma
dimensão secundária, bem como o carácter histórico da experiência social.
O
programa teórico do pós‑estruturalismo, por seu lado, pode ser ilustrado
com a referência à tese da descentração do sujeito.
De
acordo com esta perspectiva, nega‑se uma vez mais a possibilidade de
acesso à consciência humana através dos actos ou objectos culturais. Derrida,
por exemplo, defende a autonomia do texto, enquanto Foucault, ao analisar o
momento histórico da emergência da figura do autor, fala na sua morte
anunciada, e lança a questão «o que importa quem fala?»:”(...) a escrita está agora ligada ao sacrifício da própria vida;
apagamento voluntário que não tem de ser representado nos livros, já que se
cumpre na própria existência do escritor. A obra que tinha o dever de conferir
a imortalidade passou a ter o direito de matar, de ser a assassina do seu
autor”[97].
O texto, afinal, segue o seu próprio curso, sujeitando‑se às múltiplas
interpretações e reconstruções dos seus leitores, desvanecendo‑se, por
isso, a figura do autor. Como objecto cultural que é, o texto ultrapassa os
contextos de co‑presença (o “aqui e agora” da interacção) e implica uma
distância que acaba por favorecer o papel do receptor/consumidor. Desta forma,
os objectos culturais não permitem, por si sós, aceder à intencionalidade da
acção humana que os gerou.
2.3. Breve
balanço e reencaminhamento em direcção à complexidade.
Que
balanço pode ser feito da comparação entre estes dois pólos da produção teórica
sociológica e que traduzem profundas aporias (sujeito versus objecto, mecanicismo versus
finalismo, etc.)?
Por
um lado, impõe‑se destacar algumas limitações fundamentais das análises
compreensivas de cariz fenomenológico. Podemos referir a principal dessas
limitações como sendo uma colossal ingenuidade perante todos os
constrangimentos que precedem a acção individual. De facto, ao pretender constituir‑se
como uma sociologia da vida quotidiana, naquilo que ela possui de recorrente e
rotineiro, mas também de equívoco e de imprevisto, as perspectivas
fenomenológica e hermenêutica[98]
esquecem que as possibilidades dessa acção só serão visíveis quando se procurarem
as regularidades que objectivamente enquadram o devir social. Os agentes não
sabem tudo sobre a sua vida, embora o que saibam seja de primordial importância
para a análise sociológica. Não pode esta, no entanto, arvorar‑se como
razão dogmática e omnisciente.
Assim,
é na perspectiva de um racionalismo relacional (procura do sistema de relações
objectivas que enquadram os fenómenos sociais) que poderemos detectar o
conjunto da situação (a cena total, para utilizar a linguagem do
interaccionismo). A finitude, incompletude e assimetria dos pontos de vista
subjectivos, alertam‑nos para as limitações das correntes fenomenológicas
e interpretativas, designadamente na falta de ligação às dimensões estruturais
da vida social: as pertenças classistas, as hierarquias sociais, a distribuição
assimétrica de recursos, competências e poderes são frequentemente ignorados ou
remetidos ao estatuto de variáveis dependentes (produto da interacção, da
interpretação subjectiva ou da atribuição de sentido).
Não
é a participação empática que leva à identificação entre observador e
observado. É uma veleidade descabida e desmentida empiricamente, a pretensão de
resgatar a totalidade do olhar nativo.
A finitude dos pontos de vista particulares e a sua relativa incongruência
exigem do olhar sociológico que, por mais que se aproxime dos terrenos do fluir
social, mantenha a distância suficiente para uma perspectiva mais vasta que lhe
permita compreender o conjunto de relações que estruturam uma determinada
situação. O olhar sociológico move‑se na permanente dialéctica entre a
aproximação e o distanciamento. Não se proclame, por isso, a adequação da
análise científica ao discurso do senso comum, ou dos lay sociologists: são abordagens comunicantes (não há, entre elas,
um descontinuismo radical) mas irremediavelmente distintas. Além do mais, se o
cerne da interacção consiste no transmitir de uma impressão, tantas vezes
apreendida de forma ambígua e equívoca[99],
mesmo quando os actores possuem um conhecimento competente da situação, como
postular a adequação aos esquemas cognitivos do senso comum? O conhecimento
prático, por definição, não se pensa a si próprio[100],
sendo constituído por um conjunto de princípios geradores dos desempenhos
quotidianos. Como pretender, na hipótese de nos colocarmos na pele do
observado, reflectir sobre o irreflectível[101]?
Aliás,
se como defende Adriano Duarte Rodrigues, a relação entre os actores e a
experiência quotidiana “se apresenta como
uma «douta ignorância», dando a ver mais do que aquilo que sabem efectivamente
dizer e explicar”[102],
importa construir os mecanismos conceptuais que permitam detectar essa décalage.
Do
mesmo modo, o interaccionismo simbólico, apesar de considerar as regras e
convenções que estruturam as situações de interacção social, defende que a
subjectividade é um produto dessas mesmas situações, esquecendo‑se de
tudo o que não está presente no “palco”,
bem como do carácter altamente assimétrico de distribuição das “máscaras” que permitem a cada indivíduo
um conjunto limitado de “representações”.
Ainda
assim, estas correntes desempenharam um importante papel na recentragem da
investigação sociológica na direcção da vida quotidiana e dos seus ínfimos
pormenores e rituais. O homem “vulgar” ganhou dignidade epistemológica, bem
como o seu discurso, as suas posturas corporais, os seus pequenos gestos, as
suas múltiplas formas de comunicar e, de alguma forma, de reproduzir e
construir a realidade envolvente. A “espontaneidade” das condutas sociais
quotidianas aparece‑nos, à luz destas correntes, como um esforçado
trabalho de adequação ao mundo intersubjectivo; trabalho tanto mais eficaz
quanto aparece imbuído de “naturalidade”. De facto, os “esquemas tipificadores”
do senso comum, os quadros de referência dos actores, bem como todo o seu “stock”
de conhecimentos, que permitem tratar como taken‑for‑granted
um vasto conjunto de significados, resultam de um acumular de experiências
diversas (através da própria estrutura de papéis sociais) e de um aplicar desse
“stock” na decifração de novas situações.
Por
outro lado, como refere Adriano Duarte Rodrigues, a abordagem fenomenológica
chama‑nos a atenção para os múltiplos mundos (Schutz chama‑lhes “províncias finitas de sentido”) em que
decorrem os processos interactivos e para os diferentes pontos de vista
implicados; multiplicidade essa correlativa da complexidade e variedade de
papéis sociais que os indivíduos vão ostentando. Aliás, este realçar da
coexistência de mundos díspares e por vezes incongruentes e conflituais,
lembrando‑nos o conceito de heterotopia proposto por Foucault, alerta‑nos
para a relevância de uma série de elementos que estão ausentes da situação de
interacção e que os agentes constantemente evocam (a determinação institucional
dos papéis sociais, por exemplo).
No
entanto, uma vez mais, a elucidação dos mecanismos mais profundos que marcam
esta multiplicidade de mundos da experiência (sistemas de estratificação
social, distribuição do poder, antagonismos sociais, etc.) fica muito aquém do
desejado, como se todos os actores tivessem a mesma possibilidade de
seleccionar os papéis que desejam.
Ainda
assim, não podemos correr o risco de reduzir as propostas compreensivas a
versões mais ou menos sofisticadas do individualismo metodológico. Como refere
Karin Knorr‑Cetina[103],
as propostas das correntes micro‑sociológicas, além de constituirem um
desafio para os paradigmas estabelecidos (frequentemente acomodados à pretensa
fidedignidade dos métodos quantitativos “duros”), surgem, essencialmente, como
uma reacção ao modelo normativo da ordem social, questionando os mecanismos de
incorporação da ordem dominante através do processo de socialização. A “viragem cognitiva” que estas correntes
representam, levam os analistas a considerar os processos dinâmicos e
frequentemente conflituais de definição, interpretação, construção e negociação
da ordem estabelecida nas situações interaccionais. Assim, estas teorias da
interacção social in situ, apesar do
inventário de críticas que lhes podem ser dirigidas, não se reduzem às versões
simplistas do subjectivismo. O seu objecto não é o indivíduo, mas sim o
cruzamento e reciprocidade de intencionalidades e perspectivas nas situações
interaccionais. Como refere Giddens, “compreender
o que se faz apenas é possível através do conhecimento, ou seja, ser capaz de
descrever aquilo que os outros fazem e vice‑versa”[104]. No
entanto, ao pecarem, como já foi referido, pela falta de referência aos
mecanismos institucionais que transcendem a interacção, acabam por validar a
ideia de que a situação contém em si todos os elementos necessários à sua
explicação.
No
que diz respeito às propostas estruturalistas e pós‑estruturalistas,
registamos como principal limitação o seu exagerado formalismo. De facto, e
retomando uma vez mais o exemplo da linguagem, não se compreende como pode a
língua ser desligada dos seus usos concretos e da capacidade criativa dos
agentes na sua adaptação mais ou menos versátil a diferentes situações. Nesta
linha, e como refere Giddens[105],
a exagerada preocupação com o significante, com a forma, faz esquecer as
realidades a que ele se pode referir: “Conhecer
uma linguagem significa certamente conhecer regras sintácticas mas, igualmente
importante, conhecer uma linguagem significa adquirir uma variedade de
instrumentos metodológicos envolvidos tanto na produção das próprias expressões
como na constituição e reconstituição
da vida social nos contextos quotidianos da actividade social”[106].
Por outras palavras, ao remeter o funcionamento da linguagem para as suas
diferenças internas, os estruturalistas perdem a dimensão essencial dos usos
sociais da mesma. Como Giddens uma vez mais refere, o que confere precisão à
linguagem “vulgar” é o seu “uso em contexto”, enquanto parte integrante das
estratégias dos actores na estruturação da sua vida quotidiana. Desta forma, a
análise estrutural levanta sérios problemas metodológicos ao nível da
construção dos “dados” científicos, uma vez que os processos de recolha e
tratamento da informação devem ser analisados como resultado de mecanismos de
negociação patentes nas situações interaccionais, elas próprias socialmente
condicionadas[107].
Por
outro lado, é sabido que a análise estrutural tende, muitas vezes, na procura
de invariantes que determinam o fluir social, a uma análise sincrónica e, por
isso, não histórica, postulando a existência de universais que nunca se alteram
(atente‑se nas propostas teóricas de Lévi‑Strauss, por exemplo).
No
entanto, enquanto instrumento metodológico, a análise estrutural oferece um
quadro de inteligibilidade que, ao não se reduzir à consciência dos actores,
evita muitos erros próprios de uma confiança cega nos discursos e práticas do
senso comum. A procura da significação objectiva dos factos sócio‑culturais,
na sua irredutibilidade à intenção humana, é um dos seus princípios
fundamentais .
Impõe‑se,
por conseguinte, retirar algumas ilações destes combates epistemológicos. Uma
delas, porventura a mais importante, liga‑se ao que José Madureira Pinto,
no seguimento de Edgar Morin, apelida de “avanço
em direcção à complexidade”[108].
Em vez de insistirmos no “paradigma da
simplificação”, porque não aceitar controladamente alguma heterodoxia (de
resto já plenamente assumida pelo mainstream
da análise sociológica) e integrar, de forma tensa e dialéctica, algumas das
perspectivas claramente complementares das diferentes correntes aqui
apresentadas?
2.4.
Algumas teorias de “síntese”[109].
A
teoria social tem‑se vindo a debater, desde há largas dezenas de anos,
com persistentes aporias que têm inibido avanços substantivos em áreas
estratégicas da produção intelectual, resultantes, em grande parte, da luta que
se desenrola no campo científico pela posse dos critérios de legitimação que
seleccionam e credenciam um corpo disponível de teorias.
Por
outro lado, a falta de “audácia científica”[110]
tem frequentemente como resultado o “marcar passo” teórico, isto é, a discussão
recorrente em torno de pares epistemológicos (considerada por Bachelard como um
poderoso obstáculo ao progresso científico).
As
propostas que em seguida se apresentam constituem, na nossa opinião, momentos
representativos de significativos avanços substantivos ou “saltos” dialécticos
na produção teórica sobre a constituição da cultura, da sociedade e da relação
que estabelecem entre si.
Talvez
por essa mesma razão assumam a arquitectura própria das “grandes teorias”,
visões de conjunto sobre a génese e o papel do social. Por isso, requerem o
complemento de outras propostas teóricas que possibilitem um acesso mais
directo à linguagem da pesquisa empírica, “desafiando” o seu potencial de
estímulo a investigações concretas.
2.4.1.
Clifford Geertz e a concepção semiótica de cultura.
Ao
defender um conceito semiótico de cultura, Clifford Geertz aproxima‑se
inevitavelmente de Max Weber, designadamente na procura das conexões de sentido
e na rejeição das pretensões nomotéticas das ciências sociais: “Acreditando como Max Weber, que o homem é
um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a
cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência
experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa à procura do
significado”[111].
Todavia, Geertz é suficientemente claro ao defender, por um lado, a
estruturação da significação e, por outro, a sua determinação social. Aliás, um
pouco à semelhança de Paul Ricouer, Geertz considera as práticas sociais,
eminentemente simbólicas, como textos, e o papel do etnógrafo semelhante ao do
crítico literário. De facto, a sua tarefa é a de “tentar ler (no sentido de «construir uma leitura de») um manuscrito
estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e
comentários tendenciosos”[112].
Desta
forma, Geertz acentua, simultaneamente, o carácter activo dos sujeitos na
produção dos significados e o papel não menos activo do investigador no
deciframento desses significados, o que exige, naturalmente, um trabalho de
ruptura/construção de um objecto científico por oposição ao objecto real do
senso comum. De facto, compete ao investigador seleccionar as estruturas de
significação, interpretá‑las, descobrir a sua base social e a sua
validade.
Assim,
ao contrário das correntes hermenêuticas, Geertz defende o carácter construído
dos “dados” e a análise cultural como sendo duplamente interpretativa; afinal,
analisamos através das nossas construções outras construções, forjadas no
permanente fluir das práticas sociais. A análise cultural consiste, por isso,
num conjunto de explicações de
explicações. As explicações de segundo grau, construções do analista,
seleccionam e dão coerência às explicações que os agentes fornecem sobre as
suas próprias condutas.
Desta
forma, postula‑se igualmente uma dupla negação: a cultura não deve ser
nem hipervalorizada/reificada (“...imaginar
que a cultura é uma realidade «superorgânica», autocontida, com forças e
propósitos em si mesma”) atribuindo‑se‑lhe um poder causal
autónomo, nem reduzida/simplificada (“alegar
que ela consiste no padrão bruto de acontecimentos comportamentais”[113]).
Depois
da dupla negação, uma nova perspectiva: a da cultura como narrativa ou contexto
de inteligibilidade, “fabricação” ou “ficção” que resulta do trabalho de
interpretação do que vai sendo transmitido nas e pelas práticas sociais. Desta
forma, o trabalho do investigador assemelha‑se ao de alguém que ouve
histórias, recontando‑as de acordo com as suas grelhas e instrumentos
conceptuais. A cultura como narrativa distancia‑se, assim, das abordagens
estruturalistas e sistémicas, já que rejeita a ideia do estudo da cultura como
sendo a análise dos seus elementos constituintes e das relações internas entre
eles. Do mesmo modo, postula‑se a demarcação face às correntes
hermenêuticas que proclamam a necessidade da adequação/identificação/redução do
discurso científico ao discurso dos actores sociais. A angústia da análise
interpretativa da cultura reside, precisamente, na consciência de que nunca se
tem acesso à “verdade” dos discursos:”(...)
apenas se tem acesso àquela pequena parte dele que os nossos informantes nos
podem levar a compreender”[114].
No entanto, possui uma qualidade insubstituível: a de salvar, pelo trabalho da
escrita, aquilo que vai sendo dito e que, apesar de incompleto e parcial,
traduz, afinal, a parcela de conhecimento possível.
Por
outro lado, se “as acções sociais são
comentários a respeito de mais do que elas mesmas”[115], impõe‑se
que o investigador se situe no espírito do que Geertz apelida de “interpretação densa da cultura”. De
facto, a sua análise é microscópica (não microssociológica), o que equivale a
um estudo minucioso, extensivo e em profundidade das unidades de análise
seleccionadas. Todos os factos, todos os discursos, todos os indícios devem ser
interpretados e relacionados entre si. No entanto, esta análise microscópica
deve ser entendida essencialmente como uma análise contextual. Como Geertz
refere, o etnógrafo não estuda aldeias mas sim nas aldeias, diferença substancial que nos leva à pedra de toque da
análise cultural: a interpretação da especificidade de uma situação ou
configuração complexa[116].
Não se trata, por isso, de “generalizar
através dos casos” mas sim de “generalizar
dentro deles”[117].
2.4.2.
Peter Berger e Thomas Luckmann — a construção social da realidade.
Partindo
embora das premissas da fenomenologia social, em especial da obra de Schutz
(com o qual Thomas Luckmann colaborou), a abordagem destes autores complementa,
pela sua complexidade, a obra do autor alemão. De facto, reivindicando as
heranças mais diversas, conseguem superar algumas das deficiências das
perspectivas fenomenológicas, em particular as limitadas referências aos
constrangimentos institucionais.
Assim,
se é verdade que toda a realidade é socialmente construída, através das redes
de relações intersubjectivas[118],
não é menos verdade que os fenómenos que resultam desse conhecimento adquirem
existência real e exterior aos agentes, condicionando‑os. Por outras
palavras, aquilo que os homens conhecem subjectivamente como realidade exerce
sobre eles efeitos objectivos que não devem nem podem ser negligenciados. Desta
forma, Berger e Luckmann conciliam as perspectivas hermenêuticas de raiz
weberiana e as correntes mais “duras” de origem durkheimiana. Nas suas próprias
palavras, “é precisamente o duplo
carácter da sociedade em termos de facticidade objectiva e significado
subjectivo que torna a realidade «sui generis»[119].
Adoptando
a perspectiva de Schutz sobre os esquemas tipificadores do senso comum, que
asseguram ordenação, coerência e estabilidade à vida quotidiana, os nossos
autores não se cansam de sublinhar que o seu objecto é o homem comum e o seu
conhecimento pragmático. Considerando, tal como Schutz, que a realidade da vida
quotidiana é a “realidade predominante”
ou a “realidade por excelência”,
Berger e Luckmann sublinham, todavia, o carácter preexistente desse mundo que
se oferece às consciências individuais como um “mundo de coisas” com a sua indesmentível facticidade. Enquanto
realidade objectivada, o universo da vida quotidiana impõe‑se como
anterior e exterior aos indivíduos. É a linguagem, autêntico instrumento da
cultura colectiva, que possibilita a permanente objectivação da expressividade
humana, permitindo que todos os indícios e sintomas da intencionalidade do
outro nos sejam acessíveis de forma “maciça
e irresistível”.
É
óbvio que existe alguma ingenuidade em supor que o outro nos é inteiramente
acessível através dos processos intersubjectivos. De facto, os constrangimentos
fundados em sistemas de relações objectivas que contextualizam a
acção/interacção social escapam largamente à consciência individual.
No
entanto, ao falarem de toda a armazenagem de conhecimentos e experiências que
preexistem a existência individual e são permanentemente transmitidos às
gerações vindouras, Berger e Luckmann transcendem em muito a realidade do “aqui
e agora” fenomenológico. O próprio “stock social do conhecimento”, conceito
herdado de Schtuz, para além de propiciar a localização dos indivíduos numa
determina sociedade, incorpora igualmente a consciência dos seus limites. A
liberdade e a criatividade são, desta forma, probabilidades num campo de
possíveis.
As
instituições[120],
aliás, são “experimentadas como existindo
por cima e além dos indivíduos”, possuindo “realidade própria”[121],
corporizada nos indivíduos através do processo de socialização e promovendo a
obediência a determinadas tipificações (representadas pelos papéis) que
favorecem um dado estado de coisas, ou, se preferirmos, a reprodução social. No
entanto, e como forma de fugir à reificação da ordem social (como acontece com
Durkheim) Berger e Luckmann admitem uma circularidade: as instituições exercem
poderosos constrangimentos sobre os agentes, mas, por outro lado, “o mundo institucional é a actividade humana
objectivada”[122].
Por outras palavras, existe uma permanente tensão entre a tendência para
obedecer à ordem institucionalmente estabelecida e a contra‑tendência
para lhe desobedecer, relativizar e criticar, assumindo desvios.
Esta
perspectiva contém, assim o pensamos, ricas potencialidades heurísticas, na
medida em que, ao mesmo tempo que se apoia na minúcia das observações
fenomenológicas, dando igualmente conta do lado subjectivo do mundo social, não
esquece os constrangimentos sociais, sem no entanto os considerar como uma
entidade alienada da actividade humana e com um estatuto ontológico superior ou
à parte[123].
Em
síntese, a proposta teórica destes autores consiste na explicitação de três
momentos fundamentais[124]:
‑
um primeiro momento de exteriorização através da linguagem, de um conjunto de
significados subjectivos produzidos nos processos intersubjectivos;
‑
um segundo momento de objectivação desses significados em tipificações que
conduzem a instituições[125];
‑
um terceiro momento de interiorização desse mundo institucional, designadamente
através do processo de socialização.
Corolário:
“A sociedade é um produto humano. A
sociedade é uma realidade objectiva. O homem é um produto social”[126].
2.4.3.
Pierre Bourdieu e o
conhecimento prático do mundo.
Em
Pierre Bourdieu, encontramos um pensamento de síntese que supera as velhas
aporias sujeito versus objecto ou, se
preferirmos, subjectivismo versus
objectivismo (ou ainda finalismo versus
mecanicismo, espontaneidade versus
constrangimento, liberdade versus
necessidade, escolha versus
obrigação, etc.), enquanto expressão de essências que ignoram o fundamental de
uma teoria global sobre a produção da sociedade e das práticas sociais.
A
sua proposta assenta numa dupla leitura da realidade social: por um lado,
enquanto “objectividade de primeira
ordem”, ligada à desigual distribuição/apropriação de recursos/lucros
materiais e simbólicos; por outro lado, enquanto “objectividade de segundo grau”, isto é, englobando os princípios
que estão na base da génese das estruturas sociais e que fazem do corpo
história incorporada, matriz de percepção, avaliação e acção[127].
Desta
forma, Bourdieu transforma os antagonismos em momentos, aproveitando as
contribuições de correntes opostas e eliminando os seus vícios[128]:
o seu conceito de habitus remete‑nos
para as homologias existentes entre as estruturas mentais e as estruturas
sociais, eliminando a antinomia entre a análise da subjectividade e a análise
dos constrangimentos estruturais objectivos. Assim, defende uma filosofia da
acção de tipo disposicional, enquanto
estudo das relações inerentes às
“potencialidades inscritas no corpo dos agentes e nas estruturas das situações
onde eles agem”[129],
delimitando um pensamento relacional que se opõe às leituras “substancialistas” da realidade.
Para
explicitar esta posição, Bourdieu confere especial importância ao estudo da
competência prática dos agentes sociais, esse pensamento que se caracteriza por
uma “intenção sem intencionalidade” e que se funda na “«actividade real como tal», isto é, na relação prática com o mundo,
nesta visão quase‑corporal que não supõe nenhuma representação nem do
corpo, nem do mundo e menos ainda da sua relação”[130].
Este
pensamento que não se pensa a si próprio não pode, no entanto, ser concebido
como puro conhecimento. O conhecimento prático deve ser encarado como um
conjunto de operações práticas, condicionadas, em última análise, pelas
condições materiais de existência e que, sendo o seu produto, produzem‑nas
também. As práticas sociais são, neste sentido, simultaneamente estruturadas e
estruturantes, reprodutoras e transformadoras, objecto de constrangimento e
fonte de espontaneidade. Desligado da representação explícita ou do
conhecimento discursivo, este conhecimento prático, próprio de uma concepção de
um estruturalismo genético, assegura, como já foi referido, a correspondência
entre as categorias cognitivas/mentais, e as condições de existência
objectivas/materiais de uma forma não mecânica.
A
sua principal vantagem heurística reside, precisamente, na afirmação de uma
visão não idealista sobre as sociedades, sem cair num mecanicismo de contornos
reducionistas. O habitus, de facto,
não é uma noção a‑histórica ou uma essência. Ele é sempre produto histórico
de uma situação, actualizado de acordo com o campo[131]
em que actua e instância de mediação entre as ditas condições objectivas de
existência e a competência simbólica ou representacional.
Desta
forma, um determinado espaço de posições
(definido, como já vimos, por uma desigual distribuição de recursos ou
capitais), condiciona a matriz de percepção e de avaliação (disposições) que originam um conjunto de
tomadas de posições, homólogas às
condições materiais de existência de que são simultaneamente produto e
produtor. Os gostos culturais, por exemplo, resultam, em última análise, da
divisão objectiva das classes (sociais, étnicas, de género, etc.).
Assim,
nem o agente é um autómato passivo e comandado pela estrutura social, nem tão‑pouco
age ao acaso ou ao sabor da sua livre criatividade. Os sistemas simbólicos, por
conseguinte, devem ser encarados como “produtos
sociais que produzem o mundo”[132]:
sendo mais do que o reflexo das estruturas sociais, contribuem decisivamente
para as construir.
De
facto, Bourdieu não se esquece de referir que a reprodução se coaduna sempre
com a produção/construção/invenção da sociedade. O habitus distingue‑se do hábito por ser uma noção genética,
histórica e não inata. O conhecimento prático do mundo, que o tem o corpo socializado
como o seu principal suporte, concilia o interior dos agentes sociais, a sua
biografia individual, com os factos objectivos e exteriores[133].
Enquanto conjunto de disposições encarnadas nos agentes, o habitus é uma grelha de orientação no mundo, uma espécie de mapa
cognitivo que vive o presente e avalia o futuro de acordo com uma origem e uma
trajectória que formam um capital de experiências. Assim, ao contrário do
hábito, o habitus não é mecânico,
automático e repetitivo, sendo, pelo contrário, “algo de profundamente gerador (...) que tende a reproduzir a lógica
dos condicionamentos mas fazendo‑os sofrer uma transformação”[134].
Ao caracterizar este conceito pelo enfrentar criativo de novas situações de
forma “relativamente imprevisível, de uma
maneira tal que não podemos passar simples e mecanicamente das condições de
produção ao conhecimento do produto”[135],
Bourdieu retira parcialmente razão às críticas que o acusam de fundar uma
racionalidade dogmática e uma “circularidade
trágica”[136],
acentuando o carácter inventivo e relativamente autónomo do conceito de habitus, enquanto história tornada corpo
e corpo tornado história. Se o habitus
é feito para o lugar (ou posto), ele contribui também para fazer o lugar, tanto
mais quanto houver uma distância considerável entre as condições sociais que
produziram o agente e as exigências sociais inscritas nesse lugar. Assim,
existem espaços (limitados) de invenção e de liberdade, aproveitando décalages e zonas de incerteza[137].
Em
síntese, o conhecimento, que a si mesmo se desconhece, não resulta de uma acção
estratégica e explicitamente pensada; ele é o produto e o gerador de certas
condições sociais que levam as acções a serem congruentes com determinados
interesses que não são, todavia, o resultado de uma escolha racional e
deliberada. Assim, se não podemos compreender as taxinomias práticas sem
regressarmos às condições sociais da sua produção, não é menos verdade que não
vamos encontrar nas práticas o seu reflexo fiel, ou não fosse o conhecimento
prático um mecanismo de “douta
ignorância”[138].
E
como os agentes sociais estão envolvidos num jogo – e apesar desse jogo se
processar em vários tabuleiros (ou campos)
com as suas regras específicas ‑, apenas a crença no seu desenrolar (illusio) justifica a existência social. “O motor – a que se chama por vezes
motivação – não está nem no fim material ou simbólico da acção, como pretende o
finalismo ingénuo, nem nos constrangimentos do campo, como pretende a visão
mecanicista. É a relação entre o habitus e o campo que faz com que o habitus contribua para determinar o que o determina”[139].
O sentido ou investimento no jogo, condição essencial da sua reprodução e
transformação, revela‑nos, afinal, a centralidade do simbólico enquanto
conjunto de estratégias, muitas vezes inconscientes, que permitem ao sujeito “sair da indiferença e afirmar‑se como
agente activo, envolvido no jogo, ocupado, habitante do mundo habitado pelo
mundo, projectado para finalidades e dotado, objectivamente, portanto,
subjectivamente, duma missão social”[140].
Libertando o homem do seu destino (“Consagrado
à morte (...) o homem é um ser sem razão de ser”[141]),
as lutas simbólicas no interior de um campo, envoltas na crença no
funcionamento do próprio campo, alcançam o seu objectivo crucial: legitimar uma
posição e uma existência, justificar uma origem e um trajecto, iluminar um
futuro e o(s) seu(s) projecto(s).
2.4.4.
Anthony Giddens e a teoria da estruturação.
Anthony
Giddens é, a par de Bourdieu, um dos autores que não renuncia, em tempos de um
agudo relativismo, a construir visões sistemáticas e globais sobre as
sociedades contemporâneas, apesar de recusar qualquer esquema teleológico ou de
evolução unilinear.
Fortemente
influenciado por um contexto teórico onde se degladiam as perspectivas
dominantes (funcionalista e estruturalista) e as novas correntes da
etnometodologia (recuperando a tradição hermenêutica e fenomenológica), Giddens
é bastante claro na afirmação de uma postura anti e pós‑positivista. A
sua “teoria da estruturação” recupera o primado da análise da acção dos
agentes, afirmando as significações subjectivas como uma parte integrante e
essencial da realidade social. O seu projecto é estudar a “actividade social humana e a intersubjectividade”, através de uma “crítica positiva” (no sentido de
construtiva) às sociologias interpretativas[142].
No entanto, critica simultaneamente a ingenuidade de certas abordagens
hermenêuticas e fenomenológicas que esquecem a íntima imbricação entre a ordem
da interacção quotidiana e a ordem institucional, entre a vida prática e os
mecanismos de distribuição assimétrica do poder.
De
facto, pretendendo adequar historicamente a teoria social (estagnada por um “consenso ortodoxo”[143])
às crescentes solicitações dos novos movimentos sociais, Giddens, à semelhança
de Bourdieu, repensa as tradições do pensamento sociológico de modo a torná‑las
mais operativas e interventivas[144].
Para esse efeito, não se coíbe de articular aspectos das correntes
estruturalistas e pós‑estruturalistas, com uma desconstrução crítica do
marxismo[145]
e as novas pistas da etnometodologia.
A
sua perspectiva, no entanto, não se resume a um ecletismo mais ou menos
assumido. Giddens pretende sem dúvida ir mais longe, através de um longo e
árduo trabalho de conceptualização com vista à formulação de uma metateoria
capaz de servir de antídoto à dispersão teórica existente.
Assim,
a teoria da estruturação, para além de conciliar as teorias da acção e as da
estrutura[146],
supera o dualismo da estrutura por uma dualidade em que as estruturas e as
acções se constituem mutuamente: “(...)
as regras e os recursos utilizados na produção e reprodução da acção social são
ao mesmo tempo os meios da reprodução sistémica”[147].
Desta forma, evita‑se tanto uma reificação das estruturas enquanto
entidades estáticas, como a descontextualização das práticas sociais e do agenciamento[148].
O problema das perspectivas interpretativas consiste em serem fracas na
estrutura[149],
enquanto que as abordagens holísticas são decididamente fracas na acção[150].
O
objecto da teoria da estruturação é, então, a produção e reprodução das
práticas sociais no espaço‑tempo, práticas que, sendo recorrentes e
reflexivas, permitem, paralelamente, a contínua reprodução dos sistemas
sociais. As estruturas, aliás, existem apenas numa ordem virtual, através das
suas instantaneizações práticas: “Dizer
que a estrutura é uma ordem virtual de relações transformadoras, significa que
os sistemas sociais, enquanto práticas sociais reproduzidas, não possuem
«estruturas», mas antes propriedades estruturantes”[151].
A
teoria da estruturação refere‑se, assim, a dois eixos fundamentais: a
importância da consciência prática (practical
consciousness) como fonte de conhecimento e de orientação na vida
quotidiana e o carácter espácio‑temporalmente situado da acção humana.
Começando
pela consciência prática, importa, antes de mais, situá‑la entre o
pensamento inconsciente e o pensamento discursivo, fornecendo o quadro de
inteligibilidade necessário à vida quotidiana – um conjunto de esquemas
interpretativos que conferem sentido à realidade. Neste e noutros aspectos,
Giddens aproxima‑se claramente da fenomenologia e da etnometodologia,
designadamente quando estas correntes defendem que o mundo da realidade
quotidiana constitui a realidade primeira
ou predominante. É através desta consciência que os agentes sabem como
prosseguir (“how to go on”), através
de um conjunto de regras tácitas e de significados taken‑for‑granted. O agente é, por conseguinte, capaz
de recriar pela sua acção as estruturas sociais que actuam na e pela sua prática.
Giddens não lhe nega, por isso, a intencionalidade, apesar de considerar que a
motivação da acção é, em grande parte, inconsciente, ao mesmo tempo que refere
a possibilidade de existirem consequências
não pretendidas da acção que se transformam, necessariamente, em consequências desconhecidas da acção. O
autor é ainda mais claro na aproximação às correntes interpretativas quando faz
a apologia do conceito de agente,
enquanto dotado de competências que o diferenciam do mero sujeito. Aquele, é
capaz de reflectir estrategicamente sobre as suas condutas, mesmo as mais
rotineiras – “os hábitos mais rigorosos
ou as normas sociais mais inabaláveis envolvem uma atenção reflexiva, contínua
e pormenorizada”[152];
“A produção da sociedade (...) é sempre e
em toda a parte uma realização engenhosa dos seus membros”[153].
Sendo auto‑reflexivos, animados por motivos e razões, os agentes
contribuem, juntamente com as estruturas (conjunto de práticas sociais
codificadas) para a organização dos sistemas. Desta forma, os agentes são
verdadeiros teóricos sociais, o que
justifica a necessidade de uma hermenêutica
dupla já que, não só as ciências sociais são “contaminadas” pela acção dos
agentes (eles próprios portadores reflexivos de conceitos), como as descobertas
dessas ciências acabam por ser assimiladas e integradas na realidade social,
modificando‑a, o que configura uma espécie de “conhecimento mútuo”, partilhado tanto pelos cientistas como pelos teóricos leigos. O cientista social não
pode ignorar, por isso, que os resultados do seu conhecimento vão ser apropriados
pelo senso comum e “nas componentes
familiares das actividades práticas”[154].
O que não nos deve fazer esquecer que, entre conhecimento científico e
conhecimento do senso comum, existem igualmente especificidades e oposições
diversas. No entanto, Giddens revela, a nosso ver, um exagerado optimismo sobre
as potencialidades deste “diálogo” ou “conhecimento
recíproco”, ao afirmar que ele permite aos cientistas sociais “saberem o que o agente ou agentes sabem e
aplicam na constituição das suas actividades”[155].
Não é o mesmo autor que defende o peso do contexto (não redutível às situações
de interacção), os níveis inconscientes da acção social e o desconhecimento de
algumas das suas componentes por parte dos agentes (“A produção ou constituição da sociedade é uma realização elaborada dos
seus membros, mas uma realização que não acontece sob condições totalmente
pretendidas ou compreendidas por eles”[156])?
Giddens é bastante claro ao referir que a motivação da acção raras vezes é
explícita, permanecendo em níveis habitualmente inacessíveis ao agente: “inquirir sobre os motivos de alguém para
agir de uma certa forma é procurar elementos no seu comportamento de que ele
pode não estar consciente”[157].
Além do mais, existem situações “problemáticas”, que colocam em causa o
conhecimento mútuo que orienta os agentes, retirando‑lhes a habitual segurança ontológica.
Na
crítica às correntes estruturalistas e pós‑estruturalistas, Giddens,
influenciado, entre outros, por Wittgenstein e Garfinkel, desenvolve a
importância da linguagem enquanto elemento de constituição da vida social
quotidiana e das significações práticas. Aliás, a linguagem não implica
necessariamente um discurso verbalizado, já que muitas das acções quotidianas
não são nem programadas, nem expressas discursivamente[158],
apesar de representarem uma cognoscibilidade que é simultaneamente produto e
condição de funcionamento dos sistemas sociais. De facto, a utilização da
linguagem implica a compreensão intersubjectiva das “pistas contextuais”. Sendo um conjunto de regras abstractas, a sua
utilização está longe de ser mecânica. Tal é demonstrado, uma vez mais, pela
criatividade e a competência dos agentes na constituição das sociedades através
dos encontros e da produção/reprodução contínua das práticas sociais. No entanto,
o entendimento do outro nem sempre é fácil ou mesmo possível. Existe, também, a
possibilidade e a “vontade de enganar,
baralhar, desapontar, ser mal interpretado”[159].
De novo, a incompletude do agente: a comunicação, a linguagem, é “qualquer coisa que é feita, realizada pelo
locutor, mas sem conhecimento perfeito de como o faz”[160].
Além do mais, como já referimos, existem domínios onde o “conhecimento mútuo” não é eficaz. Na ausência de consenso, os
agentes têm que “demonstrar” o seu
conhecimento da situação e lutar para impor os seus significados. O que
implica, necessariamente – e aqui Giddens distancia‑se das abordagens
interpretativas mais ingénuas –, uma atenção especial à capacidade diferencial
de mobilização de recursos, isto é, à distribuição assimétrica ou “diferencial” do poder, geradora de
dominação. As relações de interdependência são, simultaneamente, relações de
exercício de poder. Por isso mesmo, as situações de interacção dependem de uma
determinada ordem moral, tida como legítima.
No
que diz respeito ao carácter situado da acção humana, o autor britânico acentua
o papel dos cenários (settings) de
interacção, considerando‑os como elementos integrantes do stock de
conhecimento mútuo através do qual os agentes constróem o sentido do que os outros
e eles próprios fazem. Esses cenários ligam a acção humana a um determinado
contexto, permitindo os encontros de indivíduos no espaço‑tempo e a
produção do sentido[161].
Nas palavras de Giddens, “os cenários de
acção e interacção, distribuídos ao longo do espaço‑tempo e reproduzidos
no «tempo reversível» do quotidiano, são parte integrante da forma estruturada
que tanto a vida social como a linguagem possuem”[162].
Ora, é precisamente por esse tempo reversível, repetitivo e rotineiro se
estender tanto à curta duração do quotidiano como à longa duração do tempo
institucional, que as práticas sociais estão impregnadas dos condicionamentos
estruturais, dos quais são simultaneamente produto e produtor.
No
entanto, apesar dos constrangimentos derivados do carácter situado da acção
humana[163],
os cenários de interacção funcionam também como possibilitadores de um conjunto
de estratégias que libertam a acção humana da dependência face ao contexto (context freedom). As estruturas
funcionam, simultaneamente, como entrave e possibilidade da acção humana, sendo
impossível, por conseguinte, dissociá‑las. Não faz sentido, assim,
separar a estrutura das práticas, a estática da dinâmica, a reprodução da
constituição permanente das sociedades. As regras e os produtos culturais, sendo
rotinas (mecanismos automaticamente accionados), representam, simultaneamente,
uma resposta actualizada e criativa, muitas vezes proporcionada por
acontecimentos imprevistos.
Em
suma, em A. Giddens, à semelhança de P. Bourdieu, temos uma teoria de síntese[164]
sobre a génese e o funcionamento do social, superando velhas e inoperantes
aporias e mantendo um intenso enfoque na historicidade dos sistemas sociais, em
busca dos mecanismos de validade universal através dos quais se estruturam as
sociedades. Negam, por isso, os processos lineares de pensamento, assentes na
busca de um factor determinante da realidade social. Em ambos os autores
existe, também, a preocupação de analisar o saber prático dos actores sociais,
responsável pelas suas acções, condutas, posturas e linguagens quotidianas.
No
entanto, o autor britânico acentua mais a intencionalidade e a cognoscibilidade
dos agentes, considerando mesmo que as componentes de significação devem ser
tidas em linha de conta na estruturação dos processos sociais.
Bourdieu,
por seu lado, preocupa‑se com o jogo relacional entre o habitus e o campo, princípio supremo de visão e de divisão que estrutura
diferentemente as categorias de percepção da realidade. Da mesma forma, acentua
as correspondências existentes na trilogia posições/disposições/tomada de
posições; correspondências que estão na base da construção do espaço social, no
qual actuam dois grandes princípios de diferenciação: o capital económico e o capital
cultural que, com o seu peso relativo, contribuem para o volume total de
capital possuído por um agente e que está na base do seu campo de possíveis...
Em
Giddens, pelo contrário, salienta‑se a ênfase no carácter dinâmico da
estrutura e no facto desta não poder ser considerada como exterior ao indivíduo[165].
A estrutura não é “impessoal”, nem
pode ser “coisificada”. Neste
sentido, Giddens é mais declaradamente antipositivista e antidurkheimiano,
facto a que não serão alheias as influências da etnometodologia e das
sociologias interpretativas em geral.
Finalmente,
se, em Bourdieu, podemos colocar em dúvida a real autonomia (relativa) da
dimensão simbólica, o mesmo não se passa com Giddens, onde sobressai de forma
nítida um modelo de circularidade. Com efeito, para o autor francês, o
simbólico, apesar de omnipresente nos processos sociais (enquanto propriedade
inscrita nos sujeitos) acaba por se subordinar à lógica das estruturas
objectivas. Em Giddens, por seu lado, a interdependência entre estrutura e
acção, produção e reprodução, elimina qualquer relação de subordinação, ainda
que mitigada, fomentando as lógicas de reciprocidade.
3. Novo
ponto de partida em direcção a uma análise
pluriperspectivada[166] dos fenómenos culturais.
Duvidar‑se‑á,
com alguma pertinência, da utilidade de um inventário teórico relativamente
longo sobre o stock de teorias disponíveis, em especial quando essas teorias
cobrem os principais eixos em torno dos quais se articula a produção teórica em
sociologia.
Argumentar‑se‑á,
igualmente, que seria mais frutuoso entrar directamente na discussão de teorias
de médio alcance sobre dimensões específicas do nosso objecto de estudo.
No
entanto, os corpos teóricos aqui discutidos podem com toda a relevância ser
utilizados como esquemas de interpretação dos fenómenos simbólico‑culturais.
Estes, de facto, situam‑se no centro da própria teoria social, fornecendo
ramificações para as mais variadas pesquisas empíricas. As ciências sociais
são, no seguimento da classificação proposta por Weber, ciências da cultura;
ciências duplamente interpretativas que analisam representações da realidade
social. Neste sentido, toda a produção teórica lida permanentemente com
fenómenos culturais.
Por
outro lado, muitas destas propostas possuem ainda uma qualidade epistemológica
fundamental, a de articularem diferentes níveis interpretativos, designadamente
o metateórico, o teórico e o empírico. Desta forma, não só possibilitam uma
reflexão abstracta sobre as próprias condições da reflexão teórica, como
relacionam conceitos e modelos com aplicabilidade no estudo de problemas
concretos.
Passaremos
agora a salientar as principais contribuições deste porventura exaustivo
inventário teórico para a construção de um modelo de análise impulsionador da
presente pesquisa. Fazemo‑lo partindo dos critérios do que noutra ocasião
apelidamos de heterodoxia controlada[167],
ou seja, de uma recusa dos consensos dominantes que procuram o conforto
epistemológico num dos pólos dicotómicos das velhas aporias. Ao ser controlada, tal heterodoxia não procura,
em nome de um espírito de originalidade a todo o custo, subverter os cânones
habituais da validação científica, muitas vezes em retóricas de duvidosa
legitimidade; tão‑só pretende rasgar novos caminhos de pesquisa, partindo
do terreno onde as teorias unilaterais ficaram.
Assim,
ao nível metateórico, sublinhamos,
antes de mais, a necessidade de abrir vasos comunicantes entre várias propostas
teóricas, ainda que de orientações distintas. Esta procura de interpenetração
de perspectivas complementares, mais do que um mero ecletismo, é devedora da
atitude relacional anteriormente definida, e que consiste em procurar em cada
posição teórica unilateral espaços de comunicação com outras propostas.
Simultaneamente,
defende‑se uma predominância epistemológica das teorias de conjunto ou
“grandes teorias”, capazes, pelo seu alto nível de abstracção, de superar e
integrar uma acentuada dispersão e relativismo que impedem a sistematicidade e
coerência dos processos de investigação.
Ao
nível teórico, seleccionamos
importantes contribuições das teorias anteriormente expostas, designadamente:
‑
o conceito marxista de praxis, enquanto pressuposto de que os agentes sociais
são os construtores do seu devir social e da sua própria história, enriquecido
com as importantes contribuições de Bourdieu e Giddens sobre o conhecimento e a
consciência prática;
‑
a consequente rejeição de visões essencialistas ou universais dos fenómenos
sócio‑culturais, na defesa de abordagens “parciais e situadas”[168];
‑
a recusa, igualmente, de qualquer forma de determinismo, optando, antes, pela
interacção das diversas instâncias da realidade (recusando, por conseguinte, a
hierarquização do real em camadas)[169];
‑
a necessidade de conjugarmos perspectivas sociologistas com abordagens
compreensivas, respeitando o poder de facticidade externa dos fenómenos
sociais, mas rejeitando um papel de autómatos passivos aos agentes sociais. Da
mesma maneira, não podemos considerar a estrutura social como sendo algo de
meramente exterior aos indivíduos, já que existe uma continuidade entre os
fenómenos institucionais e as práticas sociais, articulação que é necessário
explicitar de um ponto de vista analítico, mesmo para as situações concretas
mais anódinas e aparentemente triviais ou desligadas de um significado
sociológico;
‑
desta forma, parece fazer todo o sentido uma recente inflexão no curso
dominante da teoria social na direcção de uma dignificação da cognoscibilidade
dos agentes sociais, nomeadamente através dos pressupostos de que qualquer
actor, mesmo nas situações mais desfavoráveis, dispõe de um espaço táctico e de
algum poder, por mais escasso ou inconsequente que seja;
‑
a consideração, complementar da anterior, de que a margem de manobra ou de
liberdade dos agentes sociais, apesar de real e efectiva, deve ser analisada
como um espaço finito de possibilidades, sendo que a ocorrência de determinadas
acções acontece com um grau mais elevado de probabilidade do que outras;
‑
a concepção de que os fenómenos simbólico‑culturais, na sua autonomia e
especificidade relativas, aparecem como elementos de charneira e de mediação
entre as estruturas sociais e as práticas sociais, constituindo, por isso, um
terreno de análise especialmente vocacionado para as intersecções, as
interacções e as perspectivas de síntese, recusando as “teorias do reflexo” segundo as quais a ordem cultural seria um
mero espelho da dimensão social[170];
‑
uma particular atenção analítica aos factores que melhor exteriorizam a
(relativa) autonomia da ordem cultural na multidimensionalidade do espaço
social, designadamente a construção simbólica, as múltiplas linguagens e formas
expressivas (com especial destaque para a hexis
corporal), os rituais e todas as formas de representação e de ideação.
Desta
forma, apesar de mantermos uma perspectiva materialista e não essencialista sobre
os fenómenos sócio‑culturais, pensamos enriquecer os processos de
pesquisa com um “descer ao quotidiano”, um “ver ao perto” as múltiplas formas
de construção social da realidade, incluindo os processos mentais e cognitivos
de formação das identidades.
CAPÍTULO
II
O
LUGAR DOS PÚBLICOS
Falar e reflectir sobre os públicos das culturas urbanas
leva‑nos, antes de mais, a questionar as relações entre a oferta e a
procura cultural, ou, se preferirmos, entre a produção e o consumo/recepção. De
facto, estudos exclusivamente centrados no pólo da recepção cultural tendem a
ignorar a influência da estrutura da oferta de bens e serviços no recrutamento
de públicos e de audiências e na construção social dos gostos. Como refere
Maria de Lourdes Lima dos Santos, “a
criação tem de ser entendida como um processo que visa produzir não só as
obras, mas também a sua própria recepção, através da produção e difusão de
determinadas categorias de percepção”[171].
No entanto, uma análise apenas preocupada com a produção
de bens e serviços culturais, ignoraria todo o trabalho de
reinterpretação/reconstrução exercido pelos públicos na sua apropriação. Se é
verdade que a desmontagem dos produtos culturais depende, em grande parte, dos
códigos utilizados na sua fabricação, impondo, por isso, limites ao trabalho de
recepção, não é menos verdade que a constituição dos públicos e a sua matriz de
gostos influenciam fortemente o campo de possíveis da produção cultural. Howard
Becker refere mesmo que uma das formas de criar novas modalidades organizativas
e géneros culturais inéditos, passa pela constituição de novos públicos[172].
Da mesma forma, a difusão de novidades nos art
worlds[173]
encontra fortes limitações em clivagens sociais de base classista, sexual,
etária, regional ou étnica.
Como Paul DiMaggio menciona, os estudos centrados
unicamente na dimensão do consumo, tendem a considerar a divisão de géneros
artísticos contidos nos inquéritos por questionário como “divisões naturais” efectuadas pelo senso comum. Por outro lado, as
análises que apenas se preocupam com a produção concebem os indivíduos como
agentes passivos e obrigados a escolher entre o leque de alternativas que os
produtores oferecem[174].
Assim, importa, no mesmo esforço analítico, estudar não
só o que os públicos fazem aos produtos culturais, como também os públicos que
estes fazem.
Desta forma, o estudo dos públicos da cultura remete‑nos,
decisivamente, para a multiplicidade dos mundos da cultura, enquanto espaços
organizados e socialmente estruturados de produção, expressão e fruição
culturais. Analisar as formas culturais através das quais se exprime a
contemporaneidade não é indissociável, por conseguinte, da distribuição
desigual dos indíviduos na estrutura social, nem tão‑pouco das
reconfigurações mais ou menos bruscas que atravessam as modernas sociedades.
2.1. De um modelo
estático e hierarquizado dos níveis de cultura a um modelo dinâmico e plural.
A persistente divisão das formas de expressão cultural em
“pequena” e “grande” tradição rompe com um longo período de uma relativa
indiferenciação dos públicos da cultura, em que nobreza e plebe, maugrado as
pesadas desigualdades sociais, conviviam num espaço mais ou menos conspícuo. A
centralização e a especialização do poder exigiram práticas e posturas sóbrias
e austeras, em nada consentâneas com uma grande proximidade física entre os
“eleitos” e o povo.
Este modelo, fortemente hierarquizado, assentava numa
concepção essencialista e etnocêntrica de cultura, opondo os “homens cultos” ou
“cultivados” à massa bárbara e ignorante.
A imposição arbitrária de um determinado padrão de
cultura, apresentando como universais um conjunto de representações que, de
facto, são o património restrito de certas franjas sociais, encontra na
inculcação pedagógica o seu principal instrumento:
“(a educação é vista) como símbolo
de refinamento, de maneiras e de comportamentos que devem permitir a distinção
face ao «vulgar»”[175].
A grande massa das camadas populares (inicialmente
confinada à “cultura popular” ou “folk culture” e mais tarde, com o advento das
sociedades industrializadas, à “cultura de massas”) era vista segundo um padrão
de negatividade: constituíam‑na os não‑cultos, os não‑instruídos,
os não‑cultivados. A sua percepção era sempre feita a partir de um ponto
de vista soberano e não‑autóctone: a única forma de existência das
culturas “menores” era a partir da construção que dela faziam os intelectuais
das camadas dominantes: a “folclorização” e “etnologização” destas formas de
expressão cultural consistia numa forma de aniquilamento do seu potencial
criador, domesticando indivíduos que, antes de serem tidos como laboriosos,
eram considerados perigosos. Folclorizar ou etnologizar as culturas populares
significava projectá‑las para um passado de contornos bucólicos e
ruralizantes, longe do bulício e dos conflitos da indústria e das grandes
cidades[176],
reservando‑lhes a sossegada “aura” da pré‑modernidade.
Com a passagem do artesão ao artista “profissional” criam‑se
as condições necessárias para a constituição de campos culturais autónomos,
formados por hierarquias e instâncias de legitimação próprias. O artista
medieval, também ele, muitas vezes, em íntimo contacto com as mais distintas
camadas sociais (pense‑se, por exemplo, nos jograis) é substituído pelo
intelectual de corte, geralmente associado ao surgimento, em meados do século
XVI, das academias, lugar privilegiado do amplo movimento de secularização da
cultura e de formação de uma elite civil[177].
Com o alargamento (ainda que incipiente) dos públicos, no
século XIX, assiste‑se a um amplo movimento de heroicização do autor,
doravante tido como figura carismática, singular e altamente dotada, vivendo
num universo à parte e fugindo, muitas vezes, às regras e imposições sociais
que regulam a vida do comum dos mortais.
É no século XX, no entanto, que ganha contornos mais
definidos a oposição que aqui vai suscitar o nosso interesse: cultura de
elite/alta cultura/cultura cultivada versus
cultura de massas/baixa cultura/cultura comum.
São múltiplos os factores que contribuíram para a génese
desta dicotomia: aparecimento da figura do artista e constituição de campos
culturais autónomos com a consequente distanciação entre o autor e o receptor;
desenvolvimento industrial e da produção em série (fordismo); aumento
generalizado do nível de vida, em especial nas camadas populares, processo
paralelo ao aprofundamento do Estado‑Providência; conquista, por parte
destas, de uma fracção significativa de tempo livre; alargamento e
diversificação dos públicos; surgimento das indústrias culturais e mercadorização
da cultura.
A nível da própria análise sociológica criam‑se
compartimentações sub‑disciplinares: “...separação
entre uma Sociologia da Cultura, uma Sociologia da Vida Quotidiana e uma
Sociologia da Comunicação. Reserva‑se, em regra, a primeira para o estudo
das obras, da produção cultural nobre, no domínio do saber constituído; dedica‑se a segunda ao estudo das práticas culturais no domínio
da experiência existencial (...); privilegia‑se na terceira o
estudo das manifestações da chamada «cultura de massas»”[178].
Muitas foram as críticas dirigidas à massificação e
mercantilização da cultura, antecipando sessenta anos um debate que se
prolongou até aos nossos dias. Não deixa ser curioso verificar que essas críticas cobriam toda a diversidade do
espectro ideológico. As mais interessantes, todavia, partem da esquerda mais ou
menos influenciada pela tradição marxista enquanto principal fonte da chamada Teoria Crítica.
Adorno e Horkheimer utilizam, possivelmente pela primeira
vez[179],
a expressão “indústria cultural”, considerando‑a mais apropriado do que o
conceito de “cultura de massas”, já que este sugere que a cultura nasce
espontaneamente das massas, proposição que categoricamente rejeitam. Por outro
lado, apesar de muitos dos processos de produção não serem estritamente
industriais, o conceito justifica‑se pelo seu cariz de estandardização e
ainda pela racionalização das técnicas de distribuição.
Estes autores apontam o dedo ao carácter ideológico da
produção cultural (nas mãos de poderosos monopolistas), supostamente orientada
para as necessidades das pessoas, mas realmente empenhada em distanciar os
criadores e os consumidores, eliminando todas as resistências que estes últimos
possam desenvolver contra um poder cada vez mais centralizado. De que forma? Através
do controle das consciências individuais, submetidas a uma estandardização e
uniformização intensas. Afinal, os detalhes diferenciadores dos produtos das
indústrias culturais são mutuamente substituíveis (“interchangeable”). A especificidade humana desaparece e as pessoas
comportam‑se de acordo com os modelos servidos pelas indústrias
culturais. Adorno afirma, em artigo mais recente, que as massas não constituem
o sujeito, antes se apresentam como o objecto da indústria cultural; não são a
sua medida mas sim a sua ideologia[180].
Walter Benjamin, por seu lado, desenvolve uma original
tese sobre a “decadência da aura” protagonizada pelas indústrias culturais
enquanto ameaça à singularidade e à unicidade da obra de arte. Ao destruírem a lonjura, característica essencial da
autenticidade, as obras da cultura de massas, porque baseadas na reprodução,
não conseguem restituir o aqui e agora
da obra de arte: “Poderia caracterizar‑se
a técnica da reprodução dizendo que liberta o objecto reproduzido do domínio da
tradição. Ao multiplicar o reproduzido, coloca no lugar de ocorrência única a
ocorrência em massa”[181].
É perceptível, nestas palavras de Walter Benjamin, um
curioso paradoxo: apesar de pretender, como claramente afirma no prólogo da sua
reflexão sobre a reprodutibilidade técnica da obra de arte, contribuir para “a formulação de exigências revolucionárias
em política de arte”[182],
torna‑se patente uma tonalidade nostálgica e tradicionalista (e por isso
conservadora) no seu pensamento, mas que funcionava como reacção a um certo
modernismo ligado aos fascismos emergentes que, nos anos 30, utilizavam a
técnica como um dos seus principais recursos ideológicos, fundando‑se
mesmo uma espécie de estética belicista, forma última, segundo Benjamin, da
consumação da “arte pela arte”. Apesar de aceitar que existem possibilidades
revolucionárias tanto no cinema como na fotografia, Benjamin considera‑os,
antes de mais, como instrumentos políticos, ainda que actuando de forma oculta.
Mesmo considerando que, através do cinema, se aumenta o significado social da
arte, na medida em que une crítica e diversão (ao contrário da contemplação e
do recolhimento exigidos pela obra única), “a
exploração capitalista do filme (...) incita a participação das massas através
de concepções ilusórias e especulações ambíguas”[183].
O público do cinema “é um examinador, mas
distraído”[184].
O capitalismo, aliado ao fascismo, permite que as massas tenham a ilusão da
participação, embora se reforce o status
quo, nomeadamente a estrutura das relações de propriedade.
Numa linha diferente, Herbert Marcuse contesta a
sociedade “ultra‑repressiva”,
baseada no princípio da realidade e do “socialmente
útil”, o “sistema de actividades
inumanas, mecânicas e rotineiras” em que o “o homem é avaliado de acordo com a sua capacidade de realizar,
aumentar e melhorar as coisas socialmente úteis”[185].
Contra a produtividade como fim em si mesmo, contra “a definição do nível de vida em termos de automóveis, televisões,
aviões e tractores”[186],
Marcuse defende a reconciliação entre o princípio do prazer e o princípio da
realidade, entre a sensualidade e a razão, unindo psicanálise e filosofia
crítica num intento emancipador. A arte, neste contexto, aparece como a
concretização da “grande recusa”,
isto é, instrumento de combate à relegação dos intuitos transformadores para o
terreno inacessível da utopia. Pelo contrário, o lazer é objecto de uma
apropriação passiva, fornecendo o relaxamento que permite a recuperação de
energias para o trabalho alienado. As massas, essas, são manipuladas pelas
indústrias do entretenimento: “Não se
pode deixar o indivíduo sozinho, entregue a si próprio”[187].
Habermas, por seu lado, defende o reino do espaço público
contra a cultura de massas. Para este autor, a esfera pública é “um reino da liberdade e da continuidade. Só
à luz da esfera pública é que aquilo que é consegue aparecer, tudo se torna
visível a todos”[188].
Habermas retoma a distinção de Wright Mills entre público e massa. O primeiro
caracteriza‑se pela comunicação e pela reciprocidade, bem como pela autonomia
face à autoridade[189].
A massa, pelo contrário, é essencialmente receptiva e dependente face aos meios
de comunicação e à autoridade[190].
Em suma, a crítica à cultura de massas passa,
inevitavelmente, pela constatação da existência de um homem médio, normalizado
e em perfeita continuidade com os seus semelhantes: “A indústria da cultura de massas reifica o homem num «anthropos»
universal, medíocre e médio, passivo e voyeur, criado pelo seu próprio mercado”[191].
Por outras palavras, assistir‑se‑ia, supostamente, à dissolução das
clivagens classistas, regionais, sexuais, étnicas, etc., pela força de um
consumo nivelador, baseado no mínimo denominador comum de gostos e atitudes.
O essencial das críticas sobre a cultura de massas
assenta, todavia, num contexto histórico e numa ideologia específicos. Como
refere Paul DiMaggio, essas posições formam uma espécie de síntese entre as “preocupações liberais sobre a cidadania na
era pós‑fascista, com as noções marxistas da alienação e um desprezo
elitista pela cultura popular”[192].
Umberto Eco vai mais longe e critica os preconceitos
aristocráticos de certos homens de cultura, exigindo‑lhes uma “atitude de pesquisa construtiva”[193],
capaz de superar o preconceito elitista que muitos sustentam e que se prende,
implícita ou explicitamente, com uma profunda desconfiança face ao homem comum
e ao seu processo de mobilidade sócio‑cultural. Mais concretamente, o
autor italiano deplora o uso de “categorias‑fétiche”,
de conotação negativa, como “homem de
massas”. Mas Eco refere‑se igualmente em termos críticos aos
comentadores que, ingenuamente, acreditam sem reservas na função emancipadora
da cultura de massas. Enquanto que uns, os “apocalípticos”
se excluem da multidão, outros, os “integrados”,
“desenvolvem um discurso simplista dentro
do sistema, sem qualquer perspectiva crítica, frequentemente ligados aos
interesses dos produtores”[194].
Eco subverte os termos em que a questão geralmente é colocada (“é bom ou mau que a cultura de massas
exista?”), propondo uma outra forma de interrogação: sabendo‑se que
numa sociedade industrial é impossível eliminar a comunicação de massas
(patente de forma igualmente explícita no discurso político), “que acção cultural será possível para que
estes meios de massas possam veicular valores culturais?”[195].
Para que tal acção se concretize, é fundamental distinguir entre os “produtores de objectos de consumo cultural”
e os “produtores culturais” (se bem
que, na nossa opinião, o sincretismo destas posições seja hoje evidente...),
bem como analisar, crítica mas construtivamente, a natureza específica da
relação comunicativa de massas[196],
propondo que esta se exerça ao nível dos cidadãos, através de uma relação
dialéctica em que produtores e fruidores interpretam mutuamente as suas
necessidades e aspirações.
No entanto, o carácter expansionista da cultura de massas
e a mercantilização, não só dos domínios da vida comum e quotidiana, como, em
maior ou menor grau, da própria alta cultura, impõem uma nova perspectiva sobre
esta questão.
Por outro lado, como refere Maria de Lourdes Lima dos
Santos e ao contrário do que pensava Walter Benjamin, reprodutibilidade e
raridade não são dois pólos extremos. A primeira não elimina a segunda, muito
pelo contrário, já que estimula a irrupção da diferença, numa tentativa de alargar
mercados, conquistando e surpreendendo novos públicos, ainda que, muitas vezes,
à custa da pequena, quase infinitesimal diferença[197]:
“Não deixa de ser curioso que o
capitalismo desenvolvido para se manter e reproduzir tenha de obrigar o status
quo a constantes mudanças”[198].
Desta forma, intensifica‑se a interacção entre o
simbólico e o económico, ou, se preferirmos, entre a arte e o dinheiro, ou
ainda entre o “espírito” e a mercadoria. Os objectos culturais interiorizam um
estatuto económico, modificando, por seu lado, o próprio estatuto de
mercadoria, já que lhe acrescenta “um suplemento de valor”[199].
Num dos pólos, o da cultura erudita, verifica‑se a invasão do capital
público e privado, entrando em decadência os princípios da estética pura
kantiana. Multiplicam‑se as ocasiões de divulgação e de comercialização
da arte e as próprias carreiras artísticas necessitam de fortes investimentos
ao nível do capital económico e social, desenvolvendo‑se a ideia do
mecenato público e privado, como que a mostrar a possibilidade de
convertibilidade do capital simbólico em capital económico. Assim, esbate‑se
a figura mítica do criador singular, desenvolvendo‑se uma complexa rede
de mediadores (auxiliares, críticos, divulgadores, comerciantes, financiadores,
executantes, fornecedores, coleccionadores, etc.) e o trabalho colectivo. A
ideologia carismática do génio artístico não resiste à aproximação crescente
entre o trabalho artístico e outras formas de produção.
Neste sentido, Becker introduz o já famoso conceito de Art World como forma de dar conta das
transformações organizacionais no mundo da arte: “os mundos da arte (Art Worlds) consistem em todas as pessoas cujas
actividades são necessárias para a produção de trabalhos característicos que
esse mundo e talvez outros definem como arte”[200].
O artista, nesta perspectiva, apesar de ser essencial para o processo de
reconhecimento da arte (pelo próprio “milagre da assinatura”, na expressão de
Bourdieu) não é mais do que um elemento numa cadeia de participantes. Desta
forma, quebra‑se analiticamente o misticismo do isolamento dos mundos da
arte, integrando‑os no tecido social como mais uma actividade
colectivamente organizada. Se aparece, todavia, o nome do artista como traço
mais visível da consagração da obra de arte, é porque essa característica se
torna numa das condições de sucesso da sua colocação no mercado. A própria
assinatura, expoente máximo do dom artístico, é tida como rentável e
comercializável[201].
Em sentido contrário, o simbólico invade igualmente o
quotidiano. Doravante, os mais vulgares e utilitários objectos revestem‑se
também eles de uma apropriação simbólica (“culturalização do consumo”), num
processo paralelo ao da estetização
difusa do quotidiano, igualmente apelidado de inflação do estético.
Importa, ainda, referir o fenómeno de diversificação e de
alargamento dos públicos como outro factor de dissolução do modelo
hierarquizado dos níveis de cultura. Não só os públicos mais restritos vêem o
seu monopólio ameaçado com a divulgação em série das obras culturais, como as
camadas mais favorecidas em termos de capital cultural e escolar revelam
tendências ecléticas de consumo cultural, não deixando de abarcar, na sua
fruição, as obras da cultura de massas. Além do mais, existe uma associação
entre a segmentação e diversificação dos géneros artísticos e a hierarquização
social. As próprias indústrias culturais atendem a esta questão, diversificando
os seus produtos, substituindo o “pronto‑a‑vestir” pelo “feito‑à‑medida”
e preocupando‑se com as audiências parcelares. Aliás, a especialização
dos mass media (em especial jornais, revistas e estações de rádio) é um
indicador dessa tendência.
Diana Crane elabora a este propósito um modelo tripolar
de conceptualização das actividades culturais constituído pelo core domain, o peripheral domain e o urban
core[202].
O primeiro baseia‑se nas indústrias culturais de nível nacional e
internacional que trabalham para uma audiência vasta e heterogénea, oferecendo
uma produção relativamente padronizada (televisão, indústria cinematográfica,
jornais de grande tiragem). O segundo, apesar de se situar igualmente num nível
territorial nacional, divulga os seus produtos para subgrupos caracterizados
por diferentes idades e estilos de vida (estações de rádio, editores de livros
e de revistas, companhias discográficas, outros jornais). Finalmente, o urban core ou urban culture dirige‑se a audiências locais em contexto
urbano (rádios locais, concertos, festivais, exposições, teatro, performances,
etc.), tendo em conta os diferentes meios sociais.
Esta classificação contraria o modelo hierarquizado e
dicotómico dos níveis de cultura. De facto, um determinado género cultural não
tem, necessariamente, de confinar‑se exclusivamente a um destes domínios.
Diana Crane adianta o exemplo da ópera. Apesar da maior parte das suas
manifestações estar associada ao “urban
core”, designadamente a grupos sociais com elevado capital cultural, existe
a possibilidade de determinadas versões mais populares serem apropriadas pelo core domain. Outro exemplo é o do rock. Sendo
uma género muitíssimo aproveitado pelas indústrias culturais nacionais e
internacionais engloba, todavia, subgéneros, como por exemplo certas versões do
punk rock, que actuam declaradamente
como vanguardas provocadoras. Além do mais, existe uma relação dialéctica entre
o core domain e as esferas periférica
e local. Enquanto que ao nível do primeiro se assiste a uma dominação simbólica
por parte de uma elite restrita (os fabricantes de visões do mundo), nos
últimos verifica‑se uma contínua subdivisão dos géneros culturais,
processo paralelo a uma acentuada diversidade de modos e estilos de vida. Desta
forma, a produção do risco e da novidade acontecem mais frequentemente nos
domínios periférico e local, já que no core
domain a principal preocupação é a produção da segurança e a sincronização
(nem sempre conseguida[203])
entre os programas apresentados e as audiências.
Eco, numa análise do valor das obras culturais, defende
que os níveis de cultura não implicam, necessariamente, graus distintos de
complexidade. Desta forma, passar da “alta cultura” para a “cultura de massas”
(uma sinfonia de Beethoven tocada na rádio, por exemplo; ou, em sentido
contrário, uma banda desenhada apreciada por um público restrito), não acarreta
uma desqualificação de valor: “Existem
produtos que, nascidos num certo nível, revelam‑se consumíveis a um nível
diferente, sem que esse facto comporte um juízo de complexidade ou de valor”[204].
Do mesmo modo, ao defender a paridade dos vários níveis
de cultura, Eco salienta a viabilidade de um jogo de influências e passagens
recíprocas, que permite, a obras de vanguarda, mediante um sistema de
“mediações” e “traduções”, por vezes com intervalos de décadas, atingir
públicos cada vez mais vastos, sem perda de valor estético.
Paulo Filipe Monteiro sublinha a actualidade dos
processos de reciclagem que, através de uma descontextualização dos primeiros
significados, permite uma recontextualização (novas conotações), operando uma
mudança de horizonte receptivo. Uma das ilustrações mais marcantes encontra‑se
na performatização das vanguardas artísticas ao nível das culturas populares, o
que as aproxima, de algum modo, das expressões da “alta cultura”. Como
resultado, é dada a possibilidade de nos confrontarmos com uma “multiplicidade de belos”, advindos quer
de culturas diferentes, quer de distintos níveis de cultura[205].
Em suma, o que aqui se defende é uma alteração da
conceptualização dos diferentes níveis de cultura. Em vez de adoptar um modelo
hierarquizado, admite-se a coexistência plural das manifestações culturais; em
vez de uma concepção que favorece a “pureza” das diferentes formas de cultura,
introduz‑se a sua “contaminação”, imbricação e reciclagem; em vez da
unidimensionalidade, o “trânsito mútuo”; em vez, enfim, de um modelo
etnocêntrico de defesa de consumos elitistas, salienta‑se a
diversificação das escolhas e dos gostos culturais.
2.2.
Diferentes olhares sobre o lugar dos públicos e os gostos culturais.
2.2.1 A
lógica das homologias.
Uma das perspectivas mais discutidas sobre a relação
entre a esfera da produção cultural e a esfera do consumo é, sem dúvida, a
abordagem das homologias defendida por Pierre Bourdieu. Ao querer fundar uma
economia dos fenómenos simbólicos, este autor pretende, antes de mais, combater
concepções de cultura que oscilam entre “um
economicismo redutor e um idealismo ou espiritualismo”[206].
Esta pretensão de elaborar uma economia dos bens simbólicos choca,
evidentemente, com as narrativas autolegitimadoras do campo cultural, na medida
em que este se apresenta como o reino da negação do económico, do desinteresse
absoluto ou da “arte pura”. Desta forma, Bourdieu considera como pré‑requisito
fundamental de uma sociologia da cultura e da arte, romper com a concepção do
artista como criador, espécie de ideologia carismática que considera a produção
simbólica como o produto encantado de um “milagre
social”: “acto puro onde não há outra
determinação que a da intenção propriamente estética”[207].
Apesar de o campo cultural aproveitar a sua autonomia relativa e a sua pouca institucionalização
para impor a sua visão do mundo[208],
Bourdieu utiliza intencionalmente o conceito de produtor como forma de analisar a especificidade do trabalho de
produção cultural num campo relativamente autónomo[209],
com as suas leis de funcionamento, a sua estrutura de posições, o seu capital
específico, as suas agências de consagração, enfim, as suas regras do jogo.
Nesta procura da génese dos fenómenos simbólicos,
Bourdieu questiona as condições que os tornam necessários, procurando
descortinar os interesses e enjeux
que se engendram no campo cultural[210].
Ao analisar a estrutura interna do campo cultural
enquanto “estrutura das relações
objectivas entre as posições ocupadas por indivíduos ou grupos colocados em
situação de concorrência pela legitimidade”[211],
Bourdieu ocupa‑se de duas espécies de homologia.
A primeira diz respeito à dialéctica entre posições e
disposições. As primeiras definem‑se relacionalmente, tendo em conta um
certo estado das lutas internas (lutas pela definição legítima da estrutura do
campo[212]).
Assim, encontram como que “naturalmente” o seu habitus ou sistema de disposições, que funcionam como produto e
produtor das primeiras, já que, sendo por elas condicionado, inclusivamente nas
trajectórias possíveis, exercem sobre elas um poder efectivo de actualização.
Por seu lado, as tomadas de posição encontram‑se numa posição homóloga às
diferentes posições ocupadas no campo e aos interesses que estas representam.
Desta forma, a história do campo encontra o seu princípio gerador na relação
permanente entre estas duas estruturas: “a
estrutura das relações objectivas entre as posições no campo de produção (e
entre os produtores que as ocupam) e a estrutura das relações objectivas entre
as tomadas de posição”[213].
No entanto, não se pense que o estado das lutas internas
no campo, responsável pela sua evolução histórica, depende apenas do que no seu
interior se vai passando. Importa, para compreender a génese da produção
cultural na sua globalidade, ter em conta um segundo conjunto de homologias, desta
feita entre a oferta e a procura das obras culturais.
A teoria dos campos é multidimensional e o que se
processa no campo cultural não é independente do estado das relações objectivas
entre posições e disposições nos outros campos, em especial no campo do poder.
Desta forma, o capital cultural incorporado (capital
“pessoal”, conjunto de disposições incorporadas através de um trabalho de
inculcação/assimilação que deve o seu volume a uma transmissão hereditária
fortemente dissimulada) encontra uma correspondência no capital cultural
objectivado (capital cultural transmissível na sua materialidade, mas que
necessita, para a sua apropriação, de um volume homólogo de capital cultural
incorporado)[214].
Assim, os gostos encontram as suas obras e viceversa, mesmo que isso não
resulte (e não resulta, na maior parte das vezes) de um cálculo
estrategicamente calculado.
Podemos, pois, afirmar que a produção resulta do duplo
encontro de duas lógicas distintas. No interior do campo, entre as disposições
dos produtores (mais ou menos ajustadas às posições) e as tomadas de posição.
No domínio do espaço social, entre o campo dos autores e o campo dos
consumidores, ou, se preferirmos, entre o conjunto das obras culturais que
constitui a oferta e a matriz socialmente condicionada dos gostos, que
constitui a procura:
“Na ordem do consumo, as práticas e
os consumos culturais observáveis num dado momento, são o produto do encontro
entre duas histórias, a história do campo de produção, que tem as suas próprias
leis de mudança, e a história do espaço social no seu conjunto, que determina
os gostos por intermédio das propriedades inscritas numa posição (...) e
através dos condicionamentos sociais associados a condições materiais de
existência particulares e a uma posição particular na estrutura social”[215].
Desta forma, o encontro entre um público e uma obra
cultural não é produto de um milagre social, mas sim da lógica certeira de uma
dupla homologia. Em última análise, esse encontro é fruto da correspondência
entre o gosto do produtor cultural, objectivado na obra, e o gosto do
consumidor[216],
entre as divisões internas do campo cultural e do subcampo artístico (das quais
resultam os diferentes géneros) e a diferenciação dos públicos e consumidores.
Reside aqui, aliás, o carácter desmistificador da ciência das obras culturais
que Bourdieu protagoniza.
No entanto, muitas são as críticas a esta abordagem
teórica. Desde logo, as que apontam para um efeito “essencialista” na pretensão objectivista da sua sociologia,
fundada numa razão que se coloca acima da experiência e que não reconhece
legitimidade aos diferentes “mundos” das vivências quotidianas[217].
De facto, tudo se processa como se de um mundo
extremamente ordenado se tratasse, funcionando as homologias como uma estrutura
omnipresente de regulação social. Afinal, o próprio conflito, traduzido nas
lutas internas do campo, não é o motor da sua história, por mais paradoxal que
pareça. De facto, existe uma perspectiva de uma integração funcional da ordem
social através de graus distintos de correspondência estrutural. O conflito
representa, antes de mais, uma crença (illusio)
no jogo, uma aceitação dos seus pressupostos e dos seus resultados,
contribuindo de forma decisiva para a sua reprodução.
Esta questão liga‑se indissociavelmente, por outro
lado, às críticas que são feitas ao carácter estático do conceito de habitus e à circularidade tautológica
das propostas teóricas do seu autor. Como refere José Luís Casanova, existe uma
minimização de “questões igualmente
relevantes que têm a ver com a permanente premência da socialização, com a
incorporação do novo, e com a adaptabilidade, adesão e protagonismo dos agentes
sociais relativamente à mudança”[218].
Certeau, a este respeito, salienta a impossibilidade de aplicação do conceito,
mais dinâmico, de “estratégia”, na teoria geral de Bourdieu. De facto, se as
práticas constituem sempre uma resposta às conjunturas, não existem
propriamente “estratégias”, já que não se verifica uma escolha entre várias
possibilidades. Por isso mesmo, acrescenta, as “estratégias” situam‑se ao
nível inconsciente, prefigurando uma espécie de “douta ignorância”: “A
inconsciência do grupo estudado era o preço a pagar (...) pela sua coerência”[219].
Assim, pela génese das práticas, Bourdieu explica a sua adequação à estrutura. No
entanto, prossegue Certeau, a única possibilidade de mudança social situa‑se
ao nível das estruturas e não do que é interiorizado (habitus): “(o que se adquire)
não tem movimento próprio. É o lugar de inscrição das estruturas. O mármore
onde se grava a sua história”[220].
Daí o imobilismo da teoria e o cariz “místico” e “dogmático” do conceito de habitus. Este, é o instrumento adequado
para explicar a reprodução social através das práticas, favorecendo uma
concepção passiva e “nocturna” do
actor social.
No entanto, importa reconhecer as constantes
rectificações que Bourdieu vai introduzindo na sua matriz teórica. Antes de
mais, a sua referência à autonomia relativa do campo, questão que nos leva a
considerar a sua história como uma “expressão refractada” e não automática do
que no exterior do campo se vai passando.
Por outro lado, o habitus
não pode ser encarado de forma mecânica, já que exerce sempre uma acção
transformadora e de actualização do sistema de disposições inscrito numa dada
posição social. Como o autor francês refere, existe uma constante dialéctica
entre o lugar, a posição, e o habitus[221].
Este, tanto pode aceitar passivamente o seu lugar num dado campo, como pode
pretender transformá‑lo. No campo cultural, Bourdieu adianta que a margem
de liberdade e de inovação é tanto maior, quanto maior for a distância entre as
condições sociais de produção do produtor e as exigências sociais inscritas no
seu lugar no campo.
De qualquer forma, as acusações de determinismo, se bem
que parcialmente justificadas pela tautológica rede de homologias, devem ser
suavizadas, em nossa opinião, através de um entendimento rigoroso dos conceitos
que Bourdieu amiúde utiliza. A compreensão do habitus enquanto conceito mediador entre as condições materiais de
existência e as práticas sociais propriamente ditas, é da maior importância. O
sistema de disposições não é apenas estruturado; de facto, ele funciona também
de forma estruturante. Produto da história, encontra‑se aberto à mudança.
Como refere José Luís Casanova, o habitus
é durável mas não imutável[222].
Não podemos tão pouco afirmar que o campo cultural é um mero reflexo da
estrutura social, já que as tomadas de posição não correspondem,
necessariamente, à estrutura das posições. De facto, a tomada de posição
depende do espaço de possíveis disponível, dentro do qual se admite um conjunto
mais ou menos fechado de alternativas, o que permite o preenchimento de zonas
de incerteza e de “lacunas estruturais”[223].
No entanto, pensamos ser legítima a crítica que aponta
para a existência de uma prioridade do social sobre o simbólico na teoria geral
dos campos[224].
De facto, Bourdieu atraiçoa a autonomia que confere ao campo cultural quando vê
nas suas lutas internas uma tentativa de maximização de um capital simbólico
que servirá como instrumento de poder no campo social. As formas culturais
caracterizam‑se, assim, por estarem subordinadas à ordem social, diluindo‑se,
por conseguinte, a especificidade do simbólico. Por outras palavras, as lutas
simbólicas acabam sempre por exprimir lutas entre as classes sociais, ou no
interior de uma mesma classe social.
Em síntese, Bourdieu desvaloriza o estatuto criativo dos
públicos da cultura, na medida em que existe uma “harmonia preestabelecida” entre uma zona de gosto e determinadas
produções culturais, para além de se preocupar primordialmente com a
desmistificação da figura singular do “artista”.
Actuando os
produtores e consumidores culturais de acordo com o seu posicionamento na
estrutura social, procuramos nesta, em última instância, a explicação das suas
práticas. Contudo, como reagir em situações de quebra das homologias? O que
dizer de consumos culturais marcadamente ecléticos, abrangendo largas camadas
da estrutura social? Como explicar que, dentro de uma mesma classe social,
coexistam gostos e consumos díspares? Como reconhecer, em formas culturais
híbridas e resultantes de um movimento de “importação‑exportação” ou de
reciclagem mútua entre vários níveis de cultura, o produto de uma homologia
entre o espaço da produção cultural e o campo social? Como entender processos
flutuantes e reversíveis de formação de gostos? Não será a teoria de Bourdieu
um espelho da situação francesa dos anos 60 e 70 (data da recolha do material
empírico), inadequado, por consequência, a fenómenos mais recentes de uma certa
“desinstitucionalização”, “efervescência” e circulação de públicos, associados
a um movimento amplo mas difuso de estetização do quotidiano[225]?
Não será de admitir, para além da esfera da cultura “legítima”, uma pluralidade
social de formas de expressão?
Questões que alertam, sem dúvida, para a necessidade de
não cairmos na tentação de que a teoria de Bourdieu tudo explica, suscitando,
por conseguinte, a procura de novas abordagens.
2.2.2.
Perspectivas complementares e/ou alternativas.—a questão pós‑moderna.
Situações existem, ao contrário do estabelecido no
paradigma de Bourdieu, em que produção e consumo, oferta e procura, se
encontram desarticuladas. Não faltam exemplos, no quadro das políticas
culturais dos países ocidentais, em que a noção de serviço público pressupõe uma forte intervenção do Estado pelo lado
da oferta, em especial nas áreas estruturalmente deficitárias. Pierre‑Michel
Menger estudou o caso da música contemporânea em França constatando que, apesar
do seu crescente esoterismo (ruptura com a tradição tonal, ênfase na
experimentação e na pesquisa, procura permanente de novas linguagens, ausência
de um “código” inteligível, etc.), traduzido por um público restrito e por uma
total impossibilidade de autofinanciamento, o fechamento desse subcampo não só
se manteve inalterado como se acentuou. Para além de um forte capital simbólico
dos artistas e do seu público (sobreseleccionado), tal situação, de grande
autarcia e autonomia, apenas se pode explicar tendo em conta a forte protecção
pública que cria uma espécie de “mercado
assistido da inovação musical”. De facto, este atraso do consumo face à
oferta só é compreensível no interior de um paradigma que legitima uma “espiral de autonomia estética e a autarcia
sócio‑económica da criação erudita”[226].
No entanto, apesar de uma forte presença de auto‑consumo (grande parte do
público é constituído por produtores artísticos e profissionais dos mercados
culturais), constata‑se uma assinalável heterogeneidade de comportamentos
perceptivos que vão desde os mais competentes aos mais ingénuos (caracterizados
pela sua “virgindade perceptiva”),
dos mais familiarizados com os códigos da música contemporânea, aos que se
interessam, antes de tudo o resto, pela sofisticação técnica (com recurso à
informática) da nova criação erudita[227].
Enquanto que os mais competentes se caracterizam pelo proselitismo, ascetismo,
boa‑vontade cultural e voluntarismo, os consumidores “profanos” são
frequentadores errantes. Se alguns subgrupos revelam uma familiarização laboriosa
com este tipo de criação musical, outros tendem a valorizar conceitos tão
ambíguos como a “paixão” e a “felicidade da comunicação imediata”[228].
A idade é também uma variável diferenciadora: os mais novos constituem uma
audiência efémera e equívoca, afastada do pólo intelectual e artístico e
favorável ao sincretismo cultural. A partir dos 35 anos, pelo contrário,
recrutam‑se os públicos assíduos, os que acumulam experiências
perceptivas e se revelam capazes de uma atitude de investimento ascético. Mas,
mesmo dentro dos melómanos verificam‑se oposições significativas. D um
lado, a vaga dos auditores familiarizados com a música contemporânea e que
apreciam a inovação e tudo o que com ela se relaciona (criatividade, anti‑conformismo,
um certo sentimento de humor e espontaneidade). Para estes, “filhos” do
espírito do Maio de 68, a recusa da imitação entronca com a suprema valorização
da singularidade autoral, no que ela representa de liberdade, imaginação e
superação da obrigatoriedade de submissão a códigos comuns (a partitura pré‑existente).
Do outro lado, uma audiência perplexa perante o seu sentimento de incompetência
decifratória e que avalia as obras pela sua falta de legibilidade e de clareza,
se não mesmo pela sua “agressividade
auditiva”. Como refere Manger, a “máquina
homológica” desarticula‑se perante a “paralisia que afecta o julgamento estético e as capacidades de
discriminação estilística: à extrema singularização dos modelos e das técnicas
de composição, dos tratamentos e das combinações de materiais, responde a falta
abundantemente comprovada de poderes de categorização, de deciframento e de
avaliação das obras”[229].
Em suma, desaparece a ideia de homogeneidade de um
público hiperseleccionado, fundamento essencial do conceito de homologia.
Afinal, a audiência é fragmentada por diferentes atitudes perceptivas,
revelando, parte dela, características de uma “recepção impura” (falta de inteligibilidade) que se julgaria
(segundo Bourdieu) estar reservada aos grupos menos cultivados. Poder‑se‑á
tentar limitar o alcance desta perspectiva por esta representar um caso
extremamente singular. Mas é incontornável a constatação de que fornece um
excelente contra‑exemplo, dada a aparente uniformidade sócio‑cultural
do público. De qualquer forma, convém não esquecer a especificidade de cada
domínio, género e subcampo artístico. Eventualmente o modelo de Bourdieu
encontra maior correspondência para o estado do subcampo literário numa
determinada época histórica.
Atente‑se, agora, no caso da leitura e da
classificação das obras em géneros. Patrick Parmentier critica a dedução
apriorística feita a partir de propriedades supostamente intrínsecas aos
géneros e que permitem, num subsequente exercício de categorização social,
explicar a composição social dos públicos que consomem determinado género,
atribuindo‑lhes certos estereótipos de experiência estética[230].
Da mesma forma, é erróneo classificar as obras partindo do seu grau de
legitimidade social aferido pelo nível social do público que a consome. Se é
certo que a Sociologia da Cultura determina, muitas vezes, “a hierarquia dos diferentes níveis culturais a partir da hierarquia
social dos públicos modais das obras”[231],
nada lhe permite aferir sobre a qualidade estética das obras, tão‑pouco
sobre o seu “nível de dificuldade”. A composição social dos públicos, segundo
Parmentier, estabelece uma ligação com o estatuto social das obras mas não com
o seu conteúdo estético ou cognitivo. Daí a crítica à homologia nível cultural
da obra/nível cultural do público: “Se a
tautologia «o nível da obra é o nível do seu público» nos parece de uma sensata
crueza sociológica, a sua aplicação leva a um círculo vicioso na exploração de
qualquer inquérito, colocando em relação as classes de obras e as classes de
públicos”[232].
Os limites do raciocínio homológico são aliás evidenciados por duas constatações empíricas, já anteriormente apontadas por
Umberto Eco: o mesmo sujeito consome produtos de níveis culturais diferentes e
determinados produtos (“socialmente
equívocos”) são consumidos por grupos diferentes (atente‑se no caso
da banda desenhada). Através da sua investigação Parmentier conclui pela
existência de gostos culturais que, no domínio da leitura, transcendem as
divisões em géneros[233].
Da mesma forma, certas associações de géneros, representativas de gostos de um
sexo, geração ou classe, cruzam os diferentes níveis de legitimidade sócio‑cultural.
Se estes dois autores, Menger e Parmentier, criticam e
tentam desconstruir, empiricamente, o paradigma bourdiano, Diana Crane, autora
americana, apresenta uma concepção da relação entre cultura e sociedade que se
pode mesmo considerar inversa à do sociólogo de La Distinction. De acordo com Crane, há que criticar no autor
francês o facto de apenas considerar a existência de uma cultura legítima e
legitimadora: a alta cultura, apanágio de elites muito restritas. Para Diane
Crane, torna‑se hoje difícil estabelecer uma homologia nítida entre as
escolhas culturais e as pertenças classistas. De facto, socorrendo‑se de
Bell, Crane salienta a crescente incongruência entre os gostos e a esfera
ocupacional/profissional nas modernas sociedades. Além disso, dentro das várias
classes sociais existem importantes clivagens consoante o sexo, a etnia, a
região e mesmo a religião, fenómenos que resultam do crescente multiculturalismo
das sociedades ocidentais e que passaram despercebidos a Bourdieu.
Por outro lado, a própria oferta cultural torna‑se
cada vez mais eclética, já que existe uma crescente necessidade por parte das
organizações culturais de elite (orquestras, museus, galerias, etc.) de
alargarem os seus públicos para obterem maiores financiamentos. Também a este
aspecto (modificações organizacionais nos sectores culturais) Bourdieu não
prestou grande atenção analítica.
Crane não rejeita os enraizamentos sociais das práticas
culturais. No entanto, salienta uma modificação societal da maior importância:
a mudança da classe social para os estilos de vida como base da estratificação
social[234].
Desta forma, pretende dar conta dos crescentes cruzamentos e miscegenações culturais
das sociedades contemporâneas. Ao mesmo tempo, defende uma disjunção entre os
valores das instituições políticas e económicas e a constelação normativa das
instituições culturais. De acordo com esta autora, os processos de formação das
identidades ligam‑se cada vez mais ao simbólico e ao estético: “os objectos materiais adquirem uma maior
importância como marcadores subtis de identificação com códigos simbólicos”[235]
ganhando proeminência face ao status social per se. Este aspecto, no entanto,
não nos parece ser particularmente inovador, se pensarmos em toda a teoria da
distinção social e do capital simbólico desenvolvida até à exaustão por
Bourdieu.
Em síntese, o cerne da proposta de Diana Crane pode ser
explicitado através da seguinte proposição, negadora, no seu essencial, da
importância do habitus de classe: os
membros de uma mesma classe social exibem gostos e práticas culturais muito
diversas. É esta a principal ideia que permite explicar a hiperfragmentação das
sociedades pós‑modernas. Estas seriam, supostamente, o cenário de uma
disjunção entre a economia e a cultura, ou entre a produção e o consumo.
Segundo os arautos do advento da pós‑modernidade,
estaremos perante o fim das “metanarrativas
de legitimação”[236],
da ideia de projecto e da finalidade da história; perante o descalabro das “ambições ecuménicas” e das “expectativas universais”[237],
onde apenas é possível a integração através do consumo, um novo tipo de
consumo, tolerante e não classificável em termos de diferenças de classe.
Segundo Jean Baudrillard vivemos no apogeu da equivalência dos gostos e dos
estilos: “(...) vivemos no êxtase do
valor, quer dizer, no ponto em que todos os valores estéticos (os estilos, as
maneiras, a abstracção ou a figuração, o néo ou o rétro, etc.) são simultânea e
potencialmente maximais, onde todos podem, de um só golpe, por efeito especial,
figurar no hit parade sem que seja possível compará‑los ou ressuscitar qualquer
julgamento de valor”[238].
Rodeados por “objectos‑fétiche”,
viveríamos no tempo da dissolução das barreiras, das hierarquias, das
distinções, da equivalência geral de todos os usos e discursos, do desenfreado
ecletismo: “O ecletismo é o grau zero da
cultura geral contemporânea: ouve‑se reggae, vê‑se Western, come‑se MacDonald ao meio‑dia e cozinha local à noite,
usa‑se perfume parisiense em Tóquio e roupa «rétro» em Hong‑Kong, o
conhecimento é matéria para concursos televisivos”[239].
Há mesmo quem defenda o nivelamento estilístico da imagem pessoal e da moda, o
seu desligamento das fronteiras classistas e a sua irreversível personalização,
num processo em que cada um organiza a sua apresentação como quer, sem atender
a qualquer marcador de classe[240].
No entanto, somos constantemente interpelados pelas novas
questões sociais[241].
O desvincular dos comportamentos, gostos e condutas da ordem sócio‑económica
aparece contrariado pelos mais diversos inquéritos sobre lazer e tempos livres,
em que as profissões manuais não qualificadas se encontram excluídas de quase
todas as práticas culturais, reforçando‑se mutuamente a exclusão cultural
e a exclusão sócio‑económica. As suas formas mais agudas afectam,
precisamente, todos aqueles que se encontram em situação de vulnerabilidade,
isto é, nas malhas da flexibilização e precarização do trabalho. Se é verdade
que este deixa de funcionar, para muitos, como o instrumento de integração
social, é ainda por relação ao trabalho, mesmo pela negativa, que os indivíduos
se posicionam. Como refere Robert Castel[242],
a degradação da relação salarial e dos seus mecanismos de suporte social estão
na origem de um individualismo negativo
que atomiza os actores em indivíduos socialmente inúteis. O espírito da pós‑modernidade
apenas pode ser apanágio de uma parte limitada da população ocidental e da
humanidade.
Além do mais, como demonstram Christian Lalive d'Epinay e
outros[243],
o consumo nas sociedades industriais
avançadas é indissociável da ordem da produção, apesar de ambos manterem a
sua autonomia. Para sustentar um processo de contínuo aumento da produtividade,
as modernas sociedades trocam o trabalho pelo salário, parte do qual regressa
ao sistema produtivo sob a forma de consumo. Desta forma, a destruição de bens,
de dinheiro e de energias, é uma condição indispensável para o contínuo aumento
da produtividade. Para multiplicar, impõe‑se destruir, ou seja, consumir[244].
O declínio do ascetismo burguês e da apologia do trabalho, e a sua substituição
pelo materialismo hedonista (fun morality)
não são fenómenos independentes das novas exigências económicas. A ordem
cultural, não sendo uma duplicata da
ordem da produção, não deixa de manter com ela importantes interacções,
nomeadamente na hierarquização dos consumidores e nos novos mecanismos de
desigualdade social, ligados, não tanto ao controle dos meios de produção, mas
muito mais ao monopólio da gestão da tecnologia e ciência, da inovação, da
comunicação e da informação.
Uma outra proposta de contornos inovadores sobre a
articulação entre a oferta e a procura cultural é da autoria de Paul DiMaggio.
Este autor parte do conceito de género[245]
para considerar que os sistemas de
classificação artísticos (“artistic classification systems”‑ ACS) são
o resultado de duas lógicas complementares: a da produção e distribuição dos
bens culturais e a da estrutura de gostos de uma dada população.
A complexificação da sua proposta é patente nas quatro
dimensões que caracterizam um ACS: o grau de diferenciação da arte em géneros institucionalmente delimitados; o
grau de hierarquização desses
géneros; o grau de universalidade dos
sistemas de classificação e, finalmente, o grau de ritualização das fronteiras entre os diversos géneros.
A este respeito, DiMaggio desenvolve um número
considerável de hipóteses que partem, todavia, de um pressuposto fundamental -
a equivalência estrutural entre produtos culturais e públicos: o género “consiste naqueles conjuntos de trabalhos
que desenvolvem relações similares com o mesmo conjunto de pessoas”[246].
Por outras palavras, a divisão da arte em géneros é simultaneamente produto e
condição do agrupamento de gostos, o que impossibilita, necessariamente, que
estudemos isoladamente os padrões de consumo e os padrões de produção.
Neste ponto parece existir uma similitude assinalável com
a proposta de Bourdieu: afinal, ambos defendem uma forte ligação entre a ordem
da produção e a ordem do consumo/recepção. No entanto, as semelhanças ficam‑se
por aqui. De facto, DiMaggio não reconhece isomorfismos entre a estrutura
social e os padrões de gosto ou de consumo cultural. Para este autor, as
significações e bens culturais não funcionam como rentabilização de lucros
materiais e/ou simbólicos, nem tão‑pouco para reproduzir a estrutura de
poder dominante. O ponto fulcral da sua proposta consiste em analisar a esfera
cultural como um sistema relacional de comunicação interactiva e de mobilização
colectiva; conjunto de “formas através
das quais as pessoas utilizam a cultura para estabelecerem contactos entre si”[247].
A arte enquanto fonte de sociabilidade reside na concepção dos interesses
culturais como “interesses comuns de
conversa sociável”[248].
Desta forma, é mais importante estudar o consumo invisível da cultura, os seus
usos sociais, do que os objectos ou artefactos culturais materialmente
apreensíveis. A cultura, ao ser tema de conversa, aproxima ou afasta as
pessoas, forma círculos de sociabilidade mais ou menos restritos, estimula a
constituição de mercados matrimoniais, favorece ou dificulta projectos de
mobilidade social.
Assim, o gosto pela alta cultura, por exemplo, facilita
as relações entre pessoas com um elevado estatuto social, o que poderá servir
os intentos de quem se encontra numa trajectória de mobilidade ascendente.
DiMaggio refere estudos que demonstram que os estudantes americanos
familiarizados com os rituais da alta cultura se encontram associados a
elevados níveis de sucesso escolar, ao estabelecimento de conversas sobre o seu
destino profissional com adultos bem posicionados no mercado de trabalho, e
ainda a um estatuto promissor do futuro cônjuge.
Pelo contrário, a fruição da cultura popular tem um
carácter acentuadamente lúdico e convivial (a audição da música popular
relaciona‑se, por exemplo, com o hábito de visitar amigos) e não tanto um
uso “puramente social”.
Estudos sobre práticas culturais efectuados em França
corroboram esta hipótese, na medida em que os actores inseridos em trajectórias
de mobilidade social ascendente demonstram uma nítida preferência pelos
“programas culturais”, ao contrário dos sujeitos em situação de “mobilidade social bloqueada”, que optam
pelos programas de entretenimento[249].
Na sociedade americana, os ACS estão a tornar‑se
mais diferenciados (a autoridade cultural encontra‑se menos concentrada),
menos hierarquizados, menos universais (e por isso mais ecléticos) e menos
ritualizados, esbatendo‑se as fronteiras entre a alta cultura e as demais
formas expressivas. Tal resulta, precisamente, da maior complexidade do sistema
de papéis sociais e das redes sociais, da maior interacção intergrupal e ainda
do acesso mais generalizado aos patamares superiores do ensino, o que sem
dúvida conduz a um enfraquecimento do valor de raridade a que se associa o
capital cultural. Assiste‑se, assim, a uma crescente incongruência entre
as várias dimensões do estatuto social, o que possibilita uma “descolagem” face
aos grupos de pertença e uma maior identificação com os grupos de referência
(também em franca multiplicação), enquanto suporte de trajectórias de
mobilidade social ascendente.
Baseado nestes pressupostos, DiMaggio elabora uma série
de críticas às teorias que defendem a existência de relações de homologia entre
os gostos e a estrutura social:
‑ a participação e o interesse pela alta cultura
não requerem, necessariamente, um elevado conhecimento da mesma;
‑ o gosto e a participação nas manifestações
culturais dependem muito mais do prestígio do género cultural (situado na alta
cultura ou na cultura popular[250])
do que do suporte utilizado (literatura, teatro, audiovisual, etc.), o que leva
a questionar a indissociabilidade, reiterada com particular ênfase por
Bourdieu, entre um determinado gosto e um processo mais ou menos demorado de
formação/inculcação;
‑ o gosto não é necessariamente produto de uma
transmissão familiar, já que os recursos culturais podem ser adquiridos tendo
em vista a construção de redes de relacionamento exógenas ao meio de
residência, de forma a servir aspirações de mobilidade social ascendente (tal
como acontece, segundo DiMaggio, com certas camadas de trabalhadores
qualificados, ou ainda com grupos cujo prestígio ocupacional é mais elevado do
que o capital escolar);
‑ finalmente, a constatação de que as camadas com
elevado capital social mantêm um consumo ultra-abrangente, em quase todos os
géneros e produtos culturais, de forma a solidificar a manutenção de redes
sociais alargadas e diversificadas, o que possibilita a formação de vastos repertórios
de gosto.
No entanto, pensamos que esta última tese, apesar de
funcionar como crítica às rígidas homologias bourdianas confere em parte razão
ao autor francês, já que um maior leque de escolhas se encontra associado a
situações de classe com um alto volume de capitais, enquanto que as camadas
populares concentram as suas actividades culturais quase exclusivamente no
televisionamento (precisamente — e aqui a explicação é de DiMaggio — porque a
sua rede de relacionamento social é limitada e os investimentos na cultura
estão longe de ser compensatórios), possuindo, objectiva ou subjectivamente, um
menor espaço de opções.
O contributo porventura mais decisivo de DiMaggio reside,
pois, na elucidação das principais tendências de recomposição da sociedade
americana. De facto, torna‑se hoje em dia impensável continuar a falar de
um processo estável e contínuo de socialização, baseado na incorporação de
novas experiências a partir de uma matriz (ou habitus) inicial, com poucas alterações do seu estado primeiro. Em
vez de um modelo de estrutura social baseado em classes e grupos sociais
claramente delimitados, assiste‑se hoje à comunicação entre redes sociais difusas, marcadas por um
certa incongruência dos múltiplos estatutos sociais que vão marcando as nossas
trajectórias e onde as “ocasiões de conversa” surgem como fonte privilegiada de
formação das identidades. Assim, verifica‑se um uso cada vez mais
selectivo e pragmático das referências culturais de acordo com os contextos de
interacção: “Um pai que seja operário
qualificado, casado com uma mulher “colarinho branco” deve saber de desportos e
de música rock no trabalho; discutir política e comida natural com os amigos da
sua mulher e instigar uma admiração por Brahms e Picasso na sua filha ou filho[251].
A multiplicidade de referências sociais, ligadas a uma diversificação de
contactos e de círculos de convivialidade, alerta‑nos para uma certa
prudência na utilização dos conceitos consagrados da sociologia, em particular
o de habitus e de capital. Paulo
Filipe Monteiro, referindo Luhmann, salienta mesmo que “as identidades estão (...) mais associadas aos lugares do que às
pessoas”[252],
ou, dito de outra forma, aos repertórios associados à diversificada rede de
papéis sociais por onde o agente circula.
De facto, e no que toca às classes mais desfavorecidas,
não podemos deixar de pensar nos processos de mobilidade social e profissional,
ligados à explosão do terciário urbano e ao incremento significativo das taxas
de escolaridade, com a consequente redução do valor de raridade do capital
cultural.
Jan Rupp alerta‑nos precisamente para a necessidade
de não pensarmos nas classes populares como meros protagonistas da
interiorização de um habitus definido
pela negativa e por oposição aos cânones da cultura legítima. Desta forma,
sugere a utilização do conceito de investimento
para pensarmos nas estratégias de mobilidade diferenciadoras de uma fracção que
aposta decisivamente nos usos culturais, face a uma outra que concentra as suas
energias no standing e na acumulação
de sinais exteriores de um (relativo) bem‑estar[253].
Em síntese, parece‑nos que as valiosas observações
de DiMaggio se coadunam com as propostas de enriquecimento do conceito de habitus da autoria de José Luís
Casanova. Com efeito, importa aproveitar as potencialidades deste conceito,
para, através de uma série de reformulações parciais, o adaptarmos às
modificações na estrutura social das sociedades contemporâneas.
As propostas de DiMaggio devem, com certeza, ser
relativizadas aquando da sua transposição para outras realidades que não a
americana, o mesmo acontecendo com Bourdieu a partir do contexto francês. De
qualquer forma, parece‑nos ser da maior importância a sua abordagem sobre
os usos sociais da cultura em sociedades cujos sistemas de papéis se caracterizam
pela incongruência, diversidade e complexidade.
Dentro desta linha, José Luís Casanova apresenta algumas
das principais modificações societais que tendem a relativizar o trabalho
pedagógico primário de constituição do habitus:
a pluralidade (e acrescentaríamos a reversibilidade e a flexibilidade) dos
actuais modelos familiares; a crescente expansão da escolaridade e do ensino
superior; o adiamento da entrada na vida adulta (e acrescentaríamos a
multiplicação de estatutos juvenis provisórios, híbridos, instáveis e
precários); o aumento em flecha de situações de sub‑emprego, emprego
clandestino e desemprego (ligados à compressão e segmentação do mercado de
trabalho); a crescente exposição aos mass media; a acentuada mobilidade
profissional e residencial; a banalização dos contactos interculturais e
interétnicos e ainda a multiplicação de contextos de sociabilidade e de
situações de interacção interclassistas[254].
Não se trata, parece‑nos claro, de defender uma
perspectiva de fim das hierarquias e diferenciações sociais, nem tão‑pouco
de recusar os seus efeitos na determinação social dos gostos. Aliás, estudos
recentes sobre as práticas culturais dos franceses, apesar de apontarem,
igualmente, para a extensão das redes de sociabilidade como um indicador de vitalidade
e protagonismo cultural[255],
demonstram, claramente, que essas redes são apanágio de uma minoria
(parisienses, altamente qualificados, jovens e celibatários) constituindo, por
isso, laços extremamente selectivos.
De qualquer forma, pensamos ser importante adequar a
teoria às novas e profundas modificações das sociedades de “capitalismo
desorganizado”, para utilizar uma expressão de Lash e Urry[256],
onde o espaço social se fragmenta, as desigualdades atingem formas inéditas,
alargando‑se a novos domínios, as rígidas homologias perdem
operacionalidade e a imprevisibilidade crescente da acção social e dos seus
efeitos não pretendidos obrigam a um constante repensar dos conceitos
estabelecidos, enquadrando‑os numa perspectiva dinâmica e diacrónica.
3. Transformações
na esfera das identidades sociais.
Aceitar as profundas e recentes transformações das
sociedades contemporâneas não significa, como já foi referido, questionar o
enraizamento social dos fenómenos culturais, atribuindo‑lhes uma total
independência analítica, ou mesmo, como alguns pretendem, numa reviravolta
vertiginosa, conferindo‑lhes uma espécie de hegemonia no encadeamento
causal.
A formação das identidades sociais não acontece no vazio
social. Por isso mesmo, o seu estudo fornece‑nos os melhores indicadores
sobre as mudanças societais mais significativas.
As identidades sociais devem igualmente ser consideradas
numa perspectiva processual e enquanto locus
de conflito, negociação e construção social. Trata‑se, afinal, de
salientar os mecanismos de reflexividade que conduzem a um ajustamento entre o
plano pessoal e o plano social. Como refere Jorge Vala, “é no cruzamento da comparação e da categorização que o indivíduo se
identifica, descobrindo‑se como único e simultaneamente como semelhante.
É neste sentido que se tem mostrado que a dimensão social e a dimensão
idiossincrática do eu, ou a identidade social e a identidade pessoal, não são
dois pólos dum contínuo, mas duas dimensões que poderão ser representadas como
ortogonais”[257].
Diana Crane refere que os padrões de conduta vigentes nos
remetem para “identidades
multidimensionais, nas quais diferentes elementos se salientam consoante as
situações”[258].
Ao contrário das sociedades pré‑modernas, em que as identidades se
construíam ritualmente, facilitando ao indivíduo o sentido e a localização da
sua acção, nas sociedades da “modernidade
tardia” (segundo o conceito de Giddens[259]),
“o novo self tem de ser explorado e
construído como parte de um processo reflexivo de conexão entre o pessoal e a
mudança social”[260].
Por outro lado, historicamente a dialéctica “Nós‑Eu” tem sistematicamente
favorecido um dos pólos. As mais recentes dinâmicas culturais acentuam
nitidamente a dimensão do “Eu”, ainda que o actor jamais possa ser considerado
fora do seu contexto, isto é, fora de “redes
estruturadas de relações sociais”, também elas, necessariamente, redes de
comunicação e de distribuição de poder[261].
Sendo a complexidade social um dado saliente das modernas
sociedades, a construção das identidades torna‑se um processo
problemático, tendo o indivíduo que escolher entre uma vasta panóplia de
orientações normativas e padrões de conduta, escasseando os critérios de
aplicação universal e estando em mutação as instâncias de autoridade. Não só se
cruzam os tempos sociais[262],
mas igualmente se apresentam fluídas as “âncoras” categoriais nas quais se
baseia a construção social das identidades, tornando esse trabalho
crescentemente incerto, provisório e problemático “com o crescimento da pluralidade dos contextos de interacção, com a
pluralidade de papéis e posições sociais e com a transitoriedade das normas
reguladoras dos contextos de interacção”[263].
Otávio Velho lembra‑nos, a este respeito, que o sujeito social “é capaz, também, de comportar uma
plurivocidade, uma coexistência de identidades com graus diversos de
compromisso”[264]
o que implica, necessariamente, a aceitação das “«impurezas» dos sincretismos, hibridizações, crioulizações e
multipertencimentos”[265].
Parece‑nos que os mecanismos de formação de novos
públicos, tendencialmente mais ecléticos, e de constituição de gostos e padrões
de consumo, crescentemente flutuantes, também passam por estas considerações.
Processo problemático, já o dissemos, num mundo onde se
multiplicam os canais de difusão da informação, as fontes de identificação e os
grupos de referência. Mas igualmente um processo inventivo, em que a identidade
está em permanente construção, negociando os significados que dão sentido à
existência quotidiana, questionando os papéis sociais e cristalizando, a seu
modo, as transformações sociais globais.
Não se trata, como refere DiMaggio na crítica a Bell, de
defender a disjunção entre o social e o cultural. Trata‑se, isso sim, de
descobrir as formas sempre renovadas da sua articulação.
CAPÍTULO
III
OS
PÚBLICOS EM ACÇÃO
OU O
OFÍCIO DE RECEPTOR
1.
Análise da recepção cultural como prática social.
Os
argumentos que em seguida apresentamos dependem de um mesmo pressuposto: o
agente social é dotado de uma cognoscibilidade e de uma margem de manobra que,
apesar de diferentemente (de)limitadas, não podem ser negligenciadas, sob pena
de apagarmos analiticamente dimensões fundamentais da construção das
sociedades. Não se trata, por isso, como de resto ficou patente no capítulo I, de conceber os sujeitos
sociais como reactores sonâmbulos e passivos face aos constrangimentos
estruturais que lhes são impostos. A liberdade condicionada, enquadrada e
contextualizada, actuando num campo de possíveis, noção que decerto não
desagradaria a Bourdieu e a Giddens, remete‑nos para os mecanismos de
criação/recriação da própria sociedade e da relação entre práticas
estruturantes e práticas estruturadas. Neste sentido, retomamos as palavras de
Augusto Santos Silva: “Em contextos que
são sempre estruturantes — nas várias acepções do termo ‑, utilizando
recursos de racionalidade e poder que são sempre limitados, envolvidos em
rotinas práticas, os agentes são actores, mantêm uma relação activa face aos
constrangimentos e às condições de acção. Só não o são, certamente, em
situações excepcionais, de desapossamento, privação e sujeição absoluta, por
isso mesmo objecto de particular explicação sociológica”[266].
Desta forma, ao defendermos que a recepção cultural é,
antes de mais, uma prática social, rejeitamos os estereótipos de inércia e
passividade que comummente se lhe atribui. A mensagem cultural não encontra, na
sua recepção, um deserto vazio de referências. Todos os grupos sociais
actualizam e protagonizam uma história que, mesmo quando não lhes possibilita
assumirem‑se como autores e actores do seu destino, desmente uma lógica
de distribuição de poder do tipo soma‑zero.
É nossa convicção, como de resto afirmámos noutras ocasiões[267],
que as formas de manipulação e dominação simbólica encontram sempre, com maior
ou menor sucesso, uma determinada resistência, ainda que inoperante ou
ineficaz. Caso contrário, prestaríamos a enorme injustiça de considerar certos
grupos como inexistentes no jogo social, de tão amorfos e resignados,
reforçando, no plano teórico, a exclusão de que são vítimas na realidade.
Por outro lado, e reiterando o que foi dito no capítulo
anterior, não faz sentido pensarmos a recepção cultural como uma prática
unilateral. As formas socialmente diferenciadas de apropriação dos produtos
culturais devem ser permanentemente relacionadas com a estrutura da produção,
designadamente no que se refere aos códigos culturais utilizados, bem como com
os contextos de mediação institucional que separam autores e receptores. No
entanto, apesar de existirem obras que, à partida, escolhem os seus públicos,
jamais elas conseguiram fixar o seu sentido definitivo. O carácter incompleto,
indeterminado e aberto das obras culturais é outro pressuposto fundamental da
teoria da recepção. Como refere Umberto Eco, o valor do produto fruído é influenciado pelas diferenciações de atitude fruitiva[268],
sendo do maior interesse analítico verificar em que grau essa atitude altera a
natureza da obra e, simultaneamente, quais os “limites dentro dos quais uma obra é capaz de impor certos valores
independentemente da atitude fruitiva com que a abordamos”[269].
De acordo com o autor de A Obra Aberta,
a mensagem plurívoca caracteriza‑se pela sua multi‑interpretabilidade,
proporcionando, em cada releitura, um acréscimo de informação. Este elogio da
abertura referencial enquadra‑se numa defesa da desordem estética que, ao
contrário da previsibilidade, é condição indispensável para a inovação. Esta —
e aqui reside um contributo da maior importância — ultrapassa o dualismo
forma/conteúdo. De facto, e como o próprio Umberto Eco refere, a arte é
indissociável das suas estruturas formativas. Assim, para não reproduzir o status quo artístico é imprescindível
inovar também no plano formal (daí a crítica à literatura realista). Como
refere Peter Bondanella, estudioso da obra de Eco, “os autores de vanguarda das obras «abertas» (...) inovam no plano da
forma artística, que é sempre, em última análise, o seu conteúdo”[270].
Na mesma linha, Paulo Filipe Monteiro[271],
salienta o papel da forma como linguagem, capaz, por isso, de provocar os
mesmos efeitos que o conteúdo (absurdo, repugnância, familiaridade...).
Embora sendo verdade que nem sempre o trabalho de
recepção altera significativamente o sentido da obra ou mensagem, não é menos
verdade que não cabe apenas ao autor o estabelecimento da sua “verdade”
definitiva. Aquilo que o autor representa é uma resposta a uma determinada
pergunta, como refere Hans Robert Jauss[272].
Cabe aos receptores fornecer a sua resposta própria, ou actualizar a resposta
inicial, através de múltiplos e sobrepostos exercícios de interpretação. A
noção aparentemente unívoca de autor cede lugar à ambivalência da arte e às
correntes da semiologia que entendem a obra como cooperação e não enquanto
resultado de uma imposição unilateral de sentido.
Uma história das práticas culturais exclusivamente
centrada na figura do autor esqueceria todas as práticas e micro‑práticas
anódinas e discretas, mas poderosas e eficazes nas fixações sucessivas do
sentido da obra, tornando possível a sua sobrevivência, impregnando‑a de
actualidade e concebendo como contemporâneos processos de criação com um longo
passado. De certa forma, e como refere Foucault, a escrita representa o
desvanecimento e mesmo a morte do autor[273].
Mas, mais importante ainda, esbate‑se a diferença, abissal e
intransponível para os defensores da aura, da singularidade e do génio do
criador, entre um discurso sobrelegitimado de autor, e as pequenas e efémeras
narrativas do quotidiano.
Ao negligenciar‑se o que, na vivência cultural, se
processa ao nível dos usos e das apropriações, corre‑se o risco de
permanecer na análise interna das obras ou nas superficiais determinações e
descrições sociológicas dos consumos. De facto, mesmo sendo importante conhecer
a frequência de determinadas práticas culturais, não podemos correr o risco de
as considerar como unívocas. O mesmo índice de frequência (ou a sua ausência)
pode comportar uma panóplia de atitudes diferentes, o que nos deve levar a
superar a tendência para raciocinar meramente em termos de “abundância/indigência”[274],
de forma a não cair no dilema do “consumo/não‑consumo”
ou, se preferirmos, do “público/não‑público”.
Por detrás de uma mesma prática de não‑consumo podem estar atitudes de
desconhecimento, vergonha cultural ou, pura e simplesmente, decepção e
consequente recusa face a uma determinada obra. De igual modo, os estudos sobre
audiências têm demonstrado que o não‑público de um determinado domínio
(as artes plásticas, por exemplo) não coincide, necessariamente, com o não
público de outro (por hipótese a literatura). Da mesma forma, a frequência de
uma mesma actividade cultural pode ter subjacentes distintos projectos e
motivações: recuperar um “atraso cultural”, compensar um défice de “cultura
geral”, manter‑se actualizado; descobrir novas obras; participar no
“ambiente social” de fruição cultural; etc.
Assim, a teoria da recepção coloca na ribalta o que
habitualmente se processa nos bastidores dos processos culturais. Ao público é
conferido um papel essencial: o de aceitar, criticar e/ou rejeitar a obra que
se lhe apresenta, mas também o de produzir uma nova obra, que resulta da sua
interpretação e criatividade. Como Jauss refere, existe uma cadeia de recepções
sucessivas que destróem a ideia da intemporalidade da obra, vista, na miopia
objectivista, como um «monumento» sagrado. Esta, não pode existir separadamente
do receptor, já que contém em si uma “estrutura
de apelo”: “A vida da obra literária
na história é inconcebível sem a participação activa daqueles a quem se
destina. É a sua intervenção que faz entrar a obra na continuidade mutável da
experiência (...) em que o horizonte não cessa de mudar, em que se opera uma
permanente passagem da recepção passiva à recepção activa, da simples leitura à
compreensão crítica, da norma estética à sua superação por uma nova produção”[275].
Assim, deixa de fazer sentido continuar a raciocinar em função de aporias como
passado/presente ou sentido original/sentido recebido.
Ao considerar que a obra apenas atinge a sua
singularidade através de um conjunto de comparações, Jauss fornece um conceito
fundamental para a teoria da recepção: o horizonte
de expectativa[276].
Com este conceito, para além de se escapar a um obstáculo psicologista,
pretende‑se traduzir o facto de que a recepção contemporânea de uma dada
obra acciona um conjunto de comparações com as obras anteriores[277],
com a evolução do género em que se enquadra e ainda com a experiência de vida
do receptor, através do confronto entre a linguagem artística e a linguagem
prática e quotidiana. Desta forma, uma nova obra não constitui uma novidade
absoluta, já que funciona como evocação de uma história, criando, por isso, uma
expectativa que pode ou não ser confirmada pelo trabalho de recepção.
Além do mais, ao ter como essencial o horizonte de
expectativa fundado na experiência de vida do receptor, Jauss valoriza as suas
vivências, experiências e histórias de vida, dignificando‑o. A poética da
recepção reside na sua capacidade de abrir “os
mundos do texto”.
Aqui ancora, afinal, a função social da arte, ao intervir
no horizonte de expectativa da vida quotidiana, orientando e influenciando os
comportamentos sociais. Jauss é aliás muito claro ao rejeitar para a
experiência artística o estatuto de mero reflexo ou imitação da ordem social,
obstáculo que segundo ele está presente quer na teoria marxista, quer na teoria
formalista.
De facto, os marxistas negam a especificidade da obra
artística, ao considerarem apenas a função social da arte na sua ligação à base
material das sociedades. No entanto, existe uma descoincidência entre os modos
de produção e os fenómenos artísticos, o que indica desiguais ritmos de
produção para o plano material e o plano artístico. Desta forma, desmente‑se
o “substancialismo do económico”, o
monismo da evolução social e a pretensão de encontrar uma perfeita homologia
entre os fenómenos económicos e os fenómenos artísticos.
Por seu lado, os formalistas, ao proclamarem a
especificidade da linguagem artística tendem a fazer abstracção de todo o seu
enquadramento histórico, negligenciando os factores extra‑artísticos.
O posicionamento de Jauss é bastante explícito. Trata‑se
de compreender a relação entre arte e história, sem negar à primeira a sua
especificidade e sem a confinar a “uma
pura e simples função de reflexo”[278].
Nem a obra de arte é uma mimesis da estrutura sócio‑económica, nem o receptor
reproduz sem alteração a obra inicial. Num contexto histórico diferente, agindo
de acordo com um horizonte de expectativa que muito deve à sua trajectória
pessoal e social, diferentes questões vão sendo dadas à pergunta com que
inicialmente o autor se debateu e à qual forneceu uma resposta primeira. A
história literária (e a história dos fenómenos artísticos) consiste, afinal,
como refere Jean Starobinski[279],
numa troca de questões e de perguntas (método dialógico) que vão sucessivamente
recriando a obra inicial, ou, se preferirmos, a primeira concretização da
inquietação primordial do artista.
Vários são os estudos empíricos que demonstram a
importância do papel do receptor no estabelecimento do sentido provisório da
obra. Andrea Press[280]
refere a este propósito os trabalhos de Radway e de Long, ambos no domínio da
literatura. O primeiro destes autores refere a importância dos factores
contextuais, em particular o ambiente sócio‑histórico em que se desenrola
o trabalho de recepção. É o caso da leitura de romances por parte das mulheres
que vivem numa sociedade patriarcal. Neste contexto, a leitura, ofício recatado
por excelência, simboliza um espaço de alguma independência e de resistência
aos significados culturalmente dominantes. Long, por seu lado, refere‑se
à recepção cultural como um objecto de conflito entre as indústrias culturais,
os críticos e os consumidores. Enquanto que as produções culturais apontam para
uma realidade fragmentária, típica de sociedades “pós‑modernas”, os
leitores insistem em identificarem‑se com as personagens, acreditando na
sua verosimilhança e escapando aos critérios de classificação e de apreciação
dos críticos. Apesar dos constrangimentos exercidos pelas instâncias de difusão
e de consagração das obras culturais, os receptores apresentam‑se como
agentes críticos dispostos a entrar no conflito da atribuição de sentido.
Um outro autor referido por Andrea Press, Lichterman,
introduz o conceito de Thin Culture
(cultura “ligeira”, “superficial”) para se referir aos manuais de auto‑suporte
(“como emagrecer”, “como encontrar o grande amor”, etc.). Apesar de, à partida,
parecer inevitável a manipulação dos leitores, o certo é que persiste uma
relação ambivalente com estes produtos. Por um lado, os leitores julgam de
forma séria alguns dos conselhos. Por outro lado, têm a consciência de que são
um género menor elaborado para um consumo de massas. Além do mais, existe um
forte sincretismo na apreciação e apropriação das mensagens. Os leitores
misturam com os ensinamentos dos livros, conteúdos adquiridos noutras ocasiões
(de índole religiosa, feminista, etc.), o que confere algum sentido ao conceito
de horizonte de expectativa
anteriormente avançado.
Maria de Lourdes Lima dos Santos, por seu lado, refere o
papel dos receptores face à publicidade, tradicionalmente considerada pelos
críticos da cultura de massas como a esfera por excelência da alienação,
considerando que estes “não deixam de
denunciar a falsificação das condições de vida quotidiana que aquela opera, não
deixam de exprimir a sua saturação com as redundâncias e repetições, não deixam
de reafirmar o seu aborrecimento com a manipulação de que são alvo”[281].
Se entretanto pensarmos na crescente diversificação e
complexidade dos papéis sociais e nas teses de Paul DiMaggio[282]
sobre a incongruência relativa entre as esferas social, cultural e económica,
mais facilmente compreenderemos os subtis processos de negociação de sentido e
de resistências localizadas aos significados culturalmente dominantes. Haverá
uma crescente tendência, a acreditar nessas teses, para uma complexificação do
próprio horizonte de expectativa,
ligado à diversidade de repertórios, o que não só indica processos de recepção
tendencialmente sinergéticos e permeáveis a múltiplas combinações de
referências, como um esbarramento do sentimento de unidade e coerência dos
mapas culturais.
No entanto, o paradigma da recepção cultural não tem sido
isento de críticas. Eco, que há pouco mencionámos, considera que o centramento
no receptor acaba por ser redutor na medida em que esquece a intenção do autor
e, por vezes, do próprio texto. Com efeito, a compreensão do “autor empírico” pode ser, em certas
ocasiões (especialmente no caso do autor estar vivo), um instrumento útil de
eliminação de sobreinterpretações
(interpretações “inverosímeis,
improváveis ou até impossíveis”) que, em casos limite, se podem tornar “paranóides”[283].
A recusa de interpretações arbitrárias (tão visíveis na deriva de algum
ensaísmo «pós‑moderno») exige um determinado controlo por parte da “comunidade interpretativa”: “tentei demonstrar que a noção de semiose
ilimitada não desemboca na conclusão de que a interpretação não tem critérios.
Dizer que a interpretação (como aspecto fundamental da semiose) é
potencialmente ilimitada não significa que a interpretação não tenha objecto e
que corra à imagem de um rio apenas por sua própria conta. Dizer que um texto
não tem potencialmente fim não significa que todo e qualquer acto de
interpretação possa ter um final feliz”[284].
Caso contrário, insiste, “como
maliciosamente sugeriu Todorov (...), um texto é simplesmente um piquenique
para o qual o autor leva as palavras e os leitores levam o sentido”[285].
Daí a proposta para que se considerem, em interacção, três tipos de
intencionalidade: a do autor, a do leitor e a do texto (“o texto está aí e produz os seus próprios efeitos”[286]),
sem esquecer o “tesouro social” em
que estão envoltos[287].
Na mesma linha, Fernando Cascais, ao comentar Jauss, reforça a ideia da
interacção presente na tríade autor/obra/público enquanto diálogo permanente,
jogo de perguntas e respostas entre a produção e a recepção. No pólo oposto,
Richard Rorty, na defesa do seu pragmatismo, contesta a ideia de haver um
propósito no texto, destituído que é de natureza: “Não há pedaço de conhecimento que nos diga seja o que for sobre a
natureza dos textos ou sobre a natureza da leitura. Porque nem uma coisa nem
outra têm natureza”[288].
Existe, simplesmente, um uso das matérias textuais em função dos estímulos e
interesses circunstanciais dos receptores: “A
leitura de textos é uma questão de os lermos à luz de outros textos, pessoas,
obsessões, fragmentos de informação, ou seja o que for de que dispusermos, para
vermos o que acontece a seguir. O que acontece pode ser algo tão insólito e
idiossincrático que não vale a pena preocuparmo‑nos com isso”[289].
Mas o mais paradoxal é que Rorty preocupa‑se
com isso, a ponto de nos propor uma taxinomia dicotómica a propósito dos
tipos de leitura: uma oposição entre as leituras
metódicas e as leituras inspiradas.
As primeiras, para utilizarmos uma linguagem cara a Jauss, em nada modificam o
horizonte de expectativa do receptor, quedando‑se pelo teoricismo e por
uma ausência de “apetite de poesia”
(nota‑se aqui o anti‑intelectualismo feroz de Rorty). As segundas,
pelo contrário, arrebatam o receptor, redefinindo mesmo “as suas prioridades e propósitos”[290].
Outros autores criticam em Jauss uma certa inclinação
positivista, já que a procura de objectivação do horizonte de expectativa acaba
por exigir uma posição neutra a partir da qual se opera essa objectivação.
Desta forma, verifica‑se uma suspensão da posição histórica do observador
que tende a determinar de forma etnocêntrica o conceito de horizonte de
expectativa. Assim, se é verdade que, na actualidade, a valorização da novidade
surge como valor dominante (impondo‑se, por isso, uma distância entre a
obra e o horizonte de expectativa do receptor[291])
nem sempre tal aconteceu. Holub considera que a ânsia do novo ancora no
contexto histórico contemporâneo em que a revolucionarização da produção (própria
das economias de mercado desenvolvidas) arrasta a subversão permanente das
formas. Além do mais, ao encontrar o sentido último da obra no receptor, Jauss
acaba por conferir‑lhe uma “arbitrariedade
interpretativa”[292],
crítica que retoma a apreensão de U. Eco. Ao lidar com um modelo de receptor
abstracto, fora do tempo e do espaço, desterritorializado e inserido numa
situação de “idealidade comunicativa”,
Jauss, apesar de preocupado em ligar recepção cultural e história, acaba por
negar aos comunicantes o papel de “actores
históricos que incarnam de um lado o pólo do poder e do actual, do outro lado o
pólo da discussão crítica e do potencial”[293].
De facto, perante a mesma obra, dois receptores diferentes, mesmo que possuam
um horizonte de expectativa semelhante, são capazes de fornecer respostas
distintas, contraditórias e até mesmo conflituais. Jauss, no entanto, pretende
lidar com um receptor‑modelo, crítico e implicado, capaz de colocar em
causa o seu universo simbólico mediante o confronto com a novidade inquietante
da obra.
Outros autores ainda, como Derrida ou Bakthine, condenam
à impossibilidade qualquer tentativa de fixar um sentido que escapa ao próprio
texto. De acordo com o primeiro, defensor do paradigma da intertextualidade,
não existe “hors‑texte”; o que
se verifica é o cruzamento de vários textos de proveniências e temporalidades
distintas. Para o último, o sentido não é topologizável, já que percorre toda a
cadeia significante, tornando‑a opaca. O sentido ocorre, a obra acontece
e, muitas, vezes, de tão incomunicante (Adorno levou ao extremo esta posição,
ao afirmar que “a arte só é íntegra
quando não entra no jogo da comunicação”[294])
fecha‑se à análise. Claro que, se levarmos em conta esta perspectiva,
naufragamos na tentativa de estudar a recepção cultural e artística como
objecto sociológico. Encerrar a produção de sentido no interior das obras é um
considerável recuo face à possibilidade, aberta por Jauss, de estudar os seus
usos e modos de apropriação, mesmo sabendo que constituem apenas uma face da
moeda. Não negamos, contudo, a liberdade do criador, nem pretendemos sujeitá‑lo
à pressão de um público sociologicamente predeterminado. Concordamos
parcialmente com Eduardo Prado Coelho quando afirma que “a cultura, no sentido de criação artística e literária, não pode ter
como obrigação dirigir‑se a interlocutores explícitos. A cultura dirigi‑se
sempre a uma espécie de destinatário longínquo, a um Outro (...) A socialização
cultural e a formação pessoal fazem‑se, cada vez mais, tanto no ensino
como na indústria cultural, onde se criam instrumentos de acesso a essa
cultura. Não é ao filósofo, não é ao poeta, que cabe fazer uma linguagem mais
próxima, eles fazem a linguagem que lhes é possível dentro do rigor do seu
projecto e esse rigor é intocável”[295].
Compreende‑se a posição de Prado Coelho quando tende a proliferar uma
cultura de audiências, submetida à pressão do lucro e à lógica do maior número.
Não faltam, inclusivamente, exemplos de políticas culturais públicas que
utilizam como critério fundamental de valorização das obras a quantidade de
público atingido. Mas será possível condenar um criador quando este,
conscientemente, pretende entrar em diálogo com um público, virtual ou
concreto? Voltaremos a esta questão mais adiante.
Impõe‑se, ainda, uma breve reflexão sobre os
processos comunicativos. De facto, a recepção ou descodificação das mensagens
está longe de ser uma operação isenta de complexidade. Para além da percepção
da mensagem, através de mecanismos de reconhecimento de “grupos de sons organizados pelo emissor”[296],
existe um processo de atribuição de sentido, que implica “selecção, organização e interpretação dos sinais fornecidos”[297].
Este fenómeno, apesar de se verificar através dos mecanismos da consciência
prática, salienta o carácter activo e construtivo da recepção. Esta categoriza
e rotula os sinais recebidos, classificando‑os. Os fenómenos da atenção e
da desatenção selectiva são disso um exemplo.
Por outro lado, é incorrecto pensar‑se que este
processo depende apenas das características individuais do receptor. Com
efeito, se é verdade que duas pessoas interpretam diferentemente a mesma
mensagem, não é de supor que tal derive apenas de aspectos meramente
psicológicos. Os processos de atribuição são, indubitavelmente, de cariz sócio‑cultural.
Os quadros de referência dos agentes (algo de semelhante ao conceito de horizonte de expectativa) funcionam como
filtros descodificadores. Se nem todos os sinais registados sensorialmente são
objecto de uma atribuição de sentido tal deve‑se, entre outros factores,
ao posicionamento social do agente, aos seus cálculos, às suas estratégias, ao
seu jogo de interesses, aos seus posicionamentos nas várias instituições ou
campos, etc.
Da mesma forma, a decifração da mensagem não pode ser
desligada das situações de interacção social. Nestas, ego actua como um ser em relação, fornecendo constantemente sinais
da sua descodificação, frequentemente de índole não‑verbal, de forma a
orientar a prestação de alter. No
entanto, a perspectiva do outro não é independente dos seus atributos sociais
(classe, sexo, etnia, idade...). A recepção de uma mensagem implica uma
avaliação das características sociais do emissor, bem como do próprio contexto
em que aquela se processa. O receptor usa estrategicamente as suas capacidades
decifratórias. Os próprios processos da atenção/desatenção selectiva podem ser
relacionados com o uso do poder: poder de não querer entender, de resistir à
intenção do outro, de não ouvir ou de ouvir de mais, de escolher os
significados mais conformes com uma determinada posição social[298],
etc. Os usos da linguagem não são, por isso, axiologicamente neutros: “A linguagem, enquanto tal, reflecte mais ou
menos claramente a estrutura sociopolítica de poder numa dada sociedade e toma
inevitavelmente um ponto de vista, isto é: toma posição”[299].
A recriação da mensagem, enquanto trabalho de reestruturação levado a cabo
tanto pelo emissor (que não pode ser considerado um mero retransmissor
passivo), como pelo receptor, constituem recursos que, apesar de desigualmente
transmitidos pelo espaço social e sancionados por instâncias de consagração dos
significados legítimos (e da respectiva estruturação da realidade), formam um
espaço de autonomia mínimo que todos os agentes possuem. A capacidade de tirar
partido comunicacional de uma situação de interacção, os usos quotidianos da
linguagem, a sua reformulação de acordo com os contextos, a não utilização
intencional de certas palavras ou a insistente referência de outras, o poder de
criação de novos vocábulos, constituem possibilidades mínimas de
actualização/construção da ordem social; muitas vezes as únicas. Negá‑lo,
implicaria reduzir a linguagem a uma utilização descolorida, monótona e
monolítica.
Finalmente, importa considerar a importância dos
mecanismos micro‑sociológicos na actividade receptiva. De facto, as
interacções intra e intergrupais constituem factores de estímulo que conduzem
igualmente a uma certa selectividade ou orientação no deciframento da mensagem
cultural. O falar‑se sobre um determinado acontecimento, por exemplo à
saída de um cinema ou de um teatro, propicia uma reconfiguração da atitude em
relação a esse evento, já que esta não é imutável, estando sujeita aos
mecanismos de influência que constantemente a rectificam. De referir que estes
fenómenos atingem uma dimensão de maior notoriedade quando existe uma
distribuição desigual de autoridade e de competência entre os membros do grupo
ou “comunidade interpretativa”. É o caso frequentemente referido dos críticos e
de todos aqueles que se assumem e são reconhecidos como especialistas em
determinado género cultural.
2. A
resistência cultural e as classes populares.
Referimos anteriormente a necessidade de não analisarmos
as práticas culturais apenas por referência aos critérios da cultura
sobrelegitimada, procedimento que confinaria as restantes formas de expressão
em autênticos territórios residuais definidos pelo critério da negatividade.
Tal é o pressuposto das velhas concepções de que a cultura popular, por
definição, é a cultura dos não‑instruídos, dos não‑cultivados, etc.
Augusto Santos Silva defende a pertinência do conceito de
cultura popular como “o que, para cada
grupo e para cada momento histórico, se configura como cultura popular”[300].
Desta forma, recusam‑se visões essencialistas e reconhece‑se a
existência de racionalidades, símbolos e modos de expressão específicos que
requerem uma análise tão sofisticada quanto a da cultura erudita e
sobrelegitimada: “a «cultura do pobre»
não é necessariamente uma cultura pobre” e a “análise cultural que define como objecto as condutas populares não é
menos exigente — e, decerto, menos dignado que a história da filosofia ou a
sociologia do romance”[301].
Na mesma linha, Michel de Certeau não só toma como
objecto de análise as práticas silenciosas e invisíveis dos desprivilegiados (“a maioria silenciosa”), como os elege à
categoria de heróis (ou anti‑heróis) anónimos. A sua crítica ao
colonialismo contemporâneo, dominação das explicações sobre as condutas humanas
por uma “cultura de mestres, de
professores e de letrados”[302],
leva‑o a enfatizar, porventura prescindindo de uma visão relacional, as
artes do fraco, aquele que se crê ser inerte, mas que surpreende pela agilidade
e rapidez de movimentos.
Certeau chega mesmo a considerar que as práticas
culturais dos dominados são uma forma camuflada de expressão e de produção
cultural, operando uma distinção entre a “produção
racionalizada, expansionista e centralizada, ruidosa e espectacular” e a
produção insinuante, traduzida por “maneiras
de fazer” ou “artes” de utilização
dos produtos da ordem hegemónica, próprias de um “pensamento que não se pensa”[303]
mas que aproveita em seu favor os espaços‑tempos não controlados pelas
instâncias do poder. Ao contrário dos dominantes, cuja margem de manobra
permite a formulação de “estratégias”[304],
os dominados, senhores de um não‑lugar, utilizam as tácticas, domínio do
tempo, para criarem “ocasiões” que
resultam de um aproveitamento em seu favor dos estreitos espaços deixados
livres pela ordem hegemónica. A “arte do
fraco” reside, assim, numa habilidade que consiste em combinar diversos
elementos de um espaço estranho, reapropriando‑os à sua medida. O
trabalho receptivo, traduz‑se pela arte de manipular o manipulador,
utilizando em seu favor o que é imposto. O “praticante”
define‑se, por isso, mais pela acção, do que pelo discurso, mais pela
fala, do que pela língua, mais pelos usos, do que pelos capitais. A ausência de
poder, a ausência de um lugar de onde se fala, não impede a actuação
circunstancial e casuística, “ocasião” ou
golpe de asa, movimento do fraco. Não é de admirar, por isso, que Certeau
critique a circularidade e a imobilidade das propostas de Bourdieu, a
utilização do conceito de habitus
como um “fetiche” e um “dogma”, bem como o encarceramento das
práticas na matriz do inconsciente.
Resta saber, no entanto, quais as reais possibilidades de
transformação da ordem social pelas “tácticas”.
De facto, ao surgirem como instrumentos dos fracos, aqueles que não têm nem
lugar nem poder (e é curioso verificar que também Certeau resvala para uma
abordagem das culturas populares pela negativa...), serão as tácticas
suficientes para a mudança das “regras do jogo”, um jogo que não os reconhece
como jogadores? Não estaremos em presença de uma mera gestão do quotidiano, uma
arte da sobrevivência sem consequências na distribuição do poder? Por outro
lado, e na medida em que a arte do fraco é um conjunto de actos (de ler, de
falar, de fazer) não transponíveis para a condição de “obra” e, por isso,
efémeros, não morrerá o seu efeito no mesmo instante da sua comunicação?
Questões que só a pesquisa empírica poderá elucidar.
Todavia, permanece de inigualável importância para a
análise das práticas culturais contemporâneas, o elogio da pluralidade de uma
cultura multiforme proferido por Certeau, ao mesmo tempo que mantém toda a
actualidade e pertinência a sua crítica às camisas de força teóricas que
pretendem unificar o que é múltiplo e que na multiplicidade encontra a sua
força.
3.
Diferentes tipos de recepção cultural e o papel da animação sócio‑cultural.
Ao partirmos da hipótese de que existem diferentes níveis
de recepção cultural, queremos de algum modo contribuir para a desmistificação
de uma certa “ilusão da homogeneidade” que, por vezes, lhe está subjacente.
Não só o volume e a estrutura dos diferentes capitais
condicionam, através da ocupação que se ocupa num determinado campo, a
percepção e a apropriação dos produtos culturais, como o próprio contexto
histórico e cultural mais lato, ou ainda o contexto propriamente físico do acto
receptivo exercem constrangimentos não negligenciáveis.
Os interesses em jogo numa determinada situação social,
bem como o espaço de possíveis disponível, influenciam decisivamente
o carácter mais ou menos
activo e elaborado da recepção. Por outras palavras, defendemos, ao contrário
de Certeau, que nem todo o acto receptivo conduz necessariamente a um trabalho
de produção, ainda que secundária e dissimulada.
Se, nalguns casos, o trabalho reinterpretativo do agente
social funciona como elo de ligação a práticas culturais de cariz expressivo e
participativo, noutros funciona a apatia e o grau zero do agir comunicacional.
Nestas situações, mesmo partindo do pressuposto de que houve uma apropriação
reinterpretativa da obra ou mensagem cultural, tal não se revela suficiente
para uma afirmação autónoma no jogo social. O mesmo se passa quando a abissal
descoincidência de códigos entre produtores e receptores provoca nestes últimos
sentimentos de vergonha e retracção cultural.
Um dos aspectos decisivos é, sem dúvida, a capacidade de
explicitação e de consciencialização dos interesses em conflito e das
respectivas posições. Públicos atomizados, sem uma nítida consciência dos
recursos e constrangimentos estruturais e conjunturais existentes, dificilmente
utilizam a recepção cultural para criar “ocasiões” e fazer reverter em seu
favor as mensagens em questão. De facto, a proposta teórica de Certeau peca,
também ela, pela seu elevado grau de generalização e pela sua incapacidade em
descortinar situações diversas entre as camadas desfavorecidas[305].
Por outras palavras, nem todos os fracos possuem o privilégio de fazer da sua
fraqueza uma arte. Idalina Conde escreveu, a esse respeito, um relevante artigo
sobre os (des)encontros entre artistas e “público leigo” nas bienais de Vila
Nova de Cerveira[306].
Marcadas pela arte de vanguarda, num ambiente inicial onde tudo era permitido
aos artistas[307]
(dada a implícita legitimação inerente à necessidade de inventar uma imagem de
cultura associada à localidade), o “descer à rua” e o contacto com a população
não iniciada nos códigos artísticos mais recentes, originou uma série de
equívocos e ambivalências. Desde logo, porque a obra de vanguarda, usufruindo
da autonomia do campo artístico, desliga‑se da representação do
quotidiano (naturalismo, realismo) para se afirmar enquanto signo polémico,
insólito, descontextualizado, formalmente depurado, ilegível, incomunicante no
limite. Daqui resultam desencontros vários, assentes na impossibilidade de
descodificação devido à ausência de incorporação, por parte dos receptores
“leigos”, de uma competência ou de um conjunto de códigos. No entanto, tal
fenómeno desdobra‑se por uma variedade de reacções, que vão desde o
iconoclasmo não assumido (destruição anónima de instalações artísticas), até à
vergonha cultural, passando pela “auto‑exclusão
assumida”[308],
a reverência face aos artistas, a indiferença, a incomodidade ou a revolta.
Um outro factor que contribui para a diversidade dos
estados receptivos é a própria estrutura da oferta cultural. De facto, e como
refere Diana Crane[309],
a percepção que os media têm a propósito das suas audiências, influencia
decisivamente a construção das mensagens e as características dos produtos a
transmitir. Apesar de difundirem uma grande variedade de visões do mundo e de
ideologias, algumas das quais inconsistentes e mutuamente contraditórias, de
modo a agradar a todos, existe a tendência para a transmissão de mensagens
estereotipadas para as grandes e heterogéneas audiências. Pelo contrário, no
que se refere às audiências minoritárias e mais homogéneas é já possível fazer
passar mensagens e produtos de cariz esotérico e heterodoxo, visto que essas
subculturas funcionam como uma espécie de “comunidades interpretativas”.
Trata‑se, uma vez mais, da questão da
familiarização com determinadas códigos, através das várias formas que o
capital cultural pode assumir[310].
Os próprios mecanismos de percepção indicam que a aprendizagem precoce e a
familiarização com certos estímulos favorecem o reconhecimento de imagens e de
objectos, tido pelos agentes como natural, mas sendo de facto fruto de um longo
e paulatino processo de aquisição[311].
Tal é o caso de um contacto precoce com manifestações de capital objectivado,
convertível a prazo em capital incorporado e capital institucionalizado.
Hans Robert Jauss parece esquecer‑se deste factor
de primordial importância. Ao avançar com a noção de “desvio estético” como a “distância
entre o horizonte de expectativa preexistente e a nova obra, cuja recepção pode
provocar uma «mudança de horizonte»[312],
Jauss estabelece uma distinção entre a “verdadeira” arte e a “arte culinária”. Só a primeira opera
uma “mudança de horizonte” e faz
surgir novas experiências estéticas. A segunda, pelo contrário, corresponde
inteiramente ao horizonte de expectativa
de um público, confirmando as expectativas e satisfazendo aspirações já
familiarizadas com os seus códigos, assumindo, por isso, o carácter de “simples divertimento”: “(...) preenche perfeitamente a expectativa
suscitada pelas orientações do gosto dominante, satisfaz o desejo de ver o belo
reproduzido sob formas familiares, confirma a sensibilidade nos seus hábitos,
sanciona os desejos do público, serve‑lhe o «sensacional» sob a forma de
experiências estranhas à vida quotidiana, convenientemente preparadas ou então
levanta problemas morais — mas apenas para os «resolver» no sentido mais
edificante, como tantas outras questões cuja resposta é previamente conhecida”[313].
Desta forma, o sucesso de uma obra não pode ser aferido de critérios
aparentemente objectivos, como o sucesso comercial ou o bom acolhimento pela
crítica, necessitando de ser enquadrada numa determinada duração temporal, de
forma a testar o carácter duradouro dos seus efeitos.
Com esta distinção, Jauss retoma a antinomia entre o
modelo reconfortante/conformado da
cultura de massas e o modelo inquietante
da «verdadeira arte»[314].
Maria de Lourdes Lima dos Santos critica esta polaridade e refere uma vez mais
a tendência para a “diversificação da
oferta cultural e a permeabilidade entre os diferentes sectores culturais”[315].
Na mesma linha, Eco retoma a defesa da “paridade
em dignidade” dos vários níveis culturais[316].
Trata‑se, como refere Eco, de uma “acção
político‑social que permita não só ao habitual fruidor de Pound recorrer
ao romance policial, mas também ao habitual fruidor de romance policial dispor
de uma fruição cultural mais complexa”[317].
De facto, para lá do carácter implicitamente elitista das
suas propostas, Jauss esquece, já o dissemos, que uma recepção competente é
indissociável de um público minimamente familiarizado com os conteúdos e formas
das mensagens em questão, implicando, para os não iniciados, um árduo trabalho
de aprendizagem e interiorização de códigos estranhos[318].
Em Jauss, aliás, não se vislumbram preocupações sobre o alargamento dos
públicos. A arte “inquietante” apenas capta uma minoria de convertidos a priori.
Além do mais, este
autor parece fazer uma apologia das obras fora do espaço e do tempo, ou, pelo
menos, deste espaço e deste tempo, dilatando o prazo do juízo
final da obra, no que facilmente pode ser interpretado como uma tentativa de
legitimação de todos aqueles artistas, geralmente associados a movimentos de
vanguarda, que não encontram, nem nada fazem para encontrar o seu público (uma
opção legítima), ganhando a posteridade num tempo vindouro, em que uma
audiência convenientemente preparada faz, a título póstumo, o elogio do autor.
De facto, a complexidade da mensagem cultural é também
importante condicionador da recepção. Jacques Leenhardt define‑a como a
distância que a obra apresenta face a um código comum, constituído “a partir da realidade quotidiana da
linguagem ou da figuração”[319].
Quanto maior for a distância em relação às normas e modos de vida quotidianos
(como expressivamente aconteceu a partir da ruptura modernista), maior o
esforço intelectual de abstracção que os públicos têm de fazer. Por outro lado,
quanto mais essa distância diminui, mais aumenta a fruição receptiva de tipo
imediato, espontâneo e emocional[320].
Wolfgang Welsch refere mesmo a existência de duas dimensões no domínio do
sensível, esfera por definição do estético: a dimensão cognitiva, ligada à
percepção e a dimensão emocional, ligada à sensação enquanto avaliação do
material captado pelo sentidos “numa
escala entre o desejo e a aversão”[321].
Esta última é o domínio por excelência do gosto e, por isso mesmo, condicionada
sócio‑culturalmente.
Pierre Bourdieu distingue igualmente entre “duas formas extremas e opostas do prazer
estético, separadas por todas as gradações intermediárias”[322]:
a fruição e o deleite. A primeira, liga‑se a uma percepção sensorial que
aplica a um sistema de códigos desconhecido os esquemas de interpretação tidos
como familiares. É uma percepção não instruída e de tipo imediato e emocional.
A segunda, é apanágio dos instruídos e de todos aqueles que apropriam adequadamente as obras culturais. Uma
vez mais se constata o reflexo legitimista, fortemente criticado por Anne‑Marie
Gourdon, quando se opõe à ideia de uma hierarquização da percepção por níveis[323].
Esta, longe de implicar uma medida (“Parece‑nos
difícil medir a diversidade imaginativa dos espectadores”[324])
interpela‑nos para a ligação aos universos simbólicos dos grupos sociais.
De qualquer forma, depreende‑se que as diferenças
sociais, longe de serem despiciendas, estabelecem, como refere Robert Francès, “variações de desenvolvimento perceptivo que
dizem respeito quer a aquisições cognitivas, quer ao exercício de aptidões
perceptivas”[325].
A persistência destas dicotomias associa‑se, muitas
vezes, ao falhanço de certas iniciativas da animação sócio‑cultural que
pretendem impor a “boa maneira” de receber e interpretar as obras, sujeitando a
experiência estética a “choques culturais” que apenas contribuem para aumentar
ainda mais o sentimento de frustração de certas camadas sociais[326].
Assim, estratégias de intervenção cultural direccionadas
para o alargamento dos públicos não podem deixar de jogar, simultaneamente, com
estes dois níveis da recepção cultural, sendo que, muitas vezes, resultará mais
profícuo começar pelos estratos sensíveis e espontâneos da percepção, ligados
preferencialmente a uma sensualidade difusa e não tanto à construção do gosto,
operação que requer uma matriz avaliativa forjada pelos processos de
socialização.
Nathalie Heinich refere‑se mesmo à necessidade de
ultrapassarmos um certo logocentrismo patente nos estudos sobre percepção
estética[327].
De facto, ao considerarmos os actos e as palavras resultantes do contacto com o
estético, privilegiamos os indicadores mais visíveis através dos quais se
exprimem os gostos: as opiniões e as atitudes. No entanto, ao leigo interessa
mais a sensação do que as manifestações discursivas, mais a emoção do que a
racionalidade formal que reconstitui o sentido explícito da obra.
Anne Ubersfeld constata a existência de um indizível,
algo “de secreto pelo qual cada um dos
espectadores escapa aos determinismos do seu grupo social”[328].
No entanto, também este raciocínio não é isento de equívocos. De facto, importa
reiterar o princípio de que a própria “sensibilidade”, subjacente a uma
“percepção espontânea” (que, na realidade, nunca é imaculada ou isenta de
pressupostos), pode ser formada e adquirida, sem ter necessariamente de se
sujeitar a arbitrários culturais que, muitas vezes, e de forma dissimulada, um
certo conceito de animação sócio‑cultural impõe. Afirmar o contrário
consistiria numa apologia do dom daqueles poucos, bafejados pela sorte que,
como que por magia, atingem o nirvana do prazer estético.
José Madureira Pinto, apesar de não renunciar à
objectivação das práticas de “recepção/fruição/recriação”
estética, descobrindo regularidades que as remetem para objecto de estudo
sociológico, não rejeita, em jeito de confissão, que “a suspensão dos instrumentos de objectivação possa ser condição de
salvaguarda das margens de prazer que, apesar de tudo, sempre vão percorrendo a
experiência prática do mundo”[329].
Outra forma de dizer que nem tudo, felizmente, cabe no campo de análise
sociológica. Não há ciências totais.
Podemos afirmar, em síntese, que os efeitos das
iniciativas de animação sócio‑cultural estão longe de ser unívocos,
gerando, muitas vezes, consequências imprevistas e perversas. É que, quando se
considera o “choque cultural” como o processo de emancipação por excelência de
públicos desprovidos de um contacto regular e familiar com certas formas de
expressão cultural, corre‑se o risco de aumentar ainda mais as velhas
distâncias e fronteiras. Somente os processos de aprendizagem/familiarização,
relativamente paulatinos mas capazes de subverter lógicas de fatalismo social,
permitem ver mais e melhor, devendo respeitar, no entanto, as idiossincrasias e
singularidades sociais e pessoais, isto é, a liberdade interpretativa dos
públicos.
Por outro lado,
impõe‑se, simultaneamente, como anteriormente referimos, defender a
autonomia da arte e dos seus códigos estéticos, mesmo os mais complexos.
Todavia, se não podemos exigir aos criadores que as suas obras desçam à rua, de
igual maneira resulta contraproducente obrigar os públicos a um “choque
cultural” de efeitos imprevisíveis.
Da mesma forma,
não nos surge como defensável a ideia de uma inocência do criador quanto ao seu
público potencial. Não concordamos, por isso, com Eduardo Prado Coelho quando
afirma que o “que caracteriza qualquer
obra de arte é desejar ter um destinatário que não sabe qual é — é essa a sua dimensão utópica (...) um
poema, uma sinfonia, um quadro, um filme, um romance, que se dirigem a um
público determinado e calculado à partida não são nem um poema, nem uma
sinfonia, nem um quadro, nem um filme, nem um romance (...) São, quando muito,
salchichas em forma de poema, de sinfonia, de quadro, de romance”[330].
Presumir esta ingenuidade primitiva por parte dos criadores equivale a ignorar
a sua existência como actores sociais, enquadrados num campo, portadores de um know‑how sobre o social e
relativamente conscientes sobre o grau de distância da sua linguagem face a um
certo mínimo denominador comum. Os próprios trabalhos das ciências sociais, e
em particular da sociologia, sobre práticas culturais, os seus níveis e
hierarquias, bem como sobre as atitudes receptivas dos públicos fornecem um feed back que permite um acréscimo de
reflexividade e de objectivação sobre essas questões. Qualquer obra, pela sua
estrutura linguística e semiótica, abre e fecha possibilidades de recepção. O criador
habita neste mundo e sabe‑o. Sem que tal implique uma submissão a
critérios comerciais ou ao cálculo cínico de rentabilidade das suas obras.
Não nos parece, igualmente, que certas obras, apenas por
fazerem da interacção com um público predefinido a sua pedra de toque, devam
ser rapidamente relegadas ao estatuto de não‑arte. Pedagogia,
intervenção, comprometimento sócio‑político não são a antítese da arte, a
menos que dela se tenha uma definição essencialista, essa sim, limitadora,
embora a contrario da margem de
liberdade do criador.
Finalmente, importa denunciar uma frequente concepção escolar de animação cultural. De facto,
o alargamento do acesso às obras não se faz, exclusivamente (embora também
passe por aí), pela mera aprendizagem de um conjunto de regras e cânones,
elucidativos da maneira “correcta” de as ler. Exige-se, como salienta Adriano
Duarte Rodrigues, a integração dessa aprendizagem numa “totalidade de sentido”. Assim, uma “recepção competente” é aquela
que permite (e retenha‑se a similitude com o pensamento e a semântica de
Jauss) um alargamento do “horizonte do
mundo onde a obra se situa”, isto é, “ao
cabo de uma aplicação rigorosa das formas e de uma exercitação fiel das regras (o
receptor) acaba por adquirir uma tal
familiaridade com o seu mundo próprio que sabe tirar partido das suas margens e
jogar assim adequadamente com as excepções (...) É por isso que a experiência é
fundadora de evidências, abole a estranheza perante a obra original,
naturalizando‑a”[331].
No entanto, convém não o esquecer, esta “naturalização”, este “jogo livre”,
pode funcionar como uma amnésia da génese e do processo de familiarização com a
cultura, uma denegação do social, para utilizarmos uma expressão cara a
Bourdieu, tantas vezes apresentada carismaticamente como dom ou vocação e
sobriamente atenta aos indícios de uma familiarização plebeia que se trai no
excessivo apego às convenções.
De qualquer forma,
este apelo à experiência como síntese de um “sentido
global” (ao contrário da experimentação, tida como analítica, conjunto de “processos de aplicação das formas e das
regras”[332])
constitui um potencial de dignificação do percurso sócio‑histórico do
receptor, enquanto legitimação do seu habitus
e do seu horizonte de expectativa.
Sem deixar de promover o alargamento do conceito de “mundo” enquanto “horizonte
de existência”, realidade intersubjectiva, “conjunto de referências abertas por toda a espécie de texto”[333].
Enfim, um dos possíveis e fecundos caminhos da animação sócio‑cultural.
4. Os
contextos da recepção.
Nunca é de mais insistir na importância dos contextos
físicos em que decorre a situação de recepção. O teatro fornece‑nos a
esse respeito excelentes exemplos. De facto, é consideravelmente diferente
assistir a um espectáculo teatral na grandiosidade de uma sala à italiana, numa
garagem reconvertida ou ainda, como mais recentemente se pratica, num espaço
transformável de acordo com as características do espectáculo[334].
Factores como este influenciam o grau de
ritualidade com que se frequenta um espectáculo, as modalidades de apresentação
individual e a relação actor/espectador e espectador/espectador.
Com efeito, um actor social oriundo das camadas populares
sentir‑se‑á muito mais desinibido quando um espectáculo se aproxima
das características da festa, num espaço que pode ser considerado como o
prolongamento da casa ou da rua e onde não se exigem posturas rígidas e
estilizadas. Pelo contrário, poderá sucumbir perante o peso de um grande
edifício de espectáculos, habitualmente frequentado pela elite local, em clara
ruptura com o espaço público da urbe e particularmente exigente quanto aos
critérios de desempenho corporal tidos como legítimos. No entanto, o efeito
simbólico de certos lugares da cultura, a sua moldura institucional, como refere Idalina Conde[335],
exercem um efeito de atracção que se exerce para além dos mais familiarizados
com os espaços cultivados, chamando aqueles que se pautam mais “pela lógica do reconhecimento do que pela
do conhecimento”[336].
Do mesmo modo, uma grande distância entre os bastidores
de um espectáculo e as fachadas (para utilizarmos uma linguagem cara a Goffman)
propiciará um certo efeito de mistificação do acto criador, aumentando, por
conseguinte, a distância face ao público.
Não pretendemos, que isso fique claro, atribuir às
estruturas espaciais um poder causal per
se. Do mesmo modo, os determinismos estritamente sociais, no seu sentido
mais lato, revelam‑se incapazes de abordar a multidimensionalidade e a
complexidade das actividades humanas localizadas em determinados segmentos de
espaço‑tempo. Como tivemos ocasião de realçar, no âmbito de uma
investigação sobre práticas culturais estudantis em contexto urbano[337],
o peso específico de cada componente deve ser analisado mediante uma
investigação empírica sobre fenómenos concretos, única forma, afinal, de
compreender a especificidade dos quadros espaciais. A grande virtuosidade
heurística da análise dos contextos físicos em que ocorre a actividade
receptiva prende‑se com o argumento de Giddens de que os cenários de
interacção se ligam de forma intensa aos factores mais institucionalizados e
sedimentados da ordem social. Esta actualiza‑se nas interacções
recorrentes e quotidianas que apenas podem ser reconstituídas por referência a
um dado contexto. Cultura e comunicação ligam‑se, indissociavelmente,
através das “rotinas reflexivas da
monitoragem prática”[338]
que, longe de se processarem in vacuo,
implicam uma cena ou cenário e um conjunto de participantes motivados por um
objectivo[339].
Assim, tanto os estilos comunicativos como os significados requerem uma
integração no contexto em que se produzem e difundem: “o contexto determina a escolha de uma dada palavra precisando‑lhe
o sentido, isto é, a direcção que o interlocutor tem de seguir para compreender
— e, portanto «atrai» um dos significados, optando por aquele que mais
corresponde às exigências do momento”[340].
Desta forma, talvez se compreenda e precise melhor a
proposta de Certeau. Com efeito, a arte do fraco consiste numa habilidosa
utilização dos contextos ou das situações interaccionais — uma pragmática. Estas fornecem‑lhe um
território momentâneo que compensa a falta de um lugar próprio de onde se fala.
A apropriação espácio‑temporal do contexto da comunicação apela a uma
série de recursos que estão longe de se confinar ao contexto verbal ou
linguístico. De facto, a gestão dos contactos e das performances/posturas corporais, da gestualidade, da distância
interpessoal e da orientação[341]
possibilitam apreensões e usos alternativos da ordem social.
Os cenógrafos entendem adequadamente a importância dos
contextos físicos quando utilizam a disposição espacial não como
constrangimento, mas como apelo à participação no espectáculo: “todo o encenador, e Eisenstein compreendeu‑o
bem, coloca em cena o espectador”[342].
No entanto, mesmo estes recursos são limitados. As
possibilidades de (re)estruturação da realidade social, das suas distâncias e
hierarquias, através dos processos interactivos, encontram fortes barreiras na
distribuição, prévia à situação de interacção, de papéis e de expectativas
socialmente distribuídos. A estrutura social manifesta‑se, precisamente,
nas mais ínfimas características dos encontros sociais: as posturas, as
distâncias, a ordem por que se fala, a capacidade de interromper, os temas da
conversação, o próprio volume de emissão verbal exteriorizam pesadas
hierarquias. A situação de interacção social não é, por conseguinte, um mundo à
parte.
A recepção cultural, em suma, faz‑se sempre — nunca
é de mais dizê‑lo — a partir de um tempo e de um lugar no mundo social.
5. O estético
no quotidiano e a dupla função da moda.
Finalmente, uma análise à recepção cultural ficaria
incompleta sem uma referência às suas traduções multiformes nos espaços‑tempos
quotidianos.
Com efeito, assiste‑se hoje a um amplo movimento de
inflação e banalização do estético,
caracterizado por uma extensão do simbólico a vastas áreas de onde se
encontrava arredado[343].
De facto, a oposição entre a «arte» e a «vida» tem vindo a esbater‑se, em
particular na esfera que muitos consideram o reino da alienação por excelência:
o consumo. Como refere Maria de Lourdes Lima dos Santos, “assim como podemos identificar alguma afinidade com as vanguardas na
actual sobrevalorização da função hedonista da cultura e no alargamento das
fronteiras do estético, também podemos reencontrar um sucedâneo do projecto do
dandismo (fazer da vida uma obra de arte) na actual importância conferida à
apresentação de si”[344].
Estas tendências aproximam o artista do comum dos
mortais, retirando‑lhe aura e prestígio. Arnold Hauser refere claramente
que o “artista serve‑se da
linguagem dos outros, e não só até ter encontrado a sua; também utiliza, mais
tarde, um modo de falar da linguagem comum”[345].
Desta forma, a arte aproxima‑se da sociedade, não fazendo sentido
conferir‑lhe um estatuto ontologicamente superior ao da vida: “O próprio artista, por mais consciente que
esteja do seu modo de criar, quase não consegue dizer com justeza, onde e
quando encontrou um certo motivo, se adaptou a uma vivência, que nunca
experimentou directamente, onde e quando arranjou um sinal, uma imagem ou uma
palavra, que, na sementeira, se tornou num fruto tão inesperado”[346].
Não é de admirar, por isso, que também a arte reivindique para si o efémero[347],
ao mesmo tempo que combina elementos das mais variadas proveniências. Na
aparente ausência de um centro, multiplicam‑se os fenómenos de “impureza
artística” (“reciclagem cultural”, “hibridização”, “crioulização”, etc.). De
igual forma, as características dos objectos artísticos (universalidade e
perenidade) cedem lugar a uma estetização muito mais difusa e ligada à
experiência sensorial e corporal. A realização individual e o ideal de
autonomia do sujeito consubstanciam‑se, no plano estético, na
performatização da experiência quotidiana e na “conversão da linguagem em dispositivo corporal”[348].
Mas haverá algo de substantivamente novo nesta metamorfose do corpo em discurso
e do discurso em corpo? Os antropólogos tenderão, provavelmente, a responder
pela negativa. Mas talvez nunca, como hoje, o corpo se tenha assumido como objecto
excitante e excitável, locus
fundamental do consumo, centro simbólico de uma experiência que se quer
descentrada.
Wolfgang Welsch vislumbra duas vertentes distintas mas
interligadas neste “boom” do estético: uma superficial e outra de cariz mais
profundo. A primeira, já o referimos, encontra‑se presente no desejo de
conferir um carácter artístico ao quotidiano. Por outro lado, ao conceber‑se
a vida como uma contínua sucessão de experiências, favorece‑se uma nova
constelação de valores assente no desejo e no entretenimento. A segunda
vertente liga‑se ao modo de produção actualmente dominante[349].
De facto, as novas tecnologias assentam numa concepção virtual da realidade,
ou, se preferirmos numa “desrealização do
real”. Desta forma, este torna‑se manipulável e, como substância
plástica, sujeita‑se a um sem número de manipulações e modelações. Além
do mais, quando o estético ou a embalagem se tornam mais importantes do que o
produto (veja‑se a publicidade) inverte‑se a relação entre hardware e software, adquirindo este uma importância decisiva. O estético “já não é o veículo mas sim a essência”[350].
Entendida neste
sentido amplo, a experiência estética alerta‑nos para o carácter
plurifacetado da recepção cultural. De facto, esta nunca depende apenas de
factores intrínsecos à obra, nem de respostas meramente estéticas, num
entendimento restrito[351].
Outro tipo de respostas, de cariz extrínseco (económico, moral, social, etc.)
podem estar presentes e orientar os comportamentos e atitudes. A função
distintiva de certos consumos que requerem um elevado nível de competências e
que dependem da aprendizagem de rígidas convenções sociais foi particularmente
analisada por Bourdieu, mas está longe de constituir o único exemplo. Certos
consumos, mesmo quando mascarados de intenções estéticas, orientam‑se
pelo valor instrumental/utilitário (nomeadamente económico) de determinados
produtos culturais. Mas até as respostas estéticas podem adquirir diferentes
contornos, conforme são de índole artística (fortemente influenciadas por um
saber especializado, o da História da Arte e baseadas na aquisição de códigos
culturais) ou de dominante afectiva, emocional e/ou existencial, com
implicações na própria representação de si. Estudiosos como Yves Evrard ou
DiMaggio insistem na tendência actual de relativo menosprezo da experiência
estética no seu sentido mais restrito, eminentemente artístico[352].
De acordo com o primeiro autor, verifica‑se um declínio da importância do
conceito de legitimidade cultural (consubstanciado no privilegiar exclusivo de
uma função simbólica extrínseca dos consumos culturais, traduzida pelos
mecanismos distintivos e baseado no exercitar de competências) em favor de um
hedonismo individualista[353].
DiMaggio, por seu lado, e como já tivemos ocasião de referir, salienta o papel
que os produtos culturais ocupam na organização das sociabilidades e viceversa.
A moda, no âmbito deste conjunto de reflexões, fornece‑nos
um magnífico exemplo da reconstrução incessante de modelos a partir da
reciclagem de tipos anteriores, num movimento perpétuo de descontextualização e
recontextualização de significados culturais, numa aproximação à
intertextualidade, recurso frequente do praticante cultural anónimo mas também
do próprio artista. No falhanço de outras fontes de integração social,
alimentada pela ausência de possibilidades de criatividade em outras áreas do
quotidiano, a moda torna‑se forma viva, domínio da plasticidade que se
move no limbo da imitação e da novidade. Recebendo os estímulos das indústrias
culturais, num duplo movimento de imitação e diferenciação/distinção, o
praticante cultural reinventa a imagem de si, num movimento que sugere um
trabalho activo e criativo na recepção/selecção de referências. Como refere
Simmel, a moda cumpre uma dupla função: “indica
uma generalidade que reduz o comportamento de cada um a um puro e simples
exemplo. Dito isto, ela satisfaz também a necessidade de distinção, a tendência
à diferenciação, à variedade, à demarcação”[354].
Sem esquecer que “as
modas são sempre modas de classe”, Simmel aponta para a acentuação do
presente e da mudança que a moda acarreta, dissolvendo muitas vezes o passado
para o apresentar com nova cara. Esta criação fugaz e tipicamente quotidiana,
favorece tanto a coesão social como a personalização, tanto a obediência a rígidos
cânones e determinações sociais como a desmodelização do social[355].
Mas, mais importante ainda, chama‑nos de novo a atenção para um dos
objectos preferenciais das correntes da fenomenologia social, etnometodologia e
interaccionismo simbólico: o corpo. Este aparece revestido de uma intensa carga
comunicativa, suporte de símbolos e rituais e base constantemente recriada a
partir da qual exteriorizamos não só um conjunto de disposições duráveis e
homólogas a um certo estado de condições sociais de existência (e por isso as
modas reproduzem hierarquias e desigualdades), mas também o desejo de autonomia
individual e de marcar com criatividade os passos e os caminhos do quotidiano.
Se, como refere Machado Pais, “nem tudo
gira em torno de «determinações»[356],
existe a possibilidade de “comportamentos
intersticiais” através dos quais se exprime a novidade, a alternativa e
mesmo a dissensão.
No entanto, se tudo é estético, nada
é estético, e o encantamento do quotidiano arrisca‑se a ser rapidamente
absorvido pela sua banalização e pelo movimento da mera mudança pela mudança.
Neste caso, bem pode o extraordinário regredir para o ordinário.
CAPÍTULO
IV
A
CULTURA N(D)A CIDADE
"A cidade em
que vivemos é a cidade que mais se ignora"
Agustina Bessa‑Luís , O Manto
1. A
cidade e os comportamentos humanos: diferentes perspectivas.
Falar de cidade implica abordar um dos conceitos mais
equívocos e ambivalentes da análise sociológica. No entanto, o discurso da
cidade e a cidade como discurso são temas aos quais é impossível escapar quando
se fala de públicos e práticas culturais.
Antes de tudo, porque mais de 40% da população europeia
vive em cidades, percentagem que se eleva a 70% para o caso dos Estados Unidos.
O peso relativo da população que vive em cidades aumentou 40 vezes desde o
início da revolução industrial[357].
Em Portugal, a realidade é um pouco diferente, já que se multiplicam as
situações intermédias e os cruzamentos entre o rural e o urbano. Ainda assim, e
segundo proposta de Francisco Cordovil, se considerarmos a freguesia como
unidade de análise (e não o concelho, como faz o INE) temos como resultado que
45% da população portuguesa vive em zonas urbanas[358].
Esta realidade torna‑se ainda mais esmagadora se
pensarmos na concentração da oferta cultural nas grandes cidades. Desde sempre,
como refere Marcel Roncayolo, “civilidade
e civilização, urbanidade e urbano são palavras próximas e aparentadas”[359].
É a cidade que lança as modas e as legitima. Mas é também na cidade que
fervilham os conflitos, as tensões e as contradições, as múltiplas lógicas de
(des)construção e apropriação do espaço. Por isso, alguns autores apresentam a
imagem do “mosaico cultural” para a
caracterizar enquanto local de “justaposição
de estratos e funções diferenciadas, conotadas com específicas formas de viver
o quotidiano, nas matizes das suas crenças, ideologias, valores, costumes e
representações sociais”[360].
Os traços distintivos do que constitui a urbe, a
definição de um campo semântico no qual a urbanidade,
a qualidade do urbano, se delimita, não escapam a essas contradições[361].
Marcel Roncayolo situa as imagens da cidade entre dois
pólos opostos: por um lado, as referências aos aspectos positivos da
urbanização[362]
(a mobilidade, a proximidade das fontes de informação e das novas tecnologias,
a escolarização, o nível de vida, etc.); por outro, os traços negros de uma patologia urbana (insegurança,
violência, solidão, etc.).
Enquadram‑se, neste último caso, as análises
pessimistas, com raízes nas perspectivas teóricas de Durkheim, Park[363],
e à qual Louis Wirth prestou porventura a versão mais conhecida.
De acordo com este autor[364],
a urbanidade não é um traço exclusivo das cidades. Por isso, em vez de se
preocupar com uma delimitação física (sempre arbitrária) do urbano, Wirth
centrou a sua análise no urbanismo como modo
de vida.
Para este autor, a cidade pode ser definida como um
agrupamento vasto, denso e permanente de indivíduos socialmente heterogéneos.
Desta forma, o seu modelo, por muitos classificado como ecológico, assenta no estudo dos efeitos sobre os comportamentos
humanos de três dimensões essenciais: a dimensão, a densidade e a
heterogeneidade.
No que diz respeito à dimensão, Wirth salienta a
diferenciação que se opera entre os indivíduos, espacialmente segregados e
envoltos num ambiente em que o anonimato e a inevitável substituição da
entreajuda rural pela competição geram relações “impessoais”, “superficiais”,
“transitórias”, “segmentárias” e “utilitárias”. Ao emancipar‑se das
instâncias pré‑industriais de controlo social e afectivo, o indivíduo
perde em espontaneidade e em sentido de participação.
A densidade, pelo seu lado, transforma a cidade num
mosaico de “mundos sociais descontínuos”
que jamais se interpenetram. Desta forma, aumenta a competição pelo espaço, o
que origina sentimentos de solidão, tensão nervosa e um conjunto de frustrações
pessoais.
A heterogeneidade, finalmente, assenta num complexo
sistema de papéis sociais que dividem a personalidade do indivíduo em vários
segmentos, aumentando o sentimento de esquizofrenia. O indivíduo é, doravante,
um insignificante ponto na vasta massa, despersonalizando‑se e
estandardizando‑se as trocas sociais.
Vários estudos posteriores, na área da etnopsiquiatria e
da psicologia social salientaram os efeitos negativos resultantes da
distanciação face à natureza e da dissolução das bucólicas comunidades de base
rural. A teoria da sobrecarga,
influenciada pelo princípio simmeliano de que a cidade aumenta a estimulação
nervosa, estuda os mecanismos de habituação e insensibilização que, como
reacção à sobrecarga, geram sentimentos de apatia e de indiferença.
Vale a pena, aliás, determo‑nos sobre a abordagem
de Simmel, em particular a que se encontra condensada no seu já célebre artigo
sobre a vida metropolitana[365].
No essencial, este autor realça a intensificação das redes de relações sociais
em actividade nas grandes cidades, por contraste com as pequenas localidades e
a vida rural. Mas não o faz com uma intenção valorativa. Dificilmente, aliás, a
sua análise pode caber no rótulo optimista/pessimista[366].
Habituado à análise micro‑social, Simmel realça os principais traços
constitutivos da civilização urbana contemporânea: a proliferação do cálculo
racional (com a consequente “exclusão dos
traços e impulsos humanos, instintivos e irracionais que, deixados a si
próprios, determinam a forma de vida de modo soberano”[367]),
a permanente procura de previsibilidade (uma forma de ordenar o caos potencial
da vida urbana), o pragmatismo e a indiferença face aos aspectos pessoais. Em
suma, dimensões da vida de espírito que se encontram em íntima relação com o
domínio da “economia monetária” e a
sua peculiar característica de encontrar correspondência quantitativa para os
traços mais individuais: “O dinheiro põe
em destaque aquilo que é comum, ou seja, o valor de troca, e reduz a um nível
puramente quantitativo tudo quanto é qualitativo e individual. Todas as
relações emocionais entre as pessoas assentam na sua individualidade, enquanto
as relações de tipo racional as convertem em números, isto é, tratam‑nas
como se fossem elementos que, embora indiferentes em si, no entanto, se revelam
de interesse quando vistas em termos objectivos”[368].
Para se defender, precisamente, da sobrecarga de estímulos que a vida urbana
acarreta, o indivíduo adopta uma “atitude
blasé”, fruto da sua inerente incapacidade de reagir constantemente a novas
solicitações. Em que consiste esta atitude? De acordo com Simmel, ela traduz‑se
em indiferença perante as diferenças, em distanciamento e reserva; por vezes
mesmo em antipatia.
Não se julgue, no entanto, que Simmel adopta uma postura
crítica face a este retrato nítido de uma cristalina desumanização[369].
Pelo contrário, a sua atitude revela compreensão: “Se aos incessantes contactos públicos das pessoas nas grandes cidades
correspondessem as mesmas reacções interiores dos contactos que têm lugar na
pequena localidade, onde cada um conhece e tem uma relação activa com quase
todas as pessoas que encontra, estaríamos completamente atomizados e cairíamos
numa condição mental deplorável”[370].
Aliás, apesar de ser um “puro reflexo
subjectivo da completa monetarização da economia”[371]
(estabelecendo uma conexão entre características psíquicas e sociais), esta
atitude propicia ao habitante da metrópole uma margem de liberdade e de
autonomia jamais alcançadas, escapando às formas tradicionais de controlo
social, mesmo quando esses atributos o fazem sentir‑se profundamente só
no meio das multidões. A esta possibilidade de libertação, tão presente no
ideário romântico do século XIX, deve‑se o recrudescimento dos
particularismos e das expressões individualistas, na ânsia de distinção[372]
breve mas intensa, em encontros pouco frequentes e duradouros: “Para muitas pessoas, a estratégia de
captação da atenção de outrem continua a ser a única forma de preservar alguma
auto‑estima e de salvaguardar o seu sentido de lugar”[373].
De alguma forma, a
atitude flâneur de Baudelaire
encontra correspondência no quadro psíquico traçado por Simmel: a ambiguidade
perante a cidade, o sentimento de angústia, distanciamento e alienação, por
vezes, mesmo, um profundo tédio[374].
No entanto, esta perspectiva de contornos pessimistas
sobre o urbano sofreu, ao longo de décadas, um conjunto de diversas críticas.
Desde logo os teóricos “optimistas”, como Gans, Lewis,
Young ou Willmott, multiplicaram os estudos empíricos que provam a persistência
dos laços interpessoais e dos grupos primários, mesmo nas zonas mais densamente
povoadas das grandes urbes. Criticando o simplismo do determinismo ecológico
que serve de base às teorias anteriormente explicitadas, demonstrou‑se
que entre o rural e o urbano não existe uma radical antinomia, mas sim um
continuum. Além do mais, as diferenças que existem entre as populações rurais e
as populações não rurais, não dependem tanto do contexto ecológico, mas sim das
variáveis sociológicas mais clássicas: sexo, idade e ciclo de vida, classe
social, etnia... Há ainda a acrescentar que largos segmentos da população
urbana mantêm no seu habitat características dos modos de vida rurais. Basta
pensar na organização autocrata de certos bairros, onde a visibilidade social é
elevada e associada a relações de vizinhança intensas.
Luís Soczka fala num “conglomerado
complexo de variáveis” e numa “multideterminação”[375]
das (des)regulações que ocorrem em contexto urbano. De facto, não é possível
estabelecer uma relação directa entre a densidade populacional e factores como
a participação na cidade, o crime, o suicídio, a esquizofrenia, etc. Soczka
salienta, por isso, a importância das mediações cognitivas e emocionais,
intimamente ligadas aos contextos sócio‑culturais[376]
em que os agentes se movimentam.
A mesma tese é defendida por Jean Remy e Liliane Voyé.
Estes autores criticam o reducionismo das abordagens ecológicas. De facto, a
mesma forma espacial pode ter consequências diferentes sobre as interacções
sociais, de acordo com a estrutura social em causa e os modelos culturais
vigentes[377].
Estes autores chegam mesmo a falar dos efeitos ideológicos das teses
ecológicas. Ao deslocarem o “lugar da explicação”, reforçando a lógica de uma
relação unívoca entre o espaço e os comportamentos humanos na cidade, ficam na
sombra todos os problemas económicos, sociais e políticos que fragmentam e
segregam a vida urbana.
Em suma, defende‑se que uma mesma estrutura
espacial pode ter efeitos diferentes, consoante o posicionamento social dos
actores e os seus mapas culturais. Não se rejeita, ainda assim, que o espaço
possui a sua autonomia. De facto, estes autores salientam, por um lado, os
efeitos das estruturas espaciais no campo de possíveis dos actores, organizando
os seus tempos quotidianos e, por outro, nas suas representações e atitudes,
que se tornam ingredientes fundamentais para a prática e para a acção sociais.
Está bem presente, no entanto, a recusa da “ideia
segundo a qual um modo de composição espacial, descrito no plano da sua
materialidade, estaria ligado a um tipo único de interdependência entre funções
ou de modo de vida”[378].
Uma outra perspectiva, que inverte a abordagem sobre os
efeitos do modelo ecológico proposta pela Escola de Chicago, é‑nos
fornecida por Claude Fischer[379].
De acordo com este autor, a concentração populacional urbana, longe de
favorecer os efeitos salientados pelos teóricos mais pessimistas
(enfraquecimento dos laços interpessoais e dos grupos primários, quebra das relações
de interdependência e dos consensos normativos, etc.), contribui para a
formação de pequenos grupos animados por uma determinada subcultura. Segundo
Fischer, este “mosaico” de mundos sociais, também analisado pela Escola de
Chicago, tanto pode proporcionar efeitos positivos como efeitos negativos para
a ordem social global. Tudo depende do “conjunto
de crenças, valores, normas e costumes”[380]
associados às diferentes subculturas.
Fischer parte de várias hipóteses. Destacaremos em
seguida as que consideramos essenciais para a nossa análise.
Primeira hipótese: Quanto
mais urbanizado for um local, maior será a sua variedade subcultural. A
concentração populacional favorece a fragmentação em função de variáveis como a
classe social, a idade e as categorias ocupacionais. Esta variedade é tanto
maior quanto se associa à divisão social do trabalho e à especialização dos
papéis sociais. Uma vez mais, encontramos abordagens que se coadunam com as
propostas de Paul DiMaggio explicitadas no capítulo II.
Segunda hipótese: Quanto
mais urbanizado for um local, maior será a intensidade das suas subculturas.
Por intensidade entende‑se, precisamente, o contrário da anomia e da
desregulação sociais defendidas, como já vimos, por autores como Durkheim e
Wirth. Fischer fala, inclusivamente, de um aumento da coesão grupal, forjado
pela comparação e competição entre as várias subculturas.
Terceira hipótese: Quanto
mais urbanizado for um local, mais numerosas serão as fontes de difusão e maior
será a difusão dentro de uma subcultura. Por difusão entende‑se a “adopção pelos membros de uma subcultura das
crenças e comportamentos de outra”[381].
Desta forma, melhor se compreende a análise que em outros capítulos fizemos
sobre o esbatimento de fronteiras entre diferentes níveis de cultura, bem como
sobre o enfraquecimento das ritualizações que exprimem essas divisões,
aumentando a tendência para as “mestiçagens culturais” e para o ecletismo de
práticas e de gostos.
Quarta hipótese: Quanto
mais urbanizado for um local, maiores serão os índices de não‑convencionalidade.
De certa forma, Fischer pretende realçar o papel das cidades enquanto
realidades multiculturais produtoras de inovação. A intensificação das
subculturas resulta, precisamente, do aumento das densidades populacionais. Desta
forma, o autor não rejeita as determinações ecológicas, mas analisa outros
efeitos de sentido contrário aos de Wirth. Por outro lado, esta diferenciação
impede os monopólios e a imposição de arbitrários culturais. Aumenta a
diferenciação cultural, mas diminuem as hierarquias. Além disso, os padrões de
comportamento não convencionais (que tanto podem estar presentes nas
subculturas artísticas como nas criminosas — uma vez mais a ambivalência da
cidade...) alimentam‑se da penetração de elementos periféricos das outras
subculturas no seu domínio central (“central
core”) e viceversa.
Em síntese, a utilização deste modelo ecológico realça o
carácter regulado e integrado da vida social, num contexto em que proliferam os
mecanismos de troca, negociação e compromisso entre as várias subculturas que
fervilham na cidade contemporânea.
2. A
cidade e a apropriação do espaço.
Colocarmo‑nos na perspectiva daqueles que apropriam
e utilizam o espaço implica aceitarmos, uma vez mais, o pressuposto de que os
agentes, apesar de actuarem num campo restrito de possíveis, actualizam
estratégias, cálculos e interesses no decorrer da acção social.
Deste modo, não podemos considerar que a lógica de
apropriação do espaço urbano seja um mero espelho da lógica da produção. Aliás,
muitos dos conflitos urbanos resultam, precisamente, do desfasamento e da
incompatibilidade que entre si estas lógicas manifestam.
Michel de Certeau presta uma atenção muito especial aos
“utilizadores” do espaço. Contra os espaços racionalizados e burocratizados,
Certeau opõe as práticas “microbianas,
singulares e plurais” que se “insinuam”
na cidade, escapando aos mecanismos de controlo e constituindo “regulações quotidianas e criações
subreptícias”[382]
que constituem uma espécie de cidade “poética”,
“transumante” e “metafórica”. Tal como a palavra está para a língua, também a
marcha está para a cidade, assumindo‑se como “espaço de enunciação”. A “retórica
da marcha” actualiza os recursos e possibilidades que o espaço oferece, bem
como as suas interdições. Constitui, por isso, um processo capaz de criar “ocasiões” de contestação e de afirmação
face à ordem hegemónica, superando os seus limites e constrangimentos. Através
dos mecanismos de apropriação do espaço geram‑se estilos[383]
e usos[384],
combinando‑se numa determinada “maneira
de fazer”. Susan Sontag, num prefácio a escritos autobiográficos de Walter
Benjamin realça a “arte de se perder”
na cidade; cidade onde “o espaço é largo,
repleto de possibilidades, posições, intersecções, passagens, curvas, voltas em
“U”, becos sem saída e ruas de sentido único”[385].
O que caracteriza, segundo Rémy e Voyé as sociedades
urbanizadas, é, precisamente, uma nova forma de apropriação do espaço, muito
mais marcada pela mobilidade e pelos projectos individuais. A comunicação à distância,
traço característico da compressão do espaço‑tempo, atenua, sem as
eliminar, as ligações das bases morfológicas às suas funções sociais. Desta
forma, os projectos de pessoas e grupos tendem a distanciar‑se de uma
base espacial concreta, desvitalizando‑se os espaços públicos. Neste
sentido, Pierre Pellegrino afirma mesmo que existe uma dissociação entre o
conceito de cidade e a urbanidade, já
que os relações sociais processam‑se em contextos cada vez mais
burocratizados e policiados. Desta forma, o espaço
colectivo deixa de ser um espaço
público, não oferecendo uma exterioridade distintiva face ao espaço
doméstico, elemento fundamental para o encontro com o Outro: o espaço público é
gradualmente substituído por entidades privadas “que, no seu interior, não gerem de forma alguma as relações sociais
como a formação social global que assegurava a cada um o livre acesso ao espaço
público”[386].
As sociabilidades de base residencial tendem, igualmente, ao enfraquecimento.
Um tipo de vizinhança difusa (“Diffuse Neighborhood”), caracterizada
por uma fraca participação na vida local e por uma débil ligação à comunidade
envolvente ou um tipo de vizinhança (“Stepping‑stone
Neighborhood”) onde a interacção com os elementos da área de residência é
meramente formal (havendo maior identificação com entidades exteriores ao local
de residência) tornam‑se dominantes[387].
Um outro aspecto da maior importância é o que se prende
com a descontinuidade do espaço urbano contemporâneo. De facto, se grupos e
“comunidades interpretativas” reagem de forma diferente aos efeitos das
estruturas espaciais, vivenciando‑o e representando‑o de maneira
distinta, tal deve‑se, precisamente, ao acentuar da autonomia face à base
morfológica da cidade.
Desta forma, multiplicam‑se os projectos pessoais,
intimamente ligados à intensidade subcultural referida por Fischer,
enfraquecendo‑se os projectos colectivos e os domínios públicos[388].
A competição pela igualdade, em termos de recursos, espaços e equipamentos,
leva à “rejeição de tudo quanto é visto como
entrave ou simplesmente risco de entrave à liberdade de escolha e de
comportamento pessoal”[389].
Assim, também as “solidariedades globais”
de outrora se vêem substituídas por “solidariedades
parciais”, baseadas não na classe social, mas em papéis sociais específicos
e actividades muito particulares. Além do mais, a ilusão de autonomia que a
vida extra‑profissional confere, sendo porventura funcional para travar “as reivindicações no plano profissional”[390],
tende a integrar as pessoas através do consumo, desimplicando‑os na
construção de projectos colectivos e estimulando a actividade económica[391].
Pelo contrário, em situações não‑urbanizadas os vários sistemas
articulavam‑se pela proximidade espacial e pelo predomínio da relação
interpessoal, das relações de vizinhança e do controlo ecológico de base local.
O cosmopolitismo dominante, aliás, tem uma carga
ambivalente: tanto pode significar um certo centramento no indivíduo e na
afirmação da sua liberdade, inserido em redes de sociabilidade extremamente
móveis e difusas, como um isolamento anómico por ruptura dos laços sociais
básicos. Neste último sentido, fala‑se da “funcionalização” do espaço
público e da proliferação dos lugares não socializados: “as praças e ruas das cidades transformaram‑se em lugares de passagem
percorridos por «multidões solitárias». São espaços que se desvitalizaram,
deslizando progressivamente da categoria de público para a neutralidade do não‑privado,
através de um enfraquecimento da categoria especificadora — colectivo — que
conferia sociabilidade à relação”[392].
O espaço semiprivado, por seu lado, surge como um contraponto ao esvaziamento
da esfera pública (centros comerciais, discotecas, restaurantes...), mas
enquanto espaço de fraca especificidade local, imbuído de uma lógica de “desterritorialização universalista”[393].
Nestas condições, a cidade torna‑se palco de uma
explosão de máscaras onde se dissociam as esferas psicológicas, afectivas e
sociais, num jogo de opacidade nada propício às capacidades emancipadoras da “retórica pedestre”.
3.
Redução semântica versus explosão do
simbólico.
Pode falar‑se de um processo de redução ou
empobrecimento semânticos quando a cidade perde legibilidade. Por legibilidade
considera‑se a característica que certas cidades possuem e que as
identifica a “uma estrutura física viva e
integral, capaz de produzir uma imagem clara”[394].
Segundo Kevin Lynch, a imagem que fazemos de uma cidade tem uma importância
decisiva no estabelecimento de trocas e laços pessoais, solidificando ou não as
vivências e as práticas quotidianas. Qualquer pessoa, por isso, participa num
processo de permanente construção dos espaços urbanos: “Os elementos móveis de uma cidade, especialmente as pessoas e as suas
actividades, são tão importantes como as suas partes físicas e imóveis. Não
somos apenas observadores deste espectáculo, mas sim uma parte activa dele,
participando com os outros num mesmo palco”[395].
Se a imagem de uma cidade é clara e coerente, então a vivência urbana tenderá a
ser mais intensa. Os principais pontos de referência constituirão autênticas
marcas simbólicas que funcionarão como estímulo à interacção. Nesse caso, a
imagem da cidade resultará da conjugação de uma percepção imediata com toda uma
evocação de longa experiência do passado[396],
funcionando como estímulo ao “praticante
cultural” de Certeau, aquele que, nas suas deambulações, se alimenta da
riqueza simbólica da cidade, interpretando‑a e actualizando‑a de
forma sempre renovada[397].
Pelo contrário, uma cidade de difícil legibilidade
proporcionará fragmentação, desorientação, desorganização e isolamento. As suas
marcas serão dispersas e incongruentes, e o seu significado caótico e confuso.
A coesão social será mais fraca e aumentará a desregulação social. Tal acontece
quando o urbanismo assume a forma de um discurso altamente especializado e
orientado para clientelas distintas, o quando proliferam os processos de
segregação e de exclusão. A esse respeito, refere A. Teixeira Fernandes que a “estratificação social tende, de facto, a
apropriar o espaço de forma descontínua, como descontínua é a estrutura de
classes. O distanciamento é particularmente acentuado quando se dá a segregação
social. Neste caso, a diferenciação e o afastamento são extremados e os
contactos interditos, sobretudo quando este interdito traz a marca da
estigmatização”[398].
Por outro lado, Lynch refere‑se claramente à
importância da acção do observador na constituição do objecto observado. Mais
ainda, este autor defende a pluralidade e a multiplicação de formas
perceptivas, o que nos leva a pensar no espaço urbano como um texto
polissémico, aberto a várias leituras e interpretações. Desta forma, uma cidade
cujo tecido social se apresenta descontínuo e heterogéneo resultará numa babel
de imagens, altamente particulares e referenciáveis a comunidades interpretativas
distintas. Neste caso, o espaço público desertifica‑se e torna‑se
terra de ninguém.
Uma cidade de imagem distinta e familiar, características
fundamentais da legibilidade, proporcionará, pelo contrário, a multiplicação de
espaços públicos e semi‑públicos de encontros aleatórios, “a propósito dos quais não se pode dizer de
antemão nem quem se vai encontrar, nem o que será importante nos encontros
realizados”[399].
A cidade possui, à partida, um importante manancial
simbólico. Toda a intensa imagística associada à cidade e à urbanidade
transformam‑na num campo semântico, impregnado de significações e rituais[400].
A cidade vivida é também uma cidade imaginada, com os seus espaços de culto, os
seus altares e, inversamente, os seus interditos. Desta forma, torna‑se
um elemento central na definição das identidades sociais.
A cidade de hoje é cada vez mais ilegível, num movimento
que alguns interpretam positivamente como a “explosão” de uma estética da
diversidade. Neste contexto, as próprias identidades tendem a ser, segundo
Carlos Fortuna, “transitórias”, “plurais”
e “autoreflexivas”. Constantemente “feitas e refeitas ao sabor das mudanças
sociais e das novidades culturais”[401],
fruto da destruição criativa,
representam o fim da segurança ontológica e correspondem a uma sociedade fluída
e plasticizada. Desta forma, o espaço urbano molda e deixa‑se moldar de
acordo com os desejos individuais e torna‑se uma cidade “suave”, nas
palavras de Jonathan Raban: “Decida quem
você é, e a cidade mais uma vez vai assumir uma forma fixa ao seu redor. Decida
o que ela é e a sua própria identidade será revelada”[402].
A urbe seria, assim, um manancial de heterotopias, espelho de várias imagens em
que alternada e/ou simultaneamente nos revemos, realidade errante, flutuante e
labiríntica, tal como as identidades que constantemente (re)cria.
Estas teses assentam numa das bases primordiais do pós‑modernismo:
eliminadas as metanarrativas, extintas as fontes de legitimação, fragmentada em
miríades de posições a antiga sociedade estratificada, não é na classe social
(nem nas variáveis clássicas como o sexo ou as filiações ideológicas) que
encontraremos o fio condutor do enredo. A cidade surge como um palco onde os
estilos se confrontam e onde viver passa a ser uma arte.
Esta nova concepção de cidade não é, no entanto,
independente de importantes transformações societais, entre as quais se
destacam os fenómenos de desindustrialização, contra‑urbanização e
terciarização das cidades, acompanhados por uma compressão no espaço‑tempo
que liberta as pessoas dos controles ecológicos locais, favorecendo interacções
à distância e deslocalizadas.
Ao mesmo tempo,
fragmenta‑se a integração das várias esferas da actividade social,
gerando‑se o sentimento pós‑moderno de esquizofrenia. Como refere
David Harvey, “a confiança na associação
entre juízos científicos e morais ruiu, a estética triunfou sobre a ética como
foco primário de preocupação intelectual e social, as imagens dominaram as
narrativas, a efemeridade e a fragmentação assumiram precedência sobre verdades
eternas e sobre a política unificada e as explicações deixaram o âmbito dos
fundamentos materiais e político‑económicos e passaram para a
consideração de práticas políticas e culturais autónomas”[403].
Assinalando o triunfo da estética sobre o espaço, a
cidade pós‑industrial construi‑se a partir de um processo de gentrificação[404],
de “filtragem social” de certas zonas da cidade, outrora degradadas e
socialmente desqualificadas e doravante recuperadas para uma nova classe média
em ascensão social[405].
Não se trata, no entanto, de um mero processo de
reabilitação urbanística. O seu impacto e as suas causas são mais vastos e
traduzem uma reestruturação global do espaço urbano, extremamente ligado a uma
terciarização fulgurante, a uma desindustrialização igualmente acentuada e a
uma forte privatização dos consumos. Os seus protagonistas, possuidores, em
geral, de um alto nível de escolaridade e de um perfil técnico‑científico
de profissional liberal, de gestor ou quadro superior, inserem‑se em
pequenas famílias nucleares marcadas pela elevada participação feminina no
mercado de trabalho qualificado e por novas atitudes face às várias dimensões
da conjugalidade (adiamento do casamento e da idade média de procriação,
aumento dos casais sem filhos ou com apenas um descendente, etc.)[406].
Baseada no consumo, a cidade pós‑industrial
assinala também o ciclo da cidade‑mercadoria, dirigida para sectores
específicos do mercado, que aliam poder económico e capital escolar na procura
de poder simbólico, através de sinais exteriores de distinção. A estética
associada ao processo de gentrificação ilustra bem a dimensão classista do
fenómeno, tanto na reapropriação do passado, através da recuperação de uma
certa arquitectura (essencial para afastar qualquer afinidade com origens mais
modestas[407]
e impor uma legitimação histórica,
suportada pela conquista simbólica do tempo), como na estilização do
quotidiano, patente no tipo de saídas culturais e nos objectos ostentados
(distanciados face ao seu carácter utilitário e com um forte valor de signo)
metamorfoseados em fétiches ou marcadores simbólicos. Trata‑se, como
refere Michael Jager, de uma “ofensiva
cultural dramática”[408]
capaz de fundar novas distâncias sociais de legitimação do lugar, ainda
ambíguo, dos jovens gentrificadores[409].
Assim, vários autores defendem que o terreno das lutas
sociais urbanas deslocou‑se do domínio da produção para as esferas da
cultura, da estética e do consumo. Os estilos de vida tornam‑se, então,
não apenas indicador de pertença classista, mas igualmente meio privilegiado de
constituição das próprias classes sociais.
Estetização e mercado, eis o grande paradoxo da cidade
pós‑industrial e pós‑moderna.
Antes de mais, porque os efeitos da acentuada “redução
semântica” dos espaços pretendiam‑se anulados através da imagem de uma
cidade‑espectáculo, baseada na colagem de estilos diferentes e na
teatralidade tornada possível pelo confronto de uma multiplicidade de papéis
sociais. Contra o movimento funcionalista moderno, baseado na fórmula “um
espaço, uma função”[410],
defende‑se o ecletismo e a ficção, enquanto “sentido de alguma coisa de um mundo de fantasia, da «viagem» ilusória
que nos tire da realidade corrente e nos leve à imaginação pura”[411].
Mas, também aqui, uma vez mais, é o mercado que comanda as operações. Os
processos de gentrificação das
grandes cidades do mundo ocidental, associam‑se, indissociavelmente, à
imagem dos “jovens urbanos profissionais” (yuppies).
O urbanismo pós‑moderno, ao guiar‑se, aparentemente, pela “estética
pura”, esqueceu a ética e o poder económico diferencial dos grupos urbanos,
gerando exclusão e desqualificação, ao mesmo tempo que edificava com grandeza e
espectáculo. Mas, mesmo essa tentativa de restituir uma imagem positiva às
grandes cidades, assemelhou‑se a um amplo movimento de marketing urbano.
Este esforço de autopromoção não consegue esconder, por isso, o facto de se
dirigir essencialmente para uma certa “massa crítica”, os quadros médios e
superiores do terciário, classes profissionais em ascensão e com uma grande apetência
pelos espaços urbanos requalificados. Enquanto espectáculo, a nova animação
urbana não resistiu à tentação de produzir grandes “acontecimentos”, virados
para os mass media e apologéticos da cultura‑consumo[412]:
“A cultura torna‑se, assim,
consumível directa ou indirectamente por quase todos. Ela é, de qualquer forma,
encenação e participa, por isso do espectáculo colectivo”[413].
Preocupada mais com a encenação do que com as pessoas,
tais políticas encontram‑se profundamente relacionadas com os efeitos
sociais do chamado “capitalismo vodu”
ou “capitalismo fictício”, ligado à
política da imagem e à imagem da política: aumento da desigualdade social, da
suburbanização descontrolada, crescimento do desemprego e da precaridade do
emprego, crise do Estado‑providência, etc.
O “direito à
cidade” tornou‑se apanágio de uma minoria em ascensão: “(...) para os jovens e os ricos, para os
educados e privilegiados, as coisas não podiam ter sido melhores. O mundo dos
imóveis, das finanças e dos serviços cresceu, bem como a «massa cultural»
dedicada à produção de imagens, de conhecimentos e de formas estéticas e
culturais”[414].
David Harvey chama a todo este processo o “aparato
ilusório” do capitalismo, que sempre o acompanha, seja qual for a direcção
que toma.
Desta forma, o grau de “pós‑modernidade” varia consideravelmente consoante os grupos
sociais em questão. Do ponto de vista da renovação urbana, significou para
alguns uma “explosão do simbólico”, das suas imagens e fontes de sentido. Para
muitos outros, no entanto, acarretou uma “redução semântica” dos espaços
urbanos, uma desapropriação de vastas zonas socialmente vedadas, um acréscimo,
enfim, da sua situação de exclusão. As classes trabalhadoras, em particular,
ameaçadas habitualmente na esfera da produção, são também agora atacadas na
esfera da reprodução, minando as bases da sua própria sobrevivência enquanto
classe.
Por outro lado — e este é um segundo paradoxo ‑, a
legibilidade das cidades diminuiu à medida que aumenta o seu carácter de
“espectáculo”[415],
de consumo e de resposta a solicitações de clientelas específicas. Fragmentando‑se
(apesar de, muitas vezes, o próprio movimento pós‑moderno cair em
receitas e em situações em que a “diferença” é apenas ilusória — veja‑se
o caso dos shopping centers...),
sujeitando‑se às leis do mercado, repelindo a cidade “exterior” através
de pequenos mundos que funcionam como óculos de Sol (quem vê não é visto)[416]
dilui‑se o sentimento de familiaridade e cria‑se a ideia de uma
certa desorientação.
A imagem de cidade deixa de ser global e limita‑se
a certos pontos fulcrais e singulares[417],
de carácter monumental e que servem como referências ou marcos na memória:
Paris é a cidade da torre Eiffel, Londres é a cidade do Big Ben e por aí fora.
Assim, a adesão colectiva a um projecto de cidade perde, paulatinamente, o seu
sentido e as poderosas “culturas de gosto” impõem o seu domínio na apropriação
e produção do espaço. Esta tendência encontra‑se bem presente, segundo
Rémy e Voyé, na dispersão que as indústrias de lazer actualmente apresentam,
aparecendo como o contraponto de uma vida colectiva forte e marcando
decisivamente o domínio do signo
sobre o símbolo, isto é, da distinção
social sobre a interacção afectiva.
4.
Intervenção cultural no espaço urbano.
Um
estudo recente de análise das políticas culturais de seis cidades do Norte de
Portugal e das complexas relações entre oferta e procura que aí se verificam,
fornece alguma base de sustentação para a hipótese de emergência de um processo
de gentrificação[418].
Com efeito, do lado da procura, constata‑se um
aumento significativo dos grupos sociais mais escolarizados, em particular nas
profissões liberais, quadros técnicos e científicos e pessoal de enquadramento;
crescimento indissociável da relativa pujança de um terciário minimamente qualificado.
Em paralelo, do lado da oferta, encontram‑se vários
ingredientes próprios de uma “cultura de consumo”, de cariz lúdico e convivial:
“A música, o espectáculo, a dança, a
diversão nocturna, a moda, os adereços, as «tribos» e grupos de pares, tudo isso
tende a configurar um modelo de conduta, afirmação de identidades pessoais e
grupais, encenação pública e apropriação/transformação do espaço urbano”[419].
No entanto, os mesmos autores chegam a uma conclusão de grande interesse. Não
existe uma relação directa entre qualificação social (assegurada pelos
movimentos de recomposição sócio‑económica de que já falámos) e
qualificação cultural. Por outras palavras, os novos públicos urbanos, apesar
de escolarizados não são necessariamente cultivados, no sentido de
familiarizados com as manifestações da “cultura erudita”: “a procura mais consistente, na paisagem urbana portuguesa, nem sequer
é constituída por elites económico‑sociais no sentido mais estrito da
palavra (...) mas sim por fracções das classes médias, muito devedoras do
paradigma escolar”[420].
Quais são, então, as características destes novos públicos? Ecletismo e
polivalência em detrimento da especialização artística, juvenilidade,
valorização das sociabilidades, do lazer e da apresentação de si. Em suma, um
público atento à oferta cultural, com um alto nível de participação, mas que “tem ainda muito por onde elevar esse (...)
nível”[421]. Impõe‑se,
então, a questão: o que fazer em termos de políticas culturais locais?
Augusto Santos Silva, num outro artigo sobre o mesmo
estudo, constata a existência, por parte dos autarcas, de diferentes
estratégias no que respeita à animação cultural.
Enquanto que a maioria dos eleitos locais exprime uma
atitude instrumental face ao desenvolvimento de novas políticas culturais,
outros dividem‑se entre critérios “comerciais” e de “qualidade”, sem os
procurar compatibilizar. Daqui resulta que, apesar da inegável diversificação
da oferta cultural existente, pouco se tem feito “no plano de uma leitura mais sociopolítica das raízes e do significado
das novas sociabilidades e expressões urbanas, na sua articulação com os
desafios e as oportunidades de evitar a degradação das condições e dos modos de
vida nas cidades de hoje e melhorar, nelas, o grau e as formas de coesão
social”[422].
Por outro lado, mantém‑se ainda viva uma relação com o tecido social
organizado (designadamente as associações) marcada por relações de pressão
mútua reguladas pela lógica do subsídio.
Perguntamo‑nos, então, quais poderão ser os
principais eixos estruturais de uma política de intervenção cultural que se
distinga da “cultura espectáculo” do pós‑modernismo, mas também das
visões fechadas e arcaicas da actividade cultural endógena.
José Madureira Pinto avança com algumas propostas.
Em primeiro lugar, e considerando que não há produção do
novo sem referência a um passado acumulado, impõe‑se “criar e/ou salvaguardar infraestruturas básicas especializadas e
promover estímulos duráveis à
criação e criatividade culturais em
todos os espaços sociais e sob todas as formas em que elas podem desenvolver‑se”[423].
Assim, para além das suas responsabilidades no campo do arquivo e do património[424],
uma política cultural de sentido decisivamente democratizante deve diversificar
a sua oferta, sem deslegitimar, a priori,
quaisquer formas de expressão cultural. Para tal, dever‑se‑á apoiar
com especial ênfase tanto as associações como as escolas. Através das
primeiras, atingimos públicos habitualmente oriundos das classes populares;
mediante as segundas, conferimos um especial estímulo ao alargamento e à
formação de novos públicos. Nestas duas frentes combater‑se‑á a
desvitalização do espaço público e a crescente tendência para o retraimento na
esfera doméstica, com a consequente diminuição da intensidade e da densidade
das redes e cenários de interacção.
Em segundo lugar, propõe‑se “propiciar a segmentos populacionais vastos, sobretudo das camadas
populares, o contacto com as formas culturais mais exigentes”[425].
Pretende‑se, desta forma, contrariar todas as teses
fatalistas que consideram impossível o acesso de certas camadas desprovidas de
capital cultural e escolar às formas mais exigentes, legitimadas e legitimantes
de expressão cultural. Não pode aceitar‑se, como defende Ignacio
Quintana, “o princípio de que a cultura
«superior» corresponde às élites, enquanto que o resto pode contentar‑se
com uma cultura mediana”[426].
Partindo das teses de Bourdieu, Madureira Pinto
considera, num outro artigo[427],
ser “possível alargar e complexificar o
âmbito das disposições estéticas incorporadas nos habitus”[428].
Esta opinião, apesar de assumida com moderação (o autor assinala, logo de
seguida, as limitações da “margem de
reconversão”) coincide largamente com o que defendemos, com vigor, no
capítulo anterior, a propósito das potencialidades de uma intervenção junto da
esfera da recepção cultural.
No entanto, coloca‑se aqui uma delicada questão. Se
é verdade que o subcampo artístico resiste, com constante fechamento, às
tentativas de democratização das condições de acesso, tornar‑se‑á
possível, no entanto, prescindir do apoio dos próprios produtores culturais?
Parece‑nos que não. Será sem dúvida pela sua mão que muitos dos
“segredos” da produção artística se poderão desvendar e, por isso mesmo,
dessacralizar.
Nada impede, ainda assim, que se tentem outras
iniciativas, uma das quais poderá consistir na diversificação da oferta
cultural. Não se trata, como refere Augusto Santos Silva, de construir um “hipermercado de iniciativas”[429],
mas sim de impedir a unificação do que é múltiplo e plural. Também neste
aspecto, algum ecletismo cuidadosamente preparado poderá favorecer o cruzamento
e o enriquecimento mútuo de códigos oriundos de diferentes campos. O mesmo se
poderá dizer da “contaminação” de géneros, estilos e níveis de cultura,
proporcionada pela subversão de antigas distâncias, em especial as que advêm da
revitalização da convivialidade urbana. Sem esquecer, no entanto (e este é o
terceiro princípio proposto por J. Madureira Pinto), que as culturas dominadas
terão sempre maiores dificuldades de superação dos estigmas da “cultura do
pobre”[430].
Desta forma, justifica‑se um intervencionismo activo, nomeadamente no que
se refere ao associativismo, sem que tal signifique, como refere A. Santos
Silva, cair no “jogo entre a lealdade e o
subsídio”[431].
Para tal, impõe‑se que a hierarquizante distinção entre “artes maiores” e
“artes menores” não constitua uma realidade insuperável[432].
Alguns autores sustentam que estas intervenções apenas
serão bem sucedidas se estiver preenchido um certo número de condições. Uma
delas, porventura a mais importante, é a de envolver os vários actores
implicados. Defende‑se uma intervenção global que signifique uma
verdadeira política de cidade e não
se limite à produção de grandes acontecimentos mediáticos ou de uma imagem para
consumo externo. Por outro lado, esse implicar dos vários actores
territorialmente activos reveste‑se ainda de maior importância em
situações de conflito e de tensão sociais. Nessas ocasiões, mais do que a
possibilidade de comunicação e/ou negociação de jogos e interesses distintos,
importa, como refere Gaudin, desenvolver um “jogo local” de concertações em
rede, capaz de gerar dinâmicas contratuais de desenvolvimento urbano. Os
actores territorialmente activos “vêem‑se
assim convidados a passar da posição clássica de consulta ou de contestação a
uma atitude de implicação‑negociação na própria elaboração e
acompanhamento dos projectos”[433].
As questões culturais — os processos de comunicação são, por excelência, uma
questão cultural — surgem no centro das políticas de desenvolvimento. Não é por
acaso que, numa época em que se acentuam as tendências globalizantes, surge com
particular incidência o problema da salvaguarda e da transmissão da cultura e
identidade nacionais e regionais.
Por outro lado, a insistência em políticas e programas
culturais de alargamento e formação dos públicos em muito contribuirá para que
as funções de distanciação crítica face à cultura de massas assumam um
particular significado. Não podemos esquecer, de facto, que o campo das
indústrias culturais (também apelidadas de «indústrias do conhecimento» ou da
«informação») poderá significar, dentro em breve, 25% do volume total de novos
empregos, falando‑se, por isso, da rápida emergência de um novo sector
económico — o quaternário[434].
No entanto, existem pontos sensíveis na relação entre o alargamento das
indústrias culturais e os processos de democratização cultural. Se é verdade,
por um lado, que certos sectores artístico‑culturais serão privilegiados
por se dirigirem a vastas audiências, não serão, pelo contrário prejudicados os
sectores menos direccionados para o mercado? Não irá a “indústria” devorar o
“cultural”? Que garantias se colocam para o desenvolvimento e a viabilidade da
arte experimental, inovadora ou de orientação vanguardista? Facilitar‑se‑á
uma “ditadura de gosto” da “maioria silenciosa”? Que efeitos na qualidade dos
produtos culturais?
É que a cultura na
e para a cidade nem sempre significa cultura
de cidade. Esta última só é possível quando se enriquecem os modos de vida
quotidianos e os canais de comunicação. Mais do que um efeito de marketing,
trata‑se de um esforço de cidadania.
CAPÍTULO V
POLÍTICAS E PRÁTICAS CULTURAIS
EM PORTUGAL:
PONTO DE SITUAÇÃO E GRANDES TENDÊNCIAS
“Uma das
consequências mais dramáticas da carência cultural é, de resto, a inconsciência
de si própria que ela gera nas suas primeiras e principais vítimas (...) O que
é verdade é que não se pode sentir a falta do que não se conhece.”
Rui Vieira Nery, “A esquerda
democrática e o princípio do serviço público cultural”[435]
1. Uma
visão de conjunto.
Foi
apenas a partir de finais dos anos oitenta que se iniciaram os estudos
sistemáticos sobre as práticas culturais dos portugueses[436],
quer através de pesquisas académicas, quer pela produção de estatísticas
especializadas.
Na década de 90 prosseguiram os estudos de tipo
extensivo, embora centrados numa determinada região[437],
direccionados para faixas etárias específicas[438]
ou para actividades bem delimitadas[439].
Contudo, e na tentativa de superar algumas das lacunas
das abordagens extensivas, começam a aparecer, embora recentemente, pesquisas
intensivas, baseadas no estudo de casos e preocupadas com os usos e vivências
da cultura nos espaços‑tempos quotidianos, delineando, muitas vezes,
estratégias de cariz etnográfico[440].
Procuraremos, em seguida, dar conta dos principais
resultados desse conjunto de pesquisas, procurando compará‑las com
análises similares sobre a realidade francesa. Até há bem pouco tempo
deparavamos com a inexistência de estudos publicados sobre as tendências gerais
das práticas culturais dos portugueses, bem como de análises contendo uma
avaliação sistemática das políticas culturais e abarcando períodos temporais
significativos (pelo menos uma década). Dois artigos recentes de Idalina Conde
vieram, no entanto, colmatar em boa parte esta lacuna[441].
1.1. A
domesticidade e a sedentarização cultural.
As práticas culturais dos portugueses encontram‑se
centradas, segundo os mais diversos estudos, nos tempos livres doméstico‑receptivos[442],
especialmente marcados por índices elevadíssimos de televisionamento. De acordo
com o estudo já referido sobre as práticas culturais dos lisboetas, 97.8% dos inquiridos desenvolvem
regularmente práticas domésticas de cariz receptivo. Segundo o mesmo trabalho, 90.3% vêem televisão regular ou
ocasionalmente, sendo quase residual o peso relativo daqueles para quem essa
prática é rara ou nula (9.3%)[443].
Partindo dos dados de Jorge Gaspar para a área
metropolitana do Porto, 89.2% dos
inquiridos consomem pelo menos uma hora de televisão por dia[444].
Augusto Santos Silva e Helena Santos encontram valores semelhantes: 91% dos inquiridos vêem regularmente
televisão. Se associarmos a recepção de programas radiofónicos, esgotamos,
praticamente “os canais de acesso ao
campo da informação e da cultura”[445].
Ou seja, o tempo livre ainda disponível torna‑se residual, em especial
para as mulheres, os menos jovens e os que são oriundos das camadas mais
desfavorecidas[446].
Pelo contrário, as práticas habitualmente classificadas
como indicadores de uma cultura de saídas
apresentam valores reduzidos. Em Lisboa, somente 31% dos inquiridos sai para almoçar ou jantar fora, ir a discotecas
e bares. Apenas os tempos livres de sociabilidade
local, como ir à missa, frequentar cafés e cervejarias, etc., assumem
valores elevados. O mesmo se passa na área metropolitana do Porto: segundo o
estudo de Jorge Gaspar, 64.8% dos
inquiridos vão ao café pelo menos uma vez por semana, enquanto que a ida a
discotecas pelo menos uma vez por mês não representa mais de 10.3%.
No entanto, e como refere João Sedas Nunes, os tempos
livres de sociabilidade local
apresentam‑se, a maior parte das vezes, “como uma extensão física das redes constituídas pelo fórum doméstico, na rua e no bairro (espaços públicos que, no entanto,
através dos agentes específicos que os apropriam, são «controlados» pela
«unidade doméstica»)”[447].
Ainda assim, outros autores salientam a intensidade dos vínculos conviviais
nestes espaços‑tempos de sociabilidade
local, como é o caso do café. De acordo, por exemplo, com Virgílio Borges
Pereira, os cafés devem ser analisados como espaços semi‑públicos,
emergindo como forma de combater o isolamento elitista da “cultura de salão” e
onde se expressam laços de sociabilidade informal próprios dos cenários de co‑presença[448].
Para além de desempenhar uma função utilitária, o café surge como lugar
convivial, o que complica a interpretação dos números relativos à sua
frequência[449].
Por outro lado, se atentarmos no quadro I, referente a um panorama geral da situação cultural
portuguesa durante uma década (com os valores respeitantes a dois anos limite —
1985 e 1995) verifica‑se uma quebra de 24.5% na utilização de recintos para espectáculos públicos, sendo
que quase 50% se concentram em Lisboa e Vale do Tejo. O mesmo se passa em
relação ao número de editores e livreiros existentes em Portugal continental (‑33.1%). Situação igualmente
negativa é a que se verifica ao nível das sessões de cinema (‑21.2%), com consequências ainda
mais assinaláveis no que respeita à quebra do número de espectadores (‑61%), representando em valores
absolutos menos 11.587.000
espectadores).
No entanto, como também se constata no quadro I, existem algumas evoluções
positivas a assinalar. Desde logo, no acréscimo de outras sessões de
espectáculos públicos que não o cinema (+28%)[450].
Mas, mais significativo ainda, pelo aumento substancial do número de visitantes
de museus (mais 3.489.097 no período
1985/95, ou seja, +67.4%). Outro
acréscimo, extremamente relevante prende‑se com o número de bibliotecas.
De facto, estas mais do que triplicam na década em análise (mais 1080, ou seja, +202.2%).
QUADRO I — ESPECTÁCULOS PÚBLICOS: DADOS GERAIS (1985
E 1995)
|
MUSEUS |
VISITANTES MUSEUS (1000) |
EDITORES E LIVREIROS |
RECINTOS |
|
||||||
|
1985 |
1995 |
1985 |
1995 |
1985 |
1995 |
1985 |
1995 |
|||
PORTUGAL |
229 |
341 |
5.177 |
8.666 |
721 |
482 |
425 |
321 |
|||
TAXA VARIAÇÃO 1985/95 |
+ 48.9% |
+67.4% |
‑33.1% |
‑ 24.5% |
|||||||
(Continuação)
|
Nº. SESSÕES CINEMA |
ESPECTADORES CINEMA (1000) |
Nº. SESSÕES OUTRAS MODALIDADES |
Nº. ESPECTADORES OUTRAS MODALIDADES (1000) |
BIBLIOTECAS |
|||||
|
1985 |
1995 |
1985 |
1995 |
1985 |
1995 |
1985 |
1995 |
1985 |
1995 |
PORTUGAL |
185.092 |
145.846 |
18.984 |
7.397 |
3.750 |
4.799 |
808 |
953 |
534 |
1614 |
TAXA VARIAÇÃO 1985/95 |
‑ 21.2% |
‑ 61% |
+ 28% |
+ 17.9% |
+ 202.2% |
FONTE: INE, Estatísticas da Cultura, Desporto e Recreio,
1985 e 1995
Todavia, se atentarmos no quadro II, verifica‑se que, para o total dos espectáculos
públicos, a queda é brutal: de 19.8
milhões de espectadores em 1985
para pouco mais de 8.3 milhões em
1995. Ainda assim, tal queda explica‑se pelo acentuado decréscimo
verificado no cinema, o qual, como se pode observar, quase faz o pleno dos
espectáculos públicos.
Da mesma forma, o teatro também perde espectadores,
apesar de um aumento significativo no número de sessões, o que, traduzindo
embora um aumento da oferta nesta área, ao qual não será alheio um acréscimo
dos meios disponíveis, se mostra insuficiente para uma evolução positiva da
procura. Quanto aos outros sectores, apesar de se registarem aumentos expressivos
em termos relativos (concertos, bailados, variedades), partem de valores tão
reduzidos que não chegam a superar a forte escassez de espectadores.
Em síntese, pode‑se afirmar que os espectáculos
públicos, associados à um certo tipo da chamada “cultura de saídas”, sofrem
durante a década 1985‑1995, um recuo considerável, em especial se
atentarmos no número de espectadores. Os portugueses, por isso, passam muito
mais tempo em casa. António Barreto é de opinião de que este padrão de intensa
exposição aos media “é inalterável e não reagiu
significativamente à subida real das taxas de alfabetização e da frequência das
escolas”[451]. Ainda
segundo este autor, e ao contrário do que aconteceu na evolução das práticas
culturais dos restantes países europeus, “quando
os portugueses chegaram um estádio
de desenvolvimento que deixaria supor uma superior propensão para a procura de
informação escrita, já a televisão satisfazia tais necessidades”[452].
QUADRO
II — ESPECTÁCULOS PÚBLICOS: RECINTOS, SECÇÕES E ESPECTADORES POR MODALIDADES
(1985 E 1995)
|
RECINTOS |
SECÇÕES |
ESPECTADORES
(1000) |
|||
|
1985 |
1995 |
1985 |
1995 |
1985 |
1995 |
CINEMA |
379 |
241 |
185.092 |
145.846 |
18.984 |
7.397 |
TEATRO |
37 |
40 |
1.916 |
3.512 |
486 |
339 |
ÓPERA |
3 |
8 |
56 |
62 |
36 |
35 |
CONCERTOS |
4 |
37 |
81 |
386 |
13 |
249 |
BAILADOS |
8 |
19 |
152 |
214 |
64 |
82 |
MISTA (VARIEDADES) |
11 |
13 |
388 |
392 |
9 |
65 |
CIRCO |
1 |
1 |
2 |
‑ |
‑ |
‑ |
TOURADAS |
20 |
27 |
72 |
98 |
192 |
152 |
OUTRAS MODALIDADES |
5 |
12 |
83 |
104 |
8 |
31 |
FONTE:
INE, Estatísticas da Cultura, Desporto e
Recreio (1985 e 1985)
Não somos, no entanto, apologistas das análises que falam
de catástrofe quando se menciona o efeito dos mass media na (des)estruturação das redes de sociabilidade e das
competências cívicas e culturais dos agentes sociais. Acreditamos, como já
tivemos ocasião de o afirmar, nas capacidades selectivas e reinterpretativas da
recepção cultural, bem como nos mecanismos cognitivos de mediação dos agentes
sociais que impedem o efeito “estímulo/reflexo” e nos distanciam do modelo do
“sonambulismo social” dos alegres robots.
Contudo, não deixa de ser inquietante verificar o peso
esmagador dos tempos domésticos receptivos, precisamente porque quase esgotam o
leque disponível de práticas culturais[453].
Por outras palavras, a possibilidade de confrontar informações e estímulos
culturais verificar‑se‑á, esmagadoramente, no interior do que
Olivier Donnat apelida de economia
mediático‑publicitária[454],
com as suas formas particulares de apresentação, representação e construção de
visões do mundo. Apesar das tendências crescentes para a diversificação e
especialização dos mass media,
permitindo encontrar a novidade e a singularidade onde apenas se esperava
estandardização e uniformização, não podemos deixar de reflectir sobre os seus
efeitos nos universos culturais[455]
dos portugueses. De acordo com este autor, a televisão apresenta‑se “de certa maneira como o sistema de
consagração da nossa época”[456]
ou como um “sistema concorrente de
distinção”[457].
Ao contrário dos universos culturais legitimados da cultura cultivada, onde
ainda é significativo o peso dos mecanismos clássicos da distinção (baseados na
crença da autonomia do campo artístico e na tríade artistas, mediadores
culturais — em especial os críticos — e instituições culturais ‑em
particular a escola), a consagração funciona, agora, de forma extremamente
rápida, “accionando relações inéditas
entre a arte, a economia e a tecnologia”. Se, outrora, as características
do “artista maldito” (ascese, sofrimento, isolamento) asseguravam, dentro do
subcampo artístico, um alto capital simbólico, hoje tudo se joga na
espectacularização. Contudo, como faz notar Olivier Donnat, se actualmente
contam “as trajectórias fulgurantes e o
reconhecimento imediato”[458],
existe, contudo, um domínio onde as duas lógicas de consagração encontram um
terreno comum: a ênfase no existencial, no carácter excepcional de certas
trajectórias e o sentido da provocação. Desta forma, a economia mediático‑publicitária
acaba também por invadir os círculos restritos da cultura cultivada e “a grande maioria dos artistas procuram hoje
a estratégia ideal que permite acumular o máximo de capital mediático, sem
perder a consideração do seu meio”[459].
Muitos autores questionam a ilusão de democratização
patente no êxito retumbante da explosão mediático‑publicitária. Para
estudiosos como Habermas, a exposição à massificação não só está isenta de
intenções críticas e inovadoras, como provoca “efeitos regressivos”, não havendo qualquer correspondência entre a
lógica da quantidade e a da qualidade. Por outras palavras, fica “comprometida, assim, a correspondência
entre maior público e maior «esfera» pública no sentido intersubjectivo,
habermasiano do termo”[460].
Outros autores, no entanto, salientam a persistência de
um potencial crítico e criativo na cultura mediático‑publicitária. Maria
de Lourdes Lima dos Santos refere, a esse respeito, todos os jogos de
cumplicidade que animam a relação emissor/receptor. Esta autora salienta os
processos de intertextualidade, colagem e descontextualização das produções
existentes, baseados num “piscar de olhos” ao receptor e que possibilitam
efeitos ousados de divulgação, permitindo “que
quem não pertence a um determinado campo possa aperceber‑se do modo como
os especialistas do respectivo campo elaboram as suas produções”[461].
Seria interessante, nesta discussão, conhecer os poucos
que não se integram nem se reconhecem na cultura mediático‑publicitária.
Segundo o estudo sobre as práticas culturais dos lisboetas, essa pequena
minoria constitui uma espécie de “excluídos de luxo”. De facto, ela é
constituída por indivíduos pertencentes a um estrato médio superior, estudantes
ou trabalhadores com formação superior. No pólo oposto encontram‑se os
“grandes consumidores”, constituídos por idosos, reformados e desempregados,
não possuindo nenhum diploma e pertencentes a um estrato social baixo. Desta
forma, ao ser uma actividade rara e quase residual, não ver ou ver pouco
televisão torna‑se uma prática distintiva de grande valor simbólico.
Uma outra questão fundamental prende‑se com os usos
da televisão. De facto, existem diferenças assinaláveis entre um espectador que
programa selectiva e cuidadosamente o seu televisionamento e um outro que tudo
consome indistintamente.
De acordo com Donnat, vivemos na segunda era do
audiovisual. Enquanto que a primeira representou uma difusão massiva de
equipamentos, alargando a quase todos os lares a posse de um aparelho de TV, a
segunda liga‑se a uma individualização das práticas audiovisuais, bem
como ao seu carácter interactivo: multiplicação dos canais, telecomando e
vídeo.
Qual é, neste aspecto, a situação portuguesa? O inquérito
coordenado por Jorge Gaspar e relativo às práticas culturais na área
metropolitana do Porto mostra que a posse de um aparelho de TV se alargava,
então, a cerca de 95% da população
inquirida. Quanto à posse de vídeo, não ultrapassava os 4%. Contudo, este trabalho data de 1986. Em 1987, e para o total da
população portuguesa, a posse de televisão quedava‑se pelos 82.8%. Em 1995, tal número subia para 96.4%[462],
apenas ultrapassado pela posse de fogão. A diferença mais abissal, no entanto,
diz respeito ao usufruto do vídeo: em 1995 atingia já 45.2% da população[463],
enquanto que 9.3% da população tinha
instalada antena parabólica[464]
e 7.8% possuía uma câmara de vídeo[465].
Tais dados apontariam para uma utilização cada vez mais
selectiva, individualizada e interactiva no domínio do audiovisual. Contudo, no
estudo sobre as práticas culturais dos lisboetas verifica‑se “que cerca de 85% da população, pelo menos
algumas vezes ou mesmo frequentemente, desconhece o que irá ver quando liga o
televisor”[466].
De qualquer forma, alguma informação indicia atitudes menos passivas: 49.3% da população lisboeta tem por
hábito mudar de canal (zapping) e 83.8% dos inquiridos, pelo menos
algumas vezes e mesmo frequentemente, comenta a programação televisiva nos seus
círculos conviviais. Assim, seguindo uma expressão de Idalina Conde, verifica‑se
uma certa “funcionalidade lateral da TV –
em contraste com o centramento nas emissões e a fidelização da procura que o conceito
de telespectador em princípio subentende”[467].
Por outro lado, se é verdade que existe uma clara
degradação dos conteúdos culturais dos programas televisivos[468],
não podemos deixar de referir o entusiasmo com que alguns recebem as novas
tecnologias da comunicação que vão, paulatinamente, substituindo os modelos do
“audiovisual clássico”[469].
O multimédia, por exemplo, reabilita o texto e requer uma participação activa
por parte do utilizador, enquanto que a Internet cria novas redes de
sociabilidade.
Finalmente, uma última nota leva‑nos a realçar que,
apesar da clara colonização dos tempos livres pela televisão, o espaço
doméstico permite outro tipo de práticas, designadamente as de cariz amador
(por exemplo, utilizando como suportes equipamentos de vídeo ou de fotografia)
e as de tipo intelectivo, para seguir
a categoria em que Idalina Conde integra as práticas de leitura.
1.2. O
peso do capital escolar.
Os números são claros: o acesso aos bens e aos circuitos
da cultura cultivada depende, em larga medida, da existência de um capital
escolar elevado. Não só a intensidade das práticas se liga à posse de um alto
grau de escolaridade, como tal se verifica em quase todas as actividades
culturais: cinema, leitura, música, teatro, saídas nocturnas, etc.
No que diz respeito às práticas mais generalizadas e
massificadas, o peso do capital escolar é decisivo na demarcação de géneros e
usos. Por exemplo, o caso da utilização do zapping
na televisão é tanto mais utilizado quanto mais elevado é o grau de instrução dos
inquiridos[470]. Nas
práticas de leitura, a poesia e o ensaio adquirem contornos de distinção.
Assim, temos três tipos de fracturas: a primeira diz
respeito à intensidade das práticas culturais (os mais instruídos ouvem mais
rádio, lêem mais jornais diários e semanários, vão mais ao cinema e aos
concertos, lêem mais romances e poesia, etc.); a segunda refere‑se à
raridade das práticas mais enobrecidas (frequência de museus e galerias, gosto
pela música clássica, pelo jazz e pelo teatro “independente”, leitura, práticas
de criação cultural, etc.) fortemente ligadas a um alto capital escolar; a
terceira diz respeito à demarcação entre géneros e tipos de produtos
(preferência pelos filmes de crítica social nos meios mais escolarizados, pelos
programas televisivos de informação e cultura, pelos livros científicos, de
poesia ou de ensaio, etc.). As actividades que menores clivagens exercem e onde
a distinção se faz a contrario, isto
é, pela negativa, são o televisionamento, em que os não espectadores, como já
referimos, possuem maiores habilitações literárias, e a leitura de jornais
desportivos.
Por outro lado, os analfabetos (literais e periliterais),
os reformados, os idosos, os camponeses e as domésticas constituem um pólo
sistematicamente excluído e retraído, mesmo no que se refere às actividades
mais massificadas, confinado a um número reduzido de práticas culturais e aos
géneros mais “populares”.
Como referem Santos Silva e Helena Santos, o capital
escolar funciona principalmente como “revelador”,
isto é, “revelador de diferenças e
desigualdades sociais, de que constitui, ao mesmo tempo, produto e factor de
reprodução, reforço (e, não esqueçamos, alguma alteração)”[471].
Por outro lado, possibilita análises mais finas, propiciando demarcações dentro
da mesma fracção de classe (revelando a sua heterogeneidade), como por exemplo
acontece na pequena burguesia de execução, em que certos sectores ligados ao
trabalho braçal se aproximam claramente das “classes populares”, enquanto que
outros, dentro do sector terciário, se aproximam das “classes médias urbanas”[472].
Ou como se constata, igualmente, dentro da própria burguesia escolarizada,
segmentada por “«pericialidades» eruditas
suficientemente restritivas para retraírem a elite do(s) público(s)
artístico(s) no interior do(s) público(s) cultivado(s)” o que implica
“desajustamentos perceptivos” e “diferentes
graus de fechamento nas suas diferentes culturas (artísticas)”[473].
Desta forma, é preciso não esquecer que determinados
consumos da cultura erudita são também minoritários mesmo entre os mais
escolarizados (exemplos elucidativos são a leitura de poesia, a ida ao teatro e
a concertos, a visita a museus, as práticas criativas, etc.). Assim, a
escolarização, apesar de necessária, não é condição suficiente para o acesso aos
bens e práticas mais discriminativos, mesmo no interior dos grupos sociais
elevados em termos de status sócio‑económico e capital escolar. Mesmo
tendo em conta que a distância face a algumas práticas certamente diminuiu com
a expansão/massificação do sistema de ensino (veja‑se o caso da música
clássica, segundo o inquérito às práticas culturais dos lisboetas[474]),
noutros casos tal distância aumentou ou manteve‑se inalterável. É mesmo
de salientar que certas práticas massificadas em outros países (como a ida ao
cinema) apresentam‑se, no contexto português e em termos de acesso,
bastante próximos da cultura cultivada[475].
Desta forma, parece fazer sentido insistir‑se, como faz Idalina Conde,
numa dissociação entre o capital escolar e o capital cultural, ou entre uma
cultura simplesmente letrada e uma cultura cultivada (eventualmente por efeito
de uma certa desqualificação das credenciais escolares, arrastada pela
“inflação dos diplomas”)[476].
Por outro lado,
verifica‑se um certo ecletismo nos grupos sociais mais favorecidos, já
que são os maiores praticantes de certos géneros ou estilos fortemente
associados à cultura de massas. Tal como refere O. Donnat, os mais actualizados
dos actualizados (“Les plus branchés des
branchés”) acumulam vários tipos de consumo, caracterizando‑se tanto
pelo seu conhecimento dos valores e nomes “clássicos” associados à cultura
escolar, como pelo seu interesse pelo renovação dos stocks culturais através de um perfil mais “moderno”: “eles são os mais modernos porque se
interessam por todas as expressões da vida cultural: dispondo das referências
mais diversificadas, julgam sem dogmatismo e manifestam nos seus gostos uma
concepção aberta de cultura”[477].
Como interpretar este conjunto desconcertante de
informações?
Antes de mais, assumindo a necessidade de denunciar todos
os discursos ultra‑optimistas que defendem o fim das distinções sociais
classistas e a sua substituição por meras demarcações estéticas nos estilos de
vida. De facto, como refere uma vez mais Donnat: “Inquérito após inquérito (...) os resultados provam que os
comportamentos culturais continuam fortemente correlacionados com as posições e
as trajectórias sociais, e em particular com o capital cultural”[478].
Por outro lado, existem indicadores de que nem tudo se passa de acordo com os
esquemas bourdianos das homologias: os resultados disponíveis de vários
inquéritos aos públicos do teatro demonstram que a maior parte dos inquiridos “não ia ao teatro em criança, nem os seus
pais tinham o hábito de ir ao teatro”[479].
Os níveis de escolaridade dos progenitores são, aliás, globalmente inferiores
aos dos inquiridos, beneficiários de uma mais recente expansão do sistema de
ensino. Ao nível da sociedade portuguesa verifica‑se que, em 1992, 79.5% da população activa não possuía
mais do que o 3º ciclo do ensino básico[480].
Este indicador alerta‑nos para um acentuado processo de dualização,
agravado pela crise do Estado‑Providência e pela retracção dos direitos
de cidadania, colocando largos sectores da população numa situação de exclusão,
sem possibilidades de mobilizar o seu escasso capital social e exercendo uma “profunda clivagem entre os que estão dentro
e os que estão fora”[481],
a par de um apagamento nas lutas simbólicas que animam o campo cultural.
Se parece credível afirmar que o aumento da escolaridade
não constitui condição suficiente para o alargamento de acesso às práticas
culturais mais exigentes e discriminativas, tal situação agrava‑se num
país onde apenas uma escassa minoria possui níveis de escolaridade médios ou
elevados. O Estudo Nacional de Literacia
mostrou uma população fracamente escolarizada, cujos pais possuem níveis de
instrução ainda mais baixos e em que predominam, na sua composição sócio‑profissional,
os assalariados de fracos recursos económicos e baixas qualificações. Pelo
contrário, os quadros técnicos, científicos e intelectuais, apesar de um franco
progresso, constituem, por comparação com países mais avançados, um segmento
bastante diminuto[482]:
“A existência de cerca de 73% da
população com o máximo de seis anos de escolaridade, para além de confirmar os
dados internacionais que apresentam para Portugal, no conjunto dos países
industrializados, dos mais baixos níveis de escolarização da população dos 25
aos 64 anos, reforça a convicção que aponta para a existência de um número
significativo de adultos que vêem dificultada a sua inserção numa sociedade
cada vez mais exigente, complexa e competitiva”[483].
Para António Teixeira Fernandes, tal situação resulta, em
grande parte, de um sistema de ensino desarticulado, rígido e baseado em
modelos pedagógicos e de aprendizagem desadequados face às crescentes
exigências do progresso científico‑tecnológico: “A escola não é um espaço de cultura e de educação, mas de mera
informação fria e rotineira”[484].
Alain Touraine, reflectindo sobre a realidade francesa,
defende uma escola que seja capaz de pensar três ordens de problemas: “a ciência fundamental, o conhecimento
economicamente orientado e os saberes socialmente úteis”[485].
Ao mesmo tempo, reconhece, com base nos estudos de Didier Lapeyronnie e
François Dubet, que o universo escolar está cortado ao meio, devido a um grande
desconhecimento mútuo entre alunos e professores.
José Madureira Pinto, no entanto, recentra a análise nos
espaços de socialização familiar e na esfera do trabalho. Se, como se verifica,
apesar do aumento dos níveis de escolaridade se mantêm elevadas taxas de
analfabetismo “literal” ou “funcional”, a par de reconhecidas dificuldades,
mesmo entre os mais letrados, na execução de tarefas básicas, tal deve‑se
a “processos de efectiva anulação de
aquisições feitas na escola”[486]
ou mesmo regressões que questionam a (in)capacidade de prolongar na família as
aquisições feitas na escola. Por outro lado, valores como o sentido de
autonomia, a criatividade e o espírito de iniciativa, apesar de instigados pela
escola, não encontram uma efectiva correspondência no mundo do trabalho,
marcado pela segmentação e empobrecimento das tarefas, reprimindo “disponibilidades de inteligibilidade e de
expressão adquiridos em percursos educativos anteriores” e criando as
condições “para que postos de trabalho
desqualificados se tornem eminentemente desqualificantes”[487].
Desta forma, importa colocar em questão um modelo de
política cultural até há bem pouco tempo tido como intocável: o de que, pelo
simples efeito conjugado de uma multiplicação da oferta cultural e de uma
expansão dos níveis de instrução, se veriam resolvidos os problemas de acesso à
cultura através de um irreversível processo de democratização.
No que se refere ao nível de escolaridade vimos já que,
para além dos seus baixos patamares, as aquisições estão longe de ser
irreversíveis. Por outro lado, existe em Portugal uma certa contracção da
oferta cultural, associada, por um lado, a uma forte centralização política, a
que nem sempre o poder local consegue contrariar os efeitos e, por outro, à
falta de exploração de alternativas na descoberta dos públicos e dos mercados
(note‑se, a esse respeito, o cariz incipiente das iniciativas de mecenato
cultural. Maria de Lourdes Lima dos Santos refere mesmo a necessidade de “integrar equilibradamente o apoio privado
numa política cultural global”[488]). Em Portugal, o não‑público é
uma imensa maioria (a centralidade e não a marginalidade, como refere Idalina
Conde), o que constitui um estímulo para a conquista de novas camadas de
praticantes culturais. Augusto Santos Silva pega na mesma ideia para sugerir
uma dupla acção: por um lado, consolidar uma oferta cultural coerente e
persistente, de forma a estabilizar o público já existente, aumentando a intensidade
e a frequência das suas práticas. Por outro lado, conquistar públicos virtuais
com certas potencialidades, designadamente no que se refere ao seu volume de
capital escolar[489].
O não‑público, não o esqueçamos, é igualmente maioritário mesmo entre os
mais escolarizados.
Entretanto, assiste‑se a um certo desprezo pelas
referências transmitidas pela cultura escolar, a que não será alheio o triunfo
do audiovisual e a “morte” do livro, tudo isto enquanto se intensificou a
massificação do sistema de ensino, mesmos nos seus níveis intermédios e
superiores.
Donnat defende, por isso, e como já referimos
anteriormente, a existência de novas formas de consagração no campo cultural e
no sub‑campo artístico. A “economia
mediático‑publicitária” entra em competição com a cultura “clássica”
de cariz escolar e académico. Como resultado, o “universo cultivado moderno” organiza‑se através de outras
referências: “o conjunto imagem‑som
e as saídas nocturnas como os concertos de jazz e de rock, os espectáculos de
dança e de cinema”[490].
A este novo tipo de práticas culturais associa‑se uma superestrutura de
valores, mitos, rituais e visões do mundo, prevalecendo, ainda segundo Donnat,
o hedonismo, o individualismo, a juvenilização e a espectacularização do real.
Em última instância, encontra‑se em causa a
racionalidade ocidental com origem no Iluminismo, baseada na difusão do saber e
do conhecimento como fontes privilegiadas de emancipação política e de acesso à
cidadania. Como em causa está o modelo republicano e laico da escola, baseado
nos mesmos valores. Uma derradeira utopia pretendeu ver na televisão uma outra
escola: a “escola paralela”[491].
No entanto, os dados que possuímos levam‑nos a pensar que as paralelas
encontrar‑se‑ão, cada vez mais, num longínquo, indefinido e sempre
adiado infinito.
O discurso sobre o falhanço da escola, extremamente
vulgar nos países europeus durante os anos 80, leva, por vezes, a conclusões
fatalistas sobre um irreversível “declínio
cultural”, tanto mais paradoxal quanto aumentam os níveis de escolarização.
Mas a preocupação é mais vasta: “No
debate actual que temos procurado precisar, a nova querela escolar desempenha
um papel de primeiro plano. Ela deixa transparecer uma grande parte dos receios
e incertezas ligados actualmente ao conceito de cultura”[492].
Conceito que se torna mais vasto, elástico e aberto a referências iconoclastas
face aos cânones escolares.
Perante a persistência de profundas desigualdades no
acesso à cultura, perante o falhanço das políticas tradicionais de difusão e de
alargamento de públicos, falhanço patente apesar do acréscimo da escolaridade,
da diversificação da oferta e mesmo, em alguns casos, da eliminação dos
constrangimentos materiais (oferta de bilhetes junto das escolas, por exemplo),
Donnat fala do “esgotamento das utopias”.
Em contrapartida, aumentam os processos de construção
social da realidade por parte dos mass
media, instrumentos privilegiados de legitimação do que constitui ou não
acontecimento, cultura ou mesmo arte.
1.3. A
juvenilidade das práticas culturais.
Vários são os domínios em que o factor “idade” exerce uma
forte influência, apesar de desconfiarmos da sua autonomização face a outras
variáveis, tornando‑se‑nos difícil falar de “efeitos geracionais” tout court.
Num inquérito às práticas de leitura dos portugueses, os
jovens revelaram‑se os maiores leitores[493],
não só no que respeita aos livros, como também aos jornais e revistas; em
práticas como a audição de rádio e de música, televisionamento (a esse
respeito, Luísa Schmidt fala de um “modelo
juvenil «media minded», uma vez que a exposição mediática é cumulativa e se
verifica uma atitude eclética face ao conjunto dos media: um médium não
excluirá outros”[494]) e ida ao cinema os jovens são os
principais praticantes, bem como em domínios da cultura cultivada, como a
música clássica e o jazz. Os jovens são, igualmente, os maiores frequentadores
dos equipamentos culturais urbanos[495]
e os principais protagonistas de uma incipiente “cultura de saídas”
(essencialmente direccionada para o cinema, os cafés e cervejarias, centros
comerciais e discotecas, com valores muito reduzidos no que respeita a idas a
exposições e museus, teatro, concertos e mesmo espectáculos desportivos).
Maria de Lourdes Lima dos Santos estabelece uma
comparação entre as práticas culturais dos jovens portugueses e franceses: “em França é sobretudo para os jovens que
mais regridem, relativamente, os hábitos de leitura e mais se acentua a cultura
de saídas de sociabilidade; em Portugal, os jovens têm uma prática de leitura
relativamente mais forte e, ao mesmo tempo, uma mais acentuada cultura de
domesticidade”[496].
No entanto, a domesticidade dos jovens portugueses associa‑se também a um
modelo de convivialidade informal (recebendo amigos em sua casa ou indo a casa
de amigos), como aliás demonstram os trabalhos de José Machado Pais, ao mesmo
tempo que se revelam, a um nível muito elevado, tão ou mais do que os seus
congéneres franceses, adeptos do audiovisual. Idalina Conde defende mesmo que
existe uma “indução juvenil” na
aceleração verificada na aquisição de equipamentos audiovisuais e informáticos.
Importa referir, ainda, o rápido processo de
envelhecimento cultural que caracteriza os jovens portugueses: em geral, a
obtenção de um posto de trabalho e a constituição de família própria implicam uma
redução drástica das sociabilidades extra‑familiares e da “cultura de
saídas”, acentuando‑se, por conseguinte, a domesticidade.
Segundo Donnat, os jovens franceses colocam‑se,
decisivamente, no pólo dos “modernos”
e dos “provocadores” (por oposição aos
“clássicos” e aos “conformistas”) no que isso significa de
rejeição dos valores consagrados da “cultura
patrimonial”, dos valores e consensos dominantes. A estrutura do seu “capital informacional”[497]
torna‑os mais sensíveis aos efeitos flutuantes da moda e das estrelas
mediáticas, a par de uma desvalorização das referências académicas e
convencionais.
Maria de Lourdes Lima dos Santos fala, a esse propósito,
da idade como um “capital transitório”
equiparável, em certas circunstâncias, ao capital cultural[498].
No entanto, Donnat mostra com clareza que o factor idade
não é independente de uma vasta constelação de outras variáveis. O facto, por
exemplo, de se ter abandonado precocemente a escola e não possuir um diploma é
acentuadamente menos penalizador para todos aqueles, oriundos de um meio
culturalmente rico, onde a socialização familiar funciona como equivalente
funcional da escola na transmissão de saberes e competências. O mesmo acontece
para os indivíduos provenientes da região parisiense e que têm uma intensa rede
de sociabilidades.
Eduardo Prado Coelho, baseado em Donnat, delimita três
gerações[499]: a com
mais de 50 anos, possuidora de um capital informacional clássico[500];
a que detém uma idade entre os 35 e os 50 anos, convertida à cultura mediática
mas com a persistência de hábitos de leitura e, finalmente, a geração com menos
de 35 anos. Esta, “pertence a uma
sociedade em que se enfraqueceu poderosamente o papel de tutores culturais: os
professores, os pais, os profissionais, as instituições, e isto porque se
multiplicaram as condições que permitem ao indivíduo aprender «por si próprio»:
quartos à parte, segundo ou terceiro aparelho de televisão, computadores e
jogos educativos (...) Os seus valores são fundamentalmente os do espectáculo,
do inebriamento sonoro, da «performance», da eficácia, da distracção e da
evasão (...) Podemos falar em «geração rasca», mas o mais correcto é dizer que
se trata de uma geração rasa de referências e de memória, arrasada pelo vazio
de si mesma”[501].
No entanto, Eduardo Prado Coelho parece esquecer o peso
do capital escolar. O próprio Donnat refere, como já mencionámos, que os mais
actualizados dos actualizados (“les plus
branchés des branchés”) se caracterizam pelo ecletismo do seu capital
informacional e pela cumulatividade de conhecimentos oriundos quer do pólo
“clássico”, quer do “pólo moderno”; quer do pólo “conformista”, quer do pólo
“contestatário”; adquirindo posturas quer intelectuais, quer anti‑intelectuais.
Ora, este segmento é, antes de mais, um segmento jovem. A grande diferença é a
posse de um elevado capital escolar. Trata‑se, tão‑só, da “posição cultivada das jovens gerações
diplomadas urbanas de hoje”[502],
os que, para além da leitura e audição dos “grandes nomes” e do respeito pela
memória cultural, renovam os seus conhecimentos e gostam de jazz, rock e banda desenhada. A novidade deste conjunto de disposições é
que a cultura escolar deixou de ser o eixo estruturante das práticas culturais
e a “cultura‑diversão” não mais é olhada em jeito de heresia[503].
Os pontos de investimento desta nova atitude erudita centram‑se, como
aliás DiMaggio sublinha, no desenvolvimento de densas redes de convivialidade
extra‑familiar, na multiplicidade de papéis sociais exercidos e na
estruturação de uma cultura de saídas activa e diversificada. Por outro lado,
mantêm‑se atentos à novidade e resistem ao envelhecimento e à
“classicização” cultural através de uma “circulação
rápida das informações graças a circuitos curtos e difusos”[504].
Falar de uma “geração
rasa”, conduz‑nos, uma vez mais, a uma nova “ilusão da homogeneidade”. Por um lado, as características que
Eduardo Prado Coelho atribui à “nova geração” não são unanimemente partilhadas;
por outro, os jovens portugueses, como anteriormente se viu, revelam‑se,
para a maior parte do elenco das práticas culturais, os seus mais intensos
protagonistas. Sob o impacto do
“boom” da “cultura juvenil” e de uma “juvenilização” simbólica de todo o tecido
social, escondem‑se “universos
culturais” distintos.
Aliás, é precisamente na resistência ao envelhecimento
cultural que cedo se distinguem as práticas e se estabelecem as desigualdades e
clivagens entre os jovens. Como refere Maria de Lourdes Lima dos Santos, a sua
aparente homogeneidade, fruto de uma partilhada experiência escolar, depressa
se revela como uma “homogeneidade de
superfície”[505].
1.4.
Distinções segundo o género
No estudo sobre as práticas culturais dos lisboetas
verifica‑se, desde logo, uma forte divisão quanto ao âmbito dos “universos culturais” masculinos e
femininos. Os primeiros, não só possuem períodos mais extensos de tempos livres
(porque libertos das tarefas e actividades domésticas), como a sua estrutura é
mais diversificada. São eles, também, quem mais sai e mais se autonomiza face
ao ambiente doméstico‑residencial.
Depois, existe um sem número de pequenas distinções que
contribuem, todavia, pela sua recorrência e sistematicidade, para a elaboração
de perfis culturais distintos. É o caso, por exemplo, dos programas
televisivos, em que o desporto aparece claramente como um domínio masculino, ao
contrário das telenovelas, consumo predominantemente feminino. Da mesma forma,
são os homens quem mais faz um uso selectivo da programação, utilizando
frequentemente o zapping. De igual
modo, no cinema, existem filmes consumidos preferencialmente por homens e
outros por mulheres. No primeiro caso encontram‑se os filmes de acção, de
guerra, Westerns, policiciais, ficção científica, crítica social, eróticos e
pornográficos. Por seu lado, as mulheres escolhem relativamente mais filmes
históricos, românticos, musicais, dramáticos e de terror[506].
Um outro exemplo, ainda, para salientar “que
a frequência regular de teatros atrai, proporcionalmente, cerca do dobro de
homens relativamente ao sexo oposto”[507].
No campo da leitura, finalmente, as mulheres lêem mais os romances, os livros
sentimentais, os de culinária, conselhos práticos e religiosos. Eles, pelo seu
lado, preferem os policiais, os westerns, os filmes de aventura e viagens, os
científicos, os político‑filosóficos e, de novo, os pornográficos e
eróticos.
Segundo o estudo de Jorge Gaspar para a área
metropolitana do Porto, é possível detectar outros indicadores deste duplo
padrão cultural. Os homens, por exemplo, lêem muito mais os jornais diários. No
caso das revistas, a situação inverte‑se. No que respeita aos livros, o
panorama é mais equilibrado, embora existam proporcionalmente mais leitores
masculinos (56.3% contra 46.2%)[508].
De acordo com o mesmo trabalho, os homens vão mais vezes ao cinema e ao teatro,
bem como ao café. Pelo contrário, as mulheres frequentam mais as feiras e os
mercados. Práticas sensivelmente equiparadas são a ida a exposições, discotecas
e festas e romarias[509].
Existe, subjacente a estas distinções, um duplo padrão de
moralidade que leva as mulheres a confinarem‑se ao espaço doméstico‑residencial,
enquanto que os homens se abrem muito mais ao espaço exterior. Desde logo,
devido aos subtis, profundos e persistentes mecanismos da socialização
familiar, assentes em mecanismos sócio‑culturais de construção do género[510].
Ao contrário do sexo, ligado a
diferenças biológicas, o género
refere‑se a “um conjunto de padrões
comportamentais que se aprendem”[511].
Enquanto que as mulheres valorizam a cultura do íntimo, do privado e do afecto,
os homens orientam‑se mais em termos agonísticos e de abertura ao espaço
público.
As correntes pós‑modernas, ligadas aos Women Studies e inspiradas nos trabalhos
de Derrida e Foucault, insistem na necessidade de fragmentar analiticamente as
noções de masculino e feminino, de modo a evitar distinções com base em
critérios essencialistas. Sugerem o exemplo da etnia e da colossal diferença
que separa as mulheres negras das mulheres brancas. Defendem, por isso, a
existência de masculinidades e
feminilidades, baseadas nos distintos contextos situacionais e culturais.
No entanto, a desintegração do conceito de género (assim
como o de raça e classe) levaram a um negligenciar das principais divisões
sociais. Sylvia Walby, apesar de insistir na mútua determinação dos conceitos
de raça, género e classe, adverte para o perigo da dissolução da importância
das relações sociais de poder, com especial ênfase nas relações económicas[512].
Para esta autora, assiste‑se a uma nova fase do patriarcado, em que as
mulheres, de uma situação de trabalho doméstico não pago, transitam para um
modelo de família de dupla carreira, onde continuam a ser exploradas. O
principal indicador será, sem dúvida, o reduzido volume dos seus tempos livres,
por comparação com o dos homens.
2. Uma
exclusão amplamente partilhada.
Se observarmos agora os dados mais recentes disponíveis
sobre as práticas culturais dos portugueses (quadros III e IV[513])
desde logo constatamos a existência de um enorme défice cultural, significativamente demonstrado pela quase total
ausência de frequentação de um muito significativo leque de práticas culturais[514].
Aliás, apesar de as actividades com audiências mais minoritárias se situarem no
pólo da chamada “cultura cultivada” (concertos, teatro e ópera), verificamos
que, mesmo práticas próprias da cultura de massas (ver filmes vídeo, assistir a
jogos...), registam valores de participação reduzidos.
Somente cinco actividades conseguem cativar mais de 50%
do público: a leitura de revistas e de jornais, a audição de rádio e de música
e o televisionamento. Perante tal panorama, quando o cinema, espectáculo
público mais frequentado, apenas é visto com alguma regularidade por 18% de
portugueses, impõe‑se questionar os resultados das próprias políticas
culturais.
QUADRO III — Indicadores de Não
Frequência de Actividades Culturais (%)
|
Raramente + nunca |
Nunca |
Ver televisão |
4 |
1 |
Ouvir rádio |
18 |
5 |
Ouvir música |
29 |
12 |
Ler jornais diários |
48 |
28 |
Ler revistas |
45 |
26 |
Ler livros |
71 |
36 |
Ver filmes de vídeo |
65 |
38 |
Assistir a jogos |
69 |
47 |
Ir ao cinema |
82 |
51 |
Visitar museus/exposi‑ções |
88 |
55 |
Ir a livrarias |
82 |
56 |
Ir a discotecas |
78 |
60 |
Praticar desporto |
78 |
63 |
Ir a bibliotecas |
93 |
67 |
Ir a concertos |
92 |
71 |
Ir ao teatro |
96 |
76 |
Jogar no computador |
89 |
78 |
Ir à ópera |
99 |
91 |
Fonte: Eduardo de Freitas et al., Hábitos de Leitura. Um Inquérito à População Portuguesa, Lisboa, D. Quixote, 1998
De facto, se “avaliar
uma política consiste em determinar os seus objectivos, em precisar os seus
programas de acção, em medir os seus resultados e em verificar se os meios
aplicados produzem os efeitos pretendidos”[1],
podemos, com algum suporte e coerência, sustentar a posição de que a
democratização cultural, quer no seu sentido mais amplo e perene (o direito à
cultura como direito de cidadania), quer no seu sentido mais restrito e
imediato (alargamento do campo da cultura erudita, mediante uma apropriação
mais alargada das suas obras) é um objectivo ainda por atingir. Nessa medida,
não concordamos com António Barreto quando este autor refere que “é perceptível um acesso mais generalizado
dos cidadãos aos veículos tradicionais de cultura: espectáculos, imprensa,
bibliotecas, museus, jornais, televisão, etc.”[1],
excepção feita para a televisão. O próprio autor salienta, ou efeitos de
regressão em relação à década de 60 (“No
princípio dos anos 60, cada cidadão, em média, assistiria a três espectáculos
por ano; actualmente, menos de uma vez”, “aumento também do número de leitores apenas até aos finais dos anos
70, baixando a seguir para níveis próximos dos anos 60”[1]),
ou os baixíssimos índices de frequentação. Uma vez mais, mesmo nos casos
em que a oferta aumentou significativamente (como acontece com as bibliotecas)
o número de leitores não acompanha essa evolução.
Eduarda Dionísio corrobora, mediante a análise de
estatísticas, a nossa opinião: “Em 1970,
mais de um quarto da população não sabia ler nem escrever (...) Mas havia mais
jornais para ler: em 1973, mais 200 títulos do que em 1991 (...) Em 1973 havia
quatro vezes mais espectadores de cinema do que em 1991 e quase o dobro das
salas de cinema de 1991 (...) Em 1973 funcionavam cerca de 80 salas de teatro
(...) e as idas ao teatro foram um pouco mais de um milhão (...) Em 1991 eram
30 as salas e 300.000 os espectadores (...)”[1].
Idalina
Conde, numa breve comparação entre o estado da cultura em Portugal
e as realidades europeias mais avançadas salienta a situação de “subequipamento em termos de produção e
infraestruturas, níveis mais baixos de procura para alguns domínios e défices
em continuidade, consistência ou activismo da política cultural”[1].
QUADRO IV — Não Frequência de
Actividades Culturais Segundo o Habitat (%)
|
Total |
Rural |
Semi‑rural |
Semi‑urbano |
Urbano |
Lisboa/ Porto |
|
|
(Raramen‑te+ nunca) |
(<1000) |
(1000/10000) |
(10000/20000) |
(> 20000) |
|
|
Ver televisão |
4 |
4 |
4 |
4 |
4 |
2 |
|
Ouvir rádio |
18 |
23 |
19 |
12 |
14 |
9 |
|
Ouvir música |
29 |
38 |
30 |
23 |
22 |
21 |
|
Ler revistas |
45 |
52 |
47 |
35 |
36 |
42 |
|
Ler jornais diários |
48 |
54 |
50 |
40 |
40 |
42 |
|
Ver filmes de vídeo |
65 |
73 |
67 |
59 |
60 |
53 |
|
Assistir a jogos de futebol |
69 |
65 |
68 |
72 |
74 |
67 |
|
Ler livros |
71 |
77 |
73 |
66 |
62 |
67 |
|
Praticar desporto |
78 |
82 |
79 |
75 |
74 |
71 |
|
Ir a discotecas |
78 |
81 |
80 |
72 |
76 |
73 |
|
Ir ao cinema |
82 |
89 |
86 |
72 |
74 |
70 |
|
Ir a livrarias |
82 |
86 |
83 |
75 |
77 |
79 |
|
Visitar museus/ex‑posições |
88 |
93 |
91 |
80 |
85 |
79 |
|
Jogar jogos de computa‑dores |
89 |
94 |
90 |
87 |
87 |
78 |
|
Ir a concertos |
92 |
94 |
94 |
91 |
90 |
89 |
|
Ir a bibliotecas |
93 |
93 |
90 |
88 |
87 |
88 |
|
Ir ao teatro |
96 |
99 |
97 |
92 |
94 |
91 |
|
Ir à ópera |
99 |
100 |
100 |
99 |
99 |
97 |
|
Fonte: Eduardo de Freitas et al., op. cit.
Podemos ainda acrescentar que, perante tais indicadores,
tudo nos leva a pensar que falharam os objectivos sociais das políticas culturais.
De facto, a ampla exclusão cultural que constatámos apenas pode contribuir para
reforçar situações de vulnerabilidade social, afastando dos ligames sociais uma
vasta parte da população portuguesa, atomizada e sem mecanismos eficazes de
integração social. A ausência de práticas culturais expressivas e/ou criativas
reforça o fenómeno multidimensional da exclusão social, com implicações
poderosas ao nível da auto‑estima pessoal e social, da participação
pública e da própria densidade das redes de sociabilidade.
Esta situação é ainda paradoxal face às modificações mais
ou menos recentes que estilhaçaram o conceito tradicional de cultura. De facto,
a uma concepção de “cultura património”, fechada e sem integrar as novas formas
de expressão, sucede‑se uma outra concepção que, sem desprezar os valores
e obras do passado, se preocupa em abarcar a cultura “na sua própria polivalência e multivariedade”[520],
fazendo coexistir, não sem conflitualidade, novas e tradicionais culturas
populares (as primeiras de cariz essencialmente urbano, as segundas
vincadamente rurais), culturas e subculturas de minorias étnicas e outras,
indústrias culturais, etc. Alarga‑se o campo cultural, multiplicam‑se
as legitimidades culturais mas restringe‑se, simultaneamente, a
diversidade das práticas.
3. Uma
política cultural inexistente?
Apenas com uma excessiva boa‑vontade poderemos
defender a ideia de que tem existido, em Portugal, uma política cultural
articulada e sistemática de intuitos democratizadores. Aliás, convém desde logo
distinguir entre o âmbito de políticas
públicas de cultura e efectivas políticas
culturais. As primeiras verificam‑se, segundo Philippe Urfalino,
quando “uma autoridade política agarra um
problema ou um fenómeno social e quando esse «investimento» político produz
medidas que afectam grupos sociais”[521].
Ora, uma política cultural está longe de ser um inventário ou um somatório de
políticas públicas, embora não possa prescindir delas. Como refere Urfalino, a
sua emergência depende da convergência e da coerência entre as representações
do papel do Estado na relação com a arte e a cultura e a organização de uma
intervenção pública que tenha subjacente um
mínimo de unidade de acção do poder político[522].
Impõe‑se, por isso, um nítido fio condutor, uma articulação, sistematização
e hierarquização de medidas, que não podem ser acções avulsas. Estas, no
entanto, têm sido a tónica dominante.
Com efeito, logo nos primeiros anos após a revolução
assistiu‑se a um suceder de iniciativas, a maior parte das vezes
desligadas e contraditórias entre si, não só porque a instabilidade política e
a sucessão de governos assim o justificava, mas também devido à existência de
insanáveis diferenças programáticas entre os principais actores em presença.
Além do mais, perante tantas prioridades, a cultura foi
frequentemente relegada para segundo plano, facto agravado pela convicção de
que, uma vez alterada a “infraestrutura”, seguir‑se‑iam inevitáveis
reflexos na “superestrutura”. Como refere Eduarda Dionísio, “a cultura não será preocupação de um novo
poder contraditório, a braços com um número crescente de questões «imediatas» e
prementes (...) Desde cedo, a cultura, que não é uma prioridade revolucionária,
irá construindo a sua história de adiamentos e de exigências do impossível”[523].
Não se pense, no entanto, que a revolução foi isenta de
rupturas. Para além do desmembrar dos mecanismos repressivos e da censura,
verificou‑se uma “explosão
organizativa” dos vários sectores da criação cultural, a par de uma
incontida vontade de “fazer arte para o povo”, através de acções de mobilização
e descentralização cultural e de mostrar o que tinha permanecido tanto tempo
escondido. Por outro lado, as estatísticas demonstram que, no período
imediatamente pós‑revolucionário de 1974 e 75, os consumos culturais
aumentaram em flecha. Todavia, a partir desse altura e para a maior parte dos
sectores, não mais deixaram de descer, regredindo, em alguns casos, para
valores próximos dos anos sessenta.
Há quem considere, nostalgicamente, que os anos de brasa da
revolução constituíram um interregno num processo de inexorável declínio.
Quanto a nós, essa tese peca por excesso de pessimismo. De facto, não só se
alargou o campo cultural e o espectro das práticas culturais, num movimento de
aumento da diversidade e da pluralidade, como o país se abriu ao exterior e a
inovação deixou de ser encarada como subversão. Inevitavelmente, as novas
tecnologias e a abrangência da cultura de massas colocaram Portugal na órbita
da “economia mediático‑publicitária”.
O principal problema reside, a nosso ver, na enorme
dificuldade que a Segunda República tem demonstrado em lidar com o preocupante défice cultural. Domínios como a
animação sócio‑cultural, o associativismo cultural e a formação de novos
públicos, apesar do apoio crescente do poder local, revelam níveis incipientes
de investimento[524].
E esta preocupação é tanto mais consistente, quanto o nosso país depara, de
facto, com carências estruturais e históricas acumuladas, próprias de “uma modernidade cultural (ainda) por construir”[525].
Eduarda Dionísio fala do período de “normalização” como o
da implantação de uma “cultura oficial”, com a definição do papel de
“intelectual do regime” e a crescente preocupação com a “Portugalidade”
(amplamente ilustrado pelas comemorações do 10 de Junho) e a salvaguarda e
defesa do património. Com os anos 80 assiste‑se ao emergir de uma nova
constelação de valores, com traduções evidentes no campo cultural: ênfase no
espectacular e no convivial, aposta na rentabilização da arte e da cultura (com
a consequente aproximação entre economia e cultura, nas suas duas vertentes –
economia da cultura e cultura da economia), substituição do amadorismo pelo
profissionalismo, a cultura como objecto de “gestão”, visão instrumental da
cultura como factor de desenvolvimento.
Os X, XI e XII governos constitucionais, presididos por
Aníbal Cavaco Silva, são, a esse respeito, bastante claros: defende‑se,
para além dos habituais objectivos de democratização cultural, uma “contenção da intervenção do Estado”, o “assegurar da dimensão cultural no
desenvolvimento do país”, a “salvaguarda
do património” e a “diversificação
das fontes de apoio com o desenvolvimento do patrocínio particular e
empresarial”, cabendo ao Estado uma “acção
supletiva”. Uma certa visão de um “liberalismo
cultural” encontra‑se presente na concentração de subsídios aos
sectores culturais e na consideração do número de espectadores como critério de
atribuição desses subsídios (distanciando‑se desta perspectiva, o XIII
governo constitucional, coordenado por António Guterres, defende a “responsabilidade inalienável” da
intervenção do Estado, em particular no que se refere ao assegurar da criação
de infraestruturas e no apoio às entidades com “reduzida capacidade de gerar receitas próprias”, a par do considerar
da cultura como área prioritária, juntamente com a educação, a formação e a
ciência).
A reduzida percentagem da despesa pública destinada à
cultura (apesar de aumentos constantes na última década, estamos ainda longe do
mítico 1% do PIB, que quase se tornou tradição em França), o distanciamento
entre o discurso e a realidade no que se refere aos objectivos da
democratização cultural, o excessivo ênfase nas grandes obras do “regime” e nas
produções e autores consagrados, a exibição da cultura institucional em
detrimento de uma “cultura‑acção”,
a relativa demissão do Estado enquanto promotor da “cultura como serviço público” são alguns dos factores que
constituem o reverso da medalha dos significativos progressos destas últimas
duas décadas, em que a maior parte das actividades culturais se foram
concentrando numa reduzidíssima elite urbana[526].
Por
outro lado, parece indiscutível, mediante a análise dos programas de governo,
que a prioridade das políticas culturais nacionais tem oscilado entre a óptica
patrimonialista e o apoio aos criadores.
No primeiro caso, para além da habitual salvaguarda da
herança histórico‑cultural e da preservação da língua e “valores
nacionais”, não raras vezes se tem resvalado para uma instrumentalização
reducionista do património como “cimento cultural comum”, patente na cultura de
consagração dos grandes feitos ou na recuperação dos “grandes monumentos”.
Impossível não descortinar aqui, para além de uma maior ou menor visão
“conservacionista”, uma certa utilização ostentatória por parte do poder
político, com intuitos cerimoniais e simbólicos.
E, no entanto, a valorização do património poderia ser
implementada numa perspectiva consideravelmente mais abrangente. Nas palavras
de Augusto Santos Silva: “As políticas de
património não se reduzem, claro está, a operações de salvaguarda e conservação
de edifícios e documentos emblemáticos (...) abarcam também as medidas activas
de defesa e divulgação da língua e cultura nacionais, das culturas
subnacionais, dos reportórios literários, científicos, musicais, visuais, etc.
– numa estratégia que (...) sabe fazer da função de arquivo e conservação
patrimonial uma garantia, aos presentes e vindouros, de bases de continuidade e
experimentação para o seu próprio trabalho e fruição”[527]. Em suma, uma política de património
que não se contente com a celebração do morto e que seja, também, memória viva
e inventiva, suporte para a criação presente e futura, assente em estratégias
activas de difusão e captação de públicos.
Por outro lado, o apoio à criação, se bem que
imprescindível, não pode reduzir‑se à legitimação arbitrária de
expressões ou níveis de cultura. Imprescindível, na medida em que, seguindo a
já célebre lei de Baumol, as actividades culturais são cronicamente
deficitárias do ponto de vista financeiro, requerendo um funcionamento em
termos de “mercado assistido”, em especial no que se refere às produções que
pretendem escapar aos circuitos e aos públicos das indústrias culturais e que,
não raras vezes, proporcionam avanços ou “saltos” estéticos significativos
(proceder de forma contrária seria sucumbir perante a ditadura do grande número
e do cifrão, negando ao produto cultural a sua especificidade). Insuficiente,
porque várias modelos de políticas culturais nacionais têm esbarrado na constatação
de que um aumento da oferta cultural não acarreta efeitos automáticos de
arrastamento da procura, o que se liga, a nosso ver, a um conjunto complexo de
razões. Antes de mais porque tende muitas vezes a confundir‑se “política
cultural” com “política artística”. Ora, a primeira é imensamente mais vasta e
joga, necessariamente, no cruzamento, contaminação e complementaridade das
várias formas de expressão cultural (das “velhas” e “novas” culturas populares,
à invenção de conteúdos culturais na indústria e na investigação de ponta),
ainda que se respeite a especificidade do património da criação artística, por
vezes diluído na boa vontade do “tudo é
cultura, tudo se equivale”, “vasto
albergue espanhol onde cada um pode encontrar a resposta mistificadora que
espera”[528]. Para além
dos potenciais equívocos gerados por essa confusão: oscilação do papel do
Estado entre a figura que garante a independência da criação artística e a
velha tentação mecenática de interferência e imposição de cânones que traduzem
a tentação de procurar nas artes um espelho onde o poder se reveja na sua
majestade; fechamento do campo artístico em regras de autarcia onde apenas os
pares usufruem do direito de legitimação do que é ou não arte.
Mas também insuficiência de actuação do lado da procura e
em várias frentes. Desde logo na vertente educativa de formação de públicos.
Nas palavras de Augusto Santos Silva: “as
políticas de realização de mercados, em matéria cultural, isto é, de reforço e
alargamento de procuras, que permitam aumentar os consumos culturais e por aí
estimular o lado da oferta, não podem ser vazadas em moldes puramente
Keynesianos. Requerem intervenções deliberadamente concebidas como formação de
públicos, assumindo portanto uma forte componente educativa, que não quer dizer
necessariamente escolar, mas não dispensa a escola”[529].
Madureira Pinto aponta complementarmente na direcção do movimento associativo,
enquanto quadro (único?) de expressão de culturas dominadas e/ou emergentes[530].
Revitalizá‑lo, dotá‑lo de equipamentos (que Santos Silva apelidaria
de “estruturantes”), dignificá‑lo
(isto é, dotá‑lo de legitimidade própria), incentivá‑lo a utilizar
o espaço público (numa óptica de democracia participativa) e a prestar
determinados serviços culturais, torná‑lo um agente efectivo de mediação
entre obras e públicos seriam algumas das estratégias possíveis para combater a
tendência de retraimento doméstico patente nas camadas sociais mais desmunidas[531].
Em ambos os casos, procurar‑se‑ia, não só o habitual alargamento de
públicos, mas também uma aproximação ao acto criador, inclusivamente na sua
própria esfera, democratizando (isto é, pluralizando, diversificando) a
produção cultural. Ficar pelo primeiro estádio (alargamento do acesso dos
públicos às modalidades cultivadas), de comprovada insuficiência, contribuiria
para alimentar lógicas reprodutivas de perpetuação de distâncias e hierarquias[532].
Importa, por conseguinte, actuar simultaneamente nas duas
esferas: oferta e procura. Consolidando, diversificando, alargando, descentralizando
e dessacralizando a primeira; formando e legitimando as várias expressões da
segunda. Aproximando‑as mutuamente, não só pela disseminação de
competências decifratórias dos códigos de construção das obras, como pelo
envolvimento de todos os actores envolvidos na criação e acção cultural (dos
artistas aos animadores, passando pelos profissionais da cultura e toda a
panóplia de intermediários culturais) nos “lugares
de vida, espaços onde a população (e não os públicos) age sobre ela mesma,
tanto no trabalho como nos lazeres”[533].
É ainda cedo para afirmar que estamos, finalmente, a
assistir à emergência de uma verdadeira política cultural, enquanto um conjunto
sistemático, continuado e coerente de acções com uma ideia clara sobre os seus
critérios e prioridades e assente numa definição consistente e transparente da
relação do Estado com o campo cultural e a pluralidade dos seus agentes.
Podemos afirmar, no entanto, que muito tempo se perdeu com a multiplicação e
justaposição de políticas sectoriais, por vezes incongruentes, e com a fixação
monotemática em determinados debates (veja‑se a questão da existência ou
não de uma “subsidiodependência) e em determinados sectores (o património,
quase sempre, mas também o teatro e o cinema), abdicando, paralelamente, da
vasta área da animação sócio‑cultural, da promoção do associativismo, da
articulação entre poder central e autarquias e do alargamento e formação de
públicos.
Além do mais, como realça Vieira Nery, o desafio colocado
à estruturação de uma política cultural na especificidade da formação social
portuguesa, assenta num triplo objectivo, que requer uma atitude
particularmente exigente no que se refere aos meios colocados ao dispor de um
incontornável serviço público cultural: “simultaneamente
repor as pré‑condições infra‑estruturais da modernidade que não
tivemos, assegurar, por assim dizer, a sua plena operacionalidade em velocidade
de cruzeiro e viabilizar os veículos de expressão actual de uma pós‑modernidade
em que não poderíamos hoje deixar de estar presentes”[534].
Não tenhamos a ilusão de que será fácil conciliar de
forma equilibrada intervenções que deparam com aporias tão arreigadas na acção
cultural como criação versus animação, Estado versus mercado, cultura versus educação, modernidade
versus tradição ou formação versus diversão. Mas exige‑se a tomada de opções nítidas, a
disponibilização dos meios adequados e, ao mesmo tempo, a elaboração das
sínteses e dos compromissos possíveis. Sem esquecer que, também neste domínio,
é de política que se trata. E quem diz política diz poder.
CAPÍTULO
VI
BREVE RETRATO DA SOCIEDADE
PORTUGUESA NOS ANOS 90
“As alterações espaciais, demográficas e
socioprofissionais ocorridas na sociedade portuguesa ao longo das últimas
décadas alteraram de tal modo a configuração do país que, tomando como ponto de
partida os anos 60, se pode falar, com propriedade, de trinta anos de
transformação estrutural.”
Fernando Luís Machado e António Firmino da Costa[535]
1. Da
necessidade de contextualizar as práticas culturais.
As práticas culturais de uma determinada população, já o
dissemos, não podem ser estudadas isoladamente, como se constituíssem um
domínio auto‑suficiente em termos analíticos. De facto, impõe‑se
contextualizá‑las num determinado momento histórico, com o seu tempo e o
seu espaço, seguindo o espírito subjacente ao conceito de fenómeno social total. Analisá‑las separadamente, ignorando a
base demográfica, económica, social e política dos espaços‑tempos em que
se encontram inseridas, conduziria ao grave erro (ou ilusão) de as transformar
num microcosmos isolado, diminuindo consideravelmente a capacidade de imaginação sociológica, isto é, de
colocar questões pertinentes sobre um dado objecto de estudo, articulando‑o
com outras esferas do real. O carácter eminentemente relacional do objecto
sociológico leva‑nos a procurar conexões onde aparente e superficialmente
apenas existem factos isolados.
No entanto, esta postura epistemológica não se coaduna
com qualquer tentativa de hierarquizar em instâncias a realidade. Como refere
Augusto Santos Silva, o estudo do simbólico, enquanto estudo de representações
(“visões do mundo, percepções, avaliações
e simbolizações”[536])
é também uma forma de “falar acerca de
toda a acção, porque todas as práticas combinam posições no mundo e posições
sobre o mundo”[537].
Não havendo, necessariamente, uma hierarquização das
necessidades humanas, o modelo reticular, baseado em trocas recíprocas e
interdependências (“configurações
estruturadas policentradas”[538]),
parece ser o mais adequado para estudar uma realidade tensa, multidimensional e
em permanente interrelação.
Assim, quando falamos das práticas culturais dos
portugueses é, acima de tudo, da sociedade portuguesa que estamos a falar.
2.
Evolução demográfica e reordenamento do território.
O Portugal dos anos 90 tem muito pouco de semelhante com
o país dos anos 60. No entanto, há já algum tempo que se desenrolavam processos
de transformação social que, com uma inédita rapidez, mudaram de forma radical
a paisagem física e humana da velha nação. Nas palavras de António Barreto: “Portugal não esteve parado até 1960. Mas
talvez não tenha, nas décadas anteriores, mudado muito depressa (...) Portugal
conheceu um período durante o qual, ou a partir do qual, o ritmo de mudança se
acelerou consideravelmente. A década de 60 marca esse particular momento”[539].
De facto, Portugal duplicou a sua população entre 1864 e
1960. No entanto, tudo se “acelerou
consideravelmente” a partir de 60, a um ritmo nunca antes sentido. João
Ferrão apelida este processo como sendo o “período
de consolidação do Portugal demográfico «moderno»”[540],
ou, se quisermos, a sua última fase. Na realidade, o processo ter‑se‑á
iniciado a partir da década 20‑30, com os primeiros sinais de quebra da
natalidade e da mortalidade e de aumento da esperança média de vida. No
entanto, a “precipitação” das mudanças, a um ritmo sem precedentes, a partir da
década de 60 até aos nossos dias, leva a que a análise se concentre com
especial incidência neste curto período. Os indicadores deste arco temporal demonstram
um conjunto nítido de tendências: decréscimo muito significativo da
fecundidade, natalidade, mortalidade infantil e crescimento natural. A
substituição de gerações, que exige um mínimo de 2.1 filhos por mulher, deixa
de se verificar. A taxa de crescimento natural é, em 1995, de apenas 0.3 por mil, o que representa um dos
valores mais baixos da União Europeia, consideravelmente inferior à sua média (0.8 por mil). Se atentarmos no Quadro V, verificamos que apenas a
Alemanha, a Grécia e a Itália possuem um crescimento natural inferior ao nosso.
A mortalidade infantil, que contribuía significativamente para a mortalidade
total, apesar de ainda ser a mais elevada da Europa comunitária, enquadra‑se,
doravante, nos níveis dos países mais desenvolvidos (9.2 por mil em 1992, quando a média comunitária é de 7.4 por mil e na década de 60 os
valores andavam pelos 80 por mil). A
natalidade desce, a par do índice sintético de fecundidade. “As taxas de fecundidade descem em todos os
grupos etários, com especial incidência nos de 15 a 19 e 20 a 24 anos, assim
como nos superiores a 35 anos. Noutras palavras, as mulheres têm filhos cada
vez mais tarde, mas deixaram quase drasticamente de ter filhos depois dos 40
anos”[541].
QUADRO V — Movimento da população na União Europeia
— Valores Absolutos e Taxas 1995
Países |
População em 01.01.95 |
Nados vivos |
Óbitos
|
Saldo natural |
Saldo migratório |
Crescimento
da população 1995 |
Taxa
de natalidade |
Taxa
de mortalidade |
Por mil habitantes (população média) |
||
(Milhares) |
|
|
Crescimento natural |
Saldo natural |
Saldo migratório |
||||||
UNIÃO EUROPEIA |
(p) 372653.6 |
(p) 3999 |
(p) 3719.4 |
(p) 279.6 |
(p) 787.3 |
(p) 1067.0 |
10.7 |
10,0 |
0.8 |
2.9 |
2.1 |
ALEMANHA |
81817.5 |
765.2 |
884.6 |
(p) -119.4 |
398.3 |
278.9 |
9.4 |
10.8 |
‑ 1.5 |
3.4 |
4.9 |
ÁUSTRIA |
8054.8 |
88.7 |
81.2 |
7.5 |
7.4 |
14.9 |
11.0 |
10.1 |
0.9 |
1.9 |
0.9 |
BÉLGICA |
10143.0 |
(p) 114.7 |
(p) 104.8 |
(p) 9.9 |
(p)2.6 |
12.5 |
11.3 |
10.3 |
1.0 |
1.2 |
0.3 |
DINAMARCA |
5251.0 |
69.8 |
63.1 |
6.6 |
28.7 |
35.3 |
13.3 |
12.1 |
1.3 |
6.8 |
5.5 |
ESPANHA |
39241.9 |
(p) 359.9 |
(p) 342.7 |
(p) 17.1 |
(p) 47.4 |
64.6 |
9.2 |
8.7 |
0.4 |
1.6 |
1.2 |
FINLÂNDIA |
5116.8 |
63.1 |
49.3 |
13.8 |
4.3 |
18.1 |
12.3 |
9.6 |
2.7 |
3.5 |
0.8 |
FRANÇA |
(p) 58255.9 |
(p) 727.8 |
(p) 532.0 |
(p) 195.8 |
(p) 40.0 |
(p) 235.8 |
12.5 |
9.2 |
3.4 |
4.1 |
0.7 |
GRÉCIA |
10465.1 |
101.5 |
100.2 |
1.3 |
20.9 |
22.2 |
9.7 |
9.6 |
0.1 |
2.1 |
2.0 |
HOLANDA |
15493.9 |
190.5 |
135.7 |
54.8 |
14.9 |
69.8 |
12.3 |
8.8 |
3.5 |
4.5 |
1.0 |
IRLANDA |
(p) 3615.6 |
48.5 |
31.5 |
17.0 |
(p) 3.9 |
(p) 20.9 |
13.5 |
8.8 |
4.7 |
5.8 |
1.1 |
ITÁLIA |
57333.0 |
(p) 521.3 |
(p) 547.2 |
(p) - 25.9 |
(p) 90.3 |
64.4 |
9.1 |
9.5 |
‑ 0.5 |
1.1 |
1.6 |
LUXEMBURGO |
412.8 |
5.4 |
3.8 |
1.6 |
4.6 |
6.2 |
13.2 |
9.3 |
4.0 |
15.1 |
11.2 |
PORTUGAL |
9920.8 |
107.2 |
103.9 |
3.2 |
5.4 |
8.6 |
10.8 |
10.5 |
0.3 |
0.9 |
0.5 |
REINO UNIDO |
(p) 58694 |
732.0 |
86.6 |
86.6 |
(p) 107.2 |
(p) 193.7 |
12.5 |
11.0 |
1.5 |
3.3 |
1.8 |
SUÉCIA |
8837.5 |
103.4 |
9.5 |
9.5 |
11.6 |
21.1 |
11.7 |
10.6 |
1.1 |
2.4 |
1.3 |
NOTA: (p) DADO PROVISÓRIO; FONTE: INE, ESTATÍSTICAS DEMOGRÁFICAS, 1996 — REFERÊNCIA: EUROSTAT, ESTATÍSTICAS DEMOGRÁFICAS
Dados mais recentes, patentes no quadro VI, confirmam valores em diminuendo para a taxa de
natalidade, que atinge em 1995 o mínimo de 10.8
por mil (ligeiramente acima da taxa de mortalidade, com 10.4 por mil), o mesmo acontecendo com
a taxa de mortalidade infantil, com 7.4
por mil e a taxa de nupcialidade com 6.6
por mil no mesmo ano. Se, no caso das taxas de natalidade e nupcialidade as
reduções são relativamente “suaves”, limitando‑se a confirmar um
movimento anterior, já no caso da taxa de mortalidade infantil, mesmo pensando
nos fabulosos ganhos que precederam o ano de 1985, os progressos continuam a
ser assinaláveis.
Quadro
VI — Indicadores Demográficos (Portugal)
Designação do Indicador |
Valor |
Unidade |
Período |
Índice de envelhecimento |
83.5 |
Percentagem |
1995 |
Taxa de Mortalidade |
10.4 |
Permilagem |
1995 |
Taxa de Natalidade |
10.8 |
Permilagem |
1995 |
Taxa de Nupcialidade |
6.6 |
Permilagem |
1995 |
Taxa média de mortalidade
infantil no Quinquénio |
8.9 |
Permilagem |
1991/1995 |
Saldo migratório |
0.5 |
Permilagem |
1995 |
Fonte: INE, Infoline. Pesquisa por Unidade Territorial.
De qualquer forma, importa distinguir entre períodos
diferentes. Assim, enquanto que a década de 70, no seu conjunto, revela um
forte crescimento efectivo da população[542],
extensível a todo o território, embora de forma não homogénea, já a década de
80 se caracteriza por uma estagnação generalizada. O crescimento anual médio é,
de facto, reduzidíssimo: 0.03%[543].
Como consequência, “a maioria das regiões
do País vê a sua população diminuir, e em certos casos de forma muito intensa”[544].
Entre 1986 e 1991 existiu mesmo, para o conjunto do país, uma perda contínua de
população (Quadro VII).
QUADRO VII — ACRÉSCIMO DE POPULAÇÃO POR NUTS I, II E
III
ANO |
1981 |
1982 |
1983 |
1984 |
1985 |
1986 |
1987 |
1988 |
PORTUGAL |
64960 |
55170 |
30830 |
38590 |
5770 |
‑ 7250 |
‑ 25690 |
‑ 26310 |
1989 |
1990 |
1991 |
1992 |
1993 |
1994 |
1995 |
1996 |
‑ 35360 |
‑ 32210 |
‑ 12597 |
4270 |
22999 |
19980 |
8260 |
13350 |
FONTE: INE, INFOLINE, DEMOGRAFIA E CENSOS
Termina, deste modo, o que Ferrão apelida de fase de “transição demográfica”, acompanhada da “transição epidemiológica”, que acarreta
modificações fundamentais nas causas de morte, num movimento de aproximação aos
países mais desenvolvidos (recuo das doenças infecciosas e parasitárias,
aumento significativo das doenças cérebro‑vasculares e dos tumores
malignos). Finalmente, desenvolve‑se, também, a “transição familiar”: retardar da idade do casamento[545],
diminuição das famílias numerosas, aumento moderado da “família nuclear”,
aumento das taxas de divórcio, em especial a partir da década de 90 (fenómeno
da precarização das uniões) e das uniões de facto, bem como dos nascimentos
fora do casamento (informalização). Neste último caso (proporção de nados‑vivos
fora do casamento), apesar dos valores serem, em 1992, os mais elevados dos
países da Europa do Sul, situam‑se, ainda, em níveis inferiores aos da
média comunitária.
Uma consequência da maior importância desta transição (ou
conjunto de transições) para o Portugal demográfico «moderno» prende‑se
com o processo de duplo envelhecimento da população, visível tanto no topo como
na base da pirâmide etária, arredondando‑a: há cada vez mais idosos e
menos jovens (Quadro VIII).
QUADRO VIII — População por escalões
etários, em 1960, 1971, 1981 e 1991 (Milhares)
|
0‑14 anos |
15‑24
anos |
25‑64
anos |
65
ou + anos |
1960 |
2592
(29,2) |
1452 (16,3) |
4136 (46,5) |
709 (8,0) |
1970 |
2452
(28,4) |
1359 (15,8) |
3968 (46,1) |
833 (9,7) |
1981 |
2509
(25,5) |
1628 (16,6) |
4571 (46,5) |
1125 (11,4) |
1991 |
1972
(20,6) |
1610 (16,8) |
4718 (49,2) |
1283 (13,4) |
1996 |
1716 (17.3) |
1595 (16.1) |
5144 (51.8) |
3105 (14.9) |
Fonte: INE, Recenseamentos Gerais da População, in
João F. de Almeida, A. Firmino da Costa, F. Luís Machado, op. cit., p. 314 e Infoline.
Estimativas da População Residente, 1996
Os mais novos, no grupo etário dos 0‑14 anos,
representam em 1996 17.3% da
população, contra 25.5 % em 1981.
Por seu lado, os indivíduos com 65 e mais anos constituem neste mesmo ano 14.9% da população, enquanto em 81 se
quedavam pelos 11.4%. “Enquanto que, em 1981, por cada 100 jovens
com menos de 15 anos existiam 44.9 pessoas com 65 e mais anos”[546],
em 1996, o índice de envelhecimento atingia já os 86.1%[547] (Quadro IX).
Quadro IX — Índices de Dependência e Envelhecimento em
1996 (Portugal)
NUTS I |
Índices |
|
|
|
|
|
|
|
|
|
Dependência Total |
Dependência Jovens |
Dependência Idosos |
Envelheci‑mento |
Portugal |
47,4 |
25,5 |
21,9 |
86,1 |
Continente |
47,2 |
25,1 |
22,1 |
88,2 |
Reg. Aut. dos Açores |
55,4 |
36,6 |
18,8 |
51,4 |
Reg. Aut. da Madeira |
48,9 |
31,0 |
17,9 |
57,8 |
|
|
|
|
|
Fonte: INE, Estimativas de População Residente, nº25
Por outro lado, tal como se verifica no mesmo quadro, o
índice de dependência de jovens e de idosos tende a aproximar‑se[548].
António F. Costa e Fernando L. Machado salientam que “tanto a natalidade como a fecundidade passaram, em 1991, para metade
dos valores que registavam 30 anos atrás”[549].
Se a estes factores adicionarmos o aumento da esperança média de vida,
compreenderemos melhor todo este processo. Convém referir, no entanto, o
desigual grau de envelhecimento do país: enquanto o Norte e as Regiões
Autónomas são, ainda, zonas relativamente rejuvenescidas, a Região Centro, o
Algarve e particularmente o Alentejo apresentam elevados níveis de
envelhecimento (nestas regiões há já mais idosos do que jovens com menos de 15
anos).
Estas alterações foram acompanhadas de profundas mutações
no ordenamento do território. Antes de mais, verificou‑se um intenso
processo de “desagregação da(s)
ruralidade(s), em duas vertentes: a “dissociação
mundo rural‑agricultura” (deixa de constituir a principal actividade,
mesmo em meio rural) e a “dissociação
ruralidade‑meio urbano”[550]
(as primeiras gerações de origem urbana ou suburbana mantêm vínculos muito mais
ténues com a mundividência rural).
Outras modificações estruturais merecem ser realçadas.
Atente‑se na distribuição da população activa por sectores de actividade.
À acentuada subalternização da agricultura sucede‑se, paralelamente, uma
transferência maciça, e por vezes de forma directa, para o sector dos serviços.
Em Portugal, o sector secundário nunca chegou a ser predominante, o que
constitui, sem dúvida, um dado essencial a reter para se compreender o processo
de industrialização português. Aliás, se atentarmos nos números, constatamos
que o sector terciário representa, em 1992, 55.2% da população activa portuguesa, enquanto o sector secundário
se queda pelos 33.2% e a agricultura
não ocupa mais de 11.6%[551].
Dados mais recentes, do Inquérito ao
Emprego, apontam para um ligeiro aumento da população activa no sector
primário (13.6%), uma estagnação do
secundário (31.6%) e dos serviços (54.8%)[552]. Repare‑se que, em 1960, quase
metade da população trabalhava ainda no sector primário (43.6%) e o sector terciário representava menos de 30%[553].
Consequentemente, diminui drasticamente o peso relativo
dos trabalhadores da agricultura e pesca na estrutura da população activa (43.6% em 1960 e 8.5% em 1992), verificando‑se, igualmente, embora de forma
muito mais paulatina, uma tendência de decréscimo de importância dos
trabalhadores industriais, em particular se considerarmos a última década (de 40.5% em 1981 para 32.4% em 1992). Pelo contrário, aumentam consideravelmente as
profissões intelectuais, científicas e técnicas (aumento constante desde 1960),
os empregados administrativos e, na última década e de forma fulgurante, os
directores e quadros dirigentes (1.6%
em 1981, 11.4% em 1992)[554].
Pode‑se falar, neste âmbito, de um fortalecimento das “novas classes
médias”, profundamente ligado à rápida urbanização e terciarização bem como à
melhoria dos níveis de escolaridade. Aliás, os indicadores de mobilidade social
demonstram que o lugar de classe associado aos profissionais técnicos e de
enquadramento recruta cerca de 30%
dos seus efectivos em outras fracções de classe, nomeadamente junto do
operariado agrícola e industrial e do campesinato. O mesmo acontece com os
empregados executantes (geralmente associados ao terciário inferior) que
recebem 53.3% do seu contigente das
mesmas fracções de classe anteriormente referidas[555].
Outro dado extremamente significativo revela‑nos que cerca de 40% dos empresários e dirigentes são
oriundos do operariado e dos assalariados agrícolas. Este fenómeno de autêntica
“mobilidade social estrutural”
(resultante do “próprio movimento global
da estrutura social”[556])
encontra ainda uma expressiva tradução nos níveis de escolaridade de ego, por
comparação com o grau de ensino do pai e da mãe[557].
De acordo com o Estudo Nacional de Literacia, baseado numa amostra
representativa da população portuguesa, dos inquiridos portadores de um diploma
de ensino superior (5.5%), 53.1% dos pais não possuíam mais do que
o 1º ciclo do ensino básico, sendo que 10.7%
não detinham mesmo qualquer grau. No que se refere às mães, o abismo é ainda
mais acentuado: 62.6% não iam além
do 1º ciclo do básico (18.2% sem
qualquer grau).
Esta(s) classe(s), que protagonizam (hipótese a testar)
um importante papel nas práticas culturais urbanas, caracterizam‑se por
uma grande separação física e simbólica face aos contextos físicos do trabalho
manual, pelo exercício de competências de autoridade e, principalmente, pelo
seu carácter de “grupo distributivo”[558],
ligado a um certo estilo de vida baseado em padrões de consumo similares e, por
conseguinte, a um campo relativamente fechado de relações sociais.
Um estudo mais recente sobre a estrutura de classes
portuguesa e os processos de mobilidade social, aplicando o modelo teórico de
Erik Olin Wright chega a conclusões semelhantes, no que se refere à mobilidade
estrutural, mas acrescenta novos resultados quanto à mobilidade social relativa
e intergeracional[559].
De facto, e no que concerne à análise das taxas de retenção e de recrutamento
das diferentes categorias de classe, constata‑se que “a estrutura apresenta um grau de abertura elevado e, por consequência,
movimentos substanciais entre as localizações de classe que possuem
propriedade, autoridade e qualificações”[560].
As excepções são a “pequena burguesia agrícola” e, em particular, os
“trabalhadores”, o que leva os autores a salientar que “a reprodução social nos mais desfavorecidos é bastante acentuada”[561].
Tal como no estudo anterior, os detentores de capital económico (ou seja, de
propriedade) revelam‑se como uma categoria extremamente permeável à
mobilidade. Assim, estaremos em presença de uma sociedade dual, onde, ao
contrário dos mais favorecidos que possuem possibilidades acrescidas de
mobilidade social, os desfavorecidos encontram barreiras assinaláveis e
oportunidades reduzidas. Entretanto, a análise da mobilidade relativa[562]
permite concluir que os principais obstáculos a trajectórias ascendentes
residem na esfera da Autoridade e, principalmente, na das Qualificações, o que
leva os autores a considerar que “em
Portugal, é a hipótese de Bourdieu (valor das credenciais) que se mostra (...)
como mais plausível”[563].
Por outras palavras, os diplomas escolares apresentam‑se como passaporte
indispensável de mobilidade social, com a agravante de terem sofrido uma
acentuada desvalorização, fruto da massificação escolar iniciada nos anos 60: “para os mesmos lugares na estrutura social,
sobretudo os mais valorizados socialmente, são necessárias mais qualificações”[564].
Daí que se mantenham as distâncias sociais relativas entre as diferentes
categorias de classe.
No entanto, a importância das qualificações afecta,
sobretudo, os mais jovens (indivíduos com menos de 35 anos), já que, devido ao
cariz tardio e limitado da expansão escolar, apenas recentemente os diplomas se
tornaram requisitos obrigatórios de entrada nos segmentos qualificados do
mercado de trabalho. Por outro lado, ainda de acordo com os autores, a aposta
na escolaridade é sobretudo um atributo das categorias sociais que já possuíam
algum capital escolar, visto que a pequena burguesia tradicional continua a
investir na propriedade (aproveitando a agricultura de cariz doméstico e o
trabalho informal para se instalar por conta própria), enquanto que os
trabalhadores são vítimas da função selectiva da instituição escolar. Aliás, um
estudo de Carlos Farinha Rodrigues vem comprovar que as variáveis económicas e
de segmentação educacional são as principais responsáveis (e não as de cariz
regional ou demográfica) pela desigualdade de tipo inter‑grupal durante a
década de 80[565].
Outro factor de primordial importância para a compreensão
da evolução do país nas últimas décadas liga‑se ao aumento substancial da
participação feminina na população activa. De facto, a taxa de actividade
feminina aumentou de 13.0% em 1960,
para 41.3% em 1992[566],
representando a taxa mais elevada da União Europeia, quando medida em horas de
trabalho. Paralelamente, o peso relativo dos homens activos tem vindo a
decrescer. Nos escalões mais jovens esta tendência é ainda mais acentuada: a
taxa de actividade feminina quase se assemelha à masculina. Em 1997, a taxa de
actividade feminina era de 45%[567],
ascendendo a 52.2% no sector dos
serviços.
Desta forma, a forte participação feminina na população
activa foi de forma a substituir a diminuição da taxa de actividade masculina, “sobrecompensando largamente fenómenos
semelhantes de envelhecimento na estrutura etária, aumento da escolarização e
diminuição de inserções precoces no mundo do trabalho”[568].
De referir que este notável incremento da participação feminina tem, segundo A.
Barreto, motivos históricos bem precisos, em particular a penúria de mão‑de‑obra
causada pela fortíssima emigração dos anos 60 e princípios dos anos 70, a par
da guerra colonial. Além do mais, como referem F. Luís Machado e António
Firmino da Costa, apesar da sua indissociável ligação a mudanças estruturais no
papel da mulher na sociedade portuguesa (por exemplo, na generalização do
modelo da família de dupla carreira), este processo articula‑se, também,
com a necessidade de complementar os rendimentos dos agregados domésticos,
exercendo‑se, muitas vezes, em situações qualitativamente
desqualificantes[569].
No entanto, Estanque e Mendes chegam à conclusão de que as probabilidades de
ascensão social são significativamente mais elevadas para as mulheres, em todas
as classes sociais: “o efeito concertado
das qualificações, da autoridade e da propriedade, obriga os homens em Portugal
a travar uma luta significativa para melhorar as suas oportunidades sociais
(...) Para elas, a estrutura social apresenta‑se totalmente permeável”[570].
Estes autores explicam o fenómeno, não só pelo aumento da sua participação na
população activa, mas também pelos seus elevados índices de escolaridade, em
particular nos patamares mais elevados, bem como pelo papel empregador da
Administração Pública (fruto da expansão tardia do Estado‑Providência).
Aliás, o facto já referido da feminização da população activa ser muito mais
nítida no sector terciário (superando a participação masculina), sugere algum
paralelismo entre o incremento deste sector e o aumento daquela taxa.
Finalmente, estes valores colocam Portugal numa posição extremamente singular
no quadro europeu, distanciando‑nos dos países do Sul e aproximando‑nos
das economias mais avançadas[571].
3. Reordenamento do território e
assimetrias regionais: retrato de um país a várias velocidades.
O país, como já salientámos, aumenta consideravelmente a
sua população na década de 70 (em especial na sua segunda metade[572],
devido ao efeito conjugado do retorno das ex‑colónias e de algum retorno
da emigração europeia) e muito timidamente na década seguinte (pode mesmo falar‑se
de estagnação). No entanto, esse crescimento processou‑se de forma
bastante desigual ao longo do território (Quadro
X). Os saldos migratórios, aliás, revelam regiões eminentemente atractivas
e regiões claramente repulsivas.
QUADRO X — População por regiões, em
1960, 1970, 1981 e 1991 (Milhares)
|
Norte Litoral |
Porto |
Centro Litoral |
Norte/ Centro Interior |
Lisboa/ Vale do Tejo |
Alentejo |
Algarve |
Madeira |
Açores |
Total do País |
1960 |
875 (9,8) |
1193 (13,4) |
1363 (15,3) |
1640 (18,4) |
2222 (25,0) |
685 (7,7) |
314 (3,5) |
269 (3,0) |
328 (3,7) |
8889 (100,0) |
1970 |
864 (10,0) |
1319 (15,2) |
1329 (15,3) |
1328 (15,3) |
2483 (28,7) |
532 (6,1) |
269 (3,1) |
253 (2,9) |
287 (3,3) |
8664 (100,0) |
1981 |
966 (9,8) |
1562 (15,9) |
1480 (15,1) |
1312 (13,3) |
3182 (32,4) |
512 (5,2) |
324 (3,3) |
253 (2,6) |
243 (2,5) |
9833 (100,0) |
1991 |
987 (10,0) |
1635 (16,6) |
1501 (15,2) |
1172 (11,9) |
3220 (32,7) |
474 (4,8) |
368 (3,7) |
264 (2,7) |
241 (2,4) |
9862 (100,0) |
1960/91* |
+112 (+12,8) |
+442 (+37,0 |
+138 (+10,1) |
‑468 (‑28,5) |
+998 (+44,9) |
‑211 (‑30,8) |
+54 (+17,2) |
‑5 (‑1,9) |
‑87 (‑26,5) |
+973 (+10,9) |
Nota: * Taxa de Variação. Fonte: INE, Recenseamentos Gerais da População (1960, 1970, 1981 e 1991), in J. Ferreira de Almeida, A. Firmino da Costa, F. Luís Machado, “Recomposição Socioprofissional e Novos Protagonismos”, in op. cit.., p. 309.
De forma geral, pode dizer‑se que as maiores taxas
de crescimento efectivo se verificaram no litoral do Minho ao Sado e Algarve[573].
Merecem especial destaque a Península de Setúbal e as duas áreas
metropolitanas, apesar de valores de crescimento muito elevados em determinadas
regiões do Norte Litoral (Cávado, Ave, EntreDouro, Vouga, etc.).
Concomitantemente, as migrações internas acentuaram um
abandono muito relevante das principais regiões do interior, num movimento de
generalizado êxodo rural que atingiu o seu pico durante o período 1960‑73,
por razões que, segundo João Ferrão, se ligam à saturação “quer do ciclo emigratório intercontinental (EUA e sobretudo Brasil)
(...) quer da ocupação das áreas de charneca do Alentejo e Ribatejo”[574].
Por isso mesmo, “os anos de 1960‑73
correspondem ao período do Portugal contemporâneo em que as clivagens
territoriais atingem a sua expressão máxima”[575].
Durante esse período, a densidade média nacional baixa cerca de 2%. Com excepção do Porto (que mantém a
sua população) e de Lisboa (que a vê aumentar), a situação assemelha‑se a
um cataclismo. Em muitos concelhos rurais verificam‑se perdas na ordem
dos 30%. Em Trás‑os‑Montes,
por exemplo, as densidades populacionais regridem para níveis semelhantes aos
de 1911. Segundo François Guichard, tal conjuntura “é um caso quase único no mundo actual, fora de cataclismo natural ou
de guerra afectando a metrópole”[576].
Em 1981 a situação demográfica portuguesa, apresenta,
então, três características essenciais: litoralização, bipolarização (em Lisboa
e Porto) e aglomeração versus
esvaziamento. Esta última tendência liga‑se, fundamentalmente, à
consolidação do crescimento dos centros populacionais com mais de 10 mil
habitantes, verificando‑se, por contraponto a esta vertente, uma
rarefacção da população nas zonas circundantes. Este factor provoca efeitos
muito especiais no interior do país, promovendo os centros urbanos como as
capitais de distrito ou as sedes de concelho que oferecem uma
quantidade/qualidade mínima de serviços indispensáveis.
Na década de 90, apesar de, no essencial, se manterem
estas tendências, assiste‑se a uma crescente complexificação das
situações‑tipo do mapa português. Longe, bem longe, apesar de apenas três
décadas se terem passado, ficava o Portugal do “bom velho mundo rural”, onde as
marcas de modernidade, de tão confinadas, não conseguiam contrariar a imagem de
um país parado no tempo.
3.1. A
sociedade dualista
Em notável estudo publicado em finais da década de 60,
Adérito Sedas Nunes refere‑se ao nosso país como uma “sociedade dualista em evolução”, dualismo esse com várias
vertentes: sociológico, económico e cultural. Por um lado, temos uma parcela
restrita do território, concentrada nos meios mais privilegiados de Lisboa e
Porto, onde se verifica o aumento de mão‑de‑obra minimamente
qualificada nos sectores da indústria e serviços; áreas que correspondem à
maior concentração do produto interno bruto, dos capitais, dos rendimentos, dos
cuidados de saúde, dos equipamentos, etc., etc. Em suma: “à margem e ao redor de algumas restritas áreas socialmente
privilegiadas, nas quais os diversos elementos utilitários da civilização
moderna atingiram já um grau notável de difusão, perdura e se estende toda uma
zona social muito mais extensa, imersa em condições de vida e formas de
civilização tradicionais”[577].
A esse sector, urbanizado e possuidor dos estilos de vida
ocidentais, contrapunha‑se o resto do país, incipientemente escolarizado[578],
com uma agricultura de subsistência, representando uma sociedade bloqueada, a
que apenas restava uma solução: “a fuga,
o abandono — fuga e abandono numa escala sem precedentes”[579].
De rural, o êxodo adquire com a emigração dimensões nacionais.
Esta sociedade ainda persiste. João Ferrão fala‑nos
da persistência da tradicionalidade na sociedade portuguesa: “(...) a ruralidade dos campos tenderá a
persistir, ainda que assumindo novas configurações”[580].
No entanto, trata‑se agora de uma “ruralidade
urbana”, extremamente associada às migrações internas e que tenderá a
incorporar‑se ou diluir‑se nos novos mapas culturais, à medida que
vão falecendo os “avós da «terra»”.
Nada há de comum com o Portugal dos anos 60, em que apenas 17.8% das habitações possuía cozinha ou onde, por mil habitantes,
não havia mais do que 35.7 telefones particulares[581].
Nesses tempos, “o moderno aparece como um
conjunto de rasgões e de furos abertos na imensa manta tradicional”[582].
Não admira, por isso, que A. Sedas Nunes, apesar de recusar o derrotismo
fatalista, revele poucas esperanças quanto às possibilidades de alastramento do
reduzido “sector moderno” da sociedade portuguesa. Aliás, o autor não afasta a
hipótese de “regressão e degenerescência”,
ou mesmo de bloqueio dos esforços progressistas: “Assim, sob a capa de um crescimento global estatisticamente
comprovado, não pôde ver‑se que só
muito parcialmente, e muito localizadamente, a sociedade portuguesa se ia
desenvolvendo. E mal se começa a
aperceber que um restrito desenvolvimento
até as possibilidades ou perspectivas
futuras do crescimento que se tem verificado pode vir a
comprometer”[583].
3.2. A
complexificação do xadrez territorial
A situação, no entanto, evoluiu de forma
consideravelmente diferente (apesar da permanência, nalguns casos estrutural,
de factores e formas de tradicionalidade, como adiante desenvolveremos). Se
atentarmos apenas às dinâmicas demográficas do presente, podemos detectar,
segundo João Ferrão, “cinco lógicas
autónomas”[584],
que têm subjacentes um suporte de desenvolvimento económico:
– a concentração nas áreas metropolitanas de Lisboa e
Porto, especialmente atractivas nas décadas de 60 e 70, com incremento da
suburbanização e declínio relativo das duas grandes cidades durante os anos 80;
– atractividade do litoral algarvio, onde se verifica, de
1985 a 1991 um saldo migratório positivo semelhante ao de Lisboa e Vale do
Tejo, situação que se encontra sem dúvida ligada ao potencial turístico desta
região;
– crescimento das cidades de média dimensão, em parte
devido às melhorias no sector dos serviços, em especial os da Educação e Saúde,
quer pelo dinamismo do poder local, quer ainda pela desconcentração de serviços
ao nível regional e subregional;
– dinamismo das áreas de industrialização rural difusa, a
par do alargamento das bacias de emprego e da intensificação dos movimentos pendulares;
– concentração de população ao longo dos grandes eixos
viários.
Assim, passa‑se de um modelo baseado em dicotomias
(rural versus urbano; litoral versus interior; Norte versus sul; etc.) para um modelo
multipolar, marcado, não tanto por movimentos inter‑regionais mas sim por
fluxos internos[585],
“traduzindo‑se por configurações
territoriais em arquipélago”[586],
onde se destacam, pelo seu dinamismo, as “ilhas”
já mencionadas, rodeadas por “áreas
submersas”, caracterizadas pela estagnação ou redução demográficas,
colocando‑se em risco, muitas vezes, o limiar mínimo que justifica a
instalação de equipamentos e serviços, factor que reforça, ainda mais, a
concentração nas tais “ilhas”, onde
se consolidam “pontos estratégicos de
densidade relacional mínima entre indivíduos, grupos, instituições e empresas”[587].
Álvaro Domingues vai no mesmo sentido, referindo as
múltiplas metamorfoses do rural e do urbano (traduzidas por conceitos como
“rurbanização”, “urbanização in situ”,
“urbano difuso”, “conurbação”, “área metropolitana”, etc.) e propondo,
igualmente, um modelo territorial do tipo “reticular”, correspondente a um “contexto em que o quadro da mobilidade das
pessoas, dos bens, da informação, dos fluxos financeiros, etc., é cada vez mais
complexo (...) transformando os efeitos geográficos do isolamento ou da
exclusão em efeitos de relação”[588].
Não será, todavia, algo apressado negar operacionalidade
(e actualidade) às “antigas” dicotomias”?
Augusto Santos Silva, por exemplo, referindo‑se à
evolução demográfica da década de 80 fala do reforço das “relações de dominação e dependência”[589]
que reduz à dualidade e competição entre as duas maiores cidades as principais
questões das assimetrias regionais, criando um vasto território ausente,
incapaz de se fazer ouvir e de se afirmar como problema político a resolver.
Desta forma, o país “parece mais pequeno”,
principalmente quando falamos do “mapa
(...) a que nos costumamos referir, quando tomamos ou discutimos opções
políticas estratégicas, nos mais diversos domínios da vida social”[590].
Mário Leston Bandeira, por seu lado, retoma a questão do
dualismo Norte/Sul. Segundo este autor, a especificidade do processo de
transição demográfica português prende‑se à coexistência de dois modelos
diferentes: um, comum às regiões do Sul e semelhante ao conjunto europeu, e
outro, característico das regiões do Norte através do qual se exprime um
processo de “modernização lenta e tardia”[591].
Assim, o desaparecimento progressivo dos sistemas
demográficos regionais processou‑se, no nosso país, de forma extremamente
paulatina. A nupcialidade muito lentamente deixou de desempenhar o seu papel
regulador, tardando a desaparecer as imposições familiares, comunitárias e
clericais ao casamento. Mas, mais importante ainda, o desaparecimento dessas limitações
e o surgimento de padrões sexuais e familiares modernos foi mais rápido no Sul
do que no Norte do país. Melhor se compreende, por isso, que, apesar de no
período anterior à transição demográfica o Norte possuir uma taxa de natalidade
menos elevada (as mulheres casavam mais tardiamente e, por isso, o seu
intervalo de fecundidade era mais curto), ter sido no Sul que esta mais
rapidamente desceu, aproximando‑se dos valores europeus, das práticas
malthusianas modernas e dos novos modelos familiares (marcados, como de resto
já referimos, por um aumento das taxas de divórcio, pela informalização e
precarização das uniões, pelo aumento do número de filhos exteriores ao
casamento, das famílias monoparentais e dos casos de celibato voluntário, em
suma, pela diversificação de situações).
Leston Bandeira afirma, por isso, que o dualismo que
atravessa a sociedade portuguesa não é tanto o do urbano versus rural mas sim o do Norte versus
Sul. Prova dessa tendência estrutural é a existência de duas lógicas urbanas autónomas:
a de Porto e a de Lisboa: “No plano
demográfico, os traços distintivos entre populações urbanas e populações não
urbanas são ténues: o distrito do Porto esteve sempre mais próximo dos
distritos vizinhos do que do distrito de Lisboa, o qual, por sua vez, sempre
manifestou afinidades com os outros distritos do Sul”[592].
João Ferrão, no entanto, aponta claramente para uma
convergência dos dois regimes demográficos. Do mesmo modo, Fernando Luís
Machado e Firmino da Costa, apesar de não negligenciarem algumas importantes
variações regionais (patentes, por exemplo, na enorme dispersão dos valores da
densidade populacional e na desertificação do interior, por comparação com o
litoral onde se concentra 80% da
população) reconhecem o “esbatimento das
tradicionais disparidades” patente no facto “de hoje as taxas de natalidade, fecundidade e mortalidade infantil
das várias regiões se encontrarem mais próximas umas das outras do que alguma
vez estiveram nos últimos 150 anos”[593].
3.3. O
modelo de desenvolvimento português: rupturas e permanências.
António Barreto traça um cenário bastante optimista sobre
a mais recente evolução social portuguesa. Apesar de reconhecer as limitações e
insuficiências deste movimento de progresso (queda real do salário mínimo, distribuição
muito desigual das receitas dos agregados económicos, penalizando,
essencialmente, os activos ligados à agricultura e reflectindo uma “forte desigualdade social estrutural”[594],
etc.), não se cansa de assinalar os saltos quantitativos (mais significativos)
e qualitativos (mais tímidos): “Portugal
fez, em vinte ou trinta anos, o que, noutros países, tinha demorado cinquenta
ou sessenta. Em muitos aspectos, sobretudo os económicos, Portugal não chegou a
ficar a par dos vizinhos europeus, nem chegará tão cedo. Mas, noutros,
sobretudo nos sociais, culturais e demográficos, os Portugueses parecem‑se
hoje, de modo definitivo, com eles”[595].
Admitindo a sua ocorrência, quais foram, então, os
elementos estruturantes dessa acelerada transformação?
Antes de mais, o aumento da coesão nacional, apesar do
reconhecimento da pluralidade cultural, étnica, política, religiosa, económica.
Intimamente relacionado com esta consolidação estrutural, encontra‑se a
redução espacial das assimetrias, que são, cada vez mais, de cariz económico e
social. Desta forma, a sociedade dualista delineada por A. Sedas Nunes, segundo
A. Barreto, “quase não existe mais”[596].
Aliás, expande‑se o Estado‑Providência, apesar das suas
deficiências e limitações, em especial na qualidade dos serviços, protegendo
socialmente os excluídos e ganhando uma cobertura universal. O aumento da
função social do Estado (traduzido pela integração de toda a população,
incluindo os que nunca contribuíram para a segurança social), caminha a par do
incremento do papel da administração pública na economia, o que reforça, em
ambos os casos, o processo anteriormente referido de terciarização.
Na educação, tornada a principal
rubrica da despesa do Estado, as alterações são também fundamentais: eliminação
quase total do analfabetismo juvenil, taxas de quase 100% na frequência do
ensino básico, aumento muito significativo da frequência do ensino secundário
e, em especial, do ensino superior, cuja população “mais do que decuplicou nas três (últimas) décadas”[597]
(Quadro XI).
QUADRO
XI — Evolução
dos Níveis de Ensino Atingidos, de 1960 a 1991 (%)
|
1960 |
1970 |
1981 |
1991 |
Básico (primário e preparatório) |
32,8 |
52,2 |
56,7 |
64,8 |
Secundário (unificado e complementar) |
4,6 |
7,8 |
12,3 |
21,5 |
Médio/Superior |
0,8 |
1,6 |
3,6 |
8,0 |
Fonte: INE, Recenseamentos Gerais da População, in J. Ferreira de Almeida, A. Firmino da Costa, F. Luís Machado, op. cit., p. 315.
F. Luís Machado e António Firmino da Costa realçam que, “em 30 anos (...) a proporção de
universitários na faixa etária dos 20‑24 anos salta de 3.4% em 1960 –
valor que deixa claro que nessa época andar na universidade correspondia a um
estatuto de elite –para perto de 30% em 1991”[598].
Em 1996, essa percentagem eleva‑se para 35.2% (Quadro XII[599]).
QUADRO XII — Percentagem de
Universitários sobre a População de 20‑24 anos
|
Homens |
Mulheres |
HM |
1960 |
5,0 |
1,9 |
3,4 |
1970 |
8,7 |
6,1 |
7,3 |
1981 |
12,0 |
9,9 |
11,0 |
1989 |
15,3 |
19,3 |
17,3 |
Fonte: INE, Estatísticas da Educação e Recenseamentos Gerais da População, in J. Ferreira de Almeida, A. Firmino da Costa, F. Luís Machado, op. cit., p. 315 e Infoline. Séries Cronológicas. Estimativas da População Residente Segundo o Sexo por Idades.
Simultaneamente, as universitárias tornam‑se maioritárias, se
atendermos à composição sexual da população do ensino superior. “No escalão dos 20 aos 29 anos, a
percentagem de mulheres com um diploma universitário era, em 1992, já
claramente superior à homóloga masculina”[600].
Na saúde, os cuidados médicos essenciais alargaram‑se,
também, a todo o território nacional, factor que encontra uma vez mais
correspondência no aumento intenso da despesa pública neste domínio[601].
Mesmo em factores como a posse de equipamentos ou a
estrutura dos orçamentos familiares é possível notar, apesar da persistência
das desigualdades, “uma relativa
aproximação dos padrões de consumo por parte dos vários grupos sociais”[602].
Em 1995, 99.3% da população possui
fogão, 94.5% frigorífico, 90% aparelho de rádio, cerca de 88% televisão a cores, 72.8% uma máquina de lavar roupa, 72% telefone, 58.4% um aspirador, 52%
automóvel, 18.2% leitor de “compact‑disc”[603].
Quanto ao início deste amplo e variado processo de
transformações, a opinião de A. Barreto coincide com a de José da Silva Lopes:
apesar da expansão dos direitos sociais ser uma consequência directa da sua
consagração no período pós 25 de Abril, a “verdadeira
revolução económico social”[604]
antecedeu a ruptura revolucionária e teve lugar “durante os «anos de ouro» da década de 60 até 1973”. De acordo com
esta tese, as reformas económico‑sociais precederam e de certo modo pressionaram
as transformações políticas imediatamente posteriores.
Outros autores e outros números levantam algumas dúvidas
sobre as análises antecedentes.
Fernando Medeiros, por exemplo, traça uma clara linha de
continuidade na evolução económico‑social das últimas três décadas, com
os efeitos da adesão à União Europeia a compensarem as perdas resultantes da
quebra da emigração. Aliás, no balanço possível, apesar de pesarem
favoravelmente uma melhoria da situação financeira (proporcionada pela redução
do défice do sector público e do endividamento externo), das infraestruturas
físicas e um tímido lançamento do “Estado‑Providência, contam
negativamente o aumento dos desequilíbrios territoriais, a contenção dos
salários reais, a precaridade do emprego, os baixos salários (que penalizam,
principalmente, mulheres e jovens) e as extensas manchas de pobreza[605].
A este respeito, José Pereirinha, que considera a pobreza um fenómeno
multidimensional, cumulativo e estrutural, refere dados de 1990 (Eurostat) que
indicam que o nosso país possuía o PIB per
capita mais baixo da U. E., bem como a média de salários mais reduzida.
Ainda segundo o mesmo autor, a redução da pobreza na década de 80, foi
insignificante nas zonas urbanas e inexistente nas áreas rurais, onde se terá
mesmo verificado um agravamento das condições de vida. Assim, apesar do
crescimento significativo do PIB na década de 80[606],
que atingiu, no discurso oficial, dimensões retóricas assinaláveis, as
melhorias na justiça redistributiva foram extremamente modestas[607].
O próprio processo de modernização acarretou a vulnerabilização de novas
franjas sociais, doravante em situação de inadaptação face às reconversões
tecnológicas (alguns chamam‑lhes mesmo os “novos pobres”[608]).
Alem do mais, persiste um atraso assinalável em relação à média comunitária, no
que respeita à protecção social. As despesas correntes neste domínio, bem como
os montantes per capita são os mais
fracos da comunidade europeia. Como alguns autores sublinham, o Estado‑Providência
português nunca ganhou uma dimensão comparável ao dos países da Europa Central
e do Norte. Fernando Ribeiro Mendes fala mesmo de um “modelo (tardio) de Estado‑Providência”, cobrindo para cima
de 80% da população mas ainda
distanciado dos sistemas de mais longa implementação, em que as despesas em
prestações sociais rondam os 25% do
PIB (contra os 20% do caso
português)[609].
No entanto, ao analisar as repercussões da integração
europeia e do forte crescimento económico da segunda metade da década de 80
(superior à média comunitária) na distribuição do rendimento e da desigualdade,
Carlos Farinha Rodrigues conclui por uma ligeira redução da desigualdade
global, beneficiando, essencialmente, os grupos sociais mais desfavorecidos. De
qualquer forma, os resultados obtidos “atenuam
a tendência registada na década anterior (70) para um forte desagravamento da desigualdade”[610]
que terá beneficiado principalmente as classes médias. Para além de que se
regista um aumento em simultâneo da dimensão “dos agregados excluídos da actividade produtiva por motivos diversos
(idade, desemprego, etc.)[611],
tendo a proporção crescido de 9 para
14%.
Assim, não admira que Fernando Medeiros fale de um
processo paradoxal: o do “crescimento
económico sem modernização” ou, se preferirmos, da “modernização por excesso de tradicionalidade”. A não aplicação dos
fundos comunitários no terciário intermédio e superior, a sua concentração nos
sectores tradicionais não reconvertidos, essencialmente virados para a
exportação e, principalmente, a “descapitalização
humana”, são alguns dos principais indicadores deste modelo de
desenvolvimento muito pouco exemplar. Este último fenómeno, em particular,
atinge proporções alarmantes, na medida em que tende a reproduzir o recurso
intensivo a mão‑de‑obra juvenil barata, pouco escolarizada e com
deficiente acesso à formação profissional que, em muitos casos, não faz mais do
que prolongar a taxa de inocupação: “Há
fortes razões para supor que o actual dispositivo da política activa de emprego
dos jovens é mais da jurisdição da política de baixos salários que assegura o
equilíbrio precário da economia portuguesa do que uma política de educação e de
formação profissional viradas de maneira mais resoluta para os desafios sociais
e culturais que a integração europeia coloca à sociedade”[612].
Aliás, como referem Estanque e Mendes, no proletariado cabem, não só os
operários industriais, mas igualmente um vasto conjunto de indivíduos,
tendencialmente jovens, de baixos níveis de escolaridade e trabalhando em
situação precária nos sectores administrativos (o que se associa, sem dúvida,
ao grande peso do terciário inferior na nossa estrutura produtiva)[613].
Henrique Medina Carreira vai no mesmo sentido, ao
considerar que o nosso atraso educativo é um dos principais obstáculos à
convergência real face aos países mais avançados da União Europeia. Não só o
nosso país revela baixíssimas taxas de escolarização (segundo dados da OCDE de
1993, utilizados pelo autor, enquanto que, na Alemanha, apenas 18% da população possuía um diploma
igual ou inferior ao 1º ciclo do secundário, em Portugal tal percentagem subia,
assustadoramente, para os 93%), como
a qualidade do sistema de ensino, patente quer na “quantidade extraordinária das repetências e dos abandonos”[614],
quer no altíssimo nível de discriminação sócio‑económica, está muito
longe do desejável. Dados recentes indicam que a taxa de analfabetismo
registada nos censos de 1991 (cerca de 11%)
colocam o país ao mesmo nível da Europa do Norte ... há um século atrás[615]!
Apesar das despesas com a educação, segundo um estudo de Medina Carreira, terem
aumentado 17 vezes entre 1961 e 1993, a um ritmo anual de crescimento de 9.2% (aumento que sobe para 22% entre 1971 e 1976 e para 12.6% entre 1986 e 1992)[616];
apesar dos gastos com o funcionamento dos estabelecimentos de ensino terem
quase triplicado; apesar, finalmente, da despesa anual por aluno ter duplicado[617],
continuam a verificar‑se “taxas
médias de reprovação e repetência 20 vezes superiores às médias de países
ocidentais”[618]
e, em 1991, existiam ainda 361 mil jovens fora da escola, representando 45% da faixa etária entre os 12 e os 22
anos. O estudo sobre a Literacia em Portugal apurou 10.3% de inquiridos no nível 0, ou seja, indivíduos que se
revelaram incapazes de realizar qualquer das tarefas propostas. Segundo os
autores, “é possível estimar, no conjunto
da população do Continente dos 15 aos 64, a existência de 600 mil pessoas
nestas condições”[619].
No entanto, ao contrário do que seria de esperar, não são apenas os analfabetos
literais ou aqueles que não possuem qualquer grau de escolaridade completo que
se situam neste nível. Existem, igualmente, perto de 18% que completaram o primeiro ciclo do ensino básico e
aproximadamente 2% que concluíram o
2º ciclo[620]. Fernando
Luís Machado e António Firmino Costa, na mesma linha, consideram que “o baixo nível de qualificações escolares e
profissionais da população portuguesa” é um dos mais “importantes défices de modernização”[621],
com repercussões significativas na qualificação da mão‑de‑obra: 65% dos trabalhadores industriais, por
exemplo, não têm mais do que o 1º ciclo do ensino básico, enquanto que, entre
os empresários e dirigentes, “o nível de
habilitações literárias modal” é, igualmente, o primeiro ciclo do ensino
básico, com a agravante de 16.2% não
possuírem qualquer grau[622].
Também Marçal Grilo defende uma “prioridade acrescida à formação dos recursos humanos”, baseado na
constatação das “fragilidades e
insuficiências”[623]
do sistema educativo português[624].
Reconhecendo embora, tal como A. Barreto, um grande esforço de aumento da
cobertura escolar e do acesso à educação, o autor regista grandes assimetrias
regionais, relacionando os valores mínimos de escolarização com certas regiões
do país (em especial no Norte) onde se verifica “um modelo de desenvolvimento assente em mão‑de‑obra desqualificada
e, consequentemente, no recrutamento de jovens sem qualificação profissional
precocemente atraídos para a vida activa e compelidos a abandonar o sistema
educativo”[625].
Uma das consequências mais visíveis desta situação prende‑se
com o comportamento da variável «produtividade» no cômputo do processo de
crescimento económico. De acordo com Silva Lopes, enquanto que no período 60‑73
se verificou uma importante contribuição da chamada “produtividade global”,
intimamente ligada quer à introdução de novas tecnologias e formas de
organização do trabalho, quer “à elevação
dos níveis de escolaridade e de formação profissional da mão‑de‑obra”[626],
no período posterior tal contribuição diminuiu, entorpeceu e tornou‑se “decepcionante”.
Trata‑se, uma vez mais, da lógica de “descapitalização humana” de que há
pouco nos falava Fernando Medeiros. Intimamente relacionado com esta lógica,
também já o referimos, encontra‑se a aposta nos sectores tradicionais da
economia, pouco exigentes em termos de qualificação profissional e acarretando
um baixo valor acrescentado para a economia e sociedade portuguesas. Neste
modelo, Portugal mais não pode aspirar do que a receber “segmentos truncados do sistema industrial exógeno”, assente em
rígidos e ultrapassados mecanismos de raiz taylorista. Desta forma, tudo se
coaduna para um subdesenvolvimento do terciário superior, a par da conjugação
destes sistemas produtivos com a agricultura de cariz familiar. Neste esquema
de disseminação de pequenas empresas, emaranhadas num sistema de “industrialização difusa” onde as
figuras centrais são o “empresário‑negociante”
e o “camponês‑operário”[627],
os resultados são parcos e o desenvolvimento assegurado (melhor seria falar em
mero crescimento) revela‑se
efémero e ilusório.
Como principal resultado, emerge com particular
intensidade um novo dualismo, que tem na sua base uma profunda fractura social,
e que opõe um Sul urbano‑industrial‑capitalista‑salarial a um
Norte e Centro de industrialização difusa, familiarista e clientelar. Os fundos
comunitários desempenharam uma função “providencial”, tal como a emigração,
autêntica válvula de escape das décadas de 60 e 70, contribuindo para suster os
conflitos, promovendo uma certa coesão social mas, perversamente, impedindo o
país de caminhar para “novas formas de
estruturação social”, próprias de um Estado capitalista moderno, com um
forte desenvolvimento da relação salarial e uma sociedade civil activa e
interveniente. Desta forma, “esses dois
espaços, sócio‑morfologicamente bem diferenciados, têm preenchido,
sucessivamente, importantes funções de adaptação ou de resguardamento da
sociedade portuguesa às mudanças do mundo envolvente”[628].
Boaventura de Sousa Santos utiliza os conceitos de “sociedade semiperiférica de desenvolvimento
intermédio” para caracterizar a singularidade da situação portuguesa. É sua
a já célebre tese da “descoincidência
articulada entre as relações de produção capitalista e as relações de
reprodução social”[629],
ou, se preferirmos, entre os padrões de consumo, mais avançados e semelhantes
aos dos países centrais, e os ritmos e lógicas de produção, mais próximos dos
países periféricos. Assim, acentuam‑se fenómenos como o trabalho infantil
e os salários em atraso, no quadro de uma sociedade onde ainda possuem bastante
peso os mecanismo de “acção não
capitalistas”, compensatórios face às deficiências produtivas e intimamente
relacionados com a persistência da economia agrícola, geradora de rendimentos
complementares e/ou substitutivos (próprio do camponês‑proletário,
duplamente activo e com uma dupla pertença de classe) que “alimentam adicionalmente as práticas de consumo, permitindo que o
nível de reprodução social seja mais elevado que o nível de produção
capitalista”[630].
Não é de admirar, por isso, que a sociedade civil
portuguesa, fraca quando se trata de exercer ou gerir pressões, consensos e
conflitos próprios das sociedades de capitalismo avançado, seja, igualmente,
uma forte “sociedade‑providência”
que substitui e/ou complementa os défices do Estado‑Providência nacional[631].
Daí que Fernando Medeiros fale de um “dilema imemorial na sociedade portuguesa”, intimamente ligado ao “paradoxo da modernização por excesso de
tradicionalidade”. Se, por um lado, no que respeita aos comportamentos
demográficos, Portugal se encontra ao mesmo nível das sociedades mais avançadas
(como de resto já tivemos ocasião de realçar), por outro, do ponto de vista
sócio‑económico, verifica‑se, ainda, um grande atraso (baixa
produtividade, padrões tradicionais de especialização, atraso tecnológico,
baixos salários, etc.). Como realça Augusto Mateus, para que se registem
transformações estruturais ao nível sócio‑económico torna‑se
necessário promover “uma nova
especialização produtiva mais aberta à qualidade das actividades económicas”[632],
bem como uma estratégia de diversificação produtiva[633].
Esta ausência de convergência com as economias mais modernas, a par do reforço
das indústrias tradicionais no período 1982‑92[634],
acentua o peso da industrialização difusa na propagação dos modelos
malthusianos (devido ao aumento da taxa de actividade e à crescente feminização
da mão‑de‑obra, patente no aumento das famílias de dupla carreira),
cujos efeitos podem ser comparáveis aos da emigração, da qual será, segundo
Medeiros, um substituto funcional.
Em suma, aos problemas dos países periféricos (baixos
salários, precaridade dos vínculos laborais, trabalho infantil, etc.), juntam‑se
os que resultam do ritmo inesperado com que Portugal completou o seu processo
de transição demográfica e que se assemelham aos dos países centrais (duplo envelhecimento,
dificuldades do Estado‑Providência, retrocessos nas políticas sociais,
etc.).
Em síntese, enquanto António Barreto inclui Portugal no
centro, apesar de ser a “periferia do
centro”[635],
Boaventura de Sousa Santos e Fernando Medeiros excluem essa tese, preferindo
abordar as singularidades da posição portuguesa no processo de globalização. De
acordo com B. de S. Santos, “o fim da
função de intermediação de base colonial fez com que o carácter intermédio que
nela em parte se apoiava ficasse de algum modo suspenso à espera de uma base
alternativa”. Desta forma, assistiu‑se e assiste‑se ainda a um “processo de renegociação” da posição de
Portugal no sistema mundial[636],
situação que ocorre quando, findo o ciclo colonial, se consumou o “regresso à nossa territorialidade”.
Regresso efémero, no entanto, pois desde logo se projectaram os anseios de
inserção num “novo desterritório, a
Europa da UE e do Acto Único Europeu”[637].
Outros autores, como Mário Leston Bandeira, optam ainda
pela tese do dualismo, acrescentando novos contornos à tese pioneira de A.
Sedas Nunes, apesar de acabarem por reconhecer uma certa tendência para a
uniformização, demonstrada, aliás, pela evolução demográfica (e os valores,
atitudes e comportamentos que lhe estão associados) da última década.
Parece‑nos, no entanto, que será porventura mais
fecundo do ponto de vista heurístico, se considerarmos a situação portuguesa
como uma coexistência particular de
assincronismos, numa tensão
permanente entre rupturas e continuidades, traduzida por diferentes ritmos
e tempos de desenvolvimento, espacialmente distribuídos de forma assimétrica: a
“velha” pobreza coexiste com a “nova”; o rural e o urbano oferecem‑nos
múltiplos exemplos de combinações e metamorfoses; moderno e tradicional
entrelaçam‑se constantemente, e por vezes lado a lado, originando uma
matriz simbólica, também ela eclética e heterogénea, de várias facetas e
dimensões. Tudo depende, afinal, do quadro teórico com que abordamos e
questionamos a realidade. Se ele for fechado, então descobrir‑se‑á
o moderno ou o rural onde de antemão se esperava que estivessem. Pelo
contrário, se ele se revelar flexível, alargado e imaginativo, encontraremos
abertas as portas para a apreensão da complexidade. Idalina Conde, nesta mesma
linha, rejeita cenários exclusivos e avança com a ideia de uma “modernidade biface ou de várias faces (...)
com nexos exclusivos, hiatos ou desregulações entre heranças e mudanças,
ruralidade e urbanidade, universalismo e localismo”[638],
recuperando o conceito de “sociedades múltiplas”
de Fernando Medeiros.
Esta atitude epistemológica revela‑se
particularmente acutilante quando encaramos a questão das mudanças simbólico‑normativas
no Portugal moderno.
Boaventura de Sousa Santos, já o dissemos, defende a tese
da permanência de valores de matriz rural no quotidiano português. No entanto,
admite a reprodução activa (isto é, sob novas formas) dessas constelações
normativas nos meios urbanos, bem como “a
coexistência a muitos (...) níveis, da modernidade, da pré‑modernidade e
da pós‑modernidade”[639].
João Ferreira de Almeida aponta para assinaláveis
mudanças normativas, associadas ao recrudescer dos individualismos, próprio dos
processos de “desruralização”, com
tudo o que isso implica de valorização no presente das estratégias e projectos
vincadamente pessoais, sem que tal signifique, no entanto, o fim da
solidariedade[640]. Segundo o
mesmo autor, tornam‑se frequentes as “combinatórias
diversificadas de opções” que dificultam as classificações tradicionais,
mais distintas e lineares. Desta forma, o “feito
por medida” substitui‑se ao “pronto
a pensar”, substituindo‑se a crença em valores sistémicos mutuamente
exclusivos por um “novo artesanato das
ideias”[641].
Finalmente, um dado a reter é o grau de participação de
Portugal no amplo movimento de globalização das economias. Num futuro próximo,
a sobrevivência da singularidade portuguesa em muito dependerá, enquanto
pequena economia aberta, da profundidade e das modalidades de interrelação não
só económicas, mas também políticas e culturais, entre o local e o global,
entidades que, embora distintas, se encontram hoje indissociavelmente ligadas.
A globalização, ao contrário do discurso de senso comum que dela se apropriou à medida de um estafado chavão, não conduz necessariamente à homogeneização. É um processo dinâmico e contraditório, onde se geram indiscutíveis hegemonias, mas onde existe também lugar para a associação de forças contradominantes. Existem, ao contrário do que é propagado por visões essencialistas, vários centros e várias periferias. E as relações que entre eles se estabelecem, são de teor complexo e pluridireccional. Há centros que são margens e margens que são centros. Portugal desempenhou, historicamente, um papel de “transporte” e de “ponte” entre uns e outros. Por isso, a sua constituição de país duplamente plural poderá incentivar esse papel dialogante e servir, algo paradoxalmente, de vantagem comparativa: pluralidade interna de um país a várias velocidades, habituado à inclusão de uma diferença endógena; pluralidade no plano exterior, dada a “obrigação” histórica de jogar em vários tabuleiros.
CAPÍTULO VII
O PORTO DOS ANOS 90
1.
O Norte no conjunto do país.
As assimetrias entre as regiões portuguesas, como de
resto se afirmou no capítulo precedente, estão longe de ter desaparecido. O
“Portugal europeu” é um país que avança a várias velocidades, retalhando o
território em regiões com desiguais níveis de desenvolvimento. Vejamos, desde
já, algumas das dimensões deste problema, bem patente no quadro XIII, referente ao índice
sintético de evolução das assimetrias regionais, e que integra 25 variáveis
“relacionadas com as características do
sistema produtivo e com as condições estruturais (ensino, transportes,
qualidade de vida, etc.)”[642].
Se tivermos em conta que o grau de assimetria se mede
pela diferença entre o valor de cada índice regional e a média nacional (100),
concluímos que tanto a região Norte como a região Centro se encontram a 9
unidades de distância dessa média, enquanto que Lisboa e Vale do Tejo se
apresenta como a única região que se distancia, pela positiva, da mesma.
Aliás, no período entre 1986 e 1991, em que se investiram
3.500 milhões de contos no âmbito do Plano de Desenvolvimento Regional, o Norte
apresenta uma pequena regressão, afastando‑se ainda mais uma unidade da
média nacional e apresentando um índice igual ao de 1981. Por outras palavras,
no espaço de uma década a região Norte manteve intacta a distância que a separa
da média nacional, ao contrário da região Centro, Alentejo, Algarve, Açores e Madeira
que registam no mesmo período ganhos positivos.
Quadro XIII : Índice Sintético de Evolução das |
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Assimetrias Regionais (*) |
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Região |
1981 |
1986 |
1991 |
|
Norte |
91 |
92 |
91 |
|
Centro |
88 |
90 |
91 |
|
Lisboa e Vale do Tejo |
123 |
119 |
120 |
|
Alentejo |
78 |
86 |
83 |
|
Algarve |
90 |
97 |
99 |
|
Açores |
80 |
79 |
83 |
|
Madeira |
76 |
80 |
82 |
|
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(*) O grau de assimetria mede‑se pela diferença
entre o valor de cada |
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índice e a média nacional de 100 |
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Fonte: Ministério da Administração do Território
e Planeamento. |
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Direcção
Geral do Desenvolvimento. Estudo da análise e |
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Perspectivas de
desenvolvimento regional in Leonor Coutinho, art. cit., p. 125 |
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Um estudo de 1997, referente à análise das contas
regionais de 1992, chama a atenção para os baixos padrões de produtividade e
qualificação da região Norte, que a colocam abaixo da média nacional no que se
refere ao Valor Acrescentado Bruto (VAB) per
capita. Apesar de ser a Região que mais contribui para o emprego nos
sectores primário e secundário, o Norte é prejudicado pela predominância das
especializações industriais de tipo intensivo, “com consequentes impactos pouco favoráveis em termos de produtividade
e remunerações médias”[643].
Aliás, verifica‑se um fortíssimo
peso dos sectores tradicionais”[644]
e da construção, com valores de produtividade inferiores à média nacional
(importante presença das industrias têxteis e do vestuário[645]).
A situação prolonga‑se para o sector terciário. Este, apesar de ser o que
mais contribui para o VAB regional, não concentra a maior parte do emprego (que
se encontra localizado no secundário). Aliás, “o Norte pertence ao grupo de regiões onde a contribuição do terciário
era inferior à média nacional”[646],
o mesmo acontecendo com a produtividade específica deste sector.
No que se refere às remunerações médias, o Norte situa‑se
igualmente abaixo da média nacional, existindo apenas duas regiões (Centro e
Algarve) com prestação pior. Avaliando o nível de vida das famílias, a situação
afigura‑se ainda mais preocupante. Com efeito, a região “onde reside 35.25 da população do país,
concentra apenas cerca de 30% do rendimento primário nacional, proporção
idêntica à do seu contributo para a riqueza nacional medida pelo Valor
Acrescentado Bruto”[647].
Se tomarmos apenas como indicador o rendimento disponível bruto per capita, sem tem em conta os
processos de redistribuição, associados às transferências privadas
internacionais (remessas de emigrantes), o Norte ocupa a pior posição no
cômputo nacional.
O estudo sobre o poder de compra concelhio é, igualmente,
extremamente elucidativo. O Norte é a terceira região do país ao nível do poder
de compra per capita (81.87, em 1995 e 83.17 em 1997) logo abaixo do Algarve (que se situa sensivelmente
na média nacional) e de Lisboa e Vale do Tejo, a região mais favorecida (Quadro XIV), representando
aproximadamente 4/5 do poder de compra per
capita do país. Repare‑se, no entanto, nas profundas assimetrias
internas da região Norte, diluidoras de qualquer ilusão de homogeneidade. Em
1995, “O Grande Porto beneficia de um
poder de compra per capita que
ultrapassa em um pouco mais de um terço o valor médio nacional. Em todo o país
apenas a sub‑região da Grande Lisboa supera esta performance (...) por
outro lado, quatro das seis sub‑regiões que registam menores níveis de
poder de compra per capita localizam‑se
no Norte”[648]. De facto,
em 1997, o Grande Porto possui um poder de compra per capita de 131.18,
enquanto que o Tâmega atinge apenas 47.15.
Aliás, é notória a situação privilegiada dos centros urbanos. Quase sempre,
possuem valores superiores à média da sub‑região onde estão enquadrados.
É o caso de Braga (102.97, para 71.21 da sub‑região do Cávado);
Guimarães (67.74, para 62.40 do Ave); Viana do Castelo (75.08, para 58.04 do Minho‑Lima); S. João da Madeira (158.18 — o segundo concelho da região
Norte neste indicador, logo a seguir ao concelho do Porto — para 69.96 de EntreDouro e Vouga); Vila Real
(76.16, para 50.87 do Douro) e Bragança (82.50,
para 54.82 de Alto Trás‑os‑Montes)[649].
QUADRO
XIV — INDICADOR PER CAPITA DO PODER
DE COMPRA CONCELHIO EM 1995 E 1997
|
1995 |
1997 |
PORTUGAL |
100,00 |
100,00 |
CONTINENTE |
102,00 |
101,98 |
NORTE |
81,87 |
83,17 |
CENTRO |
71,63 |
71,07 |
LISBOA E VALE DO TEJO |
144,60 |
142,94 |
ALENTEJO |
69,62 |
68,03 |
ALGARVE |
100,43 |
106,47 |
AÇORES |
64,47 |
60,59 |
MADEIRA |
59,74 |
64,35 |
GRANDE LISBOA |
188,30 |
185,63 |
GRANDE PORTO |
134,43 |
131,18 |
Fonte: INE — Infoline, Estudo sobre o Poder de Compra Concelhio, Número II e III, 1995 e
1997.
Impõe‑se salientar o facto de, fora do Grande
Porto, apenas Braga e S. João da Madeira possuírem valores acima da média
nacional. Contudo, o dinamismo das cidades de média dimensão parece conferir
credibilidade à tese de uma maior complexificação do xadrez territorial,
defendida por João Ferrão e referida no anterior capítulo. Em termos de
percentagem de poder de compra, a Região Norte, com 29.6% fica, uma vez mais, a considerável distância face a Lisboa e
Vale do Tejo, com aproximadamente metade do poder de compra nacional[650].
No entanto, de novo constatamos que a região Norte, claramente periférica a
nível do país, divide‑se também ela internamente em centro e periferias.
A sub‑região mais privilegiada é o Grande Porto (15.7% do poder de compra nacional). Das restantes sub‑regiões,
apenas o Ave atinge valores na ordem dos 3%.
Persistindo na análise das condições de vida das
populações e observando a posse de determinados bens e equipamentos,
detectamos, uma vez mais, fortes desigualdades inter‑regionais. Tomando
em linha de conta apenas os que, desses bens e equipamentos, possuem
pertinência enquanto suporte ou veículo de práticas culturais, verifica‑se
uma sistemática descoincidência entre os valores da Região Norte e de Lisboa e
Vale do Tejo, com prejuízo nítido da primeira. Se, no que respeita à televisão
a cores, a diferença é pouco relevante (no Norte, 88.71% dos agregados possuem esse aparelho, em Lisboa e Vale do
Tejo o valor eleva‑se para 92.54%),
para outros equipamentos a distância é já considerável, traduzindo desiguais
possibilidades de prática cultural[651].
Uma outra dimensão de extrema relevância para a
contextualização estrutural do Norte do país, prende‑se com os níveis de
escolaridade. Apesar de uma nítida melhoria nas taxas de escolarização e de uma
redução das disparidades nacionais desde 1987, a região Norte permanece
distante face às médias do continente nacional. Assim, enquanto que esta região
representa, no ano lectivo 1994/95, 40.1%
do total nacional de frequência do ensino básico, no que respeita ao ensino
secundário o valor desce para 30.3%,
o que indicia uma lógica de acentuada selecção escolar[652].
Já no que se refere ao ensino superior, a frequência mantém‑se
praticamente idêntica à registada no secundário (30.2%[653]),
o que nos leva a supor que o grosso do abandono escolar se processa após o
completar da escolaridade obrigatória. Por outro lado, o nível de frequência
escolar regional é claramente inferior ao peso dos grupos etários
correspondentes, o que comprova, uma vez mais, níveis significativos de
abandono escolar.
Se analisarmos, agora, a composição sócioprofissional da
região Norte por comparação com as restantes regiões (quadro XV), chegamos à conclusão de que existe uma predominância
relativa dos seguintes grupos: trabalhadores da agricultura e pesca;
trabalhadores da produção industrial e artesãos; operadores de instalações
industriais e máquinas fixas, condutores e montadores.
Quadro XV : Distribuição por Regiões
dos Empregados por Grupo Profissional |
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Região |
Grupo 1 |
Grupo 2 |
Grupo 3 |
Grupo 4 |
Grupo 5 |
Grupo 6 |
Grupo 7 |
Grupo 8 |
Grupo 9 |
Total |
Norte |
38,65% |
28,45% |
30,92% |
30,61% |
30,56% |
42,67% |
49,04% |
47,23% |
33,22% |
38,06% |
Centro |
15,46% |
14,26% |
14,76% |
12,63% |
15,26% |
31,02% |
16,13% |
18,93% |
18,20% |
17,17% |
Lisboa e Vale do Tejo |
39,09% |
51,02% |
47,15% |
49,37% |
42,54% |
15,14% |
28,18% |
26,72% |
37,07% |
36,13% |
Alentejo |
2,99% |
3,64% |
4,03% |
3,93% |
5,85% |
6,27% |
3,89% |
5,13% |
7,82% |
5,08% |
Algarve |
3,81% |
2,62% |
3,14% |
3,46% |
5,80% |
4,90% |
2,76% |
2,00% |
3,69% |
3,55% |
Continente |
169 702 |
222 100 |
293 959 |
421 440 |
527 156 |
322 321 |
943 714 |
353 157 |
651 544 |
3 945 520 |
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|
Fonte: INE, Censos
de 1991 |
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Pelo contrário, a região de Lisboa e Vale do Tejo revela
uma supremacia relativa nos restantes grupos profissionais: membros de corpos
legislativos, quadros dirigentes da função pública e das empresas; profissões
intelectuais e científicas; profissões técnicas intermédias; empregados
administrativos e pessoal dos serviços de protecção e segurança e dos serviços
pessoais e domésticos[654].
Contudo, importa relativizar estes números através da utilização de um índice
de especialização profissional a nível regional (“que nos permite confrontar o peso do emprego numa dada profissão em
cada região com o verificado a nível nacional”[655]),
já que a região Norte concentra cerca de 1/3 da população nacional. Assim, a
especialização da região Norte encontra‑se patente em quatro grupos
profissionais: membros de corpos legislativos, quadros dirigentes da função
pública, directores e quadros dirigentes de empresas; trabalhadores da
agricultura e pesca; trabalhadores da produção industrial e artesãos;
operadores de instalações industriais e máquinas fixas, condutores e
montadores.
Se pretendermos caracterizar socioprofissionalmente os
grupos de profissões, chegamos às seguintes constatações:
– os membros de corpos legislativos e dirigentes da
função pública e das empresas constituem um grupo onde predominam os dirigentes
de pequenas empresas que são simultaneamente patrões; no geral – e apesar de
alguns núcleos altamente escolarizados e qualificados, ligados às grandes
empresas – possuem um baixo nível de instrução (59% não ultrapassam o ciclo preparatório)[656]
e uma forte masculinização (as mulheres encontram‑se, por isso,
fortemente subrepresentadas nos lugares de chefia), o que confirma, aliás,
estudos efectuados a nível nacional[657];
– as profissões intelectuais e científicas, por seu lado,
caracterizam‑se por um alto nível de escolarização (cerca de 90% possuem um diploma de ensino
superior), por uma forte feminização, em especial no sub‑grupo docente, e
ainda por serem, na sua maioria, trabalhadores por conta de outrem;
– as profissões técnicas intermédias, mais instruídas que
a média da população, possuem, no entanto, níveis inferiores aos do grupo
anterior (43% lograram atingir o
ensino secundário e 37% o ensino
superior), sendo constituídas, em grande parte, por trabalhadores por conta de
outrem e marcadas por uma alta taxa de feminização;
– os empregados administrativos, extremamente ligados aos
serviços financeiros e de contabilidade, bem como ao comércio, têm um nível de
escolaridade inferior ao do grupo anterior, se bem que 63% possuam o ensino secundário, e revelam uma participação
feminina muito desigual (3/4 em alguns sectores, extremamente reduzida
noutros);
– o restante pessoal dos serviços revela, pelo contrário,
baixos níveis de escolarização (70%
possuem, no máximo, o ciclo preparatório) e a inserção profissional feminina é,
também, muito desigual;
– os trabalhadores qualificados da agricultura e pesca
formam um grupo com fortes lacunas em termos de instrução, factor que se
reflecte nos baixos rendimentos e na alta duração média diária da jornada de
trabalho, concentrando grande número de trabalhadores por conta própria, em
especial na agricultura, sector que conta com uma tradicional forte participação
feminina (39%);
– os trabalhadores da indústria e dos transportes[658]
revelam‑se um grupo desqualificado, com reduzidos níveis de instrução
(cerca de 90% têm no máximo o ciclo
preparatório), com horários laborais superiores à média e baixas remunerações,
em tudo demonstrando níveis medíocres de investimento tecnológico, próprios de
um modelo de utilização intensiva de mão‑de‑obra barata[659].
A participação feminina é extremamente desigual, sendo muito significativa na
indústria têxtil e no calçado e escassa na construção civil;
– finalmente, os trabalhadores não qualificados dos
diferentes sectores (que constituem, não o esqueçamos, o segundo grupo
profissional mais numeroso na região Norte) agrupam, essencialmente,
trabalhadores do terciário, embora também exista uma componente significativa
de operários da indústria transformadora. Fracamente escolarizados, têm no seu
seio um importante peso de jovens e mulheres[660].
Em síntese, a composição socioprofissional da região
Norte indica uma forte preponderância do chamado terciário inferior, ligado aos
empregos de execução, desqualificado e precário, a par de um significativo peso
dos trabalhadores da indústria e dos transportes que constitui, aliás, o grupo
em que a região revela uma maior especialização. De notar, igualmente, um
grande número de trabalhadores não qualificados e a persistência de
trabalhadores por conta própria na agricultura e pesca, em especial nas sub‑regiões
do Minho‑Lima e Alto Trás‑os‑Montes[661].
O aumento do nível de actividade feminina é uma realidade quase transversal
(cresceu 25% entre 1981 e 1991, o
que corresponde, em termos absolutos, a mais 131 mil trabalhadoras e a um salto
na taxa bruta de actividade de 30%
para 36.8%). Pelo contrário, a taxa
de actividade masculina desceu ligeiramente (de 55.7% para 54%). Desta
forma, o aumento da população activa no período em causa cifrou‑se em 9.3% (cerca de 135 mil trabalhadores),
devido quer ao efeito demográfico, quer à acentuada subida da participação
feminina[662].
Comparando este panorama com a situação nacional,
verifica‑se, em ambos os casos, um acentuado processo de terciarização,
patente no aumento dos empregados administrativos e dos empregados do comércio
e dos serviços pessoais. Estes, a respeito dos níveis de escolaridade, e apesar
de uma situação mais favorável nos primeiros, não ultrapassam, na sua maioria,
o ensino básico – factor que se revela da maior importância para se compreender
o processo de expansão do terciário em Portugal e na região Norte. No entanto,
como se constata pelo Quadro XVI, o
sector terciário ocupa, ainda, no conjunto da região Norte, uma posição
subalterna em relação ao sector secundário, em grande parte devido à
importância da indústria têxtil e da construção[663].
Desta forma, os trabalhadores da indústria e dos transportes têm um peso
relativo elevado na região (claramente acima dos 40%, enquanto que a média nacional, em 1992, se quedava em 32.4%[664]).
QUADRO XVI — DISTRIBUIÇÃO
SECTORIAL DO EMPREGO NA REGIÃO NORTE |
|
SECTOR PRIMÁRIO 11,1% |
|
|
|
— agricultura,
produção animal, caça e silvicultura — restante sector primário |
10,3% 0,8% |
SECTOR
SECUNDÁRIO 49,0% |
|
|
|
— indústria têxtil — construção — indústrias do couro e o dos produtos do couro — indústrias metalúrgicas de base e produtos metálicos — indústrias transformadoras não extractivas — indústrias da madeira e da cortiça e suas obras — restante sector secundário |
17,9% 10,6% 4,6% 3,4% 2,5% 2,2% 7,9% |
SECTOR TERCIÁRIO 39,9% |
|
|
|
— comércio a retalho (excepto automóveis e motociclos); reparações; bens pessoais e domésticos — administração pública, defesa e segurança social obrigatória — outras actividades de serviços colectivos sociais e pessoais; famílias com empregos domésticos; organismos internacionais e outras instituições extraterritoriais — educação — transportes, armazenagem e comunicações — saúde e acção social — alojamento e restauração (restaurantes e similares) — comércio, manutenção e reparação de veículos automóveis e motociclos; comércio a retalho de combustíveis para veículos — actividades imobiliárias, alugueres e serviços prestados às empresas — restante sector terciário |
9,5% 4,7% 4,6% 4,6% 3,2% 2,8% 2,7% 2,4% 2,2% 3,5% |
Fonte: INE, Censos de 1991
O aumento da taxa de actividade feminina, por seu lado, é
também um fenómeno de âmbito nacional[665],
embora de contornos ainda mais expressivos, como de resto mencionámos no
capítulo anterior. De qualquer forma, não podemos esquecer que a inserção da
mulher no mercado de trabalho se faz, muitas vezes, em segmentos precários,
desqualificados e desqualificantes. Na região Norte, e atendendo aos grupos
socioeconómicos, a inserção feminina é insignificante no conjunto dos
empresários e dos directores/dirigentes. Pelo contrário, os trabalhadores
independentes e, em especial, os não qualificados revelam uma predominância
feminina. A excepção a esta lógica será, porventura, a elevada feminização
existente no grupo dos quadros, fruto, em grande parte, do peso relativo da
profissão docente[666]
e da expansão dos serviços públicos. Convém não esquecer, além do mais, que nos
deparamos, nesta Região, com uma persistência do campesinato parcial,
articulado com a industrialização rural difusa, fenómeno que se encontra
indissociavelmente ligado a uma sobrecarga de tarefas que prejudica a mulher,
já que esta, frequentemente, desempenha funções produtivas na economia agrícola
de cariz doméstico.
Quanto aos níveis de desemprego, é de notar que, apesar
de um decréscimo generalizado patente em todas as regiões, o Norte, com 6.6% de taxa de desemprego no segundo
trimestre de 1997, apresenta um valor praticamente idêntico ao de há um ano
atrás (2º trimestre de 1996 – 6.7%),
com a agravante de, agora, se situar uma décima percentual acima da média
nacional que se cifra em 6.5%.
Finalmente, e no que respeita às variáveis demográficas
(que nunca são estritamente demográficas,
incluindo‑se no âmbito mais vasto dos fenómenos sociais totais), apesar
da tendência, anteriormente referida, de uma relativa uniformização dos
comportamentos, com o esbatimento dos sistemas demográficos regionais, notam‑se,
ainda assim, algumas diferenças do panorama regional face à situação nacional (Quadro XVII). De facto, a natalidade
continua a ser superior, ao mesmo tempo que a nupcialidade. Concomitantemente,
o índice de envelhecimento é significativamente inferior.
Quadro XVII —
Indicadores Demográficos da Região Norte
Designação
do indicador |
Valor |
Unidade |
Período |
Taxa de Natalidade |
12.2 |
Permilagem |
1995 |
Taxa de Mortalidade |
9.1 |
Permilagem |
1995 |
Excedente de vidas |
3.1 |
Permilagem |
1995 |
Taxa de Nupcialidade |
7.5 |
Permilagem |
1995 |
Taxa de divórcio |
0.9 |
Permilagem |
1995 |
Índice de Envelhecimento |
65.7 |
Percentagem |
1995 |
Fonte: INE, Infoline. Retratos Territoriais. Indicadores Demográficos
No entanto, e
apesar de a Região Norte ser responsável por mais de 40% dos casamentos celebrados no Continente nacional, a taxa de
nupcialidade sofre uma quebra acentuada (14%)
entre 1990/91 e 1994/95. Paralelamente, aumenta a idade média em que as
mulheres têm o primeiro filho (27.16
anos em 1990‑91)[667].
Como salientam demógrafos e sociólogos, estas alterações demográficas estão
longe de ser independentes de profundas transformações nas sociedades globais,
sendo estímulo e efeito de novos comportamentos conjugais: “nível de instrução, em particular das mulheres, independência
económica, participação da mulher no mercado de trabalho, prática religiosa,
experiência familiar, etc.[668].
No que se refere ao envelhecimento, dados de 1996, já
apresentados no capítulo anterior[669],
mostram que, com excepção das Regiões Autónomas, o Norte é a Região menos
envelhecida do país, já que sofre ainda os efeitos de uma queda mais tardia da
natalidade, tradicionalmente elevada. Aquando do Recenseamento de 1991, “a população idosa da Região Norte situava‑se
(...) em 11.4% (...) significa isto que à ideia de relativa juvenilização da
Região Norte, tão frequentemente invocada, deve associar‑se também a de
um envelhecimento menos acentuado do que o verificado à escala nacional e muito
inferior ao de outras unidades territoriais homólogas do País”[670].
No entanto, observando a série cronológica 1990‑96, verifica‑se um
gradual duplo envelhecimento, enquadrado, aliás, na evolução nacional: em 1990
o índice de dependência de idosos era de 17.2%;
seis anos mais tarde aumentara 1%.
Simultaneamente, o índice de dependência de jovens descia significativamente de
33.2% em 1990 para 27.7% em 1996[671].
2. A Área Metropolitana do Porto no
Conjunto do Norte.
A área metropolitana do Porto (AMP) representa um papel
predominante no seio da região Norte. Desde logo, pelo seu volume demográfico
(1.167.800 indivíduos), correspondente a 1/3 da população da referida região[672]
e a mais de 1/3 dos empregados.
No entanto, é nítida uma tendência recente de
desaceleração do crescimento demográfico: enquanto que na década de 70 se
verificou um aumento de 20%, os anos
80 registam, apenas, um acréscimo de 5%.
Esta tendência enquadra‑se num processo mais amplo de atenuação do
processo de bipolarização que engloba as duas áreas metropolitanas.
O crescimento natural, por seu lado, revela um movimento
de abrandamento, em tudo semelhante ao da Região Norte e mesmo do conjunto
nacional, cifrando‑se nos 6%.
Este abrandamento corresponde a um “abatimento
progressivo da natalidade”, a par da “estabilização
das taxas de mortalidade”[673].
No entanto, o saldo migratório é negativo (‑2%),
“o que significa que, globalmente, o
volume daqueles que deixaram este território foi superior ao dos que para aqui
foram atraídos”[674].
Esta situação encontra‑se certamente relacionada com os tipos de uso do
solo e com o mercado de habitação. Por outro lado, e tal como na Região Norte,
é nítido o processo de duplo envelhecimento: no Grande Porto, no período 1990‑96,
o índice de dependência dos idosos aumentou de 15.2% para 16.9%, o que,
continuando a ser um valor inferior ao da Região Norte no seu conjunto, revela
um ritmo de envelhecimento no topo superior. No que se refere ao índice de
dependência de jovens, uma vez mais a evolução é semelhante, no sentido de uma
quebra: de 28.8% em 1990 para 25.1% em 1996[675].
Se atentarmos, agora, numa série de indicadores de
qualidade de vida ligados à habitação, facilmente constatamos (quadro XVIII) que as condições de
alojamento da AMP são significativamente superiores às verificadas na região
Norte, embora, comparando com o continente, os números sejam muito semelhantes.
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Quadro XVIII : Aspectos Qualitativos
dos Alojamentos (1991) |
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alojamentos de residência habitual |
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ligados a redes públicas de |
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Concelhos |
Total |
Equipados |
Água |
Esgotos |
|||
Espinho |
10 124 |
8 549 |
84,4 |
6 343 |
62,7 |
5 755 |
56,8 |
Gondomar |
40 863 |
33 104 |
81,0 |
34 089 |
83,4 |
7 849 |
19,2 |
Maia |
26 320 |
20 361 |
77,4 |
13 099 |
49,8 |
8 425 |
32,0 |
Matosinhos |
45 179 |
36 380 |
80,5 |
28 286 |
62,6 |
18 947 |
41,9 |
Porto |
95 453 |
85 304 |
89,4 |
89 430 |
93,7 |
77 648 |
81,3 |
Póvoa de Varzim |
14 011 |
11 747 |
83,8 |
9 261 |
66,1 |
6 480 |
46,2 |
Valongo |
20 176 |
15 722 |
77,9 |
13 180 |
65,3 |
6 838 |
33,9 |
Vila do Conde |
16 251 |
12 311 |
75,8 |
4 965 |
30,6 |
4 476 |
27,5 |
Vila Nova de Gaia |
72 486 |
55 634 |
76,8 |
37 155 |
51,3 |
17 074 |
23,6 |
A.M.P. |
340 863 |
279 112 |
81,9 |
235 808 |
69,2 |
153 492 |
45,0 |
A.M.L. |
847 004 |
781 542 |
92,3 |
782 864 |
92,4 |
729 584 |
86,1 |
Norte |
984 154 |
715 891 |
72,7 |
479 912 |
48,8 |
266 570 |
27,1 |
Continente |
2 968 239 |
2 322 876 |
78,3 |
2 014 030 |
67,9 |
1 455 193 |
49,0 |
Fonte: INE, Census 91
alojamentos equipados = alojamentos com
electricidade, retrete, água e banho
Contudo, face à área metropolitana de Lisboa (AML) a
situação afigura‑se bastante mais desfavorável. Os alojamentos equipados
(isto é, possuindo electricidade, retrete, água e banho) representam 81.9%, para um valor de 72.7% na Região Norte, de 78.3% no continente e 92.3% na AML[676].
No que se refere a alojamentos ligados a redes públicas de água, os números
mostram, de novo, o lugar cimeiro da AML (92.3%),
seguida, de longe, pela AMP (69.2%)
e, em valores muito próximos desta, pela média do continente (67.9%). Na posição menos privilegiada,
o Norte tem menos de metade dos seus alojamentos ligados a redes públicas de
água. Finalmente, no que se refere aos esgotos a situação mantém‑se,
embora com uma significativa alteração: os níveis de cobertura da AMP (45%) são mesmo inferiores à média do
continente (49%).
Outras dimensões contribuem, decisivamente, para o
retrato de cariz estatístico que pretendemos fazer sobre a AMP. Desde logo, as
que se referem à caracterização da população activa.
Um dado a guardar prende‑se com a relevância da AMP
no conjunto da região Norte em termos da população empregada, já que representa
mais de 1/3 do total de empregados desta região[677].
Por outro lado, é patente o seu grau de autosuficiência
no que se refere à relação entre a população empregada e o local de trabalho.
Assim, constata‑se que cerca de 96%
dos movimentos pendulares se limitam ao espaço metropolitano, o que, sem
dúvida, contribui para conferir uma identidade real a este espaço
administrativo, caracterizado por uma complexa rede de interdependências. Outro
aspecto significativo é o elevado nível de atracção que a AMP,
independentemente dos seus processos de distribuição e reorganização internas,
exerce, sobretudo face à região Norte (4.6 milhares de indivíduos num total de
5.3 milhares respeitante ao país e estrangeiro).
No que respeita à distribuição dos grupos profissionais,
constata‑se que predominam, em termos relativos, os empregados
administrativos (em resultado do processo de terciarização em curso), embora na
maior parte dos concelhos tenham ainda preponderância os trabalhadores da
indústria e dos transportes, escasseando os quadros dirigentes e as profissões
intelectuais e científicas. Além do mais, mantém‑se muito significativo o
peso absoluto e relativo do grupo dos trabalhadores não qualificados, o que
prolonga, no geral, o panorama regional mais amplo.
Este quadro indica ainda, segundo Emília Saleiro e Sónia
Torres, um baixo nível de instrução e de qualificação, associado ao “grau de exigência requerido na execução de
tarefas neste contexto produtivo”[678],
em grande parte dominado por um alto nível de especialização em indústrias
tradicionais de base local.
No que se refere ao peso relativo da população a
trabalhar por conta de outrem, é de notar que na AMP tal conjunto representa 83% da população activa, enquanto que
na região Norte a percentagem desce para 77%,
o que revela, sem dúvida, que existe na AMP um menor peso da população a
trabalhar por conta própria, em geral intimamente associada aos sectores da
agricultura e do comércio tradicional.
Por outro lado, não podemos deixar de referir um aspecto
extremamente relevante: a AMP concentra 46%
dos desempregados da região Norte, sendo os jovens e as mulheres os mais
prejudicados. Esta situação reflecte‑se, desde logo, numa taxa de
desemprego que é a mais elevada da região Norte[679]
e pelo facto de “concentrar
proporcionalmente mais desempregados do que empregados”[680].
Aliás, “mais de 2/3 do acréscimo que também
ocorreu no desemprego do Norte era proveniente daquela sub‑região”[681].
Preocupante e grave, ainda, é a circunstância de um valor superior a 2/3 dos
desempregados serem provenientes dos grupos dos trabalhadores administrativos e
operários das indústrias têxtil, metalúrgica e da construção, o que revela
grandes dificuldades de adaptação e reconversão do terciário inferior e das
indústrias tradicionais. Aliás, 78%
da população desempregada tem o ensino básico como patamar de escolarização
mais elevado.
No caso da AMP, estes dados poderão constituir
indicadores de um mais rápido processo de modernização económica, no sentido
“corrente” do termo: aceleração do crescimento do terciário médio e superior,
declínio dos sectores que revelam pouca competitividade num contexto de
abertura da economia regional, aumento da qualificação da população
assalariada. Mas também o lado negro dessa modernização: aumento do desemprego,
da intermitência, da desregulamentação, flexibilização e precarização do
emprego.
Torna‑se imperioso, por isso, conhecer os níveis de
escolarização da população da AMP[682],
já que continua a verificar‑se que a obtenção dos graus de ensino mais
elevados é o melhor antídoto contra a vulnerabilização social, a exclusão e o
desemprego. Ao fazê‑lo, destaca‑se, desde logo, uma percentagem de
população analfabeta claramente inferior à do conjunto da região Norte: 5.9% contra 9.9% em 1991. No que diz respeito aos níveis de escolarização da
população residente, salienta‑se um aumento de 7.7% no número de indivíduos que possuem o ensino básico, com um
assinalável salto na população feminina (+11.7%)
e uma progressão modesta no sexo masculino (+3.9%)[683].
No entanto, o aumento mais expressivo situa‑se ao nível do ensino
secundário: +45% no espaço de uma
década, com as mulheres a assumirem, de novo, uma variação positiva
espectacular (+66.9% contra “apenas”
+28% no caso dos homens). Ainda
assim, importa moderar a apreciação altamente positiva destes valores, já que
os níveis de partida são extremamente medíocres. Finalmente, a “taxa específica da escolarização superior/pós‑graduação,
confirma uma tendência transversal aos diversos níveis de escolarização: “a Área Metropolitana detém uma situação
relativamente privilegiada do ponto de vista educativo em confronto com o
contexto regional em que se insere”[684]:
4.2% para a região Norte e 7.2% para a AMP. Num sentido lato, ou
seja, agregando a população que possui o ensino secundário e superior, a
diferença é ainda mais visível: 11%
no caso da região Norte, 17% na AMP
(ver gráficos nº 1 e 2).
Dados mais recentes, de 1993/94, indicam que a população
a frequentar o ensino superior na região Norte representa 7.7% dos alunos matriculados nesse ano lectivo, percentagem que
sobe para 11.6% na AMP[685].
|
Fonte: António Joaquim Esteves, op.
cit., p. 41
|
Fonte: António Joaquim Esteves
op. cit., p. 41
Em jeito de síntese, podemos dizer que, apesar de prolongar, no essencial, os
traços distintivos da região Norte (grande peso do terciário inferior, das
indústrias tradicionais, da pouca qualificação da população activa, etc.), a
AMP revela um maior protagonismo sócio‑económico, representando, apesar
das suas limitações endógenas, um dos pólos mais significativos de
desenvolvimento no conjunto nacional.
Esta afirmação é reforçada por Paulo Gomes, Sérgio
Bacelar e Emília Saleiro[686],
ao considerarem que, em termos comparativos, a AMP é “um espaço relativamente homogéneo cuja competitividade face a outros
territórios é manifesta” com “um
posicionamento único no contexto regional e supraregional que, apesar da perda
de dinamismo demográfico, não encontra ainda verdadeiramente concorrentes no
interior da região Norte”[687].
3. O
Porto no conjunto da área metropolitana.
Uma das melhores provas da indesmentível centralidade
exercida pela cidade do Porto encontra‑se, uma vez mais, na análise dos
movimentos pendulares. Para além de constituir o maior pólo de emprego da
região Norte, este concelho fixa no seu interior a maior parte da população
activa que nele reside, ao mesmo tempo que atrai cerca de 114 mil activos. Por
outro lado, é ainda relevante o facto de cerca de 2/3 da mão‑de‑obra
importada pelo Porto exercerem a sua actividade no sector terciário, que
representa perto de 3/4 da população activa que reside e trabalha no Porto.
No entanto, do ponto de vista demográfico, a cidade do
Porto não demonstra o mesmo dinamismo. Com efeito, entre 1981 e 1991, o
concelho perdeu cerca de 7.6% da sua
população, acelerando‑se o processo de suburbanização (quadro XIX), com particular incidência
em Valongo, Maia, Matosinhos e Vila Nova de Gaia. Assim, a “concentração urbana ultrapassou os limites administrativos da cidade
do Porto, conquistando o espaço de adjacência e estruturando o que alguns
autores designam por «Cidade‑Aglomeração»”[688].
Quadro XIX : Evolução da População da
A.M.P. no Intervalo 1991‑994 |
|||
|
|
|
|
Concelhos |
População |
Variação |
Variação |
|
1994* |
média anual |
Média anual |
|
|
1991‑1994 |
1981‑1991 |
Espinho |
35 620 |
179 |
255 |
Gondomar |
148 550 |
1 177 |
1 243 |
Maia |
97 480 |
1 165 |
1 147 |
Matosinhos |
158 110 |
1 730 |
1 518 |
Porto |
288 380 |
‑3 793 |
‑2 490 |
Póvoa de Varzim |
56 410 |
437 |
54 |
Valongo |
77 500 |
896 |
994 |
Vila do Conde |
66 010 |
316 |
43 |
Vila Nova de Gaia |
257 200 |
2 324 |
2 223 |
A.M.P. |
1 184 260 |
4 431 |
4 988 |
*
valores estimados
Fonte: Isabel
Martins, art. cit., p. 7
.
Na mesma linha, nota‑se uma acentuada desaceleração
na componente natural do crescimento demográfico, com indícios de uma não
renovação das gerações, patente no facto de os óbitos superarem os nascimentos,
devido, em grande parte, ao abrandamento da taxa de natalidade: em 1995, a taxa
de mortalidade era de 11.6 por mil,
enquanto que a taxa de natalidade se quedava pelos 10.2 por mil[689]
Assiste‑se, assim, a um fenómeno de duplo envelhecimento — na base, com
diminuição do peso relativo dos mais jovens e no topo, com um aumento da
proporção de idosos. O Porto detinha, em 1996, o mais baixo índice de
dependência de jovens dos concelhos AMP (Porto: 22.2%; média da AMP: 25.1%)
e o mais alto índice de dependência de idosos (Porto: 24.2%; média da AMP: 16.9%).
O índice de envelhecimento, então, é significativamente mais elevado (Porto: 108.9%, média da AMP: 67.3%), mesmo em relação ao valor médio
nacional que ascendia, recorde‑se, a 86.1%[690]. Outro dado relevante indica que são, precisamente,
os concelhos contíguos ao Porto aqueles onde a proporção de idosos é menor, o
que dá bem conta de um processo de suburbanização baseado no êxodo de população
mais jovem[691]. A nível
intraconcelhio, constata‑se que é nas freguesias do núcleo histórico que
se verificam os índices de envelhecimento mais acentuados. A. J. Esteves E J.
Madureira Pinto elaboram a esse respeito duas considerações: por um lado, o
facto de que “o já referido processo de
suburbanização foi alimentado, em parte, pelo êxodo de populações
tendencialmente jovens destas freguesias”; por outro, os inevitáveis
fenómenos de “degradação física,
desvitalização e estigmatização sociais” associados a áreas profundamente
envelhecidas[692]. O que não
deixa de ter pesadas consequências na desertificação do centro da cidade, em
especial à noite, interpelando as políticas de animação cultural para uma
atenção redobrada a esta situação, potenciadora de um abandono do núcleo antigo
da cidade.
Em termos de escolarização, o Porto é o concelho da AMP
com um panorama mais favorável. Desde logo, ao possuir a menor taxa de
analfabetismo, mas prolongando‑se, igualmente, pelos diversos níveis de
ensino. Se atentarmos na taxa de variação (entre 1981 e 1991) da população
residente com o ensino básico completo, constatamos que assume valores
negativos (‑11.3%). Tal
situação pode todavia ser explicada, de acordo com A. Joaquim Esteves[693],
pelo facto de a população do concelho obter níveis de escolarização superiores.
Da mesma forma, os tímidos acréscimos na população residente que possui o
ensino secundário completo (+1.4%),
em especial quando comparados quer com a média da AMP (+45%), quer, sobretudo, com a variação de alguns concelhos
(superior a 100% em Gondomar, Maia e
Valongo) significam, antes de mais, um peso cada vez maior do ensino superior.
Nos restantes concelhos, as expressivas variações positivas da população com o
ensino básico e com o ensino superior representam, na realidade, uma etapa que
o Porto já ultrapassou. Aliás, a população deste concelho que possui o ensino
superior significa 43% do total de
indíviduos da AMP a frequentar o ensino superior. De notar, ainda, a
predominância das mulheres (53.7%
contra 46.3% dos homens). Em termos
da taxa de escolarização, a população com instrução superior atinge 13.2% no Porto, enquanto que na AMP se
fica pelos 7.4% e na região Norte
apenas pelos 4.2%.
Estes dados relativos à escolarização são de fundamental
importância para se concluir do grau de qualificação da população activa. De
facto, o Porto possui apenas 1.5% de
não escolarizados (a percentagem mais baixa da AMP, juntamente com Valongo).
Pelo contrário, ascende a 19.3% e a 17.9% o conjunto de indivíduos que
possuem, respectivamente, o ensino secundário e a instrução superior (contra
apenas 15.2% e 9.8% na AMP). Por grupos etários, verifica‑se que os jovens
adultos (20‑24, 25‑34 e 35‑44 anos) constituem o segmento
mais escolarizado, não só porque apresentam um número meramente residual de não
escolarizados (0.4%, 0.5% e 0.6% respectivamente), como atingem, em número acima da média do
concelho, a instrução secundária e superior, fruto dos progressos relativamente
recentes na expansão dos níveis mais elevados de escolarização[694].
Por outro lado, o Porto beneficia, em termos da
composição socioprofissional da sua população, da tendência de uma maior
concentração de grupos como os directores/dirigentes e os quadros em lugares
populosos[695].
Desta forma, encontram‑se criadas
as condições para uma grande visibilidade simbólica destes conjuntos
juvenilizados e económica e culturalmente privilegiados que alimentam e se
alimentam de consumos mais ou menos demarcados e distintivos. É deles que
amiúde se fala, quando se utilizam expressões como as “novas classes médias
urbanas”, as “elites urbanas”, “a concentração de «massa crítica» nas grandes
aglomerações” ou os processos de “gentrificação”.
De facto, é notório na AMP e em particular no concelho do
Porto uma reestruturação vasta do espaço urbano, ligado, em grande parte, ao
afastamento das famílias menos favorecidas em relação às áreas residenciais
centrais (apesar de continuarem, na sua maioria, a trabalhar no concelho do
Porto), mas também ao declínio das facilidades concedidas à instalação de
indústrias, numa reorientação que favorece a expansão dos serviços. Tornam‑se
patentes, por isso, profundas modificações na estrutura social, com as camadas
mais favorecidas a experimentarem novos modos de vida, a que não são alheias as
transformações demográficas e a alterações das estruturas familiares e das
atitudes face à família, encontrando tradução adequada em novos estilos de
vida, em que o consumo aparece com uma certa primazia (há autores que falam
mesmo da “soberania do consumo”[696]),
demarcando espaços sociais e territoriais. Aliás, os dados disponíveis sobre os
comportamentos familiares indicam que, na AMP, o Porto é um dos concelhos onde
menos se casa (o que se enquadra num movimento mais geral de quebra da taxa de
nupcialidade); é igualmente o concelho onde a taxa de divórcio é mais elevada[697]
(o que se traduz na maior percentagem de recasamentos da AMP), sendo
responsável por mais de 22% dos
divórcios da Região Norte; possui um baixo índice sintético de fecundidade
(apenas em Gondomar e na Maia é menor) e a mais tardia idade média em que se
tem o primeiro filho (a taxa de fecundidade aos 30 anos é superior à dos 20),
indiciando um crescente intervalo entre a idade do casamento e a idade da
fecundidade. O Porto é ainda o concelho onde se regista um maior peso relativo
de famílias monoparentais (11.66%)[698].
Todos estes indicadores traduzem a
disseminação e a diversidade de novos modelos familiares, baseados num papel
mais activo da mulher (por uma constelação de motivos já mencionados em
capítulos anteriores e que passam por um acentuado aumento do seu nível de
instrução e por uma fortíssima participação no mercado de trabalho), numa maior
fragilidade e flexibilidade conjugal, num outro valor dado à criança, num alto
número de nascimentos fora do casamento (o mais elevado índice da AMP) enfim,
numa intensa “«mobilidade matrimonial —
união livre, casamento, divórcio, recasamento, separados por períodos de
celibato mais ou menos longos”[699].
Interessará, agora, verificar em que medida estes fenómenos de recomposição
social e familiar se associam à matriz de consumos e práticas culturais,
designadamente no que se refere a uma maior disponibilidade face à “cultura de
saídas” (favorecida, eventualmente, pelo retardar do “envelhecimento cultural”
muitas vezes iniciado com o casamento, por processos de retorno à “condição
juvenil” proporcionado pela dissolução da conjugalidade, pelo menor número de
filhos, etc.).
Não é de admirar, por tudo o que anteriormente foi
referido, que o Porto apareça posicionado em primeiro lugar, no conjunto do
Grande Porto, face à dimensão “excelência” de uma tipologia socioeconómica[700]
elaborada para caracterizar os concelhos da região Norte. Esta dimensão
pretende destacar “os concelhos onde
predominam o sector terciário, os níveis de qualificação secundário e
médio/superior, as profissões tipo 1 e 2 (membros de corpos legislativos,
quadros dirigentes da função pública, directores e quadros dirigentes de
empresas e profissões intelectuais e científicas) e os Quadros”[701].
Da mesma forma, o concelho do Porto surge em segundo lugar a nível nacional no
que se refere ao poder de compra per
capita, com 257 pontos (para uma média nacional de 100), apenas abaixo da
cidade de Lisboa[702].
Não podemos, no entanto, esquecer o reverso da situação.
Se é verdade que o concelho do Porto concentra cerca de 41% do emprego da AMP, não é menos certo que nele residem um número
muito significativo de desempregados. A taxa de desemprego, segundo dados de
1991, é a segunda mais elevada da AMP (6.0%,
seguindo‑se a Matosinhos com 6.2%),
sendo mais significativa nos indivíduos que apenas possuem o ensino básico (6.7%)[703].
Por outro lado, contrastando com a visibilidade, muitas
vezes opulenta e ostentatória dos grupos sociais mais favorecidos, existem, nas
grandes cidades, numerosas situações de vulnerabilidade social e de exclusão.
Com efeito, o lado sombrio da atracção que as duas maiores urbes do país
exercem, enquanto ponto de chegada de grande parte dos movimentos migratórios,
reside nas franjas muito significativas e igualmente visíveis de pobreza
urbana, intimamente relacionadas a situações de analfabetismo funcional, de
envelhecimento cultural, de desvalorização dos diplomas, de inadaptação face às
novas tecnologias e ao endurecimento das exigências de qualificação
profissional[704].
Assim, a grande cidade é palco de profundas clivagens sociais, associadas ao “encadeamento de mecanismos de produção de
segmentos sociais sujeitos a novas modalidades de vulnerabilização à pobreza, a
par da tendencial melhoria dos níveis de vida e das condições de reprodução
social dos segmentos incluídos no sistema de garantias estatal e nas zonas de
regulação institucional da gestão de mão‑de‑obra”[705].
Cria‑se, por isso, uma sociedade dual, em que os grupos socialmente
vulneráveis engrossam uma underclass
caracterizada pela destituição e precaridade, sem a ajuda dos tradicionais
instrumentos e instituições de integração social, entretanto dissolvidos[706].
Finalmente, um breve olhar sobre os equipamentos e
serviços de cultura e lazer leva‑nos a realçar a indiscutível
centralidade do Porto, tão esmagadora que não será exagerado considerá‑la
uma autêntica metrópole cultural regional.
De facto, e face à AMP, o Porto concentra 60.7% das bibliotecas existentes; 87.3% das sessões de espectáculos
públicos e 89.6% dos espectadores; 88.5% das sessões e 88.1% dos espectadores de cinema; 63.6% das publicações periódicas e 96.5% da tiragem anual. Quanto à região
Norte, o Porto representa 62.1% das
sessões de espectáculos públicos e 57.9%
dos espectadores; 62.1% das sessões
de cinema e 53.9% dos espectadores;
a 69.9% da tiragem anual das
publicações periódicas[707].
Razões acrescidas, assim o pensamos, para localizar no
espaço social portuense (encarado de forma lata e não nas estritas fronteiras
administrativas do concelho) este estudo sobre práticas culturais.
4. Novo
ponto de partida
A caracterização precedente, bem como todo o capítulo
anterior, constituem passos indispensáveis para a compreensão das condições
objectivas de existência da população portuguesa, com um especial enfoque no
Porto e na sua área metropolitana.
Desta forma, julgamos ter obtido um primeiro esboço da
sociedade portuense (e, indissociavelmente, da sociedade portuguesa – é
impossível retratar o Porto sem retratar o país e viceversa), da sua
exemplaridade e singularidade, enquanto quadro
de vida específico onde se desenvolve um leque finito de práticas sociais.
Um retrato fundamental, embora necessariamente parcial.
Fundamental, porque as práticas sociais são, por definição, localizadas e
territorialmente enquadradas. Parcial, já que o enfoque desenvolvido privilegia
os grandes enquadramentos, as quantificações, as análises e comparações
genéricas. Retrato, em suma, que exige novos contornos, desta feita de maior
minúcia e proximidade face ao “vivido”. Sinal, enfim, de que o insubstituível
processo do trabalho de campo se avizinha.
CAPÍTULO VIII
DO PORTO ROMÂNTICO À CIDADE
DOS CENTROS COMERCIAIS
BREVE VIAGEM PELO TEMPO
“A destruição do passado – ou melhor, dos
mecanismos sociais que vinculam a nossa experiência pessoal à das gerações
passadas – é um dos fenómenos mais característicos e lúgubres do final do
século XX”
Eric Hobsbawn, A Era dos Extremos
“...esse tempo sobrecarregado de
acontecimentos que enchem o presente e o passado próximo...”
Marc Augé, Não‑Lugares – Introdução a uma Antropologia da Sobremodernidade
É impossível desprezar o tempo quando se pretende fazer
ciência social. Enquadrar os objectos no seu contexto histórico, restituí‑los
à duração, revela‑se um exercício de extrema utilidade analítica. Permite
a comparação e a recusa dos absolutos essencialistas.
Na análise da vida cultural, de forma ainda mais visível,
é impossível destruir o passado. Ele surge, repentinamente, quando menos se
espera, tornando‑se presente, porque reapropriado no tempo actual. A
contemporaneidade é uma visão sincrética de assincronismos; uma coexistência de
ritmos sociais justapostos mas com temporalidades distintas. Além do mais, como
refere Augé, a história acelera‑se, persegue‑nos, torna‑se
iminente, carregada de acontecimentos não previstos que nos exigem, cada vez
mais, uma busca de sentido e de inteligibilidade, de forma a não ficarmos
submersos na “superabundância de
acontecimentos”, no “excesso” de tempo, de espaço e de imagens que
caracterizam as nossas sociedades[708].
Lembremos ainda Wright Mills, quando alude à fonte primeira da imaginação sociológica: o cruzamento das
histórias com a História, das biografias com os seus contextos, exercício cada
vez mais plausível num cenário demográfico marcado pelo aumento da longevidade
e da coexistência de três ou quatro gerações, com todas as suas implicações ao
nível do aumento da “memória colectiva,
genealógica e histórica”[709].
Inútil estudar as práticas culturais no Porto
contemporâneo sem esse regresso ao passado mais recente. Fazê‑lo, seria
como que reincidir numa espécie de miopia
analítica, incapaz de descortinar para além do imediato, do que ainda
fervilha. Amnésia que ignora a constituição das sociedades como um processo
onde indissociavelmente se articulam, como as duas faces de uma moeda, a
diacronia e a sincronia, o vertical e o transversal.
O Porto finissecular de Oitocentos
faz tão parte de nós como o Porto dos anos noventa, às portas do terceiro
milénio.
I – O Porto de Oitocentos
1. A
burguesia triunfante.
Falar da vida cultural do Porto do século XIX implica,
necessariamente, abordar os modos de vida da burguesia triunfante e da
superestrutura de valores e estilos de vida que a ela se associam, em
particular depois da vitória definitiva da causa liberal.
Por burguês entende E. J. Hobsbawn, “um «capitalista» (ou seja, um possuidor de capital, ou o recebedor de
um rendimento derivado do capital, ou um empresário votado à obtenção de
lucros, ou as três coisas ao mesmo tempo)”[710].
Apoiados na força conquistadora do lucro, os burgueses afirmaram‑se, um pouco
por toda a Europa (embora a ritmos diferentes), como o grupo hegemónico do
século, abanando, com poderosa determinação, uma sociedade baseada nos
privilégios do nascimento. Enquanto classe, a burguesia liga‑se, de forma
indissociável, à meritocracia e à crença de que qualquer indivíduo,
independentemente da sua origem social, pode ascender ao estatuto que a sua
capacidade de iniciativa lhe permitir.
Por esta mesma razão, no início do século a burguesia era
ainda uma classe insegura, profundamente necessitada de impor como universal a
sua própria ideologia (ou, como diria Bourdieu, de impor arbitrariamente um arbitrário cultural), carecendo, por
isso, de todos os meios de legitimação e de reconhecimento. O mundo da cultura
constituía, então, para utilizar uma expressão de Hobsbawn, a “quinta‑essência” do universo
emergente. E quem diz o mundo da cultura, refere‑se, obrigatoriamente, às
suas múltiplas dimensões, desde o vestuário, à decoração interior e exterior
das casas, às formas de apresentação no espaço público, até às instituições
especialmente criadas para a mise‑en‑scène
de uma nova constelação de valores e comportamentos. Como refere ainda
Hobsbawn, o “espírito da época” colocava “muita
gente na situação historicamente nova de ter de desempenhar papéis sociais
novos (e superiores)”[711].
Digamos que, como acontece nos ritmos de aceleração mais ou menos brusca da
história, as novas condições sociais objectivas necessitavam de um “espelho”
correspondente no mundo “imaterial” e simbólico, mais resistente à mudança e
caracterizado pelo peso da tradição.
Maria de Lourdes Lima dos Santos, ao estudar os manuais
de civilidade correntes no século XIX, chega precisamente à conclusão de que
tais cartilhas consubstanciavam o essencial da ordem social emergente: “O manual de civilidade terá o seu momento
privilegiado como contributo para a legitimação dos que se orientam para um
novo destino de classe”[712],
fornecendo inúmeros conselhos de savoir
faire e savoir vivre, de forma a
colmatar as lacunas de aprendizagem dos que, não tendo nascido em berço de
ouro, ascenderam a posições cimeiras na sociedade, necessitando, por isso, de
uma reconversão mais ou menos brutal do seu sistema de disposições ou habitus. Tal como refere a mesma autora,
trata‑se, afinal, de consagrar a nobreza
adquirida como mais meritória do que a nobreza
herdada. A “educação pelo mundo”,
substitui, paulatinamente, a educação pelo nascimento.
De qualquer forma, a nova classe dominante não
necessitava, apenas, de legitimar a sua ascensão social. Simultaneamente,
impunha‑se‑lhe restringir a mobilidade às classes populares, cada
vez mais representadas e sentidas como “perigosas”.
Daí a ênfase nos procedimentos distintivos, garante e comprovativo da sua
“superioridade”: “neste instável
equilíbrio entre democratização e elitismo se estribava a burguesia ascendente
para legitimar a sua escalada ao Poder – pela aquisição de várias formas de
saber‑fazer, de competência, ela valorizava‑se face à antiga classe
dominante ao mesmo tempo que se demarcava das classes populares”[713].
Assim, se o século XIX é inseparável do triunfo da
burguesia “conquistadora”, ele é, também, a outra face da moeda: a derrota das
tentativas revolucionárias de impor, nos países mais desenvolvidos, uma ordem
social tendencialmente igualitária. Neste sentido, o século XIX representa o
drama, como assinala Hobsbawn, de muitos milhões de pessoas à escala
planetária: a vitória da burguesia trazia benefícios apenas para uma ínfima
minoria e as cedências que a custo foi fazendo, como a instauração do sufrágio
directo e universal, apesar de incómodas, eram “politicamente inócuas”.
O Porto de Oitocentos não é excepção. Como adiante
veremos, a descontinuidade do tecido social urbano era uma realidade
incontornável, bem como a segregação sócio‑espacial que lhe está
subjacente e que se traduz, de forma extremamente visível, nas manifestações de
sociabilidade e na organização do espaço público. O conceito burguês de
cidadania fica desde logo patente, após a vitória liberal, no proliferar de
medidas de proibição da mendicidade e de encarceramento dos pedintes, “vadios”
e “vagabundos” em instituições totais, de tipo asilar.
Como caracterizar, no Porto do século XIX, esta nova
classe dominante, considerada ainda, poucas décadas atrás, como o 3º Estado?
A literatura naturalista fornece‑nos alguns
excelentes retratos, assumindo‑se os seus autores como atentos
observadores do quotidiano burguês, ora identificados com os seus quadros de
vida, ora distanciados em críticos e desencantados comentários[714].
A burguesia portuense surge‑nos, antes de mais,
caracterizada pela sua diversidade interna. Afinal, os novos critérios de
hierarquização social originavam ascensões sociais demasiado rápidas para a
“boa sociedade” que se mantém fiel a um certo conceito de “bom gosto” e de
“cultura”.
Como Maria Antonieta Cruz teve o cuidado de verificar, os
dicionários da época não cristalizavam, ainda, o domínio da nova classe
emergente. O burguês surge como sinónimo de “indivíduo pouco delicado, de modos e gestos grosseiros” podendo
significar, enquanto adjectivo, “vulgar;
trivial; ordinário; chato; grosseiro; sem arte; sem gosto; sem distinção;
acanhado”[715].
Aliás, a falta de instrução da burguesia portuense,
sobretudo por comparação com outras realidades, marcará irreversivelmente o
discurso de muitos personagens dos romances naturalistas, como o Valdez de O Bastardo, de Júlio Lourenço Pinto: “...não há quem saiba conversar, quem se
interesse por duas ideias de arte ou literatura. Há apenas a vida de
escritório, do Banco, da alfândega, a vida do boi sorumbático (...) depois,
feito o negócio, tudo se amorrinha no pesadume crasso e bilioso da digestão
flatulenta”[716].
Segundo os Censos de 1874, a percentagem de analfabetos
rondava os 84.4%, descendo nas
grandes cidades para 64%. O ensino
primário obrigatório apenas surge, no Porto, em 1844, data em que, nesta
cidade, somente se conta um liceu (existindo outros quatro em Lisboa, Coimbra,
Braga e Évora), exclusivamente direccionado para a população masculina[717].
Tardiamente os burgueses portuenses se aperceberão da importância do diploma
como garante social de classe, exceptuando as profissões liberais
(representadas em reduzido número nos recenseamentos eleitorais). Nos
inventários de bens relatados pelos falecidos de elevados rendimentos, os
livros raramente aparecem, tirando, uma vez mais, alguns médicos, juizes e
proprietários. Na fracção de classe dos negociantes, onde se concentrava uma
fatia significativa da burguesia portuense, apenas 9% faziam constar a posse de livros[718].
Aliás, a especificidade da burguesia no nosso país liga‑se
ao seu tardio e incipiente processo de industrialização, que levava Oliveira
Martins a definir o Portugal de Oitocentos como “uma Granja e um Banco”. Essencialmente ligada ao comércio, à
especulação financeira e à posse de terras (sinal duradouro de prestígio e
riqueza), demorará a constituir‑se uma elite burguesa de pendor
industrial, preocupada com o progresso da tecnologia, da ciência e das formas
de gestão. Gaspar Martins Pereira refere, a esse respeito, a persistência da
articulação do factory system com o domestic system, permitindo uma durável
imbricação entre os factores de mudança e os elementos tradicionais: “A mesma geração que vê circular os primeiros
carros eléctricos e que se habitua a saber as horas pelo silvo dos comboios
continua a acordar ao toque das avé‑marias, indiferente à chiadeira dos
carros de bois que quotidianamente cruzam as ruas da cidade (...) persistem
extensas zonas rurais, «trechos de aldeia autêntica»”[719].
Mais importante do que o progresso económico e os ganhos
em produtividade, parecia ser a obsessão mimética face à nobreza, através da
permanente procura de nobilitação, em especial os negociantes e banqueiros
(entre os quais muitos “brasileiros”) recém‑chegados à esfera do poder.
Neste contexto, o que se pode esperar da vida cultural no
Porto de Oitocentos? A resposta faz‑nos distinguir duas fases. Uma
primeira, em que dominava uma ética do trabalho, assente em padrões rígidos de
conduta associados à procura da rentabilidade económica. Uma segunda fase, de
clara visibilidade do capital simbólico e um paralelo esmorecimento da ética
laboral[720], assente
em consumos públicos e privados de cariz ostentatório, na proliferação da
figura do “burguês que vive de rendimentos” e no dispêndio descomplexado.
2.
Vida cultural, sociabilidades e estilos de vida da «boa sociedade».
É, pois, na segunda metade do século XIX, que
assistiremos a um notável fervilhar da cidade em termos culturais. Aliás, é
toda a imagem da cidade que, aos poucos, se vai modificando, com a introdução
de uma série de melhorias infraestruturais: a iluminação a gás (substituindo os
“mortiços lampiões de «azeite de
purgueira»”[721])
a macdamização[722]
e os transportes, através do surgimento do americano
em 1872 (primeiramente movido a tracção animal, posteriormente a vapor e,
finalmente, a electricidade – 1895), favorecendo as ligações a uma cidade em
franco crescimento[723].
Multiplicam‑se, antes de mais, os pontos de
encontro da burguesia mais ou menos diletante, proliferando, nas ruas de Santo
António, Clérigos e Almada, os cafés e botequins, como o Portuense, o Suiço,
o Lisbonense, o Águia d'Ouro e o Guichard, este último o café da moda: “Estava longe de ser um café elegante,
arejado e espaçoso. Mesmo assim, como espaço social, era para o Porto o que o
Marrare era para Lisboa. Para além do botequim, onde se jogava o dominó, o
Guichard dispunha ainda de outras salas de jogo nos andares superiores”[724]
(monte, voltarete, quino e dominó). No entanto, como refere Gaspar
Pereira, os jovens burgueses não se coibiam de frequentar tascos e tavernas,
procurando as suas delícias gastronómicas[725],
o que também pode ser interpretado como uma certa persistência dos contactos
interclassistas do Antigo Regime, apesar dos crescentes intuitos segregacionistas
da burguesia. Camilo Castelo Branco dá conta da atmosfera de um desses
botequins: “Homens de grandes cabelos,
sem bigodes, com fraques coçados no fio e cadeias vistosas de latão a
tremeluzir nas calças brancas espipadas nos joelhos e vincadas de surro, bebiam
cerveja da pipa com os queixos espumosos (...) a um canto estava um velho de
semblante lívido, muito desgraçado, com um chapéu enorme de seda dum azulado
decrépito (...) Ao lado, sobre um mocho, via‑se uma guitarra com manchas
gordurosas de suor que punham brilho, e aos pés um cão de água com o felpo
encarvoado”[726].
Uma das distracções mais frequentes, em especial depois
dos progressos na iluminação nocturna, eram os Passeios Públicos: alamedas, parques e jardins. Locais de
apresentação pública da burguesia e suportes da “cultura de aparência”, cedo estes espaços se tornaram de acesso
reservado, como aconteceu logo após a inauguração do jardim da Cordoaria, em
1867[727]:
“Aos Domingos e dias festivos, e às
Quintas‑feiras à noite, o alegre recinto era tomado de assalto pela
burguesia tripeira, que se apossava da avenida fronteira ao coreto. Os
arruamentos abertos em volta do lago ficavam à disposição das costureiras, das
criadas de servir, dos soldados da municipal”[728].
Atente‑se na seguinte descrição do cenário humano
que invadia esse jardim, em especial em tardes de música, e repare‑se
como o vestuário servia os intuitos de distinção dos actores em presença: “burgueses
espanejavam ao sol a sua obesidade preguiçosa, dandys com camélias na botoeira, damas todas encolhidas no regalo quente das
suas peles, cocottes com vestidos
mirabolantes, estudantes de medicina pondo uma vaidade espectaculosa nas suas
pastas amarelas, de fitas vermelhas flutuando, militares alisando as fardas com
luvas de camurça, todo um público pacato, passeando com um método ordeiro na
grande álea, acotovelando os mirones que
paravam em frente do coreto, para não perderem o gesto largo da batuta do
regente”[729].
Na rua central do jardim da Cordoaria, desenhado por um
engenheiro paisagista alemão, no jardim de S. Lázaro, ou ainda no Passeio
Alegre, a passerelle romântica
multiplicava a exibição de signos da “cultura de aparência”. Gaspar Martins
Pereira encontra factores explicativos para esta explosão dos sinais
ostentatórios: por um lado, a já referida necessidade de distinção, capaz de
afirmar a “nova aristocracia”, ainda insegura, no papel cimeiro de imposição
das modas; por outro lado, o desejo tão próprio do romantismo, de afirmação
individual patente nas nuances
interpretativas desses padrões estéticos dominantes, mas também numa
redescoberta do corpo, dos cuidados pessoais e de higiene (patente, por
exemplo, na “difusão do espelho, dos
produtos de toilette, do banho e das
roupas interiores[730]).
Manifesta‑se, uma vez mais, a dupla acção da moda, segundo Simmel: a
satisfação simultânea da aspiração ao geral (desejo de integração e
reconhecimento) e da necessidade do singular (particularização)[731].
Neste âmbito, surge, igualmente, uma “cultura do bizarro” e da excentricidade
(dentro, evidentemente, de certos padrões sociais e morais): “Camilo usava botas e calças à hussardo,
colete e casaca ou sobrecasaca apertada, laço de gravata à byron e capa à
espanhola. Era vulgar andarem sempre de esporas e com bengalas de cana‑da‑India,
badines, «chicotinhos» ou casse‑têtes que serviam muitas vezes de arma nas zaragatas. Adereços indispensáveis
eram ainda os colarinhos altos («velas latinas»), as luvas brancas ou de cor
(...), os chapéus (...) e o lenço branco, elemento simbólico fundamental nos
jogos de sedução”[732].
Por outro lado, como refere E. J. Hobsbawm, um duplo padrão moral (ou uma
tensão entre a “moral oficial” e a moral de um capitalismo hedonista) estava
omnipresente na moda burguesa, “uma
combinação extravagante de tentação e proibição”[733]:
se, por um lado, imperava o recato e a ocultação da sensualidade e da
sexualidade (“até os objectos que faziam
lembrar o corpo (as pernas das mesas) eram por vezes escondidos”[734]),
por outro, proliferavam as alusões e os estímulos ao mundo dos sentidos e das
sensações: “Simultaneamente, e sobretudo
nas décadas de 1860 e 1870, as características sexuais secundárias eram
grostecamente acentuadas: o cabelo e as barbas dos homens, o cabelo, o peito,
as ancas e as nádegas das mulheres, que atingiam um tamanho exagerado devido ao
uso de postiços”[735].
Importante era, sobretudo, gerir cautelosamente o equilíbrio: nas aparências
impunha-se não exagerar nem por defeito, nem por excesso, demonstrando a
postura exacta dos que se movem, com à vontade e familiariedade, no “bom mundo burguês”.
Cautelas redobradas num tempo em que os estatutos adquiridos, como já
referimos, suplantavam os herdados: “—
Que, diga‑se a verdade, chegámos a um tempo em que já se não sabe o que é
a primeira sociedade, a sociedade elegante, distinguée. Tudo confundido, submergido sob esse aluvião de brasileiros
enobrecidos, de burgueses opulentados”[736].
Mas tempos houve, em pleno ultra‑romantismo, de
consagração do exagero, em que o mundo espiritual, cada vez mais inacessível ao
comum dos mortais, exigia duros sacrifícios. Morrer de amor era, então, a
suprema glória. Sofrer, sinónimo de caminhada para o paraíso. As mulheres,
pálidas à custa de vinagre e de frequentes jejuns “desmedravam a olhos vistos e amolgavam as costelas entre as compressas
d'aço do colete. Estas não são já as mulheres que eu vi, sadias e frescas, como
se saíssem do paraíso terreal”[737].
Os homens, em especial os mais jovens, cultivavam também a tez pálida “e tossia‑se diante da mulher amada com
a dispneia dos últimos tubérculos”[738].
Os encontros românticos proporcionavam‑se nos cemitérios, elevados à
categoria de passeios públicos.
Neste novo espírito, eram patentes algumas das
contradições da família burguesa. Apesar da repressão, em particular sobre as
mulheres (que representavam a unidade da família, da propriedade e da empresa,
sendo igualmente veículo de trocas e estratégias matrimoniais), os impulsos
individuais e a ascese espiritual, forçavam os apertados limites do ethos burguês.
Simultaneamente, verifica‑se um retraimento na
esfera doméstica e uma mais nítida separação entre o público e o privado.
Impunha‑se a criação de espaços de sociabilidade selectiva e de acesso
controlado. Desta forma, os salões e
os saraus vão sendo paulatinamente
transferidos para instituições com uma indelével marca de classe[739].
Nestas, desenvolvem‑se actividades propícias ao
“convívio entre iguais”. Merecem especial destaque os bailes, extremamente associados à prática da dança, actividade que
permitia um interconhecimento rigorosamente vigiado entre elementos de sexo
oposto, bem como a concretização de desejos e rituais de sedução
reprimidos/estimulados pela “boa sociedade”: “Adelina estava radiosa neste ambiente todo rescendente a emanações
palacianas; a sua pessoa atraía as atenções, a toillette era notada (...) como era bom vestir‑se
de cetim e rendas! Como dá realce à beleza um vestido de baile! (...) O
visconde Odivelos (...) vinha na comitiva real (...) Relanceava a vista
inquiridora pela sala com a repousada confiança de quem se sente à vontade, e o
seu olhar, plácido e firme, percorria com uma insistência apeciadora as formas
de Adelina”[740].
Desenvolvia‑se, pois, toda uma panóplia de pequenos
pormenores que obrigavam os mais leigos e desconhecedores a um esforço
desmedido de descodificação. Frequentar a vida mundana, crescentemente
sofisticada, exigia verdadeiros requintes de aprendizagem. Os manuais de
civilidade são, a esse respeito, bastante elucidativos. A sua primeira
preocupação, no que se refere aos bailes, é a de evitar, a todo o custo, os
locais públicos não consagrados e destituídos da aura de classe. Aliás, nestas
ocasiões festivas, todos os cuidados são poucos: “É nos bailes onde se acende o sangue e se estimulam as paixões em razão
da música, luzes, etc., e por isso é mister sabê‑las reprimir”[741].
Aliás, o verdadeiro cavalheiro deverá “ter
todo o receio (enquanto dança) de chegar aos vestidos ou ao corpo da dama”,
enquanto que esta “evitará, quanto puder,
pedir alguma coisa, para que o cavalheiro não tenha motivo de voltar ao pé
d'ella”[742]. É toda a
apologia de uma moral da contenção e da distanciação/aproximação contida entre
os sexos[743]. Aconselha‑se,
por isso, o uso de luvas e de leques: “Se
desejais que vos não notem a direcção de um olhar, o leque presta‑vos
gentilmente os interstícios das varetas rendilhadas (...) abafa os suspiros,
encobre o rubor, o riso (...) salva as aparências”[744].
“Salvar as aparências” e ter “boas maneiras”, eis a pedra de toque da burguesia
finissecular. O que, diga‑se em abono da verdade, nem sempre se
conseguia: “À medida que as senhoras
saíam, a mesa era invadida sofregamente pelos homens (...) Os convivas
apertavam‑se muito ocupados em ingerir abundantemente; outros, de fora da
mesa, estendiam mãos rapaces por cima dos ombros, e invadiam os bufetes dando
pábulo provisório às impaciências do estômago (...) sentia‑se um sussurro
forte de conversas entre mastigações, tinidos batalhadores dos talheres sobre
os pratos, e o ruído alegre da animalidade contente que se expande em risos
(...) Neste momento a mesa tinha o aspecto de um esplendor orgíaco e
descomposto, como uma bela mulher em desalinho, desbotada e murcha, depois de
uma noitada lasciva”[745].
De facto, pelas descrições dos escritores naturalistas, a
burguesia portuense estava longe de poder exibir os “bons costumes” de uma socialização
adequada. As suas posturas, a linguagem utilizada, os conhecimentos culturais
exteriorizados denotavam uma série de défices ainda não superados. Apesar dos
progressos técnicos, do crescimento urbano e dos novos equipamentos culturais,
grande parte da média e alta burguesia ostentava ainda os sinais visíveis de
uma promoção recente. Por isso, os manuais de civilidade estão repletos de
advertências sobre as regras de comportamento nos locais públicos e
semipúblicos, ocasiões em que era possível aferir da educação de cada um e em
que os processos distintivos mais necessários se tornavam.
E no entanto, como referimos, a cidade estava
irreconhecível, nesta segunda metade do século XIX. Com frequência apareciam
novas escolas de música e de canto;
na Rua do Almada proliferavam as lojas de fotografia onde se podia “tirar retrato daguerreotipado, em tom de
ouro e azul, ao gosto inglês”[746];
surgiam os primeiros jornais, como o
Comércio do Porto, onde se torna
habitual a publicação de romances e novelas em fascículos, lidos ao serão para
toda a família; multiplicavam‑se as festas
particulares com ou sem fins caritativos, mas quase sempre de feição
mundana; os concertos de bandas; os espectáculos de fogos de artifício nas
comemorações mais significativas; os famosos bailes de máscara no Carnaval; etc. A Foz torna‑se local de
eleição, em especial no Verão e em particular após a entrada em funcionamento
do Americano, que em muito
possibilitou a compressão das distâncias. Aqui, foi‑se desenvolvendo uma
cultura cosmopolita com o seu passeio público (Passeio Alegre), os seus cafés
da moda, os seus hotéis e mesmo o seu casino.
Os públicos alargam‑se e diversificam‑se,
embora em pequena escala. Joel Serrão, em estudo sobre os livros publicados em
Portugal por volta de 1870, conclui pela existência de centenas de títulos, de
autores em via de consagração, embora com tiragens muito reduzidas[747].
E, novidade que indicia o breve surgimento de uma indústria cultural, surge um
grande número de edições populares, em especial de autores estrangeiros (Zola,
Victor Hugo, Eugène Sue, La Fontaine, Goethe, Júlio Verne, Chateaubriand, etc.)[748].
Os equipamentos culturais sucedem‑se a um ritmo
quase vertiginoso, vontade de uma burguesia que pretende “modernizar” a cidade
e fazer concorrência à capital. No final do século, o Porto orgulhava‑se
do seu Palácio de Cristal (cuja
construção data da década de 60), palco de numerosas exposições industriais e
hortícolas, das quais se destaca a Exposição Internacional de 1865; dos seus museus (o Portuense – do Ateneu D. Pedro – o Municipal e o Industrial e
Comercial); das suas bibliotecas (em
que se inclui uma biblioteca pública); da sua Academia de Música; dos seus teatros
(o S. João – o mais antigo,
inaugurado em 1798, o Príncipe Real,
antes designado por Teatro Circo, o Gil Vicente, no Palácio de Cristal, o Baquet, que foi totalmente destruído por
um incêndio em 1888 e o Teatro dos
Recreios, essencialmente destinado à ópera). No entanto, de todos estes
equipamentos, apenas o S. João e o Baquet possuíam as condições mínimas
para o teatro declamado e lírico[749].
Não admira, por isso, que ironicamente A. Menezes considerasse “que só havia o Variedades, irrisoriamente denominado Teatro
Camões, próximo da «Feira dos Carneiros»
de resto...”. Camilo Castelo Branco apelidava sugestivamente este teatro de
a “barraca de Liceiras”[750].
Aliás, ao analisarmos, por exemplo, a programação do Baquet rapidamente constatamos da sua falta de coerência e de
qualidade: “Altas comédias, tragédias,
zarzuelas, dramas, óperas, operetas, vaudevilles, sucediam‑se, muitas vezes alternando com espectáculos de
equilibrismo, como o do japonês All Right, domadores de Leões, o homem‑cascável, prestigitadores, mágicos
e meras curiosidades”[751].
No entanto, nada supera o gosto da burguesia portuense
pela música e pelas artes cénicas, em especial a ópera e o teatro lírico. Cria‑se,
inclusivamente, a figura dos Concertos
Populares que, no entanto, de popular têm apenas o nome. De facto, o preço
da entrada (300 réis) “era uma
extravagância para qualquer operário, cuja diária não excedia o rendimento de
400‑500 réis, mas que explica bem a ideia da burguesia sobre quem era o
povo”[752].
Maria do Carmo Serén e Gaspar Martins Pereira referem
mesmo que o Porto do ultra‑romantismo “está na iminência de se tornar uma cidade amante da música e um dos
públicos mais conhecidos da Europa”[753].
No entanto, os autores não explicitam as fontes ou os argumentos que lhes
permitem sustentar essa opinião. Pelo contrário, as idas ao teatro musicado e à
ópera aparecem abundantemente descritas nas obras dos naturalistas em tons
pouco abonatórios. O panorama não é de forma alguma coincidente... Aliás, os
comportamentos de grande parte dos frequentadores das grandes ocasiões
culturais parece pautar‑se, preferencialmente, pela lógica do
reconhecimento social:
“Senhoras entravam para os camarotes,
acomodando‑se na frente, uma grande ostentação de toillette para recompensar a incompreensão da ópera. –
Pouca gente conhecida – e assestava o binóculo, movendo‑o em diferentes
direcções (...) – Aí o comendador, o padrinho! – Aonde? – Ali na superior, olha...”[754].
Muitas vezes, a mise‑en‑scène
dos espectadores suplantava largamente a apresentação dos actores...: “Os coros desafinavam o mais possível, num
compromisso funesto de enterrar a partitura. Via‑se o regente gesticular,
numa agitação febril, a batuta num voltear vertiginoso; um rumor surdo saía das
torrinhas, prenúncios de tempestade na plateia (...) A pateada rebentou
furiosa, uma grande tempestade; cadeiras rangiam e viam‑se dândis numa tarefa inglória, tentando quebrar os
bancos, assobiando, gesticulando com veemência. Falava‑se alto, disputas,
questões com os vizinhos, uma balbúrdia, pano descido (...) a Polícia
interveio, desmaios nos camarotes, as famílias burguesas retiravam‑se”[755].
Em suma, fica‑nos a ideia de um campo cultural
fracamente estruturado, tanto ao nível da oferta (actores com fraca formação,
repertórios de duvidosa qualidade) como da procura, existindo aqui, por isso,
um efeito de homologia: apesar da assinalável homogeneidade cultural do público
(aqui o singular impõe‑se, dada a falta de diversidade), os seus
conhecimentos culturais e artísticos apenas permitiam a viabilidade de uma
oferta de medíocre qualidade, tanto mais que a fruição cultural assentava numa
lógica essencialmente instrumental – meio de apresentação pública, ocasião de
consumo sumptuário, reafirmação simbólica das posições sociais, palco de redes
sociais[756]. Tal não é
de admirar, num contexto de profunda mutação social, em que a elite recém‑empossada
não possuía ainda um discurso e uma representação definidas sobre o seu papel
na ordem cultural e simbólica. Além do mais, os fraquíssimos níveis de
instrução não eram de molde a permitir uma familiarização objectiva com códigos
culturalmente exigentes.
O assinalável sucesso do teatro lírico encontra‑se
ligado, não tanto a um progresso nos hábitos culturais, mas muito mais à
necessidade de espaços estratégicos de convivialidade e de encontro: “reunia os ultra‑românticos e
irreverentes filhos‑família, esperando encontros com as meninas elegantes
ou seguindo as actrizes da ópera”[757].
A formação de claques, geralmente intervenientes activas
nas pateadas e nos confrontos verbais e físicos que se lhes seguiam, tinham
muitas vezes a ver com lógicas absolutamente exteriores ao campo cultural: “... os grupos rivais tinham também
conotações políticas, dividindo‑se entre patuleias e cabralistas”[758].
O conteúdo do repertório indicia ainda uma fraca
autonomia da criação cultural (longe ainda do modelo da arte pela arte). Os dramas
sociais (ou “drama da actualidade,
comédia de costumes, comédia‑drama, drama realista”[759])
correspondiam às necessidades de educação e socialização da burguesia em
ascensão, capaz de criar um novo modelo de herói, emancipado face à tradição e
premiado pelo seu esforço de auto‑valorização, assente em valores como o
progresso e o trabalho. Mas o drama
social fornecia ainda, embora ficcionalmente, a ideia de harmonia social.
Ideia que, conforme se caminha para o final do século e se abandonam, tardiamente,
os modos de produção do Antigo Regime, encontra cada vez menos correspondência
na realidade.
3. O
reverso da “boa sociedade”.
O Porto de finais de Oitocentos está longe de se confinar
ao universo burguês. Nele existem as “ilhas”
(que albergavam cerca de 1/3 dos habitantes da cidade e onde se desenvolviam
intrincadas relações de parentesco), as “colmeias”
e as “casas da malta”[760]
que abrigavam em condições miseráveis os que abandonavam as aldeias em busca do
sonho citadino. O mundo iluminado da burguesia “contrasta com a ausência de iluminação pública nos arrabaldes rurais e
com a presença das velas e dos candeeiros de petróleo nas casas mais pobres ou
nos lugares mais afastados”[761].
Em 1905, o abastecimento de água ao domicílio é de apenas
32%; a rede de esgotos cobre somente
27% das habitações; a canalização a
gás não ultrapassa os 47% das ruas
da cidade. Não são de admirar, por isso, a alta taxa de mortalidade e as
epidemias que até tarde fustigam a população socialmente mais desprotegida do
Porto – em 1889 é a última cidade europeia a ser atingida pela peste bubónica.
O crescimento da relação salarial é também visível no
significativo aumento das associações operárias de carácter mutualista. As
classes laboriosas tornam‑se, progressivamente, classes perigosas,
influenciadas pelo surto de associativismo operário, pela difusão dos ideais
socialistas e instigadas pelas suas miseráveis condições de existência. Na
década de 70 surgem as primeiras greves e a comemoração do dia do trabalhador
torna‑se uma realidade a partir de 1890, reunindo cerca de doze mil
pessoas. João Grave, um dos raros escritores naturalistas a retratar a vida das
classes populares, oferece‑nos um expressivo retrato de uma greve: “Os homens, esfarrapados, com os casacos
remendados ao ombro, mostravam os pulsos deformados pelas brutalidades do
trabalho áspero e constante. Nas suas faces lívidas, os malares rompiam
agressivamente e os dentes branquejavam na cor escura dos lábios (...) rugidos
surdos rebentavam, explodiam (...) como pragas fulgurantes (...)
– A greve!
– Viva a greve!
– Abaixo o capital!
– Viva o operariado!
– Morram os exploradores do povo!
– Morram! Morram!
– Peguemos fogo às oficinas,
camaradas! (...)
– Ao fogo, ao fogo, ao fogo!...”[762].
Não admira, assim, a crescente segregação espacial que a
burguesia impõe, limitando a cidadania a vastas camadas sociais, escondendo a
sua insegurança através de uma “moral da
rejeição” que atinge as prostitutas, os pedintes, os “rapazes garotos”, os aguadeiros, o pequeno comércio de rua, as
actividades artesãs...
Nas práticas culturais e na ocupação dos (raros) tempos
livres reproduziam‑se, igualmente, distâncias e (im)possibilidades. O
Domingo dos pobres, segundo João Grave, passava‑se na rua, ao ar livre,
cobiçando as mercadorias das lojas de moda. Mas existiam ainda os passeios ao
campo ou ao rio, onde se improvisavam “grupos
de tocadores de «ramaldeiras» em bailaricos e descantes”[763].
A música e a dança, aliás, tornam‑se o passatempo favorito, ao mesmo
tempo que as associações operárias reservam nas suas sedes espaços para essas
actividades. A pequena burguesia, com o crescimento do terciário, inicia também
os seus processos de distinção social, em grande parte miméticos face à grande
burguesia, organizando sociedades recreativas, frequentando os passeios
públicos onde são toleradas e alugando “camarotes
de terceira” no teatro lírico, num movimento que principia o alargamento de
públicos.
Os mais desfavorecidos fazem da rua o seu local de
eleição, prolongando, muitas vezes, o espaço doméstico. É na rua, também que se
concentram as novidades e os espectáculos: desde os “artistas populares, saltimbancos e vagabundos”, até aos exóticos “cães malabaristas, ursos que fazem vénias, o
canário que toca pífaro, a mulher gigante, a mulher anã, as vistas
estereoscópicas das cidades estrangeiras ou da vida de Cristo”[764],
sem esquecer o circo, os parques de diversões e as sessões de hipnotismo.
O quotidiano, de resto, continua a marcar‑se por
cadências ruralizantes, mantendo‑se uma fortíssima influência do
calendário religioso, com as suas procissões e as festas sacro‑profanas
dos santos populares. Excepcionalmente, a monarquia concedia ao povo ocasiões
festivas para “aclamação dos monarcas ou
por ocasião do nascimento de um príncipe ou da vinda da família real ao Porto”[765].
Outras vezes, contudo, as preocupações deixavam pouca disponibilidade para os
festejos:
“ (...) Na taberna da srª Madalena, tão
concorrida aos domingos, dois soldados tocavam guitarra, sentados entre uma
jovial assembleia de vagabundos. O cortejo atravessou vagarosamente toda esta
onda de miséria e de infortúnio, despertando uma compadecida emoção. Manuel ia
exausto, abandonado às mãos amigas que o acarinhavam (...)
– Veio da fábrica escoadinho em
sangue!
– Foi apanhado por uma trave que
caiu do tecto.
– Parece que já morreu!...”[766].
II – O Novo Século.
1. As
novidades.
Aos poucos, as novidades iam chegando ao Porto. Entre
1909 e 1911 funcionou um original cinema, o Metropolitano,
que tinha a aparência de uma carruagem de comboio: “«a carruagem tremelicava, como se avançasse sobre a linha, e pela
janela viam‑se correr as paisagens projectadas no écran, de viagens a
Paris, Londres, Berlim, etc.» O espectáculo era total: tocavam campainhas e
apitos com ruídos de fundo iguais aos de um comboio autêntico”[767].
Os primeiros anos do século traziam a magia das imagens
em movimento. O cinema, como Walter Benjamim tão agudamente observou, marca
como nenhuma outra forma de arte a divulgação em massa e a associação à
indústria, ao mesmo tempo que permite a “recepção
na diversão”[768],
dimensões indissociáveis do novo “espírito do tempo”.
A cidade do Porto mergulhou nesse desígnio, como o
demontram os seus numerosos cinemas. O Águia
d'Ouro, inaugurado como teatro em 1899 projecta sessões de cinematógrafo,
importando a tecnologia directamente dos estúdios Lumière. O salão High‑Life,
situado no local onde hoje se encontra o cinema Batalha, era bastante frequentado pelas camadas populares: “Pelas sua pantalha passaram as mais
espantosas fitas de aventuras, de pancadaria e os Western. Era um edifício sem grandes condições,
rodeado por um gradeamento dando a volta à esquina da Praça, que subsistiu até
aos anos 40”[769].
O seu maior sucesso concretizou‑se na exibição da película A Vida e a Morte de Jesus, “colorida e com 1200 metros”[770].
Posteriormente, o cinema Batalha será
objecto de admiração pela ousadia estética da sua configuração arquitectónica.
Merecem ainda referência, nas primeiras décadas do século, o Sá da Bandeira, o Passos Manuel, o Salão Pathé,
o Trindade, o Eden Teatro e o Metropolitan‑Cinematour
e o Olympia.
O Rivoli, por
seu lado, foi inaugurado em 1932, substituindo o antigo Teatro Nacional. Era seu proprietário o empresário Pires Fernandes,
considerado pelos seus mais próximos colaboradores como “um homem dinâmico, meticuloso e de grande tacto administrativo”[771].
O seu projecto para a sala de espectáculos assentava numa programação virada
para o “grande público”, sem descurar, no entanto, a preocupação com a
qualidade. Nessa linha, a estreia ficou a cargo da Companhia Amélia Rey Colaço – Robles Monteiro, que apresentou a
comédia em três actos de Marcelino Mesquita “Peraltas e Sécias”. Como actores principais destacam‑se
alguns nomes bem conhecidos: para além da própria Amélia Rey Colaço e Robles
Monteiro, salientamos Raúl de Carvalho, António Vilar e João Villaret.
Oscilavam os preços entre os 60 escudos dos Camarotes e Frisas e os 4 escudos
da geral, o que dá bem conta da diversidade de públicos abrangidos. Segundo
relatos de jornais, na noite de estreia “o
Rivoli mobiliza as atenções de grande parte da cidade”, ”Todo iluminado, portas e janelas amplas, o
novo teatro do Porto chama a atenção de quem passa”[772].
Sucedem‑se, entretanto, uma vasta galeria de espectáculos: teatro de “tipo romântico”, comédias, dramas
históricos, revistas, opereta e mesmo companhias de circo, logrando‑se
obter assinaláveis êxitos e muitas lotações esgotadas. No final de 1932, o
Rivoli entra também na moda do cinema, fechando para instalação do sistema
sonoro.
De qualquer forma, um olhar de conjunto
sobre a programação teatral e musical das principais salas portuenses faz com
que nos apercebamos de um défice fundamental: não existe notícia de nenhum
espectáculo produzido no Porto – os grandes sucessos eram importados de Lisboa
o que representa, sem dúvida, “um
retrocesso em relação a épocas anteriores da história teatral portuense”[773],
em particular se pensarmos no orgulho e vontade da burguesia oitocentista em
rivalizar com a capital.
2. Uma nova realidade: a metrópole.
Durante as primeiras décadas do século, e com especial
aceleração a partir dos anos sessenta, o Porto reforça o seu poder de atracção
de pessoas, mercadorias e informação, assistindo‑se a uma inédita
concentração de funções (cultura, administração, educação, saúde, etc.). A
única solução para evitar uma ruptura passou pela integração dos espaços
municipais limítrofes, através da reanimação de vários pólos urbanos e da
delegação de funções e competências. Assim,
o Porto vê reforçado o seu papel orientador, embora no quadro de um “sistema urbano multipolar” mediante a “conversão progressiva do centro de área
produtora e mercantil em espaço gestor e comercial”[774].
O centro da cidade desdobra‑se em dois, com a importância crescente da
Boavista. O centro clássico, esse, diminui: “de 1900 para 1991 o centro antigo desceu de 21% para 6%”, embora a
tendência se estenda ao próprio centro moderno que recua de 45% para 27%. Pelo contrário, “a área
pericentral passou de 13 para 20% e a periferia de 21% para 47%. No início do
século, dois terços dos portuenses viviam no centro da cidade. Noventa anos
mais tarde, a mesma proporção de pessoas reside fora dele”[775].
Progressivamente, a cidade especializa‑se nas grandes estruturas de
enquadramento e na concentração de direcções regionais e sedes de empresa. De dia, os bairros residenciais desertificam‑se
e o centro fervilha. De noite, o panorama é o oposto. Cresce a tendência para o
esvaziamento dos lugares públicos e, apesar da importante concentração de
oferta cultural na cidade, a cultura de saídas ressente‑se.
3. Um período de discrição e semiclandestinidade.
Com o avançar do século, conjugam‑se dois factores
determinantes na estruturação da vida cultural portuense. Por um lado, as
pesadas imposições do regime ditatorial vigente, muito pouco dado a
manifestações públicas e espectaculares ou mesmo ao incentivo da cultura e da
criatividade, enquanto inevitáveis expressões de liberdade, criavam
dificuldades acrescidas. Por outro lado, a especificidade de uma burguesia
utilitária e pragmática leva a que se reserve “o brilho para a intimidade. Tal como tinha escondido atrás de fachadas
austeras a talha dourada, o salão árabe e os lustres dos seus clubes, o Porto
escondeu a Arte Nova no interior das suas novas residências”[776]
(com duas importantes excepções, não por mero acaso cafés: a Brasileira – 1903 – e o Majestic – 1921).
Os curtos anos da 1ª República conheceram ainda uma
notável vitalidade, em especial nos restritos círculos da intelectualidade e no
domínio da expansão escolar. Criou‑se, em 1911, a Universidade do Porto
que contava, em 1926, com mil alunos. Em 1917 nasce o Conservatório de Música e
em 1923 o primeiro cineclube português. Multiplicam‑se, por esta altura,
os cursos livres (em grande parte devido à acção dinamizadora da Universidade
Popular e da Universidade Livre), os debates e as tertúlias, bem como
publicações (jornais e revistas) de cariz académico, das quais se destaca a Águia, fundada em 1911.
Mas os sinais de um Estado que se pretendeu Novo, cedo se
fizeram sentir, cortando cerce os ímpetos emancipatórios da Primeira República.
Logo em 1928 é encerrada a Faculdade de Letras (fundada em 1919). Desde essa
altura, a tradição democrática e cívica do Porto vê‑se rodeada de
suspeitas, denúncias e censuras. A discrição impunha‑se como estratégia
de sobrevivência, enfraquecendo‑se a esfera pública: “A partir daí o debate só podia limitar‑se
à intimidade ou adoptar modos de circulação tão disfarçados que escapavam à
percepção da maioria”[777].
Exemplo desse espírito é a actuação multifacetada do
liberal Ateneu Comercial do Porto,
com as suas “manhãs literárias”, o
incentivo dos seus prémios, os seus revigorantes concertos e recitais de canto
e, acima de tudo, as suas conferências e debates por onde passaram alguns vultos
do maior prestígio da intelectualidade portuguesa do presente século. A título
de exemplo, refiram‑se os nomes de Miguel Torga, Vitorino Magalhães
Godinho, Hernâni Cidade, Lopes Graça, João Villaret, Aquilino Ribeiro,
Agostinho da Silva, António Gedeão, Vasco da Gama Fernandes e tantos, tantos
outros[778]. As
homenagens a Antero de Quental (1942) e a Almeida Garrett (1956) suscitaram a
mobilização das energias liberais da velha burguesia, adormecida mas não
aniquilada.
Discretamente, mas de forma indelével, a cidade continua
a marcar a sua presença na vida cultural portuguesa, embora sem conseguir
aproximar‑se do fulgor da capital, agora confiante do seu papel de
metrópole colonial, e apoiada de forma notável pela actividade insubstituível
da Fundação Calouste Gulbenkian.
De facto, alguns nomes dos novos intelectuais e artistas
portugueses são do Porto: Sophia de Mello Breyner Andresen, Ruben A., Eugénio
de Andrade, Agustina Bessa‑Luís, Óscar Lopes, Manoel de Oliveira,
Fernando Lopes‑Graça, António Cruz... No entanto, falta a animação
colectiva, a vitalidade das instituições e dos equipamentos. Antes dos anos
sessenta, com a notável excepção da criação do TEP (em 1951), a sensaboria
parece imperar.
Com a nova década um renovado dinamismo faz surgir alguns
importantes movimentos: na arquitectura consolida‑se o prestígio da
“Escola do Porto”, através de nomes como Fernando Távora e Siza Vieira; criam‑se
novos grupos de música e de teatro; emerge o ensino artístico cooperativo (Cooperativa Artística Árvore, inaugurada
em 1963); implanta‑se a Fundação
Engenheiro António D'Almeida (1969). Entretanto, de forma difusa e
semiclandestina, florescem os pequenos grupos anti‑regime, muitas vezes
organizados (?) em forma de tertúlia e extremamente diversos quanto à sua composição,
indo desde os católicos progressistas inspirados na figura do Bispo D. António
Ferreira Gomes, até à emergente extrema‑esquerda, de várias matizes.
Anuncia‑se um novo ciclo.
4.
Uma nova fase: a aplicação de uma
política cultural autárquica.
Com a “explosão” revolucionária, o Porto vê surgir
inúmeros embriões de associações e grupos culturais, animados do intuito de
fazer do quotidiano uma mescla indissociável de cultura e política, na esteira
de alguns movimentos sociais, mais ou menos estruturados. Alexandre Alves Costa
definiu da seguinte forma o espírito que lhes estava subjacente: “Foi um puro início, como tempo novo, sem
mancha nem vício”[779].
No entanto, muitos deles revelaram‑se luzes fugazes, em especial após a
consolidação do chamado período de “normalização democrática” iniciado com o 25
de Novembro e marcado por uma “institucionalização” dos consumos culturais, com
a crescente intervenção do poder político, na definição dos critérios e
domínios de financiamento e enquanto poderoso agente de consagração de certos
nomes no panorama cultural[780].
As manifestações culturais acantonaram‑se, progressivamente, nos locais
especificamente destinados à cultura.
Faltava à cidade uma perspectiva estratégica do seu papel
de metrópole cultural regional. Com um conjunto de equipamentos degradados e a
necessitar de urgente reciclagem; padecendo de um localismo paroquial; sentindo
a ausência de um quadro de suporte ao movimento associativo; excessivamente
centrada na rentabilização inerte do seu património histórico e artístico, o
Porto foi, durante décadas, uma cidade onde as iniciativas, esparsas, não eram
enquadradas em qualquer exercício de planeamento sistemático e onde os agentes
sócio‑culturais sentiam a falta de redes e de interlocutores. Uma
intervenção cultural implica, já o dissemos, um quadro de referências e
prioridades, bem como meios de acção pública especializados.
Na nossa opinião, a cidade só começou a usufruir de uma
verdadeira política cultural (conjuntos articulados de iniciativas coerentemente
planeadas e avaliadas; objectivos claros e operacionalizáveis; mecanismos
eficazes de produção e divulgação; diversificação das actividades; diálogo com
os potenciais públicos; recuperação de infraestruturas; etc.) a partir de 1989,
com a criação do Pelouro de Animação da
Cidade. Relembramos alguns dos eixos estruturadores desse projecto
pioneiro: “apoio às associações
recreativas e culturais da cidade, visando a sua revitalização”; “apoio à criação artística em sentido lato”;
“diálogo permanente com as instituições
públicas e privadas da cidade”; “promoção
e/ou apoio à realização de acções de prestígio no campo cultural”; “apoio à inclusão do Porto nas digressões de
artistas e companhias nacionais e estrangeiras de alta qualidade”; “desenvolvimento da cooperação com outros
municípios”; etc.[781].
Em termos mais concretos, podemos assinalar duas faces
complementares dessa política cultural de cidade: uma visível e espectacular;
outra mais recôndita e de longo prazo. Na primeira é possível incluir uma série
de festivais (produzidos ou apoiados pela autarquia), de cariz sazonal e que
vêm marcando, desde há vários anos, a vida cultural da cidade. De tendência
claramente cosmopolita, proporcionam o cruzamento de artistas e de formas de
expressão provenientes de várias partes do globo: é o caso de Ritmos (festival de formas musicais
emergentes no espaço afro‑latino); Intercéltico
(projecto que procura reconstruir afinidades no seio de uma matriz cultural que
engloba países e regiões como o Norte de Portugal, a Galiza, a Irlanda, o País
de Gales, etc.); o Festival de Jazz;
o Festival Internacional de Marionetas;
o Salão Internacional de Banda Desenhada
do Porto; as Jornadas de Arte
Contemporânea; as Noites Ritual Rock;
o Fazer a Festa — Festival Internacional
de Teatro para a Infância e a Juventude; etc.[782].
Nesta vertente podem ainda considerar‑se as iniciativas de cariz mais
espontâneo e convivial (com uma forte componente de animação de rua) como as Festas da Cidade e Do Natal aos Reis. A diversificação da oferta, patente nesta
pluralidade de eventos, articula‑se com o princípio de alargamento dos
públicos, também eles heterogéneos. Faltarão ainda, no entanto, programas que
propiciem o cruzamento de formas de cultura, criando dinâmicas transversais que
contribuam para superar velhas hierarquias e classificações (como acontece, por
exemplo, em certas peças musicais que tentam associar música popular e música
erudita[783]), apesar
do tenso equilíbrio a que tais propostas obrigam. A outra face, mais discreta,
mas nem por isso menos significativa, centra‑se em três aspectos
fundamentais: a recuperação permanente de equipamentos (salas de espectáculo;
museus; bibliotecas; arquivos; parques de recreio); a relação com as
associações (apoio à melhoria de instalações; formação profissional; suporte de
acções voltadas para a comunidade; etc.) e a ligação às escolas, mediante
projectos de formação de novos públicos[784],
de onde se destaca o programa Descobrir[785],
direccionado para as artes, ciência e tecnologia.
Como suporte desta política estimulou‑se um
alargamento da rede municipal de equipamentos, de cariz estruturante. Na
transição do último para o actual mandato, para além da renovação do Rivoli
(cujo orçamento ascendeu a dois milhões de contos[786]),
destacam‑se a construção do teatro do Campo Alegre, que servirá de sede
da companhia Seiva Trupe, bem como a
renovação das casas‑museu de Guerra Junqueiro e de Marta Ortigão Sampaio.
Importa referir, também, o esforço de outras entidades
neste domínio, indicador de que houve uma aceleração global no desenvolvimento
cultural da cidade. Antes de mais, o Estado, destacando‑se a recuperação
do teatro S. João e a sua elevação à
categoria de Teatro Nacional, com a
lei orgânica publicada em 1997, bem como a consagração da Orquestra Nacional do Porto (ainda não sinfónica...) e a
instalação, no Porto, do Centro Português de Fotografia. Salienta‑se,
igualmente, a acção da sociedade civil organizada, apoiada pelo Estado e pela
autarquia. Sublinham‑se, neste âmbito, o FITEI (Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica) e o Fantasporto (festival de cinema
fantástico).
Desta forma, aumenta a necessidade de parceria entre os
vários agentes culturais locais, proliferando os equipamentos geridos em comum,
as co‑produções e as iniciativas conjuntas.
A Fundação de
Serralves, por exemplo, criada com o objectivo de instalar o Museu de Arte
Contemporânea, conta com o apoio de fundos públicos e da iniciativa privada. A Fundação Ciência e Desenvolvimento
resulta da colaboração entre a autarquia e a Universidade do Porto. O Coliseu do Porto que, juntamente com o Rivoli e o Teatro Nacional S. João, constituem o “núcleo‑duro” das salas
de espectáculo portuenses, é actualmente gerido (depois de uma movimentação
popular contra a possibilidade de o imóvel ser adquirido por uma organização
religiosa) através de fundos municipais e da iniciativa privada, tendo
igualmente recebido apoio do Estado para a sua recuperação após o incêndio de
Setembro de 1996. As co‑produções começam igualmente a ganhar algum
relevo, apesar de estarem longe de ser uma prática generalizada.
Segundo cálculos da autarquia, nos últimos dez anos o
investimento cultural total na cidade do Porto superou os 26 milhões de contos.
Ainda de acordo com a mesma fonte, num domínio sensível, como é o caso do
teatro, em dez anos os grupos e companhias passaram de três a dezoito. Em 1997
foram dez os projectos teatrais portuenses apoiados pelo Ministério da Cultura,
tendo outros tantos ficado de fora. Por outro lado, existem três instituições
de formação artística nesta área[787].
No que se refere a cinemas, o Grande Porto (incluindo
Porto‑cidade e Vila Nova de Gaia) possuía, a 1 de Outubro de 1997, 46
salas (representando um acréscimo, nos últimos 7 anos, de 32 espaços de
exibição)[788]. Quanto a
editoras, a grande concentração verifica‑se na região de Lisboa. Ainda
assim, a revista Hei! identifica sete
editoras activas, três delas de carácter quase artesanal, definida por um dos
proprietários como “editora de autor”[789].
A nível de galerias e de espaços de exposição, o inventário da Comissão de
Coordenação da Região Norte dava conta de 40 unidades, sendo que 25 são
especificamente galerias[790].
Finalmente, o tecido associativo da cidade apresenta, segundo dados municipais,
um conjunto de mais de seiscentas associações e colectividades, dinamismo que,
no entanto, pode ser contrariado se atentarmos no gráfico nº 3, respeitante a uma proposta de tipologia das
associações.
De facto, a grande
concentração nas categorias “Associação
de cariz popular” e “Cultura,
desporto e recreio” revela, numa análise mais superficial, um tecido
potencialmente envelhecido, acantonado à gestão corrente do subsídio, muitas
vezes enquistado numa noção fixista de tradição e especialmente vocacionado
para a ocupação convivial dos tempos livres dos seus associados, o que, sendo
meritório, não fornece o “salto” qualitativo desejável para uma nova ligação às
comunidades, em mais ou menos rápida recomposição, nem tão‑pouco aos
novos padrões comportamentais emergentes, muitas vezes articulados com determinadas
culturas juvenis.
Existe, no entanto, um risco. Todo o pluralismo
subjacente à estruturação de uma política cultural municipal encontra a sua
génese, segundo Phlippe Le Moigne[791],
num processo de institucionalização e regulação do campo cultural local por
esferas exteriores ao próprio campo (patente, por exemplo, na elaboração ao
nível nacional de critérios político‑administrativos para o apoio à
criação, ou para a consagração artística) e na apropriação dos valores das
“classes médias”, que “conferem à acção
cultural uma missão de promoção identitária”[792],
necessária para a legitimação da sua trajectória social. Esta heterogeneização
das iniciativas desemboca, paradoxalmente, num efeito de homogeneização: no seu
sincretismo, na sua retórica de conciliação de interesses e de promoção de
equilíbrios, as políticas culturais urbanas tendem a assemelhar‑se cada
vez mais, enfraquecendo as ligações à sua base sócio‑espacial (com tudo o
que isso implica de diluição de efeitos de posicionamento na estrutura social e
territorial) e tornando‑se um foco secundário de luta política, ou mesmo
o terreno de uma certa despolitização. Corre‑se então o risco de, imbuída
desta “polivalência simbólica”, a
política cultural municipal perder a noção das prioridades e cingir‑se a
uma lógica de “acumulação de iniciativas”
sem orientação estratégica ou fio condutor, visando um pluralismo assente numa
certa “exaustividade cultural”,
pluridireccional e visando estabelecer compromissos e mediações entre os vários
actores em presença.
Não nos parece que isso aconteça com a nova política
cultural municipal.
A
primeira política cultural de cidade do século XX tem vindo a distinguir‑se
publicamente por resultados positivos em várias frentes (criação de uma rede de
equipamentos, cruzamento de localismo e cosmopolitismo, articulação entre a
oferta e a procura, etc.) e com uma definição estratégica de prioridades, como
anteriormente referimos.
No entanto, os resultados são mais modestos (apesar dos
esforços de revitalização do tecido associativo e de contacto interactivo com o
sistema formal de ensino) no alargamento da participação cultural e no
contrariar das “tendências de evasão e
demissão cívicas”[793].
Joga‑se, nesta dimensão, uma luta desigual entre uma lógica de acção
local, com uma ancoragem territorial, contra uma lógica global, de cariz a‑espacial,
deslocalizada e onde se enquadram as tecnologias da comunicação e as indústrias
culturais.
Por mais que se estruture a oferta cultural não são de
esperar, como de resto mencionámos no capítulo V, efeitos automáticos de
arrastamento da procura. O Porto deixou de ser a cidade provinciana de que nos
falam grande parte dos escritores que sobre ela meditaram (“O Porto é província, e província do Douro
(...) O Porto é a última cidade de Trás‑os‑Montes, de gleba
transmontana”[794])
e, por isso, não mais é imune às grandes (e transnacionais) recomposições no
domínio das sociabilidades e do espaço público.
5. As
novas faces da cidade.
Não nos parece errado afirmar, como de resto está patente
nas páginas anteriores, que a história cultural do Porto sofreu profundas
metamorfoses nos últimos dez anos. À lentidão da evolução anterior, à aparência
mesmo de estagnação durante os longos anos do Estado Novo, surge uma década breve, para utilizarmos de
empréstimo a metáfora de Hobsbawn a propósito do nosso século (um século breve). O efeito que sobre nós
provoca essa aceleração é mais visível quando nos damos conta da inadequação de
comentários ainda recentes. François Guichard, por exemplo (1992!), fala‑nos
de um Porto centrado nas tertúlias de cafés e pastelarias, símbolo do traço
pretensamente mais distintivo da urbe (a sociabilidade, ou uma certa sociabilidade); uma cidade
cristalizada num espírito semelhante ao que “animava os grandes cafés franceses de antes da guerra”[795];
uma aglomeração onde os tascos traduzem um típico “mundo fechado de homens”[796],
em ambiente de quente cumplicidade. O tasco seria “o verdadeiro símbolo da sociedade do Porto (...) fechada mas calorosa,
conservadora, tradicionalista, ainda muito masculina”. Os outros lazeres
resumem‑se a uns passeios à Foz e Matosinhos, em busca da praia ou de
bons ares, ou ainda à pesca à linha e piqueniques junto ao rio, hábitos
bucólicos preferidos pelos mais antigos. Ainda mais recentemente, a propósito
da rede de cruzamentos proporcionada pelo festival Ritmos, alguém afirmava: “Ritmos,
outros ritmos, cruzamentos múltiplos, mestiçagens várias (...) no Porto. Cidade
improvável, até há algum tempo pouco dada a estas miscelâneas”[797].
Não chegaremos ao exagero de dizer que este Porto, tradicional e ritualizado,
morreu. Ele permanece, decerto, em franjas etariamente idosas, ou em alguns
segmentos profissionais com particulares enraizamentos territoriais, mas vão
noutro sentido as grandes transformações sócio‑culturais que atravessaram
a sociedade portuguesa no seu conjunto e de que demos conta em anterior
capítulo. Tais símbolos já não são, seguramente, elementos estruturantes da
imagem dominante da cidade. Tão‑pouco esta outra representação de uma “cidade do trabalho e em certos aspectos
pacatamente provinciana, e orgulhosa de sê‑lo (...) urbe densa cujas ruas
em geral adormecem cedo e se animam cedo”[798].
De facto, importa particularizar. Se há ruas sossegadas e
hábitos domésticos fortemente sedimentados, noutras zonas da cidade as noites
são longas e servem de suporte a múltiplos usos, simbologias, representações,
papéis e actores: a noite dos comportamentos desviantes, a noite distinta e
elegante, a noite juvenil e estudantil, a noite mundana... Na própria Internet,
mito e veículo ultracontemporâneo da sociedade digital, encontrámos um site com comentários extremamente
personalizados a propósito de mais de duas dezenas de bares e discotecas do
Porto e arredores mais próximos[799].
Nele, fala‑se de uma constelação imensa de ambientes musicais (metal, punk/hardcore, música antiga,
música alternativa, acid, etc., etc.). Existem também
referências aos melhores dias da semana; à hora de início da maior animação
(por vezes a partir das cinco da madrugada...); ao tipo de clientela (“selecta”, “gay”, “pirosa”, etc.) e
surgem curiosas importações linguísticas (por exemplo, movida), bem como sugestivos recursos de estilo (portagens refere‑se ao “filtro”
exercido à entrada de muitos estabelecimentos nocturnos por empregados ou
“seguranças”). Alguns vêem em toda esta diversidade de espaços, estilos e
linguagens o entusiasmante caleidoscópio pós‑moderno. Outros, avisam
prudentemente que a pluralidade de opções é mais de fachada e as margens de
real alternativa apresentam uma reduzida flexibilidade.
Mas um outro tipo de consumos culturais invade o
quotidiano portuense. Referimo‑nos à rápida aparição das modernas
catedrais de consumo, os shopping centers,
onde milhares de cidadãos passam fatias cada vez mais significativas do seu
tempo livre[800]. E se
delas falamos é porque configuram uma radical reestruturação das formas
tradicionais da esfera pública. Não é por acaso que, a propósito de dois
megacentros comerciais de Lisboa se criaram os seguintes slogans: “O mundo”; “A cidade dentro da cidade”; “O centro da cidade”. Porque de cidades
se tratam. Cidades sem geografia, abstraídas do espaço e do tempo exteriores;
muitas vezes em ruptura com a configuração urbana onde se localizam; com as
suas próprias ruas, praças e fontes; cidades onde as formas urbanas perdem
legibilidade e as hierarquias se despacializam embora saiam reforçadas pela
ordem do consumo[801].
Edifícios que poderiam estar – e estão – em qualquer local, seguindo o
princípio de que “tudo se combina com o
que quer que seja”. Cidades que têm mais a ver com a racionalidade do fax,
do modem, dos computadores e dos cartões de crédito do que com a “velha” lógica
dos cenários físicos das urbes modernas. Cidades‑televisão, onde, perante
a aparente diversidade de lojas e produtos, o nosso olhar se assemelha ao zapping televisivo, talvez com uma
diferença: temos todos os canais num só[802].
O mais curioso nesta nova arquitectura urbana é o colapso
da história e do clima. Nestas catedrais encontram‑se pastiches de todos os estilos arquitectónicos,
misturando‑se pormenores barrocos com requintes neoclássicos e pós‑modernos.
Num certo sentido, o “excesso de tempo”
de que nos fala Marc Augé a propósito das dimensões constitutivas da “sobremodernidade”, está aqui presente[803].
No Via Catarina, na baixa comercial
da cidade, podemos caminhar entre miniaturas de casas típicas do Porto,
remetendo‑nos para várias épocas. A temperatura é artificialmente mantida
a um nível constante. No Cidade do Porto
é‑nos dada a possibilidade de patinar num lago gelado sem sofrermos os
rigores da Invernia[804].
No extremo, as vinte e quatro horas do dia poderiam ser passadas num centro
comercial. Nada nos faltaria: das lojas de múltiplos artigos (embora a
diversidade seja mais aparente do que real, dada a duplicação de estabelecimentos
iguais ou extremamente semelhantes) às praças
da alimentação (onde se experimentam tanto o standard do fast food como as delícias das cozinhas
mais exóticas, israelitas ou mexicanas), passando pelos centros de lazer,
alguns especialmente vocacionados para as crianças; outros mais dirigidos aos
adultos, como as grandes cadeias de cinema. Os centros comerciais tornam‑se
mesmo locais de encontro social; oportunidade para conhecer caras novas ou
ocasião de passear com o(a) namorado(a). Entretanto, o centro histórico da
cidade perde vitalidade e desertifica‑se às primeiras horas da noite. Daí
os slogans de que há pouco falámos:
os centros comerciais são de facto, cada vez mais (e não num sentido meramente
metafórico), o centro da cidade. Ao
mesmo tempo, este “urbanismo de fantasia”[805]
dissemina uma nova atitude segregacionista. Se, de facto, a ruptura face ao
exterior é quase total (ausência de ruídos, de oscilações de temperatura,
música ambiente) todos os aspectos negativos da cidade tendem a ser eliminados:
sujidade, toxicodependência, trânsito, pobreza. Além do mais, o invisível olho
electrónico dos modernos sistemas de vigilância substitui a presença por vezes
incómoda da autoridade (como aponta M. Crawford, existe uma ténue fronteira
entre convite e exclusão). Um paraíso artificial – dirão alguns. Mas também uma
encenação, um despertar simultâneo de estímulos contraditórios, que tanto
passam pela excitação e ansiedade como pela sedação. Uma “viciante droga ambiental”, no dizer de Joan Didion[806].
Espaços de trânsito e de passagem que colocam a nossa
identidade entre parênteses, dado o seu cariz fracamente relacional. Espaços
que, ao contrário dos “lugares antropológicos” (identitários, relacionais e
históricos, delimitáveis num tempo e num espaço onde se produzem “formas
sociais orgânicas”) se fixam numa “contratualidade
solitária”. Não‑lugares, no dizer de Marc Augé[807].
O que leva tantas pessoas a frequentar estes espaços? A
resposta é complexa e articula, certamente, para além de outros factores,
défices de formação cultural com a reduzida exposição a uma oferta lúdica
alternativa. Mas também o curioso sentimento de um certo anonimato que se
refugia numa identidade provisória (apenas quebrada, aqui e além, pela
apresentação de um documento, um cartão de crédito...), também ela em trânsito,
geradora de representações ambíguas. Por um lado, a “multidão solitária”, a
pouca riqueza interactiva, o sentir‑se espectador, inclusivamente de si
próprio[808]. Por outro
lado, a sensação de libertação face aos constrangimentos habituais (“a
obrigação de...”), a leveza de um novo papel (passageiro, cliente...): “Objecto de uma doce posse, à qual se
abandona com maior ou menor talento ou convicção, goza, momentaneamente, como
qualquer possuído, as alegrias passivas da desidentificação e o prazer mais
activo da representação de um papel”[809].
Qual a resposta de uma política cultural de cidade face à
proliferação de não‑lugares? O centro da cidade desertifica‑se ao
cair da noite e durante o fim de semana. Paralelamente, centros comerciais e
grandes superfícies comerciais fervilham de gente. Possuem estes espaços algum
potencial de revitalização de uma “cultura de saídas”? A resposta deve ser
prudente. Não podemos esquecer que, em grande medida, representam um
prolongamento da exposição à sociedade de consumo patente nos tempos doméstico‑receptivos.
Do mesmo modo, o seu cariz socializador afigura‑se fraco. Os não‑lugares
só lidam “com indivíduos (...) mas estes
não são identificados, socializados e localizados (...)É à maneira de um imenso
parêntese que os não‑lugares acolhem um número cada vez maior de
indivíduos (...) O não‑lugar é o contrário da utopia: existe e não
alberga nenhuma sociedade orgânica”[810].
Mas estes espaços podem conter, em si mesmos, sementes de um “espaço praticado”
(para utilizar a terminologia de Certeau). Iniciativas de animação (concertos,
exposições, performances) têm vindo a
proliferar nestes cenários. Sabemos que elas constituem, antes de mais, uma
tentativa de reforço do ethos
consumista (que talvez se possa definir pela máxima de Augé: “fazer como os outros para ser ele próprio”[811]),
através do poder da “atracção adjacente”[812]
que direcciona os olhares e os estímulos para as mercadorias circundantes e
omnipresentes. Ao abranger a esfera do lazer, mais necessidades são satisfeitas
e mais motivos as pessoas encontram para frequentar estes locais. Mas demitirmo‑nos
de uma acção cultural organizada, equivaleria a legitimar a fuga da cidade,
dentro da cidade, que eles também (e tão bem) representam. E, quem sabe, se em
vez de se oferecerem como objecto de uma “etnologia
da solidão” de que Marc Augé reivindica a emergência, não poderão
constituir novos cenários de encontro, “agir
comunicacional” e sociabilidade. Neles circulam cidadãos, ainda que
adormecidos, públicos virtuais a serem conquistados.
CAPÍTULO IX
ESTRATÉGIAS DE PESQUISA
“Il n'y a pas de raison de penser que soient inconciliables l'étude (que l'on veut certainement qualifier d'«objectiviste» si elle menée de manière unidirectionnelle) des structures de vie en commun et celle (que l'on peut certainement qualifier de «subjectiviste», si elle est menée de manière unidirectionnelle) du sens en fonction duquel les participants à une existence commune font l'experience des divers avatars de celle‑ci.”
Norbert Elias, “Sur le concept de vie quotidienne”[813]
1.
Elogio do ecletismo
metodológico.
Hoje
começa a ser predominante a perspectiva dos que consideram que as
reconfigurações do social exigem um acompanhamento permanente por parte da
construção teórica e da reflexão metodológica, com importantes consequências
sobre o aparato tecnológico das ciências sociais. Se os fenómenos sociais se
transformam, deverá igualmente modificar‑se a forma de os apreender
através de instrumentos conceptuais adequados. A proliferação de teorias auxiliares de pesquisa[814], permite vislumbrar
o princípio de que a investigação empírica é ela própria conduzida por
hipóteses sobre o carácter social das relações de observação, explicitando os “processos simbólico‑ideológicos
envolvidos na elaboração (recolha e tratamento) da informação empírica
sociologicamente relevante”[815]. Assim, somos
levados a reflectir sobre a necessidade de conjugarmos procedimentos
metodológicos diversos.
Se é
legítimo desconfiar das concepções positivistas que encontram nas estatísticas
o alfa e omega da cientificidade, também nos parece inadequado resvalar para um
“anti‑cientismo” totalmente
confiante na veracidade da expressividade do ponto de vista do agente. Aliás,
esta dupla desconfiança é o desafio exigido pelas novas condições sociais e
teóricas da prática científica. Se, como refere António Teixeira Fernandes, a
concepção determinista dos fenómenos sociais (associado à crença “cientista” do
positivismo) se prende a um mundo de referências seguras e estáveis, próprio de
um modelo integrado de cultura, da mesma forma as metodologias compreensivas
tendem a impor‑se num cenário em que os sistemas sociais perdem
normatividade e coerência, fragmentando‑se e flexibilizando‑se, o
que leva ao centramento da análise nas condutas individuais e interindividuais
e no sentido que produzem[816]. No primeiro caso,
favorece‑se a “entificação da
sociedade como um todo”, bem como a “reificação
da realidade social”[817], de maneira a
prever a evolução dos fenómenos, captados através de regularidades e leis. No
segundo, emergem “paradigmas de
indeterminismo”[818] para apreender as
lógicas dos micro‑sistemas culturais em que se baseiam as identidades
plurais. Os fenómenos sociais são apresentados como “fluidos, multiformes, pulverizados e em constante mudança”[819].
No
entanto, como o mesmo autor refere, a dissolução aparente do social esconde,
afinal, processos de recomposição e movimentos cíclicos de reestruturação. Se é
verdade que as realidades sociais se apresentam sob novas formas, certamente
menos coerentes e previsíveis de acordo com paradigmas teóricos
desactualizados, nada nos aconselha a aceitarmos a acção social como actuando
num campo infinito de liberdade e indeterminismo, condição, aliás, que
contraria não só a possibilidade de existência de um discurso e prática
sociológicos autónomos, como os próprios conceitos de sociedade e relação
social.
Assim,
parece‑nos mais adequado multiplicar as formas de abordagem do objecto de
estudo, negando modelos metodológicos unidimensionais e privilegiando a
complementaridade, exercício de “compatibilização
deliberada entre extensividade e intensividade, centrifugação e centripetação
da pesquisa”[820].
Desta
forma, conciliámos técnicas como um inquérito por questionário aos públicos de
três organizações culturais, a análise documental de fontes estatísticas (elas
mesmas produtos institucionais normalizadores que requerem exame crítico
permanente, em particular no que se refere ao estado pela luta de
classificações legítimas que de alguma forma reflectem: nomear e categorizar,
como já tivemos ocasião de afirmar, é também criar, seleccionar, incluir,
excluir[821]), a análise de
conteúdo de entrevistas, por número de ocorrências e por definição de
categorias temáticas (abordagem qualitativa) e a observação directa metódica e
sistemática. É o próprio carácter relacional do objecto de estudo que assim o
exige.
Em todos
os momentos do trabalho de campo deparámos com operações quantitativas e
qualitativas. As primeiras nunca o são inteiramente, já que é necessário
seleccionar e definir o que vai ser medido e posteriormente interpretado. Do
mesmo modo, as metodologias qualitativas não prescindem hoje de uma
contabilização estatística mínima da frequência dos fenómenos que observam.
Finalmente,
importa salientar a omnipresença da teoria (embora em “doses” distintas) ao
longo da pesquisa. De facto, esta unifica os momentos de investigação,
impedindo divisões artificiais entre concepção e execução, estando presente
quer na definição de modelos de análise, quer no próprio trabalho de campo, o
qual, ao requerer uma presença muito activa do investigador, faz redobrar a
necessidade de uma atenta vigilância epistemológica, impossível de accionar sem
quadros teóricos adequados. O que não significa, obviamente, que não se desafie
a teoria de partida, testando o seu grau de adequação ao real — exigência
crucial em processos que lidam com o simbólico, ou seja, com a produção,
circulação e apropriação de sentido pelos agentes sociais em contextos
específicos.
2.
Breve reflexão sobre
as técnicas utilizadas.
2.1.
Análise documental
de fontes estatísticas.
O nosso
primeiro exercício, prévio mesmo à fase exploratória de trabalho de campo,
consistiu na recolha e análise de uma ampla gama de indicadores que fornecessem
uma imagem de conjunto, ao mesmo tempo sincrónica e diacrónica, dos contextos
territoriais. Assim, tentamos obter dados estatísticos de índole demográfica,
económica, social e cultural, de maneira a compor um quadro relativamente
completo das respectivas dinâmicas. Utilizamos quer informações já recolhidas e
construídas em “segundo grau” em trabalhos sobre a realidade portuguesa,
inseridas num quadro interpretativo próprio, quer uma série de publicações do
Instituto Nacional de Estatística (INE), ou indicadores fornecidos on line pelo site do INE na Internet, onde a informação aparece mais actualizada
e desagregada, quer ainda informação
estatística tratada em revistas de estudos do INE. Sempre que possível,
comparámos quatro escalas territoriais: nacional, regional (Nuts II — Região
Norte), metropolitana e concelhia. Desta forma, pretendemos não só reconstituir
imbricações entre os diferentes níveis referidos, como salientar as respectivas
especificidades. Revelou‑se extremamente elucidativo para o nosso objecto
de estudo o trabalho de análise das reconfigurações recentes da estrutura
social portuguesa, em particular no que diz respeito à composição socio‑profissional
e à mobilidade social.
2.2.
Entrevistas
exploratórias.
Estas
entrevistas, acompanhadas de uma observação incipiente e “diletante” de alguns
“quadros” de interacção, permitiu‑nos orientar as “grandes teorias” ou
“teorias gerais”[822] do modelo de
análise para certos aspectos “locais” da pesquisa. Por outras palavras,
favoreceu uma flexibilização de conceitos abstractos, permitindo uma selecção
das teorias de médio alcance mais
adequadas, bem como o accionar das já referidas teorias auxiliares de pesquisa, num processo em que se combinam,
como aliás ao longo de todo o trabalho, procedimentos lógico‑dedutivos
(partir de modelos teóricos preexistentes) e indutivos (em que se parte dos
factos empíricos para produzir “um
esquema de inteligibilidade teórica que possa evidenciar, em doses variáveis,
relações sistémicas, causais ou funcionais, processos, etc.”[823]). A fase
exploratória, de índole qualitativa tem, pois, o mérito de não aplicar uma
“camisa” de forças aos dados empíricos, deixando‑os “desafiar” as teorias
de partida.
No
entanto, não nos parece, ao contrário do que por vezes se vem advogando, que
esta fase exploratória deva ser meramente empírica, ou reduzida a uns vagos
conhecimentos sobre o tema que se pretende estudar. O aprofundamento dos
quadros teóricos deve ser um trabalho activo desde os primeiros passos da
pesquisa. Somente desta forma se poderá falar, com pertinência, de vaivém teoria/pesquisa
empírica ou de resolução do hiato que tantas vezes as separa.
No
presente estudo, as entrevistas exploratórias dirigiram‑se aos
responsáveis dos espaços culturais em análise, bem como a alguns informantes privilegiados sobre os
mundos noctívagos da cultura. Baseou‑se, igualmente, numa análise de
conteúdo qualitativa dos materiais de publicidade produzidas para divulgar a
oferta cultural desses espaços. Ou seja, procurou‑se, essencialmente,
construir um esquema de inteligibilidade da oferta teórica e das representações
dos directores artísticos e produtores culturais.
2.3.
O inquérito por
questionário.
Como
vários autores têm referido, a possibilidade de inquirir populações
relativamente vastas e a comparação de resultados são duas das vantagens dos
inquéritos por questionário. No nosso estudo o inquérito permitiu‑nos, de
facto, descortinar regularidades nas práticas culturais dos públicos, bem como
as clivagens exercidas por variáveis estruturadas
e estruturantes como a idade, o sexo, o capital escolar e a trajectória
social. Simultaneamente, possibilitou‑nos a comparação entre os três
espaços seleccionados, bem como a explicitação de lógicas de heterogeneidade
internas a cada um deles, desfazendo assim as recorrentes “ilusões da homogeneidade”.
No entanto,
a aplicação de um inquérito sobre práticas culturais comporta vários riscos e
desvantagens. Desde logo, por questões práticas. O inquérito que construímos
revelou‑se inadequado face à reduzida disponibilidade revelada pelos
inquiridos. De facto, um inquérito longo (Anexo
III) que demora cerca de trinta minutos a ser preenchido coaduna‑se
mal com o espírito de descontracção e diversão das saídas culturais nocturnas.
Por outro lado, condições de ruído pouco favoráveis (no B Flat e na Praia da
Luz) reduziam o tempo efectivamente
consagrado ao inquérito. Deveríamos ter elaborado um instrumento mais ágil e
com menos questões abertas. Assim, os inquéritos recolhidos (547) e
distribuídos em várias ocasiões, para cada um dos espaços, de forma a
conseguirmos uma aproximação à real diversidade e constituição dos públicos,
representam apenas cerca de 30% dos
inquéritos distribuídos. De igual modo, as respostas às questões respeitantes à
caracterização socioprofissional dos inquiridos, da sua família de destino e de
origem, obtiveram índices de não‑resposta ou resposta incompleta
superiores a 50%, impossibilitando a
utilização de uma matriz de construção de lugares de classe.
Mas há
razões mais profundas e que nada têm a ver com este tipo de contingências. Com
efeito, o inquérito por questionário é frequentemente criticado por reproduzir
uma versão oficial da realidade, na medida em que, na elaboração das perguntas,
nas respostas e na sua posterior codificação intervêm factores sociais que
transcendem a situação de inquérito, embora esta também seja socialmente
condicionada (em especial nos casos de administração indirecta, em que se
verifica interacção entre inquiridor e inquirido). Reacções de prestígio e
acomodação aos padrões sócio‑culturais que se julgam dominantes são
atitudes que, em especial em inquéritos sobre práticas culturais, aos quais
está subjacente uma definição legítima
dessas práticas, se revelam habituais. A resposta, como escreveu Virgínia
Ferreira, é o “resultado da identidade
social e pessoal estratégica que o respondente definiu como adequada à
situação”[824]. Claro que, no
presente caso, e à luz de todos os anteriores trabalhos neste domínio, seria
previsível (tal como efectivamente se veio a verificar) uma certa homogeneidade
nas características sócio‑demográficas dos inquiridos (juvenilidade, alto
capital escolar, etc.) o que evita grandes desvios face ao “inquirido modelo”
(em termos de competências cognitivas, linguísticas e culturais) que está
igualmente implícito em cada inquérito e que, não raras vezes, se aproxima do
perfil social do investigador.
De
qualquer forma, e como acentua João Sedas Nunes, mesmo num inquérito em que se
utilizam tipologias de práticas culturais que se aproximam de uma visão
alargada e diversificada do campo cultural, tendo‑se em conta,
paralelamente, os usos quotidianos do tempo, introduz‑se, mais ou menos
subliminarmente um arbitrário cultural: “por
que razão um museu é naturalmente um
equipamento cultural e uma linha de metropolitano não o é? (...) Por que razão
a ida a um museu é naturalmente uma
frequência cultural e a utilização daquela linha não o é? Ou, num outro plano,
por que razão a leitura de um livro é entendida como recepção de uma «obra
cultural» e a resposta a um inquérito (...) não o é?”[825].
De qualquer forma, o inquérito é um instrumento útil na contextualização social das práticas culturais e das representações simbólicas, ao permitir detectar constelações de atitudes, opiniões e crenças, relacionando‑as com variáveis que traduzem relações e condições objectivas de um espaço social estruturado, dentro de uma perspectiva que se pode considerar holística, bem como definir a frequência estatística das dimensões observadas. Desde que se tome consciência da sua falsa neutralidade e, bem entendido, conquanto seja integrado em programas de pesquisa ecléticos no que respeita à utilização da panóplia de técnicas disponíveis.
2.4.
As entrevistas semi‑directivas.
Estas
entrevistas, aplicadas em número de 88 durante a fase central do trabalho de
campo, em paralelo com os inquéritos (embora a indivíduos diferentes), como se
pode constatar pelo respectivo guião (Anexo
IV), tinham como objectivo captar o discurso dos praticantes culturais
sobre a relação entre o “ficar em casa”
e o “sair à noite”, bem como os
significados associados ao espaço doméstico e ao espaço semi‑público de
sociabilidade mundana e cosmopolita. O guião revelou‑se suficientemente
flexível para permitir aos entrevistados a expressão da sua “realidade”,
quadros interpretativos e esquemas de referência, sem obrigar a entrevistas
muito longas (quinze a vinte minutos em média). Ao contrário do inquérito, a
reacção dos entrevistados foi quase sempre positiva, o que se pode relacionar,
precisamente, com a maior possibilidade de estruturarem o seu discurso sem grandes
limitações prévias.
Se
iniciássemos agora a pesquisa, reformularíamos as questões abertas e semi‑abertas
relativas aos modos de recepção cultural de forma a fazerem parte do guião de
entrevista. Estas dimensões requerem, de facto, um enquadramento menos
“cartesiano”, de maneira a que, em situação de entrevista, as respostas
reflectissem as singularidades dos universos simbólicos dos entrevistados,
evitando qualquer lógica de estandardização ou condicionamento prévio.
2.5.
A observação
directa.
Com a
utilização de uma grelha de observação directa, pretendeu‑se colmatar
alguns dos limites inerentes às metodologias extensivas, bem como superar a
velha divisão do trabalho entre a sociologia (supostamente cingida ao inquérito
por questionário, instrumento da objectividade oficial e garante da separação
rígida entre sujeito e objecto) e a antropologia (limitada às técnicas de
observação, imersão nas realidades vividas)[826]. Como se sabe, a
descoincidência entre práticas efectivas
e práticas declaradas obriga a uma utilização
crítica das verbalizações dos inquiridos e entrevistados, em especial no que se
refere à expressão dos gostos e aos usos da cultura, em que a paralinguagem
(ritmo e timbre de voz, silêncios, hesitações, dicção, etc.) e a linguagem
cinética (gestos, olhares, posturas corporais, etc.) ocupam um lugar central.
Como refere Serge Collet, na defesa de uma “etnografia
dos públicos em acção”[827], os gostos devem
ser captados tanto por sistemas de atitudes verbalizados num discurso coerente,
como por gestos e mímicas: “Un
spectateur, ça bouge!”[828]. No entanto, não se
pense que a corporalidade é o reino do inefável: as reacções mais íntimas do
imaginário do espectador são codificadas e acessíveis à análise. Além do mais,
a pluralidade de formas de recepção de um espectáculo impele‑nos a ter em
conta, em diferentes momentos (antes do espectáculo, durante a sua realização,
nos intervalos, no final) dimensões como a relação com o espaço físico e a
forma como está organizado e regionalizado, os modos de apresentação em cena,
as modalidades de interacção, as conversas “espontâneas” (desenrolando‑se
perante a suposta ausência do investigador, que as regista a coberto do
anonimato), os registos descritivos de comportamentos, a sociabilidade etc.
Trata‑se, afinal, de captar “os
comportamentos no momento em que eles se produzem e em si mesmos, sem a
mediação de um documento ou de um testemunho”[829], com a vantagem de
ser uma técnica “não‑reactiva”,
como realça Crespi, “no sentido de
reduzir ao mínimo os efeitos da presença do investigador”[830].
Se a “verdade” dos respondentes não capta a
totalidade das relações sociais, se o seu sentido não se esgota na
intencionalidade dos agentes, não bastará, no entanto, utilizar técnicas de
cariz etnográfico. Como refere António Joaquim Esteves, “qualquer processo de empatia do investigador, colocando‑se do
«ponto de vista» do autor, não pode ficar refém da sua subjectividade ou do
sentido. A ser assim, o trabalho de investigação nem chegaria a estar à altura
de um trabalho de tradução”[831]. A objectivação dos
mecanismos simbólico‑ideológicos de que os agentes se servem
quotidianamente no processo de construção social da realidade revela‑se
igualmente indispensável.
3.
Um estudo de casos
comparativo.
O
carácter multifacetado desta pesquisa não pode ser dissociado do facto de
estarmos em presença de três estudos de caso, em que se pretendeu analisar, com
um certo grau de exaustividade e profundidade, a interacção de factores
inerentes às vivências culturais em cenários com identidades específicas. Claro
que não se logrou esgotar o leque de dimensões de análise, como por vezes
ingenuamente se espera de um estudo intensivo. Antes se optou pela análise
selectiva de questões‑chave, nomeadamente as que remetem para a
interdependência recíproca entre o espaço social e a esfera cultural em
processos de rápida mudança social em contexto urbano.
A
generalização é, obviamente, limitada, embora não impossível. O mais
importante, todavia, como salienta Judith Bell, é alargar os quadros do
conhecimento existentes, de forma a fornecer modelos de análise que possam ser
testados em situações semelhantes[832].
Uma
dimensão deste estudo que deve ser realçada é o seu cariz comparativo. De
facto, ao analisarem‑se três espaços de fruição cultural com programações
diferentes (embora com pontos de convergência) pretendeu‑se dar conta da
pluralidade de mundos da cultura, ao mesmo tempo que se insinuou a
possibilidade de cada um deles constituir um tipo‑ideal de instituição cultural. Finalmente, ao introduzir‑se
a perspectiva comparativa, clarificou‑se a especificidade de cada local.
Assim, o Teatro Municipal Rivoli, por exemplo, ganha contornos mais nítidos (a
sua singularidade torna‑se mais transparente) ao ser posto em relação com
os restantes espaços e vice‑versa.
4.
Uma nova grelha de
classificação das práticas culturais.
Com
o duplo propósito de, por um lado, operacionalizarmos as categorias e relações
entre categorias presentes no modelo de classificação das práticas culturais
desenvolvido por José Madureira Pinto[833],
e, por outro, de mantermos o princípio de cumulatividade do conhecimento
científico, propomos a grelha seguinte. Como se poderá constatar, ela segue
relativamente de perto a nomenclatura utilizada por José Machado Pais em vários
estudos[834],
não excluindo, no entanto, novos critérios de agrupamento das práticas
culturais (modificando o conteúdo das categorias) e mesmo algumas alterações
conceptuais.
I.
Espaço Doméstico
1.
Práticas domésticas criativas: fazer “bricolage”; artesanato;
escrever um “diário”; cozinhar por divertimento.
2.
Práticas domésticas expressivas, de interacção e sociabilidade:
receber familiares em casa; receber amigos em casa; ir a casa de familiares; ir
a casa de amigos.
3.
Práticas domésticas receptivas, de consumo e/ou fruição:
ver televisão; ouvir rádio; ouvir música; ler livros sem ser de estudo ou
profissionais; ler jornais[835];
ler revistas; ver filmes vídeo em casa.
4.
Práticas domésticas de abandono: não fazer nada; dormir
a sesta.
II.
Espaço Público
5.
Práticas expressivas públicas: Frequentar festas de carácter
popular; passear; fazer desporto; fazer “jogging”; fazer pequenas viagens; ir à
pesca; ir à caça; ir à praia; passear em centros comerciais; ir a feiras.
6.
Práticas participativas públicas: assistir a jogos de futebol
(ou outros espectáculos desportivos); assistir a touradas; ir ao circo; ir a
concertos de música popular e moderna.
III.
Espaço Semi‑público
7.
Práticas expressivas semi‑públicas: ir a
cafés, cervejarias, pastelarias; ir à missa ou a cerimónias religiosas; ir a
discotecas; ir a bares; almoçar ou jantar fora sem ser por necessidade; jogar
em máquinas electrónicas (casas de jogos); ir às compras (roupa, discos,
livros, etc.).
8.
Práticas receptivas semi‑públicas: ir ao
cinema.
9.
Práticas de rotina semi‑públicas: comprar
comida e mercearias.
IV.
Espaço Associativo/espaço semi‑público organizado
10.
Práticas associativas criativas: fazer teatro amador;
dançar (dança contemporânea, ballet, jazz e folclore); tocar (num grupo
musical, coro, rancho, etc.); cantar (num grupo musical, coro, rancho, etc.).
11.
Práticas associativas expressivas: ir a associações
recreativas ou a colectividades locais; jogar xadrez; jogar às cartas, damas,
bilhar, etc.; fazer campismo e caravanismo.
V.
Espaço da cultura cultivada/sobrelegitimada
12.
Práticas eruditas criativas: escrever (poemas, contos,
etc.); artes plásticas (pintar, desenhar, etc.); fazer fotografia (sem ser em
festas ou em férias).
13.
Práticas receptivas e informativas de públicos cultivados: ir
ao teatro; ir a concertos de música clássica; visitar museus, exposições, etc.
Convém
explicitar que a tipologia proposta por José Madureira Pinto assenta no
cruzamento de dois critérios: “modos de
relação com os bens culturais” e “espaços
sociais de afirmação cultural”. A grelha deste autor complexifica o modelo
sugerido por Lalive D'Epinay[836],
que cruza a posição do actor (dicotomicamente dividida em “emissor” e “receptor”) e
o espaço das práticas, segmentado em “caseiras”
e “exteriores” (cada um dos conjuntos
com várias subdivisões). O esquema de Madureira Pinto permite ir mais longe na
consideração das hierarquizações do campo cultural ao considerar, para além do
“público” e “privado”, o espaço organizado e mais ou menos tutelado das
subculturas dominadas e/ou emergentes, o espaço das indústrias culturais e o
círculo da cultura cultivada.
Por outro lado,
enquanto D'Epinay considera apenas três conjuntos de práticas —expressão,
interacção, informação —, Madureira Pinto propõe criação, expressão (associada
à interacção), participação e recepção/consumo, enriquecendo o leque de modos
de apropriação da cultura.
A nosso ver, na
“participação” podemos conceber a “fruição cultural”, enquanto processo de
recepção tão activo que transforma o receptor em emissor, ainda que no contexto
de uma produção que lhe é exterior (por exemplo, assistir a espectáculos
desportivos ou de música popular/moderna — o espectáculo dentro do
espectáculo).
Acrescentamos uma
outra categoria, de carácter quase residual no conjunto da tipologia, retirada
da proposta de José Virgílio Pereira[837]
(por sua vez inspirada em Lalive D'Epinay e Norbert Elias) — “práticas de
rotina semipúblicas” — e que apenas pode ser incluída no campo cultural se da
cultura mantivermos uma concepção ampla e antropológica.
Ir ao cinema, enquanto saída cultural relativamente
generalizada e abrangendo uma pluralidade de géneros (filmes de “autor” — a
chamada “indústria de conteúdos” —, megaproduções “comerciais”, filmes
pornográficos, etc.), foi separada das práticas receptivas e informativas dos
públicos cultivados.
Quando nos
referimos a “práticas associativas” fazêmo‑lo num sentido lato, já que
não têm necessariamente de ocorrer em associações formalmente constituídas, mas
sim em espaços colectivamente organizados com fins também, embora não exclusivamente, formativos (é o caso de praticar
canto ou dança em escolas especializadas).
A inclusão dos centros comerciais no espaço público
justifica‑se pelo facto incontornável de serem o “passeio público” da
actualidade (sub)urbana, de acesso quase livre e potencialmente gratuito. Não
esquecemos, todavia, que constituem “mundos artificiais” onde se exerce de
forma velada uma efectiva selecção e controlo sociais.
Ir às compras sem
ser por mera rotina (caso das roupas, livros e discos) assume‑se como um
acto de potencialidades lúdicas, conviviais e mesmo formativas (frequentar
assiduamente uma livraria, por exemplo), com o intuito explícito, muitas vezes,
de quebrar a dita rotina.
Finalmente,
importa referir que estes mecanismos de selecção, ordenação e abstracção do
material recolhido (nomenclaturas, tipologias), ao mesmo tempo que facilitam a
interpretação, excluem certas dimensões de análise. Na pesquisa, como em
qualquer actividade humana, optar acarreta sempre ganhos e perdas.
CAPÍTULO X
ESPAÇOS E TEMPOS DE
UMA INVESTIGAÇÃO
1.
Rivoli: A fénix renascida.
1.1.
Breve Historial.
O Teatro Rivoli acompanha muito de perto a história do
Porto neste século. Lugar de evocações, memórias, vivências e emoções, associa‑se,
de forma marcante, a uma determinada época da vida de muitos portuenses:
“Para
mim o Rivoli com o seu nome de sabor italiano pontuado de vogais abertas é uma
memória do princípio da adolescência (...) o teatro aparecia‑me enorme na
sua arquitectura ágil de desassombrado modernismo numa cidade quase sempre
dominada pelo peso granítico dos edifícios oitocentistas (...) Apagavam‑se
as luzes do teatro e soavam os primeiros acordes de afinação, enquanto subiam
as luzes do palco e algumas tosses renitentes se iam aplacando na plateia (...)
Mais do que a missa, ainda em latim, que não tinha idade para perceber, o
concerto de domingo de manhã no Rivoli iniciava‑me à dimensão misteriosa
do espiritual”[838].
Para outros frequentadores, o Rivoli soará de forma
diferente, porque muitos foram os que transpuseram as suas portas ao longo de
uma história multifacetada e salpicada de imprevistos. Alguns lembrar‑se‑ão
das soirées de dança, música ou
ópera, outros de filmes a diferentes títulos memoráveis (alguns de películas de
duvidosa qualidade, inclusivamente de cariz pornográfico...), outros ainda da
metamorfose do teatro em gigantesca discoteca. Enquanto lugar de memória, o
Rivoli é um manancial de vozes que a seu modo interpretam os contextos
espaciais em que se movimentam. O Rivoli, espaço e lugar, é um texto
polissémico e gerador de discursos polifónicos: existirá sempre em função de
diferentes pontos de vista de actores socialmente situados[839]. Como refere Isabel
Alves Costa, directora artística do novo Rivoli:
“Esta
casa tem um peso muito grande na memória das pessoas: foi um centro de ópera
muito importante em determinada época; há memória de cinema, sobretudo nas
camadas mais populares; a formação musical de muitas pessoas foi feita aqui”[840].
Ou ainda Pedro Ramalho, arquitecto responsável pela
recente recriação do edifício:
“Do
ponto de vista arquitectónico e urbanístico, considero que o Rivoli faz parte
integrante de toda a renovação urbana do centro do Porto desde o início do
nosso século (...) o mérito da obra é muito mais exterior do que interior e tem
a ver com a sua localização”[841].
O seu nascimento remonta ao antigo Teatro Nacional,
propriedade de Manuel Pires Fernandes e da família Borges (ligada à banca),
abrindo as suas portas em 5 de Dezembro de 1913, com uma lotação de 1500
lugares, para a estreia de uma peça de teatro de revista “importada” de Lisboa.
Ocupava o grandioso edifício todo o espaço do actual Rivoli e da filial da
Caixa Geral de depósitos. A sua construção articula‑se com uma profunda
renovação urbanística do “novo” centro da cidade (Avenida dos Aliados, Praça da
Liberdade) que se inicia na segunda década do nosso século. Pelos registos da
imprensa local, o novo espaço causou admiração, dada a sua dimensão e arrojo,
salientando‑se, desde logo, no conjunto dos equipamentos culturais da
época[842].
Demolido o Teatro Nacional, nasce, em 20 de Janeiro de
1932, o Rivoli, propriedade do mesmo empresário, Pires Fernandes. Dois anos
antes, em Assembleia Geral da empresa que viria a gerir o Rivoli, regista‑se
que “o desideratum desta empresa era
dotar o Porto com uma casa de espectáculos digna da capital do Porto, e nunca
com fins de especulação rendosa, pois nenhuma probabilidade havia de se poder
obter um juro remunerador do capital a despender, jamais no estado em que se
encontra o Teatro Português”[843]. Curiosas e actuais
palavras... Repare‑se que o seu sentido permanece inteiramente actual:
aponta‑se a região do Porto (e não apenas a cidade, a capital) como área beneficiária do
equipamento; define‑se a intenção de uma política de serviço cultural não
lucrativo e fala‑se, ainda, da “crise” do teatro português como
dificuldade a superar.
Uma vez mais, o Rivoli, que aumenta a sua capacidade para
1800 lugares, estreia com uma peça produzida em Lisboa, estilo teatro‑comédia,
da companhia do Teatro Nacional liderado pela famosa dupla Amélia Rey Colaço —
Robles Monteiro. De novo, recepção entusiástica da crítica e do público. O
edifício impressionava pelos seus “átrios,
escadarias, decoração, pinturas, comodidade e número de lugares”[844], sendo por alguns
considerado “a última palavra em
modernismo, em conforto e em bom gosto”[845]. Logo oito meses
após a sua inauguração, o Rivoli encerra para breves obras, tendo em vista a
introdução do cinema sonoro. A isso obrigou a pressão do público, claramente
rendido à sétima arte. Como refere Bandeira, “verificamos que uns bons 90% da programação do Rivoli, a partir da
temporada de 1933/34, é constituída por cinema”[846], correspondendo a
uma época de ouro da cinematografia americana[847]. No entanto está
igualmente presente o teatro para o grande público, a par dos concertos, da
ópera e da opereta.
A partir de 1944, com a ascensão de D. Maria Borges ao
cargo de directora, começa o que para muitos foi a época áurea do Rivoli.
Autêntica mecenas das artes, apoia a Orquestra Sinfónica do Conservatório de
Música do Porto, bem como o Círculo de Cultura Musical, promovendo igualmente
temporadas de ópera e recebendo algumas das melhores companhias teatrais
europeias, mantendo‑se, simultaneamente, o cinema de qualidade. Pode‑se
considerar que esta fase, que durou até aos anos 60, representa uma
reorientação do Rivoli em direcção a públicos mais cultivados, cumprindo, ao
mesmo tempo, a função de representação simbólica da burguesia portuense
instruída.
Nos anos 70 (D. Maria Borges morre em 1976), a agonia
toma conta do Rivoli, a contas com grandes dificuldades financeiras e com uma
degradação extrema da sua programação, confinada exclusivamente ao cinema,
exibindo mesmo, entre 74 e 75, colecções de filmes pornográficos. Antes de ser
adquirido, em 1989, pela Câmara Municipal do Porto, o Rivoli foi ainda uma
danceteria e cobiçado por empresas imobiliárias, sendo ventilada a ideia de
demolição. A intervenção camarária salva o edifício e submete‑o a obras urgentes
de remodelação. Ainda em 1989, é consagrado como Teatro Municipal, por
unanimidade dos partidos representados na autarquia.
A partir de 1991, e com a criação do Pelouro de Animação
da Cidade, decide‑se proceder a uma ampla reconstrução do edifício, sendo
o projecto da responsabilidade do arquitecto Pedro Ramalho. Entretanto, e antes
de as obras se iniciarem, é desenvolvido um período de programação cultural que
serve para testar projectos, burilar o futuro modelo organizacional e apreender
algumas características dos públicos potenciais. Mesmo com a primeira fase das
obras a decorrer (que incluíram a remoção das cadeiras da sala de espectáculos)
teve lugar o ciclo de teatro Rivoli Vazio,
com o intuito de experimentar as potencialidades cénicas de um espaço “despido”
e provisório[848].
O “novo” Rivoli, renascido de um teatro esventrado que
pouco mais conservou do que algumas fachadas, baixos‑relevos e traços
arquitectónicos de identificação, é inaugurado a 16 de Outubro de 1997 com um
concerto da recém‑criada Orquestra Nacional do Porto. O edifício afigura‑se
bastante remodelado e com uma multiplicidade de espaços. Desde logo o grande
auditório com lotação de 858 lugares, em forma de anfiteatro, sem os velhos
camarotes e com uns polémicos painéis acústicos. Mas contando igualmente com um
pequeno auditório para cerca de 180 espectadores, um café‑concerto e um
restaurante, um amplo foyer e, em
zona reservada, uma sala de ensaios que reproduz o palco, camarins, um bar de
artistas e um espaço amplo para o sector administrativo.
1.2. Um novo modelo organizacional e
de programação cultural.
Muitas outras dimensões mudaram com o “novo” Rivoli. O
modelo organizacional e gestionário é inédito na história cultural da cidade.
Com efeito, “a programação, organização e
produção das actividades do Rivoli Teatro Municipal”[849] é uma das
principais incumbências da CulturPorto —
Associação de Produção Cultural, composta por dois associados fundadores: a
Câmara Municipal do Porto (que assegura a sua direcção, através da vereadora do
Pelouro de Animação da Cidade) e o Instituto Politécnico do Porto, onde se
encontram integradas as Escolas Superiores de Teatro e de Música e,
futuramente, de Dança. Várias são as razões subjacentes à escolha deste modelo.
Por um lado, como nos referiram os responsáveis autárquicos, obtém‑se um
grau de flexibilidade e operacionalidade que jamais se conseguiria caso fosse a
autarquia a gerir o Teatro, sujeita que está a uma vasta panóplia de obrigações
burocráticas[850]. Por outro lado,
estimula‑se a possibilidade de fomentar a educação artística, um dos
objectivos declarados da nova direcção artística. De facto, para lá da promoção
de novos artistas e do serviço público de apoio à criação artística propõe‑se
contribuir para a formação, em contacto com o público e com outros agentes
culturais, de maneira a quebrar eventuais efeitos de fechamento. Aliás, toda
esta vertente é pensada articuladamente com a formação de públicos em geral, e
na sua dimensão juvenil em particular, através de três possíveis hipóteses:
‑
“convidar um encenador para fazer uma produção no teatro, sendo proposto a um
grupo de escolas o mesmo texto para que, durante o processo de montagem do
espectáculo profissional, pudesse haver encontros e discussões, tornando os
jovens que trabalharam aquela mesma história em público privilegiado do
espectáculo”
‑
“convidar uma companhia de fora para residir durante um certo tempo no teatro,
montando e fazendo a estreia de um seu espectáculo (...) queria recuperar a
ideia de residência, obrigando contratualmente os artistas. Eles saberiam o que
tinham para fazer, obrigando‑os a uma participação activa nas actividades
do teatro. Podendo fazer ensaios abertos, participar em colóquios, em
conferências, tertúlias (...) tentar saber antes de elas serem residentes qual
o tema, partindo de um texto ou de uma criação colectiva e propor essa
problemática ao grupo das escolas”
‑
“ a terceira maneira era partir de um espaço, convidar as escolas para virem
ver o espaço e dizer‑lhes «este é o teatro onde podem apresentar o vosso
trabalho de fim de ano». Implica fazer uma visita séria ao auditório, com todas
as indicações técnicas precisas. Parte‑se de uma apreensão do espaço para
uma criação”[851].
Existe, aliás, dentro desta mesma
linha, um interessante projecto, ainda não concretizado, apresentado por Teresa
Lima e que tem por lema, precisamente, a formação do espectador. Considera‑se,
nesse documento, que o contacto com as escolas e o movimento associativo são a
pedra de toque de uma política de formação de públicos. Insiste‑se,
igualmente, na dessacralização da produção artística através do contacto
próximo com as técnicas da criação e com os próprios criadores.
No entanto, um dos pressupostos
revela‑se no mínimo discutível, especialmente tendo em conta a vocação municipal do Rivoli, ou, se preferirmos,
a sua “natureza” de instituição cultural de serviço público. Quando se afirma
que “formar espectadores significa formar
melhores espectadores e não angariar mais espectadores (vocação da
publicidade e marketing)”[852] resvala‑se
para uma aporia de contornos duvidosos, já que, como discutimos noutros
capítulos, tal diferendo deve ser assumido como uma tensão em permanente busca
de compromisso.
Outro eixo estruturante da programação liga‑se à
polivalência do Teatro. Como já referimos, o Rivoli é composto por uma
pluralidade de espaços onde, simultaneamente, se podem realizar actividades
diversas, embora quase sempre complementares. Uma das preocupações da direcção
é, precisamente, conferir uma certa identidade às várias iniciativas, de forma
a evitar a imagem de fragmentação. A própria filosofia inerente à polivalência
é de molde a suscitar sérias apreensões, desde logo na concepção do espaço,
como realça o arquitecto responsável pelo novo projecto:
“Como
espaço polivalente, nunca seria possível criar condições óptimas para cada um
dos diferentes espectáculos. Tivemos de conciliar as diversas situações
possíveis”[853].
Preocupações igualmente presentes na direcção artística:
“A
ideia da polivalência tem aspectos muito complicados. Nós sabemos que em termos
de visibilidade, de acústica, de comodidade, é um compromisso difícil que se
tem de encontrar para se fazer um bom concerto com uma orquestra, mais um
eventual com um Pedro Abrunhosa, mais uma ópera, um teatro, cinema, etc., já
que uma destas actividades ou mesmo todas resultarão menos boas (...) portanto,
o supermercado da cultura, como lhe costumo chamar, tem os seus perigos. Um
deles é o de não haver uma identidade definida”[854].
De facto, a filosofia da polivalência elimina a velha
especialização das casas de espectáculo, que tornava eventualmente mais fácil a
opção do espectador, habituado a relacionar um dado espaço com um determinado
género ou produção cultural. No entanto — e essa é uma enorme vantagem ‑,
permite a captação de correntes diversificadas de públicos, para além do
contigente já cativado. Um outro ganho prende‑se com a possibilidade de
explorar uma unidade temática através de várias formas de expressão e níveis de
cultura, repartidas por espaços de características diferentes (o grande
auditório, o café‑concerto, o foyer,
etc.). De certa forma, uma ideia‑mãe metamorfoseia‑se numa miríade
de modalidades, com públicos‑alvo diferenciados, embora sem deixar de
lado o eventual trânsito e intercâmbio que um espaço destes propicia. A mesma
directora artística, ciente, como há pouco vimos, das acrescidas dificuldades
desta polivalência, não deixa de assumir as suas vantagens:
“Eu
gostava que o Rivoli fosse um Centro Cultural do Porto. Não um centro comercial
de cultura, mas um centro cultural no sentido positivo do cruzamento, do
encontro, da discussão, do diálogo entre as várias expressões”[855]; “Pretende‑se que o Rivoli possa ser um
centro de convívio, formação, cruzamento, versatilidade, confronto,
discussão...”[856].
Esta questão é indissociável da vocação municipal do
teatro. Não só se pretende que atinja um público vasto, como, mais importante
ainda, se almeja que cumpra um espírito de democratização cultural e onde a
experimentação tenha um cunho de aprendizagem. A directora artística define
desta forma essa vocação intrínseca, por oposição ao status quo de um Teatro Nacional:
“Um
teatro municipal é um espaço mais democrático. Democrático no sentido nobre da
palavra. Um Teatro Nacional é um espaço menos democrático, na medida em que tem
de haver uma indicação mais fechada em relação à definição dos seus objectivos
(...) o S. João devia ser um exemplo do melhor que se faz. O Rivoli, por ser um
espaço mais democrático, tem mais direito ao erro. É um espaço que tem outra dinâmica,
deve‑se dar oportunidade às pessoas de fazerem mal, ali podem errar
porque só assim aprendem”[857].
Os reflexos deste espírito estão nitidamente patentes na
programação. Ao olharmos, aleatoriamente, para um qualquer mês de actividade
(Novembro de 1997, por exemplo), deparamos com a seguinte repartição:
‑ Grande Auditório: Festival de Jazz; Gust (dança contemporânea); A Libertação de Prometheus (música); Máquina Hamlet (teatro), etc.
‑ Pequeno Auditório: Cinema e Jazz; Inventão (teatro); Fausto e Prometeu no Imaginário Ocidental (conferência); concerto
de Domingo; ciclo de vídeo H. Muller; etc.
‑ Café‑concerto: programa Nascer da Noite[858]: club jazz;
programa Chá das 6[859]: A propósito do
jazz; Chá das 6: conversa com
Francisco Camacho; Nascer da Noite: Frei
Fado d'El Rei (música portuguesa); Nascer
da Noite: A canção alemã; etc.
Repare‑se como muitas das actividades se encontram
articuladas. A unidade temática jazz reparte‑se
por vários espaços e iniciativas; o mesmo acontece com a unidade teatro alemão, partindo da peça Máquina
Hamlet de Heiner Muller ou ainda, em menor dimensão, com a dança contemporânea,
já que o autor de Gust, Francisco
Camacho, participa igualmente na tertúlia.
Olhando para a programação que acompanhou a duração do
trabalho de campo, torna‑se igualmente patente a especialização de cada
um dos espaços. O Grande Auditório, dadas as suas características físicas e
simbólicas, contempla os grandes concertos (embora se note aqui uma grande
pluralidade, que vai da música clássica à música ligeira passando pelo jazz e pela dança contemporânea, sem
esquecer o teatro e o cinema, na forma de um festival internacional); o Pequeno
Auditório, por seu lado, alberga peças de teatro que requerem menores recursos
cénicos, a par de conferências, ciclos de vídeo e de cinema, bem como
lançamento de revistas; o Café‑Concerto, de longe o espaço com
programação mais heteróclita, acolhe espectáculos de magia, tertúlias, música
erudita contemporânea, hip‑hop,
música de raiz trovadoresca, jazz, performances teatrais, etc. Finalmente,
o foyer destina‑se quase
exclusivamente a exposições.
Outra importante consequência deste estatuto de Teatro
Municipal ancora na assunção da natureza não‑lucrativa (ou mesmo
deficitária) do seu funcionamento, numa lógica assumida de serviço público.
Como refere a vereadora da Animação da Cidade:
“A
CulturPorto vai ser financiada pela Câmara precisamente porque presta um
serviço público. Naturalmente que alguns espectáculos podem dar prejuízo...”[860].
Esta lógica de serviço público tem naturalmente
consequências financeiras significativas, obrigando à definição rigorosa de
critérios e prioridades, de forma a optimizar recursos escassos. Trata‑se,
uma vez mais, de delinear políticas. E de exercitar o espírito inventivo dos
programadores:
“A
minha experiência anterior do Festival de Marionetas habituou‑me a
trabalhar com pouco dinheiro e a tentar encontrar soluções interessantes e
baratas. Dizia muitas vezes que esperava que nunca me dessem dinheiro
suficiente para perder a imaginação necessária a criar formas de fazer capazes
de vivacidade e não produtos institucionais (...) Tivemos uma atenção quase
política, porque um teatro municipal depende de fundos municipais de municípios
que não são ricos num país que não é rico”[861].
Uma das formas de contornar custos económicos elevados e
de fomentar a colaboração entre instituições culturais de perfil complementar é
a realização de co‑produções. Aliás, a recente implantação e/ou
recuperação no Porto de diversos pólos culturais (com especial destaque para o
Teatro Nacional S. João e para o Coliseu) obriga a uma profunda articulação de
programas, não só para, precisamente, rentabilizar recursos e fomentar
intercâmbios, mas igualmente tendo em vista eliminar formas “negativas” de
concorrência. O próprio público, não o esqueçamos, é bastante restrito e não se
coaduna com a exibição, em simultâneo, de produções de cariz semelhante.
Outra estratégia, frequentemente usada pelos produtores
do Rivoli, consiste, perante a falta de verbas avultadas para as suas áreas, em
utilizar redes informais de conhecimentos, junto de produtores de outras
instituições, eventualmente mais abonadas, tendo em vista a obtenção de uma
informação complementar que permita um conhecimento diversificado de novas
propostas artísticas. Se um desses produtores mais afortunados tem a
possibilidade de se deslocar amiúde ao estrangeiro para se inteirar das
dinâmicas recentes do mercado internacional, é certo que prestará alguma
atenção aos pedidos dos seus colegas do Rivoli, mediando contactos e trazendo
informação. Tudo isto contribui, em nossa opinião, para criar dinâmicas de
colaboração no interior de um campo habitualmente conflituoso e competitivo.
Por outras palavras, a magreza dos orçamentos não tem só consequências
negativas e não é uma fatalidade incontornável.
1.3.
As expectativas do campo cultural portuense.
Como tivemos ocasião de esclarecer no
capítulo IX, referente às estratégias metodológicas, uma das nossas abordagens
exploratórias consistiu na auscultação às organizações culturais sediadas no
Porto sobre as expectativas criadas perante a renovação do Rivoli. Apesar do
fraco índice de respostas, é‑nos possível delinear um conjunto de
conclusões que, de certa forma, exprimem as posições ocupadas por essas
instituições no campo cultural portuense, os seus interesses específicos, bem
como a representação que elaboram sobre o posicionamento virtual do Rivoli.
Assim:
– A maior parte das entidades (12 em 16) desenvolve outras
iniciativas, para além da actividade principal a que se dedica. Tal deve‑se
à vontade de colaboração inter‑artística (juntando, por exemplo, o
teatro, os audiovisuais, a música e as artes plásticas), o que de alguma forma
confirma tendências recentes da produção cultural, no sentido de criar obras multiformes
e de fronteira, sacrificando a ideia
de uma “pureza” e linearidade originais[862]. Outro dos terrenos
onde essas organizações investem cinge‑se às actividades de animação
cultural e de formação. Razões de procura de fontes complementares de sobrevivência
económica estão também na origem deste exercício da polivalência;
– A
maior parte optaria também por uma conciliação entre ruptura e continuidade (8 respostas em 16 possíveis) no
funcionamento do Rivoli, de forma a preservar uma certa memória e uma tradição
de qualidade, mas equipando simultaneamente o espaço com as melhores condições
técnicas e com uma maior zona de trabalho para os artistas, a par de uma
diversificação das áreas de expressão cultural. As entidades que advogam a
ruptura justificam‑na pela inexistência anterior de um modelo de
contornos precisos e pela degradação a que o espaço tinha chegado;
– 12 destas instituições
defendem a polivalência (no que se refere aos espaços, às actividades e aos
públicos‑alvo) e a multifuncionalidade do Rivoli, nomeadamente pela
possibilidade de maior abertura a múltiplas e heterogéneas formas de expressão,
inclusivamente para além do domínio das artes do espectáculo. Uma das
instituições inquiridas afirma mesmo a sua aspiração de que “o Rivoli se torne um centro cultural digno,
que a cidade não possui. Que seja um pólo de atracção e de animação permanente”.
Esta ideia de centro cultural e de pólo é, aliás, recorrente;
– um altíssimo nível de expectativas face
ao “novo” Rivoli, o que revela, sem dúvida, não só a confiança de alguns dos
principais agentes culturais na viabilidade do seu projecto, mas, igualmente,
uma fortíssima carência de um equipamento com o perfil anteriormente delineado.
Por outras palavras, parece consensual a legitimidade atribuída ao Teatro
Municipal enquanto entidade privilegiada de criação, difusão e animação
cultural citadina e metropolitana. Repare‑se que do Rivoli se espera,
entre muitas outras funções, que promova
“actividades regulares de atendimento ao público muito jovem”; que dinamize
o teatro infantil; que contribua para a “criação
de hábitos culturais e de públicos regulares”; que estimule “ a realização de exposições, conferências,
debates, reuniões direccionadas para diferentes temas e áreas de interesse
social, político, cultural, estético, ético e artístico”; que crie, à
semelhança do que acontece com as empresas, “ninhos
de artistas”; que promova regularmente workshops e oficinas diversas; que
satisfaça, simultaneamente, “gostos
populares e eruditos”; que seja um espaço gerido por “pessoas inquietas e apaixonadas”; que invista nas “actividades multimedia e interactivas, com
especial destaque para todas quantas contribuam para o “consumo activo” da
cultura e da Arte; que acarinhe a abertura de uma Escola Municipal de Dança; que convide “estudantes de pintura para mostrarem os seus trabalhos e dar‑lhes
a oportunidade de se tornarem jovens cenógrafos, tanto para espectáculos de
bailado, como ópera, teatro, etc.”; que tenha “uma gestão moderna”; que “todo
o espaço seja cultural: exposições de fotografia, design, pintura, escultura,
ocupando os corredores, os orifícios e os buracos do teatro”; etc., etc.
Em suma, quando questionados sobre as suas aspirações
face ao Rivoli remodelado, os agentes culturais deixam transparecer a lógica
sectorial dos seus interesses e a singularidade do seu posicionamento no campo
cultural. Enquanto que uns, por exemplo, colocam a ênfase num tipo de gestão de
rigor tecnocrata, outros insistem na rejeição das “formas funcionalistas, comerciais e atrofiantes (quando não
clientelistas) da pseudo‑gestão nacional da cultura”. No limite,
trata‑se de visões inconciliáveis e que transcendem, muitas delas, no seu
exagero de expectativas, as reais potencialidades de um teatro municipal.
Aliás, quase nunca manifestam consciência dos constrangimentos e condicionantes
a que um equipamento desta natureza está inevitavelmente sujeito. O que
significa que, com o decorrer do tempo e a concretização/actualização do seu
projecto (com todas as prioridades, inclusões e exclusões que contempla),
inerente a uma experimentação/negociação do seu lugar no campo cultural
portuense, o Rivoli irá desiludir parcial ou totalmente alguns destes agentes.
A definição de uma política pública a isso obriga.
2. A esplanada da Praia da Luz.
2.1. Uma certa cultura
mundana.
Situado na Foz, zona de lazer por excelência, com as suas
inúmeras esplanadas, os seus bares, as suas praias, o estabelecimento Bar da
Praia da Luz funciona como palco privilegiado de uma certa cultura mundana e
cosmopolita. Antecâmara de outras saídas, este espaço comercial possui também
alguma polivalência, servindo de café e esplanada, durante todo o dia,
transformando‑se em restaurante, pela hora do jantar, e em bar noctívago
a partir do fim da noite e início da madrugada. A nossa análise centrar‑se‑á
neste último (e primeiro...) período do dia, não só por nele se concentrar de
forma extremamente visível uma certa ética de apresentação e encenação social,
como pelos espectáculos que nele se realizam e que traduzem, como veremos, uma
noção relativamente recente de estetização do quotidiano e de alargamento sem
precedentes do campo cultural.
Propriedade, na altura do trabalho de campo, de um
empresário ligado à animação comercial nocturna, o espaço Bar da Praia da Luz
caracteriza‑se pelas suas duas “regiões”, para utilizarmos uma expressão
cara a Goffman: a esplanada, espécie de anfiteatro sobre a praia, iluminada
durante a noite, e o café‑restaurante‑bar, espaço rectangular
coberto, embora com amplas vidraças sobre a paisagem marítima, possibilitando,
apesar de mais recatado, ver e ser visto com facilidade. O seu interior,
abundantemente forrado de madeira, ostenta uma decoração mínima e sóbria.
Sobressaíam, na altura, duas filas de écrans de televisão penduradas no tecto
de forma a poderem ser vistos por todos os clientes. A programação desses
écrans era constituída, quase invariavelmente, por uma sucessão de imagens,
algumas delas extremamente bizarras, inseridas em vídeo‑clips de uma
estação internacional de televisão exclusivamente consagrada à música pop‑rock.
O sentimento de deslocalização (ou descontextualização, na acepção de Giddens[863]) era acentuado pela
ausência de volume. De facto, as imagens sucediam‑se em silêncio, o que,
de certa forma, aumentava o seu ritmo vertiginoso. Esse sentimento traduz a
emergência da separação, ali bem visível, entre o espaço e o lugar. Dito de
outra forma, na Praia da Luz assiste‑se a uma combinação de um cenário de
interacção, um lugar (identitário, relacional e histórico, os requisitos
postulados por Marc Augé para a sua existência[864]), com esse não‑lugar das imagens televisivas,
vazio, deslocalizado, fantasmagórico. Em
qualquer outro lugar do mundo aquelas imagens seriam visíveis, embora
apropriadas de forma plural.
A sua colocação ali não é inocente. Ela articula‑se,
assim o pensamos, com o terceiro paradigma da “teoria da visão” explicitado por Jameson, traduzindo uma
determinada “cultura social” e uma
específica “experiência social da visão”[865], extremamente
associada à “euforia da alta tecnologia”
e à celebração da “versão tecnológica do
pós‑modernismo”[866], uma “superabundância de imagens” que elimina
a reflexividade. Como refere Jameson, este novo paradigma da visão social “significa uma mais completa estetização da
realidade que é também, ao mesmo tempo, uma visualização ou colocação em imagem
mais completa dessa mesma realidade”[867]. Tentaremos, mais
adiante, aprofundar esta ideia, ao analisarmos as formas sociais de
apresentação dominantes na Praia da Luz.
2.2. A programação: uma ilustração da expansão do
campo cultural.
O estabelecimento da Praia da Luz é, antes de mais, uma
casa comercial. A rentabilidade é, indiscutivelmente, o seu principal
objectivo. Como nos referiu um gerente de um conhecido e moderno
estabelecimento nocturno do Porto:
“Há
lugares que pretendem estar na moda e nunca conseguem estar (...) locais onde
se muda o ambiente, lavam a cara, tornam o ambiente em algo que não tem nada a
ver, não sabem aproveitar ou gerem mal ou fazem daquilo um clube de amigos e
para isso não dá. A noite é muito cara, tem de se facturar”.
Uma das estratégias consiste na invenção de ocasiões,
numa espiral interminável de busca da novidade: “Todos os dias temos de pensar em coisas diferentes para trazer cá as
pessoas. Fazemos festas completamente loucas e fora de tudo, dar um ambiente
diferente, decorar a casa com papel branco e apostar no jogo de luzes, arranjar
festas com patrocínios, mexer com as pessoas (...) Este ano a nossa festa de
Carnaval marcou o Porto pela diversidade dos temas e pela forma como foi feito.
Começou com um baile dos bombeiros, ao qual os próprios aderiram a 100%,
tentamos recriar o salão nobre dos bombeiros, onde estes fazem as festas. Até
metemos lá dentro um carro dos bombeiros!”.
Surpreender um público vacinado contra a novidade pela
constante exposição à mesma, não é tarefa fácil. Mas dela depende a
sobrevivência económica dos espaços comerciais de animação nocturna. A
programação da Praia da Luz enquadra‑se
no movimento de estetização do quotidiano, correlativo da expansão e
flexibilização de fronteiras do campo cultural, apelidada por Jameson de “tendência cultural dominante”[868]. Durante o período
de duração do trabalho de campo assistimos à noite Dry Martini & Lounge Music, com dois Dj's convidados (atente‑se
na íntima associação entre um produto comercial alcoólico e um género musical,
como se entre ambos houvesse uma implícita transacção — a bebida culturaliza‑se
e a música mercantiliza‑se[869]); a noite ADN, igualmente com DJ's convidados (um
deles vindo do estrangeiro)[870]; as Elektra Nights, programa mais vasto que
abarcou dois meses e que incluía Live
Performances, lançamento de livros, uma passagem de modelos, DJ's
convidados e ainda uma Scrooge Night
Party. A passagem de modelos, de longe a iniciativa mais fulgurante, a
começar pela panóplia de meios utilizados, ilustra bem o novo espírito das
franjas recém‑incorporadas no campo cultural (moda, design, publicidade...): como declarou um dos responsáveis da
escola de formação de modelos e manequins que organizou um dos dois desfiles a
que assistimos (onde participaram os finalistas dos primeiros cursos), “o mundo da moda funciona como qualquer
outra empresa”[871].
Trata‑se, evidentemente, de um segmento peculiar do
campo cultural, marcado pelas novas tecnologias (veículo e estrutura de
sentido), pelo efémero, por uma ligação estreita com os cenários lúdicos da
noite e por uma predominância do jogo e do gosto visuais. Como acentua Jameson,
“é o próprio visual que abstrai esses
públicos dos seus contextos sociais imediatos”[872].
3.
B Flat: um clube de jazz?
3.1.
Um francês em Portugal.
O B Flat jazz club nasceu em 1994, sobressaindo desde
então na noite de Matosinhos pela sua permanente e diversificada oferta neste
género musical. Aberto apenas de Quinta‑feira a Domingo, garante sempre a
oportunidade de se assistir a música ao vivo. Situado em pleno coração da
cidade de Matosinhos, a escassos metros da Câmara Municipal, o B Flat
reivindica, no entanto, uma projecção que em muito ultrapassa os estreitos
limites concelhios. A cave reconfigurada, que serve de bar e sala de
espectáculos, denuncia a ambição dos seus responsáveis: ser um clube de jazz. As cadeiras de veludo e as mesas
baixas sucedem‑se até ao palco. O piano e todo o esquema de iluminação
dão indícios do que à noite se passa. Os seus proprietários, de nacionalidade
francesa, possuem larga experiência de trabalho e de contactos neste subcampo
artístico. Um deles fala‑nos mesmo, com indisfarçado orgulho, do
reconhecimento internacional que o B Flat obtém, embora no restrito círculo dos
conhecedores:
“Lá
fora — no «milieu», não no «povo» — toda a gente conhece o B Flat, toda a gente
quando me vê, nos colóquios em que eu participo me pergunta logo pelo B Flat.
Temos o e‑mail cheio de mensagens de artistas que querem vir cá tocar”.
No discurso deste fundador, o B Flat é um projecto
artístico, rodeado de uma certa aura romântica e desinteressada:
“Vim
para Portugal porque em França as pessoas já não se interessam por certos
valores. E não por dinheiro — eu trabalhava na Ópera de Paris, num lugar muito
bem remunerado. Mas parece‑me que vou ter de continuar a procurar esses
valores, porque aqui...”.
De facto, durante o período em que decorreu o trabalho de
campo, o B Flat parecia viver algumas dificuldades financeiras, oriundas, em
grande parte, de uma relação sinuosa com a autarquia local. Esta apoiou durante
todo o ano os dois clubes de jazz do concelho (e da Área Metropolitana do
Porto), assumindo, como justificação, o suporte de uma centralidade cultural no
concelho através do jazz. Neste
âmbito, surgiram dois programas: O Jazz
desce à cidade e O jazz desce à
escola. Com o primeiro apoiava‑se a oferta permanente de jazz ao vivo nos dois bares (o que acaba
por constituir, indirectamente, um subsídio à criação e difusão artísticas, na
medida em que cria uma lógica de mercado
assistido para o jazz); com o
segundo pretendia‑se uma formação contínua de públicos, através da
deslocação às escolas do concelho de bandas de jazz com o intuito de fornecer, pedagogicamente, conteúdos sobre a
história do jazz e da pluralidade dos
seus géneros, a par de um pequeno concerto comentado. O culminar destas dois
programas consistia num festival de grandes dimensões, realizado no grande
auditório da Exponor (com capacidade para duas mil pessoas) com a presença de
grandes nomes do jazz nacional e
internacional.
O já citado proprietário do B Flat revela‑se
descontente com a estrutura e as intenções subjacentes a este projecto, em
especial no que se refere à drástica diminuição sentida nos apoios concedidos,
depois do último festival:
“Com
o Festival a Câmara gastou todo o dinheiro que tinha para o jazz. Foi um acontecimento gigantesco, mediático
mas efémero. E agora não há dinheiro para o B Flat!”.
Desta forma, quebra‑se a lógica do mercado assistido e, ainda segundo o
proprietário, gera‑se uma inevitável degradação na qualidade da oferta:
“Ultimamente
têm surgido críticas, nomeadamente na imprensa, quanto à menor qualidade dos
grupos que vêm ao B Flat. Se calhar é verdade, mas isso acontece depois do
festival. A fasquia subiu muito alto com o festival. E agora há dificuldades
financeiras. Mas eu opto por ajudar os grupos mais jovens. Se eu apostasse nos
consagrados, as dificuldades económicas não seriam problema... Se houvesse
espectáculos com grupos consagrados os
bilhetes poderiam a subir a ??? dois mil escudos e a audiência poderia ser de
mil pessoas. Isso dava dois mil contos só numa noite”.
A opinião da autarquia é divergente. Alguns responsáveis
por nós contactados referem o carácter comercial do estabelecimento para
limitarem o apoio financeiro. Mas esse epíteto — “comercial” — é liminarmente
rejeitado pelo nosso interlocutor. O B Flat, explica, “não é um bar; é um clube de jazz”. É nessa linha, aliás, que
justifica o pagamento, extra‑consumo, de um “bilhete” de 500 escudos:
quem quiser assiste apenas ao espectáculo — razão de ser do estabelecimento — e
não bebe nada.
No que se refere à programação, existem, de acordo com os
responsáveis, três critérios fundamentais:
-
a prioridade aos novos valores (uma vez mais a função de suporte de um
clube de jazz);
-
o ecletismo, através da apresentação de vários tipos de jazz (de vanguarda — experimental ‑,
“clássico”, de “mestiçagem” — mistura com ritmos latinos e africanos, etc.) e a
combinação tradição/inovação[873];
-
o intercâmbio internacional.
Aliás, os responsáveis enfatizam a singularidade do B
Flat no panorama do jazz português,
não só pelas excelentes condições técnicas de que dispõe (“Posso dizer com conhecimento de causa que o B Flat está melhor
apetrechado do que qualquer dos clubes de jazz de Paris!”), como pela
actualidade da programação (“ao contrário
da maior parte dos conhecedores portugueses de jazz, que ficaram pelos anos 50
— veja‑se o caso do Hot Club — ,
nós procuramos estar na vanguarda”). O que vem colocar a ênfase, de novo,
na faceta propriamente artística do local (uma sala de espectáculos), omitindo
a dimensão comercial (um bar), herética face aos critérios de legitimação do
subcampo cultural em questão[874]:
“Se isto não der, se deixar de ter prazer no que
faço, vendo isto e vou‑me embora, se for preciso volto a ser intérprete
num grupo de jazz”.
4. As “vozes” da noite.
“A noite é liberdade”
(Das entrevistas)
“A noite traz no rosto sinais
de quem tem chorado demais”
(Ivan Lins)
O nosso trabalho de campo (entrevistas, inquéritos,
deambulações etnográficas, conversas informais...) desenrolou‑se sempre
durante a noite, na maior parte dos casos a partir das 22 horas e algumas vezes
até às duas ou três horas da madrugada. Por isso, as práticas culturais que
estudámos merecem o epíteto de “nocturnas”.
Mas que significados associam os praticantes culturais à
“cultura de saídas” noctívaga? Que representações possuem desses espaços‑tempos
de tonalidades tão ambíguas (a noite do medo e da insegurança versus a noite das ocasiões de
“reencantamento” do mundo)? A análise das entrevistas fornece‑nos alguns
contornos de um interessante campo semântico.
4.1. Os lugares da noite.
Quadro XX — Lugares associados a “sair à noite”
. Bares . Discotecas . Cafés . Esplanadas . Ribeira . Foz . B
Flat . Teatro . Cinema . Concertos . Casa de amigos . Jantar fora . Centros comerciais |
40 22 7 6 14 4 2 11 27 5 3 2 5 (*) |
Nota: (*) — Número de
ocorrências
A noite do Porto tem os seus territórios próprios. Como
se constata pelo quadro anterior, há uma nítida preferência por três tipos de
práticas: ir a bares, ao cinema e a discotecas. Sabendo‑se que estas
actividades se concentram em alguns — poucos — pólos de animação, é‑nos
possível traçar o mapa noctívago da cidade: zona da Ribeira, Foz, zona
industrial paralela à Via Rápida e os grandes centros comerciais das salas
multiplex (o “cinema pipoca”, como
refere um dos nossos entrevistados). Com menor frequência, as salas de
espectáculos.
Em suma, uma acentuada restrição territorial, consentânea
com a especialização de certas áreas da cidade nos lazeres nocturnos e um leque
aparentemente pouco diversificado de práticas. Nas palavras de uma
entrevistada: “faltam locais onde se vá
sem ter uma ideia predestinada... eu gostava que houvesse zonas onde eu pudesse
entrar num bar, noutro e noutro, sem ter que decidir logo à partida onde quero
ir, tipo mapa... gostava que fosse mais livre a escolha...” (B Flat; sexo
feminino; 29 anos; advogada)
Restrições que,
desde logo, contrariam a tão propagada representação romântica da noite exo‑domiciliar
como lugar privilegiado do exercício de uma liberdade plena, descrita nos
seguintes termos por Anne Cauquelin: “O
homem do dia é um fantasma, ectoplasma do vivo, dorminhoco embrutecido, mudo,
sem contacto, um robot. O homem da noite reencontra um sexo, uma voz, uma mão
que apalpa, um nariz que cheira”[875].
Que discursos suscita a noite? O que se revela e o que se
oculta nessas narrativas?
4.2. A noite e os seus “paradoxos”.
Quadro XXI — Significados associados a “sair à
noite”
. Diversão/Distracção . Quebrar a rotina . Descansar . Conviver/sair com os
amigos . Conhecer pessoas novas .Comunicar de forma mais
aberta e autêntica . Liberdade . Fazer coisas diferentes . Ouvir música . Ribeira . Foz . Bares . Discotecas . Insegurança . Pouca diversidade |
16 11 6 16 2 4 6 4 4 4 2 3 2 2 10 (*) |
Nota: (*): Número de
ocorrências.
Anne Cauquelin afirma que “a noite não é nudez: ela veste‑se, pinta‑se, perfuma‑se”[876]. Nós
acrescentaríamos que a noite também tem uma voz, um discurso, uma narrativa.
Plurais e polifónicos.
Atente‑se no quadro anterior. Há uma série de
significados que nos remetem, simultaneamente, para uma noção de continuidade e
ruptura face ao dia. De facto, quando se refere “Quebrar a rotina”, “descansar/descontrair”
ou mesmo “Fazer coisas diferentes”,
somos aparentemente levados a acentuar o lado da ruptura. Aliás, grande parte
da mitologia da noite passa por esse eixo de “quebra”, ou “cisão” redentora. No
entanto, essa mesma ruptura é, para uma boa parte dos entrevistados,
indissociável da estrutura do dia. De facto, a face diurna aparece claramente
associada à actividade produtiva e ao desgaste por ela provocado. Desta forma,
a noite surge como oportunidade de compensação e de recuperação de energias.
Neste sentido, torna‑se difícil manter a ideia de uma absoluta ruptura ou
de uma “pureza” original entre os dois períodos, noite e dia:
“Sair
à noite é para desanuviar do dia, quebrar a rotina” (Praia da Luz; sexo
masculino; 19 anos; estudante);
“descansar do stress do dia” (B Flat;
sexo masculino; 25 anos; estudante);
“quebrar a rotina do quotidiano, quebrar a
rotina para espairecer” (B Flat; sexo feminino; 16 anos; estudante);
“é aquela quebra em relação ao trabalho”
(B Flat; sexo feminino; 17 anos, estudante);
“descontrair ao fim de uma semana de estudo”
(Rivoli; sexo masculino, 20 anos; estudante);
“é
aliviar de uma semana de rotina de aulas” (Rivoli; sexo masculino; 17
anos; estudante);
“eu
já não estudo, por isso para mim sair à noite é muito importante para manter a
minha jovialidade” (Rivoli; sexo feminino; 19 anos; estudante);
“distrair
do dia‑a‑dia” (Praia da Luz; sexo masculino; 25 anos; professor);
“A
noite transmite uma certa paz, de dia é muito agitado” (Praia da Luz; sexo
feminino; 24 anos, vendedora).
Muitos tendem a ver nesta “compensação” uma
funcionalidade propícia ao modo de produção capitalista: trata‑se,
afinal, de recuperar a força de trabalho... Nesta óptica, as saídas nocturnas
só serão compreensíveis por referência à esfera laboral. Os lazeres noctívagos
aparecem, então, como expressão alienada de uma ilusão, a de transgredir a
ordem estabelecida. Como refere Anne Cauquelin, essas “transgressões” não se
colocam no plano da subversão das normas e das barreiras sociais, mas sim no
seu permanente restabelecimento. De dia, ao acordar, a experiência da noite
anterior dilui‑se nas exigências de um novo dia...
Claro está que toda esta linha explicativa, nas suas diferentes
nuances, desemboca na impossibilidade
de conceber uma acção (relativamente) autónoma dos agentes. No entanto, tal
como anteriormente defendemos[877], não podemos
esquecer a capacidade de produção de novos significados permanentemente
associada à acção social. As práticas quotidianas não são uma mera reprodução
da “engrenagem” social mais vasta. Tal não significa, no entanto, que aceitemos
sem distanciamento crítico todas as representações mitológicas da noite,
aquelas que, por definição, seriam um discurso que se explica a si mesmo e que
estão implícitas nos fragmentos seguintes:
“A
noite é liberdade” (Praia da Luz; sexo feminino; 19 anos; estudante)
“As
pessoas são muito mais abertas à noite” (Praia da Luz; sexo
feminino; 27 anos; técnica de informática industrial);
“O
pessoal à noite solta‑se mais, bebe uns copos, é mais porreiro do que de
dia”
(Rivoli; sexo masculino; 23 anos; estudante);
“fazemos
o que nos apetece” (Rivoli; sexo masculino; 20 anos; formando de um curso profissional);
“à
noite as pessoas são diferentes” (Rivoli; sexo feminino; 28 anos; professora);
“a
noite para mim é tudo” (Rivoli; sexo feminino; 23 anos; estudante);
“permite
fazer o que não é possível durante o dia” (Rivoli; sexo masculino; 25
anos; designer);
“de
noite as pessoas estão muito mais desinibidas, aquele stress do dia desaparece
e as pessoas ficam mais saudáveis” (Praia da Luz; sexo masculino; 33 anos;
jornalista);
“ a
cidade à noite , acho que é uma das mais belas da Europa... é antiga, então tem
toda uma atmosfera muito romântica, todo o século dezanove... o rio e o mar” (B Flat; sexo
feminino; 29 anos; advogada);
“para
mim a noite é luz” (Rivoli; sexo feminino, 23 anos; estudante).
A noite é luz. Metáfora poética enunciadora de todo um
discurso de aura que cobre, diáfana, a realidade das práticas nocturnas.
Esquece, por exemplo, que a noite, para os que estão do “outro lado” (por vezes
a escassos metros — do outro lado do balcão...) se reveste de outra tonalidade.
Como nos referiu um gerente de um estabelecimento nocturno, “a noite é cara” e surge para muitos
como oportunidade de emprego e fonte de hierarquias:
“...
arrumadores de automóveis que são nossos, não são espontâneos, são pagos por
nós, até aos apanha‑copos, que têm um trabalho menor (apanham copos, trazem
gelo), até ao pessoal dos bengaleiros e às pessoas dos bares que não são
empregados directos, porque são pagos por quem explora os bares. Contamos
também com um responsável pelas relações públicas, o DJ, o gerente, as pessoas
dos transportes (temos também uma carrinha para levar a casa quem já não está
em muito bom estado...) e temos duas pessoas que são chamadas de arrumadores e
que servem para tratar de por na rua quem não se porta bem. Já não existem
seguranças, neste momento a nossa segurança é a polícia”.
Repare‑se como todo este vocabulário nos reenvia
para um campo diferente. Desde as referências a um sistema de divisão do
trabalho, até à presença de agentes de dissuasão, cujo principal objectivo é
zelar pela ordem estabelecida, sem esquecer os representantes da vigilância
oficial — a polícia. Anne Cauquelin, numa linha foucaultiana, realça esta
última presença com especial ênfase. Não só a luz que ilumina à noite a grande
urbe permite preservar a memória da cidade diurna e dos seus códigos normalizadores,
hierarquizando, ao mesmo tempo, o espaço urbano (os locais iluminados,
lisíveis, são os locais disponíveis, os únicos que existem) como sinalizar e localizar os comportamentos desviantes: “o olhar deve poder ver tudo”[878]; “toda a miséria fica apagada, toda a
vergonha escondida”[879].
Mas os próprios agentes sociais identificam o “outro
lado” da noite. Nessas ocasiões, omitem‑se as referências à liberdade de
acção e mencionam‑se os constrangimentos:
Quadro XXII — Obstáculos associados a sair à noite
.Falta de dinheiro .Falta de
vontade/preferência por ficar em casa .Falta de companhia .Falta de tempo .Insegurança/mau ambiente .Os pais .Os filhos pequenos .Os poucos transportes/não
ter carro .Ter de trabalhar/estudar
no dia seguinte .O cansaço . Não há obstáculos |
24 11 8 2 7 10 2 7 18 5 9 (*) |
Nota: (*) — Número de
ocorrências
Como se pode verificar pelo quadro anterior, a principal
dificuldade em sair à noite reside na falta de disponibilidade financeira, o
que nos remete, de forma pelo menos implícita, ou para a situação de
dependência dos entrevistados (muitos deles estudantes), ou para factores como
o seu capital económico, o que se relaciona, por sua vez, com níveis de
escolaridade, de qualificação, de autoridade, etc., ou ainda com eventuais atitudes
de poupança (motivadas, por exemplo, pela consciência de elementos de
imprevisibilidade no futuro virtual — admitamos a instabilidade no vínculo
contratual) ou de subalternização das actividades lúdicas e culturais.
Por outro lado, o mundo diurno — do trabalho e/ou do
estudo — surge explicitamente como a segunda maior dificuldade do sair à noite.
Necessidade de recuperar a força de trabalho despendida, ou os seus reflexos (“cansaço”, “falta de tempo”, “falta de
vontade”...). De novo, ambas as faces da moeda indissociavelmente ligadas.
Outros constrangimentos afloram na análise deste quadro.
O receio das “patologias urbanas” (sentimento de insegurança ); a dificuldade
de mobilidade na cidade à noite; obstáculos associadas a condições sociais
específicas (no caso da juventude, o prolongamento da escolaridade e o
retardamento de entrada na vida adulta, com a consequente dependência face à
família; no caso dos jovens casais, os filhos pequenos) e ainda a subordinação
das saídas a redes de sociabilidade mais ou menos estruturadas:
“A cidade à noite
tem vários perigos, roubos, violações, é preciso ter cuidado...” (Rivoli;
sexo masculino; 37 anos; publicitário);
“a
cidade, a maneira como está estruturada para um nível etário até aos 30 anos, é
bastante negativa, condiciona muito a liberdade de escolha das pessoas... em
Espanha não é como aqui, não há a preocupação se a pessoa está bem ou mal
vestida, não há aquele cartão, as pessoas da noite estão ali para servir as
outras e não para ditar um status”
(Praia da Luz; sexo masculino; 29 anos; estudante);
“o
Porto tem uma noite muito cara” (Praia da Luz, sexo masculino; 30 anos; oficial do
exército);
“a
noite do Porto é elitista” (B Flat; sexo masculino; 43 anos; professor);
“só
é pena os transportes colectivos serem poucos” (Rivoli; sexo masculino; 24
anos; estudante);
“...
há as violações, os roubos e também a preocupação dos nossos pais quando vamos
sair, as horas a que chegamos” (Rivoli; sexo feminino; 17 anos; estudante);
“por
eu ser rapariga os pais não dão muita liberdade e depois há os problemas da
escola, estamos cansados e não apetece fazer mais nada” (Rivoli, sexo
feminino; 17 anos; estudante);
“não
arranjar companhia, eu às vezes posso sair mas os outros não podem e eu então
não saio” (Rivoli; sexo feminino; 27 anos; publicitária);
“não
ter carta de condução e carro, não ter dinheiro, morar longe das pessoas e ter
de me levantar cedo” (Rivoli, sexo masculino; 20 anos; formando de um
curso profissional).
Aos poucos, outras realidades saem da sombra. A aparente
diversidade da oferta de lazer é contrariada por discursos que denunciam uma
ausência de alternativas, homogeneizadas no seu conteúdo substantivo, apesar de
diferentes no “invólucro”. Por vezes, os circuitos nocturnos traduzem “a passagem do idêntico ao idêntico”[880]. Mas daí advém um
outro mito: a noite do Porto está “atrasada” em relação a outros lugares. A
“verdadeira” noite situa‑se algures, em Lisboa ou Espanha:
“em
termos de noite, o Porto deixa um bocado a desejar... há muito pouca coisa, em
especial quando comparado com Lisboa” ( B Flat; sexo feminino; 29
anos; especialista de marchandising);
“acho
a noite muito desinteressante, a noite está muito confusa, as pessoas saem
porque não têm mais que fazer e por isso ao fim de quatro noites já estamos
fartos... há falta de alternativa, é tudo muito igual” (B Flat; sexo masculino; 46
anos; médico)
“acho
que o Porto à noite é muito igual, são sempre as mesmas pessoas, as mesmas
conversas” (Praia da Luz; sexo feminino; 19 anos; estudante);
“o
Porto está cada vez mais igual. Gosto imenso da noite de Lisboa” (Praia da Luz; sexo
feminino; 18 anos; estudante);
“Não
acontece nada... é sempre o mesmo rame‑rame, a mesma situação, divirto‑me
com as mesmas pessoas, a música é sempre a mesma, há falta de oferta, é
horroroso...” (Rivoli; sexo masculino; 24 anos; estudante).
No entanto, noctívagos de fora da cidade enaltecem as
qualidades do burgo:
“o
Porto à noite é muito interessante, por isso é que moro a 40 Km daqui e venho
para cá. É tudo diferente, a vida na nossa terrinha é muito pacata, limita‑se
a ser sempre a mesma coisa, é muito banal” (Praia da Luz; sexo
feminino; 21 anos; estudante).
Há mesmo quem não se incomode com a falta de diversidade:
“o
Porto à noite é muito giro, é igual a todo o lado” (Praia da Luz; sexo
masculino; 24 anos; chefe de cozinha);
“o
Porto à noite é uma cidade muito bonita, menos movimentada do que Lisboa, as
pessoas saem menos do que em Lisboa. O Porto é mais íntimo, mais acolhedor” (Praia da Luz; sexo
feminino; 25 anos; professora).
É certo que as interpretações são ambivalentes. Para ao
arautos da pós‑modernidade, ou mesmo para um defensor da modernidade tardia e radical, como
Giddens, a possibilidade de escolha múltipla é uma realidade contemporânea e o desdobramento de escolhas uma
consequência do acréscimo de reflexividade dos agentes[881]. No entanto, como
outros autores salientam, “se as escolhas
aumentam, os elementos a escolher tornam‑se, eles próprios, idênticos
para todos (...) ao mesmo tempo que os objectos se multiplicam, a
industrialização e a estandardização parecem ganhar muitos domínios e
uniformizar as cidades e a vida quotidiana (...) Por um lado, a gama das
escolhas alarga‑se; por outro, as escolhas propostas parecem irrisórias”[882]. Mas também no domínio das
sociabilidades deparamos com paradoxos. De facto, podemos considerar, seguindo
Giddens, que a busca de autenticidade, supostamente mais presente nas
interacções nocturnas (“Á noite as
pessoas estão mais desinibidas... ficam mais saudáveis...”), é, enquanto
processo de recontextualização, uma reacção à impessoalidade dos sistemas
abstractos onde não há amigos mas sim “conhecidos” ou “colegas”, alguém que nos
é imposto pela participação num determinado cenário de interacção. As práticas
culturais nocturnas seriam um contexto favorável ao processo de busca de
identidade através do auto‑desvendamento dos agentes e da abertura ao
outro. Mas não será esse, precisamente, um requisito de manutenção da “ordem
diurna”? O contraponto necessário à estranheza de um sistema onde “o impessoal submerge cada vez mais o
pessoal”[883]?
Por outro lado, esta procura de autenticidade nas
relações sociais parece contrariar a tese de Simmel segundo a qual a atitude blasé, de reserva e distanciamento
perante os outros habitantes da metrópole é um requisito necessário para a
manutenção de uma esfera de liberdade[884]. As entrevistas
mostram de forma clara uma associação entre a liberdade que a noite confere
(emancipando as pessoas face aos constrangimentos “diurnos”) e a possibilidade de
uma sociabilidade mais íntima e transparente. Claro que a tese de Simmel se
desenvolve tendo em conta uma determinada evolução do subsistema económico
capitalista (o novo papel da técnica, o calculismo, a economia monetária) e ,
nesse aspecto, adequa‑se preferencialmente ao espírito “diurno”.
Em suma, noite e dia, produção e consumo, norma e
transgressão, constrangimento e liberdade, distanciamento e proximidade, eu
individual e eu social devem ser vistos como pólos relacionais, em permanente
tensão. Se a noite e o dia estão indissociavelmente ligados, como irmãos gémeos
de temperamentos diferentes, tal não desemboca na impossibilidade de os
contextos noctívagos propiciarem ocasiões autónomas de produção de sentido,
marcadas por rituais específicos e por uma criatividade mais ou menos
generalizada ou por momentos de autêntica recomposição identitária. Não
podemos, no entanto, caucionar a tese de que a noite exo‑domiciliar é um
palco autónomo, isento de constrangimentos, libertador e irruptivo por excelência.
Lugar de heterogeneidade, ela é um contexto da variedade das práticas citadinas nas microssituações mais diversas”[885]. Talvez o conceito
de heterotopia de Foucault nos forneça algumas pistas ao sugerir a coexistência
justaposta de uma grande multiplicidade de “mundos
possíveis”, por vezes mesmo incongruentes. Mas isso não significa,
necessariamente, mergulhar na visão caótica, tão do agrado de certa pós‑modernidade,
do “hipermercado dos modos de vida”[886], ou, dito de outra
forma, da total desregulação, dispersão e indeterminação dos comportamentos e
valores sociais.
CAPÍTULO XI
DOS PÚBLICOS, DA CULTURA E DAS SUAS PRÁTICAS
1. Caracterização genérica.
1.1. Uma “cultura jovem”?
Uma
das nossas principais preocupações, no tratamento quantitativo da informação
recolhida e seleccionada, consistiu em aplicarmos, sempre que possível, a
panóplia de testes estatísticos disponíveis. Assim o fizemos com grande parte
dos cruzamentos efectuados com a variável idade, como de resto se verifica pelo
quadro XXIII.
Variáveis Correlacionadas |
Grau de Correlação com a Variável Idade |
Práticas Domésticas de Abandono |
0,146** |
Práticas Receptivas Semi‑Públicas |
0,195** |
Cinema – Consagrados Clássicos |
0,355** |
Cinema – Não Consagrados |
‑0,227** |
Música1 |
0,367** |
Música2 |
‑0,374** |
Música3 |
‑1,135** |
Práticas Expressivas Semi‑Públicas |
0,324** |
Práticas Receptivas e Informativas de Públicos Cultivados |
‑0,128** |
Práticas Eruditas Criativas |
0,153** |
Passeexp |
0,133** |
Práticas Associativas Criativas |
0,182** |
Espaço Doméstico |
0,101* |
* Correlação significante para P <0,1
** Correlação significante para P <0,01
Ao
observarmos o Quadro XXIV constatamos
que existe uma acentuadíssima juvenilização na amostra obtida. De facto, 65.1% dos inquiridos não têm mais do
que 30 anos o que vem comprovar análises anteriores sobre práticas culturais,
designadamente quando associam a cultura de saídas a uma forte componente
juvenil.
Quadro XXIV - Estado civil por escalões
etários
|
Escalões Etários |
|||
Estado Civil |
Até 20 N=78 (15,0%) |
21‑30 N=262 (50,3%) |
31‑40 N=89 (17,1%) |
Mais de 40 N=92 (17,7%) |
Casado N=120 (23,0%) |
5,1 |
7,6 |
42,7 |
63,0 |
Solteiro N=361 (69,3%) |
93,6 |
90,1 |
40,4 |
17,4 |
Divorciado N=21 (4,0%) |
|
|
7,9 |
15,2 |
Viúvo N=15 (0,8%) |
|
0,4 |
|
3,3 |
União de Facto N=15 (2,9%) |
1,3 |
1,9 |
9,0 |
1,1 |
Vários
factores podem explicar articuladamente esta situação. Por um lado, os maiores
níveis de escolaridade (como adiante teremos ocasião de comprovar) das gerações
mais novas, fruto de um processo relativamente recente de expansão do sistema
de ensino português. Por outro lado, a maior disponibilidade associada à
condição social juvenil e que encontra suporte em factores como o já referido
prolongamento da escolaridade (associada a uma tendência de progressiva
inclusão escolar de um grande número de jovens, mesmo quando se dissimulam
formas mais subtis de selecção[887]), a entrada cada
vez mais morosa no mercado de trabalho, com a consequente dilatação do chamado
“período de moratória” e o aumento da idade média do casamento, a par de uma
fecundidade mais tardia. Aliás, ao observarmos o mesmo quadro, verificamos que
a esmagadora maioria destes jovens são ainda solteiros. Assim, acumulam
factores de propensão a uma maior disponibilidade cultural preservando
dimensões de autonomia[888], embora estejam
longe da ideia do estereótipo do “viver
gratuito”, que, segundo Enrique Gil Calvo, “é o único viver sério quando se é jovem, implicando uma mescla do
desportivo fair play com o estético
da arte pela arte”[889]. Pelo contrário,
ser‑se jovem na contemporaneidade implica um esforço de constante
adaptação a situações de contornos imprecisos, pouca propícias à formação de
identidades sólidas e em espaços‑tempos precários e provisórios, apesar
dos actuais “rituais de passagem”, pelo seu prolongamento, aprisionarem os
jovens nessa mesma “passagem”[890].
Esta
maior disponibilidade dos jovens traduz‑se em acrescida visibilidade
pública. O próprio tecido social adopta referenciais simbólicos comuns à imagem
dominante de juventude. Como refere Mike Featherstone, “existe de facto alguma evidência de que os estilos e estilos de vida
juvenis estão a galgar a escala etária”[891]. Por outro lado, na
medida em que se verifica uma certa dissociação entre os modos de vida juvenis
e o mundo do trabalho (à já referida dilatação do período de moratória acresce
uma entrada sinuosa, flexível e precária no mercado de trabalho, mesmo nos
segmentos pós‑industriais, ligados aos serviços, manifestando‑se
através de ensaios, rectificações de trajectórias e períodos de experimentação[892]), a esfera de
construção das identidades tende a transferir‑se progressivamente para o
campo simbólico (patente, de forma “explosiva”, nos processos de estetização do
quotidiano e de modelação de estilos de vida). Não se defende, como alguns
teóricos da pós‑modernidade (veja‑se o exemplo de Baudrillard), “que o factor classe surge como questão do
passado” e que as “identidades
relacionadas com a casa e o trabalho são esmagadas por um verdadeiro carrossel
de consumos culturais (desprovido de qualquer componente económica”[893]. Como salienta
Robert G. Hollands, no seguimento desta crítica, “ há uma relação muito íntima entre transformação económica, consumo
cultural e construção e significado social do espaço urbano”[894]. Por outras
palavras, o declínio das formas tradicionais de transição para o trabalho (como
refere Hollands, os “ritos de passagem” tendem a ser cada vez mais prolongados)
abre caminho a que a esfera do consumo e a vivência urbana surjam como espaços
alternativos de recomposição identitária.
Ao
procurarmos analisar a relação entre a idade e uma série de práticas culturais,
verificamos, desde logo (Quadro XXV),
que, ao contrário do que se poderia esperar, são os mais jovens (no escalão até
aos 20 anos) quem mais adere às práticas domésticas de abandono[895]. De facto, seria
razoável prever que, com o avançar da idade, crescesse a propensão para uma
certa desvitalização das práticas culturais. Aliás, vários estudos têm
demonstrado a existência de um envelhecimento cultural extremamente precoce,
intimamente ligado à entrada estável na vida activa. Por outro lado, a nossa
amostra, como de resto já adiantámos, é muito pouco envelhecida.
Quadro XXV - Frequência das práticas domésticas de abandono por
escalões etários
|
Escalões Etários |
|||
Práticas Domésticas de Abandono |
Até 20 N=74 (15,7%) |
21‑30 N=243 (51,7%) |
31‑40 N=79 (16,8%) |
Mais de 40 N=74 (15,7%) |
Frequentemente N=33 (7,0%) |
14,9 |
5,8 |
6,3 |
4,1 |
Com Alguma Frequência N=113 (24,0%) |
29,7 |
25,9 |
19,0 |
17,6 |
Raramente/Nunca N=324 (68,9%) |
55,4 |
68,3 |
74,7 |
78,4 |
Mesmo o
escalão de “mais de 40 anos” contempla essencialmente adultos e não idosos.
Além do mais, a idade não pode ser considerada, como adiante veremos,
independentemente de outras variáveis, como o volume e a estrutura do capital
escolar e a trajectória social. Daí resultam, aliás, as nossas dúvidas sobre a
pertinência heurística de uma auto e heterodenominada “cultura jovem”,
designadamente no que se refere à “ilusão de homogeneidade” que fomenta[896]. Os elementos mais
idosos da nossa amostra são, precisamente, os que menos aderem às práticas de
abandono. Estaremos em presença de um grupo de “activistas culturais” que, pela
própria circunstância da sua idade ser mais avançada, acumularam experiências e
reforçaram predisposições inculcadas, resistindo, por isso, a movimentos de
anomia cultural?
Não
pretendemos, no entanto, negar a existência de uma “tipicidade juvenil”[897]. Ela manifesta‑se,
por exemplo, no significado atribuído a “não fazer nada” (Anexo V/Quadro I. Repare‑se como os inquiridos com idade até
20 anos são os que mais aderem a esta prática). Esta expressão condensa modos
de ocupação quotidiana dos tempos livres de difícil definição categorial
(condicionada pelo código do investigador), mas facilmente identificáveis pelos
praticantes juvenis. “Não fazer nada” é, muitas vezes, deambular sem destino no
espaço doméstico, estar provisoriamente desocupado em termos de uma actividade
socialmente reconhecida (como estudar ou ajudar nas tarefas domésticas) ou
simplesmente conversar com familiares ou amigos sem tema fixo ou
predeterminado. Como refere expressivamente E. Gil Calvo, “os jovens são multimilionários em tempo, se é verdade, como se diz,
que o tempo vale ouro”[898], embora seja
fundamental avaliar da qualidade desse tempo (no caso dos desempregados pode
equivaler a um tempo livre forçado) e da sua distribuição pelas distintas
condições juvenis. O mesmo autor acrescenta que, por conseguinte, aos jovens
interessa encontrar “uma espécie de
máquina do tempo (…) que sirva para conseguir que o tempo passe, que o tempo
corra, que o tempo voe (…): uma máquina do tempo que o mate”[899]. No entanto, ao
contrário do autor, pensamos que as culturas juvenis, na sua diversidade, (re)
inventam formas de passar o tempo, não
interessando apenas aos jovens que a sua vida passe a correr, mesmo
tratando‑se, para muitos, de uma interminável “sala de espera”.
De
qualquer forma importa salientar que, apesar das diferenças detectadas, é
reduzido o peso relativo dos que frequentemente aderem às práticas domésticas
de abandono, sendo pelo contrário sempre elevado o valor dos que raramente ou
nunca as exercitam.
Se
atentarmos agora nas práticas receptivas semi‑públicas (referentes à ida
ao cinema — Quadro XXVI) notamos que
o escalão dos 21 aos 30 anos é o mais aderente, logo seguido pelo grupo dos 31
aos 40 anos.
Quadro XXVI - Frequência de práticas receptivas semi-públicas por
escalões etários
|
Escalões Etários |
|||
Práticas Receptivas Semi‑Públicas |
Até 20 N=76 (15,1%) |
21‑30 N=252 (50,2%) |
31‑40 N=88 (15,5%) |
Mais de 40 N=86 (17,1%) |
Frequentemente N=259 (51,6%) |
44,7 |
63,5 |
52,3 |
33,7 |
Com Alguma Frequência N=159 (31,7%) |
40,8 |
28,6 |
30,7 |
33,7 |
Raramente/Nunca N=74 (14,7%) |
14,5 |
7,9 |
17,0 |
32,6 |
Nos
extremos etários situam‑se os que menos as praticam, em particular os
mais idosos. Não podemos deixar de associar à frequência cinéfila a necessidade
de uma certa disponibilidade financeira, que penalizará os mais jovens. Mas,
simultaneamente, importa enquadrar o cinema no âmbito de um paradigma cultural
do som e da imagem (culto do audiovisual e da “imagem”), propício a uma postura
juvenil de maior distanciamento face às formas tradicionais da cultura
cultivada “clássica” e de maior renovação e actualização do capital
informacional.
Repare‑se
no Quadro XXVII. Quando questionados,
em concreto, sobre o seu grau de identificação face a determinados filmes
(indicador que revela a estrutura “moderna” ou “clássica” do seu capital
informacional e cultural — como refere Olivier Donnat a identificação e o
conhecimento revelam quase sempre uma orientação cultural, de gosto[900] —, bem como a sua
preferência por modelos mais ou menos consagrados do subcampo artístico em
questão) nota‑se uma muito menor identificação em relação aos consagrados
clássicos por parte do escalão mais jovem (não havendo mesmo um único inquirido
com um alto grau de identificação), enquanto que, a partir dos 31 anos, essa
identificação aumenta significativamente, com o pólo médio/alto grau de
identificação a superar, embora por uma diferença escassa, o pólo grau de
identificação nulo/baixo.
Quadro
XXVII - Grau de identificação com filmes "consagrados clássicos" por
escalões etários
|
Escalões Etários |
|||
Cinema – Consagrados Clássicos |
Até 20 N=52 (19,0%) |
21‑30 N=144 (52,6%) |
31‑40 N=41 (15,0%) |
Mais de 40 N=37 (13,5%) |
Nulo Grau de Identificação N=49 (17,9%) |
34,6 |
18,8 |
7,3 |
2,7 |
Baixo Grau de Identificação N=93 (33,9%) |
46,2 |
34,7 |
26,8 |
21,6 |
Médio Grau de Identificação N=40 (14,6%) |
19,2 |
35,4 |
36,6 |
32,4 |
Alto Grau de Identificação N=40 (14,6%) |
|
11,1 |
29,3 |
32,4 |
Olivier
Donnat chegou a constatações idênticas ao estudar as práticas culturais dos
franceses. Com efeito, verificou‑se que os posicionamentos próximos de um
pólo contestatário no eixo provocação/conformismo associavam os jovens a uma
preferência pelos artistas e géneros fora do sistema de consagração, rejeitando
os valores “clássicos e patrimoniais”, próprios de um cânone oficial e por
vezes escolar. Desta forma, tal orientação dependia mais da idade do que do
nível de escolaridade, o que nos poderá remeter para uma eventual “pertença
geracional”. O “classicismo”, pelo contrário, tende a aumentar com a idade,
entrando no domínio da memória e da acumulação de referências convencionais e
consagradas. Na mesma linha podemos compreender a nítida preferência do escalão
mais jovem pelos filmes não consagrados (Quadro
XXVIII) e a elevada ausência de identificação dos mais velhos (grupo dos
inquiridos com mais de 40 anos), onde apenas 4.3% exprime, face aos mesmos, um grau médio de identificação, não
havendo um único inquirido a sentir‑se muito identificado. Aliás, muitos
dos filmes não consagrados alcançaram notáveis sucessos de bilheteira,
alcançando legitimidade na esfera “comercial” própria das indústrias culturais,
mas causando repulsa nas instâncias de consagração do campo artístico.
Quadro
XXVIII - Grau de identificação com filmes "não consagrados" por
escalões etários
|
Escalões Etários |
|||
Cinema – Não Consagrados |
Até 20 N=52 (19,0%) |
21‑30 N=144 (52,6%) |
31‑40 N=41 (15,0%) |
Mais de 40 N=37 (13,5%) |
Nulo Grau de Identificação N=66 (24,1%) |
15,4 |
25,7 |
31,7 |
21,6 |
Baixo Grau de Identificação N=136 (49,6%) |
26,9 |
52,8 |
51,2 |
67,6 |
Médio Grau de Identificação N=45 (16,4%) |
32,7 |
13,2 |
12,2 |
10,8 |
Alto Grau de Identificação N=27 (9,9%) |
25,0 |
8,3 |
4,9 |
|
Resta
saber se esta atitude de maior abertura ao pólo não consagrado por parte dos
jovens radica numa maior permeabilidade à economia/cultura mediático‑publicitária
ou advém, pelo contrário (ou em simultâneo) de um ecletismo baseado na busca da
actualização e diversificação cultural e das referências modernas, exprimindo,
por isso, um mais elevado capital informacional. Neste caso, a sua postura
teria menos a ver “com a ignorância ou
com a existência de resistências face à cultura consagrada e mais com uma real
competência moderna”[901]. De qualquer modo
importa não perder de vista que o pólo constituído por um médio e alto grau de
identificação é claramente minoritário em todos os grupos etários, embora com
muito maior incidência na categoria mais jovem. Tal constatação leva‑nos
a tirar ilações sobre a estrutura do gosto dominante da amostra em análise,
designadamente no que se refere aos seus critérios selectivos que a levam a
rejeitar maioritariamente os filmes que fogem aos cânones da consagração.
Ao nível
da música passa‑se algo que ajuda a reforçar a ideia de uma
especificidade geracional. Repare‑se nos quadros que cruzam idade e grau
de identificação face aos nomes incluídos nas categorias dos “consagrados
clássicos” (Quadro XXIX) e dos
“consagrados modernos” (Quadro XXX).
No primeiro caso nota‑se uma maior identificação por parte dos inquiridos
com idade entre os 31 e mais de 40 anos e um claro afastamento dos que têm
idade inferior aos 21 anos (os adolescentes). No segundo caso, o perfil
clássico começa a ser predominante (com uma rejeição maioritária dos
“consagrados modernos”) a partir dos 31 anos e, de forma expressiva, nos
inquiridos com mais de 40 anos (o afastamento verificado por parte dos
adolescentes — 52.6% revelam um
“baixo grau de identificação” — pode aqui ser explicado, uma vez mais, pela
insuficiente acumulação de “competências modernas”, na medida em que o seu “período formativo”, para utilizar um
conceito de Inglehart, ainda não terminou).
Quadro
XXIX - Grau de identificação com compositores "consagrados clássicos"
por escalões etários
|
Escalões Etários |
|||
Música – Consagrados Clássicos |
Até 20 N=57 (14,9%) |
21‑30 N=187 (48,8%) |
31‑40 N=67 (17,5%) |
Mais de 40 N=72 (18,8%) |
Nulo Grau de Identificação N=52 (13,6%) |
22,8 |
17,6 |
6,0 |
2,8 |
Baixo Grau de Identificação N=154 (40,2%) |
43,9 |
43,3 |
47,8 |
22,2 |
Médio Grau de Identificação N=81 (21,1%) |
14,0 |
23,0 |
25,4 |
18,1 |
Alto Grau de Identificação N=96 (25,1%) |
19,3 |
16,0 |
20,9 |
56,9 |
Não se trata, como provou Donnat, de um
simples efeito “natural” de atracção dos jovens e dos adultos pelas referências
etariamente próximas (identificarem‑se com nomes de idade semelhante)[902].
Quadro XXX - Grau de
identificação com compositores "consagrados modernos" por escalões
etários
|
Escalões Etários |
|||
Música – Consagrados Modernos |
Até 20 N=57 (14,9%) |
21‑30 N=187 (48,8%) |
31‑40 N=67 (17,5%) |
Mais de 40 N=72 (18,8%) |
Nulo Grau de Identificação N=40 (10,4%) |
10,5 |
5,9 |
6,0 |
26,4 |
Baixo Grau de Identificação N=237 (61,9%) |
59,6 |
55,6 |
73,1 |
69,4 |
Médio Grau de Identificação N=76 (19,8%) |
17,5 |
26,2 |
20,9 |
4,2 |
Alto Grau de Identificação N=30 (7,6%) |
12,3 |
12,3 |
|
|
Não nos
parece, também, que existam clivagens devido a diferenças assinaláveis de
capital cultural e escolar (como veremos mais adiante, a amostra é relativamente
homogénea nesse ponto), que se notariam preferencialmente, aliás, no eixo da
consagração, onde tal não se verifica (atente‑se no Quadro XXXI onde se constata que o distanciamento face aos não
consagrados é esmagador entre todos os grupos etários).
Quadro XXXI - Grau de identificação com compositores "não
consagrados"
|
Escalões Etários |
|||
Música – Não Consagrados |
Até 20 N=57 (14,9%) |
21‑30 N=187 (48,8%) |
31‑40 N=67 (17,5%) |
Mais de 40 N=72 (18,8%) |
Nulo Grau de Identificação N=175 (45,7%) |
33,3 |
46,5 |
41,8 |
56,9 |
Baixo Grau de Identificação N=185 (48,3%) |
57,9 |
46,5 |
53,7 |
40,3 |
Médio Grau de Identificação N=76 (5,7%) |
8,8 |
6,4 |
4,5 |
2,8 |
Alto Grau de Identificação N=30 (0,3%) |
|
0,5 |
|
|
Existe,
em consequência, um certo “comportamento geracional”, também encontrado por
Donnat na sua análise às práticas culturais dos franceses e que se traduz por
um forte distanciamento dos mais jovens (em especial dos adolescentes) face à
cultura consagrada clássica. Donnat questiona‑se: “como explicar que os adolescentes de hoje, que são mais escolarizados
que os seus antepassados e mais próximos das aprendizagens escolares, estejam
assim em recuo mesmo em relação aos seus predecessores imediatos?”. Dito
por outras palavras, como explicar que os adolescentes actuais, mais
escolarizados que os seus progenitores, se sintam tão pouco identificados com a
cultura escolar? A resposta pode encontrar‑se, em boa parte, na própria
cultura escolar e nos contextos da sua prática pedagógica (distanciamento face
à pluralidade e complexidade dos quotidianos estudantis[903]; “mal estar
docente” e dificuldade no estabelecimento de condições mínimas de comunicação
pedagógica[904]). Mas também nos
processos de socialização familiar que, muitas vezes, devido à pouca
experiência de escolarização dos progenitores, propiciam efeitos de autêntica
regressão cultural ou, pelo menos, de insuficiente consolidação dos
ensinamentos escolares. Ou ainda, face ao fracasso da escola e dos tradicionais
agentes que asseguravam a transmissão/reprodução da cultura consagrada, a uma
maior permeabilidade em relação às instâncias d a “economia mediático‑publicitária” que, de uma forma mais ou
menos intensa, tem vindo a modificar o “conjunto
dos procedimentos de reconhecimento e de legitimação” do campo artístico tradicional,
ameaçado na sua “pureza” (enquanto distanciamento face à mercantilização e à
economia) e autonomia[905]. Desta forma, e
mediante a poderosa aliança entre mass
media, publicidade e indústrias culturais, criam‑se as condições para
a emergência de formas alternativas de consagração e distinção, intimamente
ligadas à superestrutura “juvenil”, mediante a difusão de valores “que globalmente são os do universo cultural
dos jovens (hedonismo, anticonformismo, velocidade, convivialidade, gosto do
risco…)”[906]. Laura Bovone
associa a ascensão da economia mediático‑publicitária (ou da “moda audiovisual”, nas palavras de H.
Gil Calvo) à emergência de uma nova classe de intermediários culturais, cuja
centralidade se deve, em boa parte, ao seu papel determinante na “cadeia criação‑manipulação‑transmissão
de bens com elevado conteúdo de informação, cujo valor simbólico é
preponderante”[907]; representantes
privilegiados da hibridez e ecletismo pós‑modernos, com reflexos
poderosos na formação dos gostos das novas gerações, embora longe de um modelo
simplista de manipulação.
No
entanto, se analisarmos a frequência com que os inquiridos ouvem música (Anexo V/Quadro II), torna‑se
difícil estabelecer clivagens. De facto, existe uma massiva adesão trans‑etária
a esta prática, facto que estará certamente relacionado com o forte peso dos
espectáculos musicais no conjunto da programação cultural dos três espaços em
estudo. Por isso, a diferenciação estabelece‑se de formas mais subtis,
pelo eixo “clássico/moderno”, ou pela identificação preferencial com certos
géneros ou subgéneros.
Ao
atentarmos, agora, no quadro XXXII,
verificamos que são os inquiridos com idade até aos 20 anos quem mais se
identifica com a esfera das práticas expressivas semi‑públicas[908]. Se no caso das
idas ao café, cervejaria e pastelaria poderemos estar em presença de
investimentos relacionais no quadro de práticas de sociabilidade local que de
certa forma prolongam o espaço residencial encarado no seu sentido mais amplo,
já as idas a restaurantes, bares e discotecas[909] remetem‑nos
para a crescente centralidade das funções de consumo que a cidade desempenha,
quer estejam ou não associadas a processos de reestruturação urbana do tipo gentrificação. Neste último caso, em
particular, desenvolve‑se toda uma “cultura de saídas” que requer rituais
e formas de apresentação em cena adequados, fomentando‑se uma série de
espaços socializadores que tendem a escapar à lógica e controle domiciliar e
familiar e estimulando‑se a consolidação de estilos de vida relativamente
plásticos e autónomos, embora não isentos de constrangimentos sociais, como
julga encantatoriamente o pós‑modernismo mais ingénuo[910].
Quadro
XXXII - Frequência de práticas expressivas semi-públicas por escalões etários
|
Escalões Etários |
|||
Práticas Expressivas Semi‑Públicas |
Até 20 N=72 (15,2%) |
21‑30 N=243 (51,4%) |
31‑40 N=79 (16,7%) |
Mais de 40 N=79 (16,7%) |
Frequentemente N=41 (8,7%) |
15,3 |
9,5 |
7,6 |
1,3 |
Com Alguma Frequência N=314 (66,4%) |
66,7 |
72,8 |
62,0 |
50,6 |
Raramente/Nunca N=118 (24,9%) |
18,1 |
17,7 |
30,4 |
48,1 |
Os
grupos etários mais idosos, em particular os que são detentores de elevados
capitais escolares, tenderão a dirigir a sua “cultura de saídas”
preferencialmente para “templos” da cultura erudita, ou, de uma forma geral,
para o espaço semi‑público sobrelegitimado (salas de concertos, de
teatro, de exposições, etc.), o que não significa que as actividades aí
incluídas não atraiam também contigentes de jovens relativamente elevados (sem
perder de vista que falamos nestes casos de públicos extremamente exíguos ou
mesmo de “clientelas”, como propõe Idalina Conde em relação à ópera[911]).
Aliás,
ao observarmos o quadro XXXIII,
respeitante ao cruzamento entre a idade dos inquiridos e o grau de frequência
de práticas receptivas e informativas de públicos cultivados reparamos que,
para todos os grupos etários, apenas uma escassa minoria (à volta dos 9%) é público assíduo de actividades
como ir ao teatro; ir a concertos de música clássica ou visitar museus e
exposições. De qualquer forma, os inquiridos com idade até aos 20 anos são os
que mais raramente ou mesmo nunca frequentam estas práticas.
Quadro
XXXIII - Frequência de práticas receptivas e informativas de públicos
cultivados por escalões etários
|
Escalões Etários |
|||
Práticas Receptivas e Informativas de Públicos Cultivados |
Até 20 N=75 (15,4%) |
21‑30 N=242 (49,6%) |
31‑40 N=84 (17,2%) |
Mais de 40 N=87 (17,8%) |
Frequentemente N=46 (9,4%) |
9,3 |
9,5 |
9,5 |
9,2 |
Com Alguma Frequência N=183 (37,5%) |
36,0 |
39,7 |
31,0 |
39,1 |
Raramente/Nunca N=259 (53,1%) |
54,7 |
50,8 |
59,5 |
51,7 |
Uma vez
mais a necessidade de acumular um volume mínimo de capital informacional (com
tudo o que isso significa de incorporação de capital cultural — embora a
relação não nos pareça automática — e de familiarização com códigos artísticos
marcados por um acentuado desvio em relação às linguagens quotidianas) favorece
idades mais avançadas, embora não seja necessário galgar a pirâmide etária. Com
efeito, o grupo etário em que o pólo “frequentemente/com alguma frequência”
adquire valores superiores é dos inquiridos com idade compreendida entre os 21
e os 30 anos. O que mostra que não existe, antes pelo contrário, rarefacção
relativa de jovens na esfera erudita mas sim um limiar mínimo de recrutamento
que tende a afastar os públicos propriamente adolescentes (reflecte‑se,
de novo, o facto de não estar ainda completo o seu “período formativo”).
No
entanto, esse afastamento já não se verifica quando se trata de práticas
criativas eruditas (Quadro XXXIV)[912].
Quadro XXXIV - Frequência de práticas eruditas criativas por escalões
etários
|
Escalões Etários |
|||
Práticas Eruditas Criativas |
Até 20 N=74 (15,0%) |
21‑30 N=249 (50,5%) |
31‑40 N=84 (17,0%) |
Mais de 40 N=86 (17,4%) |
Frequentemente N=31 (6,3%) |
10,8 |
6,0 |
4,8 |
4,7 |
Com Alguma Frequência N=106 (21,5%) |
32,4 |
22,5 |
16,7 |
14,0 |
Raramente/Nunca N=356 (72,2%) |
56,8 |
71,5 |
78,6 |
81,4 |
Note‑se
que, para jovens oriundos de camadas sociais favorecidas, o exercício criativo
pode funcionar como forma ultrafamiliar de confirmação e concretização da
incorporação dos códigos estéticos mais exigentes. Para outros, eventualmente
desmunidos à partida desses recursos, a criação (com a aprendizagem que requer
e os repertórios e redes de sociabilidade que lhe estão associados) contribui
como canal socializador alternativo, treino de novas competências que poderão
servir como utensílio de mobilidade social. Não deixa de ser significativo, no
entanto, que o “envelhecimento cultural” se revele mais precoce nas práticas
criativas do que nas informativas e receptivas, as primeiras exigindo uma intervenção
activa do emissor/receptor, transformado em produtor. Provavelmente estas
estarão igualmente ligadas a formas de expressão e consolidação das identidades
em formação. Atente‑se em dois exemplos ilustrativos das diferenças entre
práticas criativas e receptivas situadas na esfera erudita (Anexo V/Quadros V e VI). No que se
refere à prática de escrita literária, a sua frequência, sendo globalmente
reduzida, decresce com a idade (o mesmo acontecendo com as artes plásticas).
Pelo contrário, a ida a museus (símbolos precisamente, da acumulação
patrimonial e da memória social), embora mais generalizada, aumenta com a
idade.
Analisando agora a adesão etária às práticas
associativas, quer de cariz expressivo (Quadro
XXV)[913], quer de cariz
criativo (Quadro XXXVI)[914], podemos constatar,
desde logo, um massivo afastamento por parte de todos os grupos. Tal poderá
explicar‑se pela tendência, verificada em múltiplos estudos, de acentuado
desinteresse face à participação na acção colectivamente organizada, com tudo o
que ela representa de regulação institucional, de escalonamento de prioridades
e objectivos, de equacionamento de meios e recursos, de diagnóstico de fins a
atingir. Aliás, é frequente defender‑se que a participação juvenil se
verifica em contextos informais, de forte componente convivial.
Quadro XXXV - Frequência de práticas associativas expressivas por
escalões etários
|
Escalões Etários |
|||
Práticas Associativas Expressivas |
Até 20 N=74 (15,3%) |
21‑30 N=244 (50,3%) |
31‑40 N=84 (17,3%) |
Mais de 40 N=83 (17,1%) |
Frequentemente N=12 (2,5%) |
2,7 |
2,5 |
2,4 |
2,4 |
Com Alguma Frequência N=62 (12,8%) |
20,3 |
14,3 |
6,0 |
8,4 |
Raramente/Nunca N=411 (84,7%) |
77,0 |
83,2 |
91,7 |
89,2 |
Henrique
Gil Calvo considera mesmo que a chave para a compreensão das condutas juvenis
não se encontra nos “canais de regulação
primários” (partidos políticos, aparelhos ideológicos diversos, com
especial destaque para a escola, família), onde se concentram os principais
grupos de pertença, mas sim nas modalidades de organização informal, assente
numa rede de grupos de iguais (“rede de
companheirismo, amizade e ajuda mútua”[915]) onde
frequentemente se constrói uma nova definição da realidade (baseada amiúde em
grupos de referência), capaz de gerar uma ordem normativa extraoficial. Desta
forma, falhando em conseguir adesão e eficácia, os agentes de socialização
formais não logram funcionar enquanto meios de transmissão de informação e de
preparação cultural. No que diz respeito ao movimento associativo identificaram‑se
ainda como obstáculos à participação juvenil a excessiva burocratização, a
monotonia da oferta cultural, relações intrassociativas de cariz vertical e
excessivamente hierarquizadas (contribuindo para afastar dirigentes e
associados) e uma falta de articulação entre objectivos pessoais e objectivos
associativos[916].
Quadro XXXVI - Frequência de práticas associativas criativas por
escalões etários
|
Escalões Etários |
|||
Práticas Associativas Criativas |
Até 20 N=75 (15,4%) |
21‑30 N=245 (50,2%) |
31‑40 N=85 (17,4%) |
Mais de 40 N=83 (17,0%) |
Frequentemente N=12 (2,5%) |
6,7 |
2,0 |
2,4 |
|
Com Alguma Frequência N=45 (9,2%) |
20,0 |
9,8 |
3,5 |
3,6 |
Raramente/Nunca N=431 (88,3%) |
73,3 |
88,2 |
94,1 |
96,4 |
Assim, e
tendo em conta a persistente valorização por parte dos jovens de dimensões
normativas ligadas à possibilidade de autorealização e a dominância de um
individualismo de tipo relacional, não admira que o afastamento face ao espaço
associativo seja tão expressivo[917]. Podemos ainda
enquadrar estes dados numa tendência mais vasta. Inglehart, por exemplo, tem
vindo a defender, com fundamento numa impressionante base de informação
empírica, que nas sociedades dotadas de uma relativa prosperidade ou sujeitas a
períodos relativamente longos de crescimento económico, existe, desde há algum
tempo (nos países mais desenvolvidos desde a primeira geração pós segunda
grande guerra) uma nítida preferência pelos valores pós‑materialistas,
distintivos, entre outras dimensões, pela prioridade concedida à “maximização do bem‑estar subjectivo”
em detrimento do crescimento económico, ou ainda pela erosão dos centros
tradicionais de autoridade (religião, estado) devido a uma valorização
acentuada do indivíduo e da sua necessidade de auto‑expressão[918]. Esta constelação
de valores assenta, entre outros, na defesa da realização pessoal, da satisfação
no trabalho, das preocupações ambientais, na tolerância face à diversidade de
orientações normativas, na valorização da livre escolha, do lazer, da saúde e
das redes de sociabilidade, num claro recentramento em torno de um
individualismo fortemente aglutinador. Torna‑se pouco propícia, por isso,
a uma participação em organizações que se caracterizam por altos níveis de
burocracia e centralização de iniciativa. Por outro lado, a vertente hedonista
deste individualismo coaduna‑se mal com tudo o que implique uma cedência
do espaço pessoal de manobra, mesmo que em nome de interesses colectivos.
De
qualquer modo, apesar da falta de identificação com o espaço semi‑público
organizado alcançar níveis extremamente elevados, convém salientar que o grupo
etário dos inquiridos que têm até vinte anos revela uma maior adesão ao espaço
associativo, em particular no que se refere às práticas criativas (fazer teatro
amador, tocar ou dançar, etc.). Para além dessa tendência ser compatível, como
já referimos, com um processo de construção de identidade e com a necessidade
de expressão/consolidação de traços emergentes de personalidade, existe uma
ligação à fortíssima componente musical da categoria em questão. A música, não
o esqueçamos, constitui uma das vertentes fundamentais de suporte e difusão das
culturas juvenis, em especial enquanto veículo privilegiado de constituição de
redes de sociabilidade e convívio intimamente associadas à organização informal
dos seus quotidianos. Henrique Gil Calvo apresenta uma concepção algo
maquiavélica da função da música (e em geral do que ele apelida de “moda audiovisual”[919]) na estruturação
das culturas juvenis, ao considerar que o seu principal objectivo é informar
cada jovem das modificações ocorridas nas condutas dos demais, de acordo com a
sua posição na estrutura social e com o ritmo global de mudança. Por outras
palavras, em universos crescentemente competitivos, marcados por conjunturas
demográficas e económicas desfavoráveis (pautadas pela escassez de postos de
trabalho, por comparação com o contigente de pretendentes), torna‑se
imprescindível para os jovens saberem em tempo útil e a baixo custo, quais os exogrupos (grupos de referência ou
grupos de iguais, por oposição aos
endogrupos, grupos de pertença — família, por exemplo) que melhor defendem
os seus interesses, num clima de veloz mudança social. Ou seja, para
ultrapassar os outros na fila de espera que caracteriza a sua condição social,
os jovens mergulham numa pluralidade de modas (em que a música aparece como o
campo mais paradigmático com a proliferação de combinações de géneros e
subgéneros) que fornecem preciosas informações sobre aquilo que os divide (e
não sobre o que os une, como acontece em conjunturas demográfico‑económicas
favoráveis): “assim, mediante a atenção
prestada à moda audiovisual, cada jovem fica perfeitamente informado, e a baixo
custo, de qual é a subdivisão social ocupada por todos e cada um dos demais
jovens competidores, dentro do repertório de subdivisões estabelecido pela
divisão social dos jovens”[920]. Esse seria, aliás,
o único interesse desta categoria social — adiantar‑se face aos
concorrentes na “interminável” fila de espera da sua condição: “se não os podes vencer, luta: estabelece
com eles uma corrida de velocidade de imitação em que vence quem correr mais
depressa no seguimento da moda audiovisual. Marca a moda quem se adianta em
imitar os demais antes que os demais: superando em rapidez de imitação os
próprios exemplos do modelo a imitar. Círculo vicioso que é o imperativo
categórico do depredador audiovisual”[921]. Claro que esta
visão nos parece simplista e unidimensional. Se é verdade que a intensa adesão
juvenil a uma cultura da imagem e do som se liga a uma necessidade de rápida
actualização de conhecimentos num contexto axiológico extremamente mutável; se
nos surge como igualmente viável a hipótese de alguma associação dessa cultura
aos fenómenos da moda e da diversidade/competição intergrupal, todavia a
questão tem de ser encarada pelo outro lado da moeda: tais fenómenos
representam, igualmente, tentativas de auto‑expressão criativa e os seus
conteúdos funcionam como uma narrativa que os jovens contam a si próprios, a
respeito de si mesmos. Dito por outras palavras, a música e toda a cultura da
imagem e do som constituem veículos privilegiados de suporte, difusão e
construção das identidades juvenis, num tempo em que o padrão de uma cultura
unificada cede lugar a práticas difusas, descontextualizadoras e fragmentadoras
dos seus significados tradicionais (o discursivo, por exemplo, é vertiginosamente
substituído pelo figurativo — imagens), o que confere importância acrescida a
todos os processos de apresentação de uma imagem de si (roupas, adornos,
posturas corporais, etc.) como âncora de identificação e, simultaneamente, de
diferenciação estilística e cultural[922].
Uma
última nota para realçar que não existe na nossa amostra um comportamento
distintivo dos grupos etários mais jovens face a um indicador crucial de adesão
à cultura audiovisual como é o caso da frequência com que se vê televisão (Anexo V/Quadro VII). No entanto, por
comparação com inquéritos nacionais, verifica‑se uma menor adesão dos
jovens da amostra face a essa prática[923]. Estarão outras
variáveis, que não a idade, relacionadas com este comportamento? Não deixa de
ser curioso verificar a frequência com que se vêem filmes vídeo em casa. Ela
alcança níveis superiores precisamente junto dos mais jovens. Apresentar‑se‑á
esta prática, ligada à possibilidade de escolha, como um substituto parcial da
recepção televisiva, mais passiva? Voltaremos a este aspecto quando
relacionarmos um conjunto de práticas culturais com o capital escolar dos
inquiridos.
Podemos então falar, em síntese, da existência de uma “cultura jovem”?
A
resposta é sim e não. Sim, se a entendermos enquanto uma especificidade geracional
(a tal “tipicidade juvenil” de que fala Machado Pais e que apressadamente
rejeitamos, como já referimos, em trabalhos anteriores), baseada na comparação
de um mínimo denominador comum face às demais gerações, produzido sócio‑culturalmente
pela exposição a um mesmo período histórico, um “pano de fundo” que cobre
processos de socialização necessariamente distintos consoante a classe social,
o sexo, o contexto residencial, a etnia, etc. Neste âmbito, podemos falar,
entre outras dimensões, de um afastamento face aos padrões clássicos de cultura
e às vias tradicionais de consagração e legitimação, maxime a escola. Assim, os jovens tendem a explorar e a investir em
vias alternativas de legitimação cultural, em particular as que se enquadram na
“economia mediático‑publicitária”.
Serão por isso mais visíveis as disposições inculcadas que vão no sentido de
uma valorização da apresentação estilística e do consumo cultural urbano, com
especial ênfase nos espaços‑tempos de lazer (F. Godard fala mesmo da
criação de um “mercado cultural da
juventude”[924]) e nas práticas
conviviais. Inglehart também salienta a existência de significativas diferenças
intergeracionais em sociedades sujeitas a períodos relativamente longos de
crescimento económico, como é o caso de Portugal, o que reforça a tendência
para que o período formativo dos mais novos tenha ocorrido em situação de
segurança económica[925] propiciando a
identificação com valores pós‑materialistas que favorecem um
recentramento na esfera do simbólico (auto‑expressão, gratificação
individual, qualidade de vida como prioridade, participação, bem‑estar
subjectivo, etc.).
A nossa amostra mostra, aliás, uma maior
adesão dos inquiridos com idade compreendida entre os 21 e os 40 anos (jovens e
jovens adultos) ao espaço semi‑público. No entanto, não se pode afirmar
que os inquiridos mais velhos assumam uma lógica clara de desinvestimento neste
espaço. Aliás, ao contrário do que se poderia pensar, o escalão etário dos
inquiridos com idade superior a 40 anos é o que menos adere ao espaço doméstico
(Quadro XXXVII). O que nos alerta
para o facto de, na nossa amostra, as clivagens com base na idade não serem
muito significativas (veja‑se o caso da generalizada falta de
identificação com o espaço associativo). Eventualmente os inquiridos mais
idosos que a constituem estão longe de serem representativos do comportamento
médio da sua faixa etária. Outras variáveis interferirão na sua resistência
diferencial ao “envelhecimento cultural”. O que nos remete para o outro lado da
pergunta inicial.
Quadro XXXVII - Frequência do espaço doméstico por escalões etários
|
Escalões Etários |
|||
Espaço Doméstico |
Até 20 N=67 (17,0%) |
21‑30 N=202 (51,1%) |
31‑40 N=64 (16,2%) |
Mais de 40 N=62 (15,7%) |
Frequentemente N=18 (4,6%) |
6,0 |
4,0 |
6,3 |
3,2 |
Com Alguma Frequência N=264 (66,8%) |
70,1 |
66,8 |
68,8 |
61,3 |
Raramente/Nunca N=113 (28,6%) |
23,9 |
29,2 |
25,0 |
35,5 |
De
facto, não existe uma “cultura jovem” se considerarmos que apenas certos
segmentos da categoria social “juventude” adoptam comportamentos e atitudes como
os anteriormente descritos. Da mesma forma, essa especificidade dilui‑se
se estiver presente em determinados estratos de outras gerações ou grupos
etários. Como refere Featherstone, citando um colunista de uma revista juvenil,
“ninguém é doravante um adolescente se
toda a gente o é”[926]. Ou, como
acrescenta o mesmo autor, importa, para além de tentar analisar os conteúdos da
mudança cultural (em direcção ao que muitos apelidam de “cultura pós‑moderna”),
saber onde essa cultura surge e que grupos sociais a protagonizam. Até
que ponto a adesão às imagens e à imagem como apresentação de si, à identidade
descentrada e ao individualismo relacional (e também narcísico) eliminou
hierarquias e estruturas simbólicas tradicionais, generalizando e
democratizando códigos outrora restritos e apanágio de grupos dominantes. Urge,
por isso, conhecer o habitus desses
grupos juvenis que, de forma mais visível, parecem representar toda uma
geração, funcionando mesmo como espelho, muitas vezes, de uma sociedade inteira[927].
2. Género: o fim do “duplo
padrão” de comportamento?
Anthony
Giddens coloca a reflexividade feminina no centro daquilo que apelida de “política da vida”[928], um programa que
coloca no centro das orientações normativas a procura quase obsessiva da auto‑identidade
e a concretização das “decisões da vida”[929]. Assim, a mulher
liberta‑se não só das obrigações familiares e da “mística feminina” como
se recusa a seguir, na esfera profissional, os estereótipos masculinos. A “política da vida” encontra‑se
pois intimamente ligada à definição da identidade de género.
No
entanto, se atentarmos no Quadro XXXVIII
constatamos que, apesar do afastamento face ao espaço público ser comum aos
dois sexos, a exclusão das mulheres é muito mais significativa.
Apesar de as mulheres terem definitivamente
conquistado os vários níveis de ensino, incluindo, de forma expressiva, o
ensino superior, bem como importantes segmentos qualificados do mercado de
trabalho [930], não lograram ainda
abrir as portas do espaço público[931]. Trata‑se,
por isso, de um défice de cidadania que justifica a continuação de políticas e
práticas emancipadoras, na medida em que persiste uma apropriação desigual de
recursos baseada na diferença sexual. Giddens considera que a autonomia é o
principal “princípio mobilizador” da
perspectiva emancipadora: “A emancipação
significa que a vida colectiva é organizada de modo que o indivíduo é capaz —
de uma maneira ou de outra —, de acção livre e independente nos ambientes da
vida social”[932].
Quadro XXXVIII - Frequência do espaço público por sexo
|
Sexo |
|||
Espaço Público |
Masculino N=207 (46,6%) |
Feminino N=237 (53,4%) |
|
|
Frequentemente N=3 (0,7%) |
1,0 |
0,4 |
|
|
Com Alguma Frequência N=76 (17,1%) |
27,1 |
8,4 |
|
|
Raramente/Nunca N=365 (82,2%) |
72,0 |
91,1 |
|
|
Nesta
medida, pode‑se afirmar que a identidade de género, mesmo antes de se
embrenhar na “política da vida”
(ligada à pluralidade de escolhas e estilos de vida da “modernidade tardia”, segundo Giddens) necessita de resolver situações que, de acordo com o autor inglês,
pertencem a uma ordem tradicional. Por outras palavras, tradição e pós‑tradição
não são momentos sequenciais, etapas de uma qualquer progressão, mas sim
dimensões coexistentes.
Veja‑se
o quadro referente às práticas expressivas públicas[933] (Quadro XXXIX).
Quadro XXXIX - Frequência de práticas expressivas públicas por sexo
|
Sexo |
|||
Práticas Expressivas Públicas |
Masculino N=210 (46,0%) |
Feminino N=247 (54,0%) |
|
|
Frequentemente N=6 (1,3%) |
1,4 |
1,2 |
|
|
Com Alguma Frequência N=159 (34,8%) |
41,9 |
28,7 |
|
|
Raramente/Nunca N=292 (63,9%) |
56,7 |
70,0 |
|
|
A exclusão
feminina volta a ser muito mais significativa que a reduzida participação
masculina. Este fenómeno pode funcionar como uma forma relativamente
dissimulada de reprodução das desigualdades sexuais. Não sendo tão visível e
explícita como há décadas atrás, em grande parte devido à recente conquista
feminina dos níveis elevados de escolaridade e do mercado de trabalho, a
manutenção de padrões de desigualdade de oportunidades pode estar associada a
uma sobrecarga de trabalho doméstico e a um défice de tempo disponível para
actividades de lazer. Aliás, os nossos dados revelam, o que à partida poderia
parecer paradoxal, que não há diferenças assinaláveis na adesão ao espaço
doméstico (Anexo V/Quadro XII). No
entanto, não nos podemos esquecer que a nossa tipologia de actividades
culturais se enquadra no tempo do não‑trabalho. Se porventura tivéssemos
medido o tempo de permanência em casa, certamente que as mulheres revelariam
uma muito maior dependência face ao espaço doméstico.
Onde se
verifica, igualmente, uma sobreexclusão feminina, é no espaço associativo
(espaço semi‑público organizado). Apesar de os inquiridos do sexo
masculino, uma vez mais, se revelarem igualmente afastados desse círculo, a
minoria que participa é mais alargada (Quadro
XL). Desta forma, as mulheres encontram‑se privadas de contextos de
socialização onde se incorporam valores de mobilização, participação e acção
colectiva, muitas vezes contra poderes e lógicas tutelares[934]. Por outras
palavras, vêem‑se amputadas da aprendizagem de uma lógica política de
contornos emancipatórios, o que não deixa de ser funcional para a manutenção
das desigualdades de índole sexual.
Quadro XL -Frequência do espaço associativo
por sexo
|
Sexo |
|||
Espaço Associativo (Semi‑Público Organizado) |
Masculino N=214 (45,1%) |
Feminino N=260 (54,9%) |
|
|
Frequentemente N=5 (1,1%) |
1,9 |
0,4 |
|
|
Com Alguma Frequência N=38 (8,0%) |
11,2 |
5,4 |
|
|
Raramente/Nunca N=431 (90,9%) |
86,9 |
94,2 |
|
|
Finalmente,
o Quadro XLI mostra‑nos que,
em relação ao espaço semi‑público, não só não se verifica qualquer discrepância,
em termos de tendência, entre os dois sexos, como, inclusivamente, se denota
uma ligeira adesão superior por parte das mulheres. Esta constatação pode‑se
explicar, a nosso ver, pela combinação de dois factores: i) a presença nesta categoria de práticas como “ir às compras”, “ir
à missa ou a cerimónias religiosas” ou ainda “comprar comida e mercearias” que
são tradicionalmente feminizadas; ii),
a associação existente entre o espaço semi‑público e as práticas de
sociabilidade local (ir a cafés ou pastelarias) que prolongam os quadros
identitários de base doméstica.
Quadro XLI - Frequência do espaço
semi-público por sexo
|
Sexo |
|||
Espaço Semi‑Público |
Masculino N=213 (45,7%) |
Feminino N=253 (54,3%) |
|
|
Frequentemente N=151 (32,4%) |
27,2 |
36,8 |
|
|
Com Alguma Frequência N=250 (53,6%) |
55,4 |
52,2 |
|
|
Raramente/Nunca N=65 (13,9%) |
17,4 |
11,1 |
|
|
Em suma,
no que se refere à abertura ao espaço exterior amplo, à lógica da esfera
pública (onde se desenvolvem, de forma ímpar, competências comunicacionais que
favorecem a acção cívica e política) as mulheres sofrem uma significativa
discriminação. Escapam‑se‑lhes, por isso, as arenas urbanas onde se
forma a opinião pública e onde se confrontam modelos díspares, o que acaba por
reduzir a gama de estilos de vida possíveis.
No entanto,
convém realçar que, apesar de estarmos indiscutivelmente na presença de uma
lógica de género, a tendência mais ampla é transversal aos dois sexos
(afastamento do espaço público e do espaço semi‑público organizado) e
exige a implicação de outras dimensões explicativas.
3.1. Espaços, perfis de públicos e formas de
apresentação.
Mike
Featherstone chama a atenção para a crescente importância dos factores
culturais no contexto da competição entre cidades. Com efeito, o modelo de um
formalismo exagerado e abstracto, ligado a uma racionalidade económica de cariz
tecnocrata (a cidade meramente funcional), ou a exploração de uma tradição
baseada na história e nas artes, cedem cada vez mais o lugar à urbe onde a
iconografia urbana desempenha um papel fundamental no imaginário cosmopolita
dos seus habitantes. A “imagem de cidade” torna‑se pois crucial para a
atracção de investimentos, mostrando como as esferas da cultura e da economia
se aliam e interpenetram (apesar das suas lógicas relativamente autónomas e
amiúde conflituais). O processo de gentrificação enquadra‑se, aliás,
neste amplo processo[935]. Mas igualmente na
crescente implantação de pólos de atracção cultural, embora numa lógica
distinta das instituições e hierarquias tradicionais.
Atente‑se
nos espaços que estamos a analisar. O Rivoli, como já foi referido[936], assume‑se
como centro cultural polivalente, dividindo‑se internamente em espaços de
vocação diferenciada, de forma a propiciar cruzamentos e encontros de públicos
e níveis de cultura distintos, funcionando, indiscutivelmente, como local de
atracção metropolitana.. O B Flat combina a lógica informal de bar com a função
de sala de espectáculos, contribuindo para a imagem que o município de
Matosinhos pretende transmitir de “cidade
do jazz”. A esplanada da Praia da Luz apresenta igualmente um perfil
híbrido, funcionando como café, bar e local ocasional de espectáculos,
inserindo‑se num movimento relativamente recente de dinamização da zona
marítima da cidade. Por outras palavras, não são apenas locais onde se consomem
signos culturais, são eles próprios signos
que se consomem e que contribuem para a imagem de cidade.
De certa
forma, subjacente a qualquer um destes três espaços, existe a intenção de
transgredir significados estáticos e tradicionais de cultura, fomentando a
diversidade de linguagens culturais e “baralhando” hierarquias e sistemas de
classificações. Repare‑se que, não só um local de convívio mundano (Praia
da Luz) se abre às novas expressões do campo cultural (moda, design, música
alternativa), como espaços de expressão cultural consagrada (o B Flat e o jazz, o Rivoli e o teatro, a dança, a
música erudita, o cinema de autor) adoptam lógicas democratizadoras, viradas
para a expansão de públicos (multifuncionalidade) e mescladas com o lazer e a
diversão. Apresentam‑se por isso, à partida, como espaços liminares, lugares de “complexa
interacção de campos e sentidos” onde se flexibilizam categorias e papéis
instituídos e onde não existem critérios universais de classificação e
legitimação[937].
Serão
estes objectivos atingidos?
Atente‑se
no quadro XLII. Nos três espaços o
grupo etário modal é o que congrega os inquiridos com idade compreendida entre
os 21 e os 30 anos. No primeiro destes lugares o público adolescente é quase
inexistente, o que já não é verdadeiro para a Praia da Luz onde representam 25.8% do público total da amostra. No
caso do Rivoli, apesar da já referida elevada concentração no grupo etário 21‑30
anos, existe uma distribuição mais equilibrada. Em suma, as clientelas afiguram‑se
consideravelmente juvenilizadas, com particular incidência na Praia da Luz. B
Flat e Rivoli têm um peso relativo mais significativo dos inquiridos com idade
compreendida entre os 31 e mais de 40 anos (respectivamente 41.5% e 37.8%)[938].
Quadro XLII -Escalões etários por espaços
|
Espaço |
||
Escalões Etários |
B Flat N=142 (27,1%) |
Praia da Luz N=93 (17,8%) |
Rivoli N=289 (55,1%) |
Até 20 N=79 (14,9%) |
3,5 |
25,8 |
17,0 |
21‑30 N=263 (50,2%) |
54,9 |
58,1 |
45,3 |
31‑40 N=90 (17,2%) |
22,5 |
11,8 |
16,3 |
Mais de 40 N=93 (17,7%) |
19,0 |
4,3 |
21,5 |
3.1.1 Praia da Luz ou a
cidade e a moda: em direcção a um habitus
plasticizado?
Vários são os factores que podem explicar esta composição etária.
O tipo de oferta cultural existente na Praia da Luz, a par da organização do
próprio espaço — grande informalidade, importante (omni)presença do audiovisual
(écrans de televisão onde se sucedem imagens vídeo; música pop passando a alto
volume) — propiciam as sociabilidades juvenis e a cultura diversão, ao mesmo
tempo que exigem uma estrutura moderna do capital cultural, imprescindível para
se decifrarem as linguagens e os códigos “do momento”. Uma inscrição num
folheto de divulgação das actividades promovidas na Praia da Luz não podia ser
mais explícita:
“Quem não está in está out”.
As
nossas deambulações etnográficas permitiram‑nos reforçar estas primeiras
observações. Nas centenas de pessoas que invadiram o bar‑esplanada numa
noite de passagem de modelos, a esmagadora maioria era adolescente, embora
também se vislumbrassem alguns jovens adultos. Curiosamente, as pessoas mais
velhas adoptavam uma postura bastante mais
reservada e discreta, muitas delas assistindo ao “espectáculo” a partir da
rua sobranceira. As indumentárias, aliás, denunciavam, numa primeira impressão,
a aparente uniformização das vestes juvenis (informalidade, “valorização” do
corpo — jeans; t‑shirts por debaixo de camisas abertas; algumas raparigas de
mini‑saia). No entanto, um olhar mais atento permitia detectar “regiões”
onde dominava a sofisticação. Nestes casos, a estilização da presença em cena,
a ocupação de regiões frontais, o look trabalhado, lembram uma citação de
Mike Featherstone: “Estão fascinados pela
identidade, apresentação, aparência, estilo de vida e pela incessante busca de
novas experiências”[939].
Adolescentes
pintadas de forma por vezes exótica (máscaras pós‑modernas?); raparigas
com chapéus em citação de tempos idos, botas negras até ao joelho; rapazes de
cabelo multicolor; calças justíssimas com terminação à boca de sino. Colagem,
absorção do passado[940], paródia, uso do kitsch. Segundo Featherstone, trata‑se
do colapso das fronteiras entre a arte e a vida quotidiana, especialmente
patente nos estilos juvenis. Fazer da vida uma obra de arte (adoptar a divisa “a vida pela arte e a arte pela vida”[941]); ser cada um artista
de si mesmo; estetizar o momento. O espectáculo dentro do espectáculo: estão
ali para assistir à passagem de modelos, mas apresentam‑se a si próprios
como possíveis “modelos” a seguir; consomem um produto cultural e como tal são
consumidos. A sua individualidade exprime‑se, supostamente, através dos
seus corpos, da sua hexis, da sua
face, da sua indumentária e adornos. O “eu” torna‑se também um efeito de
representação, um happening, em suma,
um “eu” performativo (“performing self”[942]). O comportamento
em matéria de traje revela‑se indissociável da teatralidade da vida
quotidiana (“é uma maneira de se
representar e de se apresentar”[943]), como de resto os
interaccionistas não se cansam de referir. Símbolo de identificação a um estilo
de vida (e aos grupos que nele se reconhecem), serve também de demarcação face
aos restantes. “Ritual confirmativo”
(na expressão de Goffman) e, ao mesmo tempo, emblema de exclusão. “Ponte” que nos liga a alguns “outros”, “porta” que de “outros” nos afasta.
Simmel fala, por isso, numa dupla função da moda: “construir um círculo, isolando‑o ao mesmo tempo dos demais”[944].
Vale a
pena descrever o momento da passagem de modelos para elucidar um pouco melhor a
íntima relação que se estabelece entre estes estilos de apresentação em cena e as
franjas emergentes do campo cultural:
Num
palco muito próximo do mar prolonga‑se uma passerelle erigida em plena praia. Antes do desfile actua um grupo
de dança. Semi‑nus, os bailarinos ondulam ao som de ritmos africanos,
imitando cadências “tribais”. De entre o grupo destaca‑se um executante
de peito nu e longos cabelos pretos. O exótico é descontextualizado, “colado” a
outras referências e apreendido em paródia de forma fragmentária. Num outro
quadro, os bailarinos surgem em traje “futurista”, sugerindo a iconografia de
um cenário de ficção científica.
Começa o desfile. Os modelos são muito
jovens, boa parte deles adolescentes. Imediatamente antes passa num grande
écran constituído por doze televisores uma lista contendo os seus nomes,
acompanhados dos respectivos rostos em poses ora “exóticas”, ora descontraídas,
ora ainda “provocadoras”.
As
modelos são extremamente magras (o corpo da “moda”, uma versão legítima do corpo, ou como as pressões
sociais reaparecem onde menos se espera, no próprio terreno do “eu
performativo”[945]). Os rapazes denunciam um porte viril, ostentando
músculos trabalhados (a imagem constrói‑se, burila‑se — tudo se
passa nos limites do “descontrole controlado” do habitus). Caminham a passos largos ao longo da passerelle; aproximam‑se da assistência, tiram os óculos
escuros de lentes oblíquas, fitando longamente o público sem fixar ninguém em
concreto; despem o casaco em pose provocatória e retiram grande ovação à
assistência (paródia da inversão dos papéis sexuais tradicionais — o homem como
objecto de desejo, o seu corpo como mercadoria num tempo em que toda a
mercadoria se culturaliza. Mas não resultará este jogo numa confirmação/reforço
da ordem normativa tradicional?).
De repente, ainda o desfile não terminara
irrompe uma intensa chuva. As pessoas correm para debaixo das árvores e dos
guarda‑sóis. Os grupos de amigos desfazem‑se. Muita gente pergunta
por alguém que se perdeu. A realidade quotidiana regressa como realidade
primeira. Muda‑se de província
finita de sentido (Schutz).
Por
vezes, o “choque” de estilos provoca situações desconcertantes, surgindo a
dissonância e mesmo o ruído:
10 horas da noite. Esplanada cheia. Ambiente
vincadamente juvenil, ou mesmo adolescêntrico, com excepção de alguns — poucos
— casais. As vestes são claramente informais, quase desportivas.
A partir da uma hora da madrugada a
composição do público vai‑se progressivamente alterando, com tendência
para um ligeiro envelhecimento. Os jovens adultos, na casa dos vinte anos,
tornam‑se predominantes. O restaurante metamorfoseia‑se totalmente
em bar. O DJ convidado inicia a sua actuação. A música aumenta de volume e a
luz enfraquece. Começam a aparecer grupos de aparência estilizada, com especial
destaque para as raparigas, onde a panóplia de adornos e a profusão de signos
decorativos é abundante. Vestidos de alta costura, em geral negros, calças
pretas justas, alguns tops ousados.
Maquilhagem de múltiplas matizes.
De repente, a perplexidade apodera‑se
dos presentes. Surge um grupo nitidamente desadequado face ao cenário,
provavelmente oriundo de um dos muitos casamentos que se realizam no Verão. Os
seus fatos e vestidos são igualmente formais, mas visivelmente fora de moda. Os
olhares dos habitués não descolam
daquele grupo. Nota‑se troça e desconforto.
Convém
referir, no entanto, que os grupos de jovens onde se distingue a indumentária
sofisticada (ligada à “exploração lúdica
de experiências transitórias e aos efeitos estéticos de aparência”[946]) representam uma minoria face ao
conjunto da assistência onde predomina a informalidade e os estilos de
apresentação mais “vulgares” (menos “trabalhados”), embora dentro dos cânones
da moda. Não se pode afirmar, por isso, que exista aqui um “colapso das hierarquias simbólicas”[947] e dos rituais de
distinção. Seguindo Simmel, ocorre‑nos referir, a este respeito, o
paradoxo que a moda resolve: ela permite, ao mesmo tempo, a fusão no grupo, a
integração social (através da tendência para a imitação) e a diferenciação, a
distinção (na busca constante do novo). Simmel acrescenta ainda que “as modas são sempre modas de classe”[948] mas não deixa de
realçar a componente de criatividade e expressão individual patente neste
fenómeno. A sua análise, de resto, nada fica a dever aos comentários de alguns
ensaístas da pós‑modernidade, excepto no optimismo desmesurado com que
encaram a questão. Para Lipovetsky, por exemplo, a moda contribui para o
fortalecimento das democracias e das sociedades livres: “é a idade da moda que mais tem contribuído para arrancar o conjunto
dos homens ao obscurantismo e ao fanatismo, para instituir um espaço público
aberto, para moldar uma humanidade mais legalista, mais madura, mais céptica”[949], vendo nela um
instrumento “iluminado” de emancipação individual. Mas já Simmel falara da
presença do efémero e do forte sentimento de presente que a moda acarreta. Ela
está, afinal, indissociavelmente ligada ao espírito do tempo, traduzindo a “«impaciência» específica da vida moderna”[950] e a perda de
terreno das “grandes convicções duráveis”[951] e exprimindo a “atracção formal inerente à fronteira, ao
começo e ao fim, ao vai‑e‑vem”[952]. Mas se não exclui
ninguém, na medida em que se define mais pelo desejo de possuir, do que pela
propriedade, a moda marca distâncias e torna‑as mensuráveis. Se assim não
fosse, se a moda se alargasse infinitamente, deixaria de o ser. De certa
maneira, a moda são os outros, os diferentes. O gosto é sempre um produto
relacional.
Na Praia
da Luz essas distâncias são visíveis na forma de ocupação do espaço e de
apresentação em cena. Há códigos simbólicos que manifestamente não estão
generalizados e seguem as leis da escassez, valorizando‑se. São
relativamente poucos os indivíduos que conseguem fazer da sua aparência uma
obra de arte. É difícil, no entanto, fazer juízos automáticos sobre a pertença
de classe dos portadores de um determinado estilo de apresentação (e
representação). Não só porque os símbolos envolvidos na construção de uma
imagem tendem a complexificar‑se, como aumenta a gama de combinações e de
escolhas possíveis. Dito de outra forma, o habitus
tende a tornar‑se mais plástico, reflectindo mediações subtis entre as
condições objectivas de existência, as disposições incorporadas (hexis) e os esquemas simbólicos e
valorativos (ethos) de percepção e
classificação da realidade. Se é verdade que Bourdieu refere a singularidade de
cada habitus e a sua capacidade
estratégica de improvisação e criatividade (e, por conseguinte, de abertura à
mudança), não deixa de o enquadrar num sistema orquestrado e unificado das
práticas sociais. Realça, por isso, o carácter duradouro e irreversível das
disposições inconscientes, extremamente dependentes das suas “condições primitivas de aquisição” que,
por isso, se tornam uma “quase‑natureza”,
fisicamente inscritas — incorporadas[953]. No entanto, o
conceito acaba por se revelar demasiado estático e inoperante aquando de
situações ou conjunturas de aceleração do ritmo de mudança social e de
permeabilidade face ao novo. Os usos sociais da moda e a
complexificação/multiplicação dos estilos de vida fazem parte desta tendência de
velocidade de circulação que se associa, nas nossas sociedades, ao valor de
signo das mercadorias e ao seu curto prazo de validade. Impõe‑se, por
isso, tornar mais plástico o conceito de habitus
inserindo‑o numa “perspectiva
processual”[954], aberto à permanência dos processos de socialização e
à pluralidade de quadros de interacção e de grupos de referência com quais os
agentes se identificam.
Mas a
realidade não cessa de existir e impele‑nos a desmistificar a ilusão de
uma vitória da estética, do lúdico e da estilização da vida sobre as
segmentações e hierarquias do espaço social. O fundamental é saber que modos de
vida estas modas exprimem. Voltaremos adiante a esta questão crucial.
3.1.2. B Flat — Ecletismo,
mas...
No B
Flat, por seu lado, apesar de uma maior variedade etária, destaca‑se o
predomínio dos adultos com idade entre os 30 e os 40 anos. Os adolescentes,
aliás, estão praticamente ausentes. Em algumas noites, no entanto, a presença
de jovens adultos é significativa. Os grupos tendem a ser etariamente
homogéneos. A indumentária é bastante informal (jeans, t shirts, pólos),
com excepção de alguns grupos onde se realçam da parte masculina o uso de
gravata e da parte feminina um estilo “clássico” (saia e casaco, por exemplo).
Estes grupos são quase sempre mais idosos. Serão estas diferenças resultado de
uma representação diferenciada sobre os usos sociais da “cultura de saídas”,
entendida por alguns como um acto banal e por outros como uma ocasião especial
e de “cerimónia” (ou seja, ritualizada)?
Não existe,
no entanto, como em certos grupos da Praia da Luz, um investimento extremamente
visível nos modos de apresentação. De certa maneira, este menor investimento na
imagem acaba por criar a impressão de uma maior homogeneização. A estilização
da vida quotidiana não é aqui um traço dominante. O que não significa que as
pessoas não se apresentem à moda. Como Simmel refere, por vezes a moda pode
conferir a impressão de que as pessoas “estão
de uniforme”[955]. Tal pode
acontecer, paradoxalmente, por uma necessidade de preservar a liberdade
interior. Nesses casos, a observância à moda surge como refúgio: “a obediência cega às normas da
generalidade, em tudo o que é exterior, representa para eles o meio consciente
e deliberado de reservar o seu sentimento pessoal e o seu gosto”[956].
O
espaço, na sua aparência de “cave” e na sua horizontalidade favorece muitíssimo
a apreensão de um sentimento de informalidade. Por outro lado, a grande
proximidade face ao “palco” (que apenas se distingue por lá estarem os artistas
e os instrumentos) impele a uma maior concentração no espectáculo. A oferta
cultural é também elucidativa. Atente‑se nos seguintes “retratos”:
Noite de 24 de Abril de 1997. Programa
dedicado à comemoração da revolução. Repertório alusivo à canção de
intervenção, recriada com arranjos jazzísticos. Sala decorada com posters da
bandeira nacional, numa parede, e quadros de pintura abstracta, noutra. Em
pontos estratégicos, quatro grandes fotografias: uma multidão em manifestação,
retratos de José Afonso, Sérgio Godinho e Adriano Correia de Oliveira. Ouvem‑se
palmas quando soam os primeiros acordes de “A
Pedra Filosofal”. A partir da uma da madrugada a sala começa a esvaziar‑se.
Setembro de 1997. Actuam Fernando Tarrés e o
seu grupo. Na sala exibe‑se uma colecção de pinturas, estilo banda
desenhada, com colagens de papel de jornal e grandes incrições: “If love be rough with you, be rough with
love”. O quadro retrata dois polícias a arrancarem uma flor do cabelo de um
jovem.
A apresentação dos músicos é feita pelos
próprios, em espanhol. Anunciam uma homenagem a Astor Piazzolla, a alguns
compositores brasileiros e a Pablo Picasso.
A
informalidade é a nota dominante, quer na apresentação dos músicos
(extremamente sóbria, quase descuidada), quer na sua postura durante o espectáculo
(por exemplo, bebendo cerveja no intervalo entre cada composição).
Como se
depreende por estes dois breves “retratos” o tipo de espectáculos apresentados
no B Flat revelam a preocupação de, dentro dos limites do jazz, propiciar uma mistura de géneros e lançar pontes em direcção
a outras formas de expressão. No entanto, o repertório não deixa de impor
limites dentro dos quais se recrutam os públicos. Não só algumas das menções
implicam a acumulação de referências históricas e políticas (que afastam,
eventualmente, os públicos adolescentes), como favorecem uma recepção mais
intelectualizada (e por isso menos dispersa pela forma, pelo “invólucro”, pela
apresentação), embora dentro de universos culturais modernos (a exposição de
pintura abstracta, as referências a Picasso ou Piazzolla).
3.1.3. Rivoli
Se
atentarmos no quadro XLIII,
respeitante à distribuição etária por espaços internos do Rivoli (e respectivos
espectáculos), constatamos que o público adolescente se concentra de forma
nítida no café concerto (48%),
enquanto que os inquiridos mais idosos frequentam preferencialmente o grande
auditório (69.3%).
Quadro XLIII - Sub-espaços do Rivoli por escalões etários
|
Escalões Etários |
|||
Rivoli – Espaços Internos |
Até 20 N=48 (17,0%) |
21‑30 N=126 (44,7%) |
31‑40 N=46 (16,3%) |
Mais de 40 N=62 (22,0%) |
Grande Auditório N=134 (47,5%) |
31,3 |
47,6 |
37,0 |
67,7 |
Pequeno Auditório N=44 (15,6%) |
20,8 |
14,3 |
21.7 |
9,7 |
Café Concerto N=104 (36,9%) |
47,9 |
38,1 |
41,3 |
22,6 |
Tal não
admira se atendermos à estrutura da oferta de cada um dos subespaços. No grande
auditório predominam os espectáculos que se enquadram na “cultura erudita”,
enquanto que, ao nível do café concerto, embora existam algumas produções de
difícil classificação, dado o seu carácter iconoclasta (caso dos Repórter Estrábico), certamente que
nenhum repertório caberia nessa categoria. Mas existe igualmente um “efeito espaço” que não podemos
negligenciar. Enquanto que o grande auditório, apesar da des‑sacralização
patente na sua remodelação, responde a objectivos de representação simbólica e
de prestígio, o café concerto caracteriza‑se pela sua informalidade
(patente na distribuição das pessoas por mesas, na grande proximidade face ao
pequeno palco, na sensação de horizontalidade que predomina, no garrido das cores
das paredes junto às janelas, a lembrar peças multicolores de um puzzle gigantesco). A estrutura de
interacção que se desenrola nestes cenários não é independente da sua
configuração. Giddens é um dos autores que mais tem insistido nesta questão, ao
enfatizar que “os agentes movem‑se
em contextos físicos cujas propriedades interagem com as suas competências
(...) ao mesmo tempo que os agentes interagem entre si”[957]. Assim, torna‑se
importante compreender que o espaço não é neutro, embora os seus constrangimentos
e/ou recursos não sejam indissociáveis dos projectos dos agentes na construção
diária da realidade. Desta forma, através do espaço‑tempo os padrões
institucionalizados de comportamento ligam‑se às micro‑situações de
interacção quotidiana.
Alguns
“retratos”, no entanto, ilustrarão melhor o que se pretende demonstrar:
Segunda noite de estreia do novo Rivoli[958]. Concerto pela novel Orquestra Nacional do Porto.
Sala apinhada de gente. Respira‑se a solenidade de uma grande ocasião. O
espaço de entrada contíguo ao grande auditório está impecável: tons claros e
suaves nas paredes e colunas, chão de mármore ou alcatifado, assistentes de
sala cuidadosa e uniformemente vestidos por uma marca consagrada. Por todo o
lado, o brio na indumentária salta à vista. No entanto, não há uma grande
variedade estilística, como acontecia na Praia da Luz. Os cânones são aqui mais
restritos, certamente porque o grau de formalidade e de ritualização é
superior. Quase não há homens sem gravata. As mulheres ostentam vestidos de
cerimónia. Algumas trazem casaco de pele. Contam‑se pelos dedos as calças
de ganga. Há poucos jovens, e os que estão presentes não se distinguem, dada a
sensação de selecta uniformidade.
Café concerto. Espectáculo com os Mind da Gap, um grupo emergente de hip‑hop, constituído por quatro
rapazes de média etária que pouco deve ultrapassar os vinte anos. Movimentam‑se
ao som da música, de forma sincopada. Vestem calças larguíssimas, apresentam a
barba por fazer, dois deles usam boné com a pala virada ao contrário, o
vocalista canta tapando o nariz com o dedo, de maneira a conseguir um certo
efeito vocal. Alguns versos das suas canções denotam uma certa agressividade
agonística:
“O inimigo foi vencido/chegou a hora da sua morte”
“Quem sobrevive é o mais forte/não serei vencido/nem
depois da morte”
“Rap duro como o aço”
Outros uma ética de
diversão:
“Dêem‑me aquela garrafa de absinto”
“Toda a gente vai ficar a curtir”
“Agora que te encontrei estou super‑contente”
“Põe a ganga na mortalha”
Outros ainda um sentimento
iconoclasta, provocatório e anti‑sistema:
“São fachadas as figuras/do ministro e presidente”
“Governo e corrupção/arrogância e
ignorância/dinheiro e poder”
“Têm mais merda na cabeça/do que a fralda de um
bébé”
“Quem não se sentir bem/faça‑me um favor e
saia”
Há também referências a uma
certa desorientação normativa:
“O pensamento é a minha droga/a droga é o meu
pensamento” (refrão)
“Andei perdido/confundido/completamente à toa”
Mas existem versos de
afirmação de “autenticidade” e de livre‑arbítrio:
“Somos nós, somos nós/não copiamos ninguém”
“Quem
me dera que o mundo fosse como eu queria/mas a vida é madrasta/já há muito se
dizia/o mundo é teu, meu/encontremos a solução/luta sempre/o destino está na
tua mão” (refrão)
A assistência é bastante jovem, rondando a
média etária dos artistas, notando‑se poucos adolescentes. Há também
algumas pessoas que aparentam ter à volta de trinta anos. A indumentária é
claramente informal. No entanto, há quem se apresente de forma extremamente
trabalhada, ainda que simulando uma postura négligé.
Nota‑se com particular visibilidade a presença de uma “tribo” juvenil: os
rapazes caracterizam‑se pelos seus longos cabelos e boné vestido com a
pala ao contrário. Eles e elas usam brincos, muitos deles no nariz e nas
sobrancelhas.
Café concerto. Espectáculo com os Repórter Estrábico. O vocalista inicia o
concerto com um grito: “Free me!”. A
actuação é acompanhada pela projecção de slides. O vocalista é simultaneamente
um actor. A sua apresentação é uma paródia de certos tipos sociais: veste um
fato de treino com um telemóvel à cintura e uma camisa de alças branca.
Um dos slides (com a legenda: “Tiburones vivos”) é alusivo a cartazes
de um circo espanhol, mostrando tubarões de boca aberta e dentes afiados. Outro
diapositivo mostra um crânio a ser aberto como uma lata de conservas. O
vocalista pergunta: “O que seríamos nós
sem ela? Uma palavra vale por mil imagens, uma imagem por mil palavras”.
Novo slide, desta feita com o símbolo da Expo
98. O vocalista intervém com sarcasmo: “Faltam
767 dias para o ano 2000. Para 98 eles que façam as contas”.
Aparece uma imagem do galo de Barcelos. O
vocalista vai mostrando cartões com inscrições em inglês (“Tall”/”Clean”/”Bright”/”Very Tipical”). Sucedem‑se slides
com palavras ou interjeições (“Baby”/”hum”).
As provocações e as analogias com outros símbolos são evidentes: num slide com
as inscrições “Com Some” as letras
imitam o ícone da Coca Cola. Num dos últimos slides surge um telemóvel. O
vocalista aproveita a ocasião e coloca o telemóvel a tocar junto ao microfone.
Torna‑se
notória a existência de um certo grau de homologia entre a oferta cultural
destes subespaços e o perfil etário dos públicos. No caso do grande auditório a
aproximação à cultura consagrada e ao seu aparato simbólico é evidente (apesar
de haver alguns laivos de ecletismo, com a apresentação de cantores como Sérgio
Godinho). Não admira, por isso, que a média etária do público seja superior e
que os modos de apresentação traduzam uma postura adequada, traduzida pela sua
formalidade e sofisticação dentro de cânones estéticos relativamente rígidos de
distinção social (embora essa distinção se atenue num contexto de grande
homogeneidade, própria do convívio entre pares). O ambiente revela, então, uma
selectividade onde as contradições aparecem mirificamente resolvidas. Não há
grande lugar para o diferente. Os corpos respiram poder.
No café
concerto, apesar de grandes variações nos perfis de públicos consoante os
espectáculos, o panorama geral é outro. Os universos culturais dominantes
situam‑se claramente no pólo moderno, por vezes mesmo não consagrado.
Exigem uma certa actualização cultural que favorece claramente os públicos mais
jovens. Por outro lado, joga com a provocação, o iconoclasmo e a cumplicidade
(o “piscar de olhos”) do receptor (desenvolveremos mais adiante esta dimensão).
A maior parte dos artistas situa‑se à margem das grandes organizações de
produção e distribuição. Podemos situá‑los no âmbito do que Diana Crane
apelidou de urban culture ou urban core: “cultura urbana produzida e disseminada em cenários urbano para
audiências locais”[959], fazendo apelo a
audiências relativamente pequenas. Por vezes podem ser considerados como o
equivalente pós‑moderno das vanguardas. Diana Crane refere
características que se enquadram perfeitamente na análise feita ao espectáculo
dos Repórter Estrábico: provocações
intencionais à audiência, diluição das fronteiras entre arte e vida quotidiana,
justaposição de objectos e comportamentos díspares. Acrescentaríamos ainda a
importação/descontextualização/reciclagem de imagens‑símbolo, o
permanente jogo de “fronteira” entre a crítica social e o puro gozo narcísico;
entre o suporte auditivo e o suporte visual (onde se encaixa a própria imagem e
apresentação dos artistas), bem como o sentimento de efémero, próprio da performance e do happening. Note‑se igualmente, no caso dos Mind da Gap, a apropriação do vernáculo.
Todas
estas características, correlativas de uma crescente fragmentação em subgéneros
artísticos (produtos de fronteira e
de cruzamentos vários) estimulam a tendência, optimizada pelos grupos juvenis,
de diferenciação em estilos de vida e práticas quotidianas. Por isso, a moda é
para eles uma forma privilegiada de auto‑expressão, embora sem perder as
suas funções de regulação/controle social e de manifestação de distâncias
várias.
3.2. Espaço, competências e modelos simbólicos
dos públicos.
Se
observarmos agora o quadro XLIV referente
ao cruzamento entre o espaço e o capital escolar dos inquiridos, concluímos
que, sob este ponto de vista, existe uma assinalável homogeneidade entre os
vários espaços estudados. De facto, estes caracterizam‑se por uma
fortíssima sobrerepresentação de indivíduos com um alto capital escolar e por
uma consequente subrepresentação dos inquiridos em que esse capital é baixo[960]. Estamos em
presença, por isso, de públicos restritos, na maior parte dos casos “herdeiros”
de uma posição privilegiada, já que 41.9%
dos inquiridos são oriundos de um agregado familiar em que o capital é
igualmente elevado (por isso incluídos na categoria “alto capital escolar
tradicional”), com especial destaque para a Praia da Luz, onde predominam de
forma clara (62.0%) as situações de
reprodução social.
Quadro XLIV - Trajectória escolar por espaço
|
Espaço |
||
Trajectória Escolar |
B Flat N=122 (27,6%) |
Praia da Luz N=79 (17,9) |
Rivoli N=241 (54,5%) |
Baixo Capital Escolar Tradicional (=) N=9 (2,0%) |
0,8 |
1,3 |
2,9 |
Médio Capital Escolar Tradicional (=) N=30 (6,8%) |
5,7 |
12,7 |
5,4 |
Alto Capital Escolar Tradicional (=) N=185 (41,9%) |
41,8 |
48,1 |
39,8 |
Baixo Capital Escolar Moderno (‑) N=2 (0,5%) |
|
1,3 |
0,4 |
Médio Capital Escolar Moderno (‑) N=27 (6,1%) |
4,1 |
7,6 |
6,6 |
Médio Capital Escolar Moderno (+) N=23 (5,2%) |
3,3 |
8,9 |
5,0 |
Alto Capital Escolar Moderno (+) N=110 (24,9%) |
32,0 |
13,9 |
24,9 |
Alto Capital Escolar Moderno (+) N=56 (12,7%) |
12,3 |
6,3 |
14,9 |
(=)Situações de reprodução
(‑) Situações de mobilidade decrescente
(+) Situações de mobilidade ascendente
Nos
outros espaços o peso relativo dos indivíduos com “alto capital escolar moderno”
é significativo (B Flat: 44.3%;
Rivoli: 39.8%). No Rivoli, aliás,
“alto capital escolar moderno” e “tradicional”, equivalem‑se. Por outras
palavras, na Praia da Luz os inquiridos com um alto capital escolar constituem
uma elite tradicional, adquirindo particular importância as formas de
transmissão do privilégio. Nos restantes espaços tais inquiridos dividem‑se,
também, de forma quase igual (B Flat) ou mesmo equitativa (Rivoli) por uma
elite emergente. Não são de negligenciar, por isso, as trajectórias de
mobilidade ascendente (Anexo V/Quadro
XII), como adiante teremos ocasião de comprovar, o que, à partida, invalida
a possibilidade de estarmos em presença do mesmo grupo de status, para utilizar a terminologia weberiana, com
reflexos na diversificação dos universos culturais e dos estilos de vida.
Importa,
além disso, realçar algumas especificidades. O B Flat é claramente o espaço
mais selectivo, o que, aliás, corrobora outros trabalhos, nacionais e
estrangeiros, sobre o perfil do público de jazz[961]. A este respeito
convém realçar que o jazz conta com
uma divulgação muito mais restrita do que a música clássica. João Sedas Nunes
fala mesmo, a respeito desta última, de uma relativa
dessacralização, assente não apenas na difusão discográfica (de que o jazz também usufrui), mas igualmente na
penetração na vida quotidiana, enquanto pano de fundo de publicidade, genéricos
televisivos, programas de divulgação e bandas sonoras[962]. Por outro lado,
quanto mais um género se revela selectivo, maior será a tendência de a participação
do público adquirir um carácter distintivo, reforçando o seu fechamento[963].
A Praia
da Luz revela um relativo empolamento dos inquiridos com médio capital escolar,
mas isso deve‑se, antes de mais, ao peso dos estudantes adolescentes, que
ainda não completaram o seu percurso escolar. De qualquer forma, o seu público
é igualmente um círculo restrito, tanto mais que a trajectória virtual desses
estudantes virá reforçar ainda mais o peso dos inquiridos com um alto capital
escolar.
O Rivoli
é dos três espaços o que revela um maior ecletismo, embora mantenha as
características dos restantes. Tal facto poderá estar associado à diversidade
interna desta instituição (em termos da organização dos subespaços e da
estruturação da oferta).
Atentemos
agora nos padrões de gosto dominantes. De acordo com o quadro XLV, o público do espaço Rivoli é o que mais se identifica
com o espaço da cultura sobrelegitimada, seguindo‑se o B Flat e, por
último, a Praia da Luz.
Quadro XLV - Frequência do espaço semi-público por lugar estudado
|
Espaço |
||||
Espaço Semi‑Público |
B Flat N=139 (28,3%) |
Praia da Luz N=80 (16,3%) |
Rivoli N=272 (55,4%) |
|
|
Frequentemente N=18 (3,7%) |
3,6 |
2,5 |
4,0 |
|
|
Com Alguma Frequência N=130 (26,5%) |
21,6 |
17,5 |
31,6 |
|
|
Raramente/Nunca N=343 (69,9%) |
74,8 |
80,0 |
64,3 |
|
|
No
entanto, o dado mais importante a realçar centra‑se no facto da
esmagadora maioria dos inquiridos ter uma baixíssima frequência desta esfera, o
que vem comprovar outros estudos nacionais e locais. Por outras palavras, apenas uma pequena elite dentro da elite
revela um grau médio ou alto de participação nas práticas da cultura cultivada.
O que nos conduz a uma situação de homologia
imperfeita que contradiz em parte as teses de Bourdieu. Ou seja, mesmo
sendo verdade que a adesão à cultura sobrelegitimada se associa positivamente a
um alto capital escolar, apenas uma pequena parte dos públicos privilegiados
que possuem esse alto capital adere ao gosto
legítimo, o que significa, necessariamente, uma heterogénea dispersão pelo
restantes universos de gosto (“médio”
e “popular”).
No
entanto, esta ausência de identificação com a cultura sobrelegitimada atenua‑se
se somente considerarmos a adesão às práticas receptivas e informativas de
públicos cultivados (Quadro XLVI).
De facto, os inquiridos que raramente ou mesmo nunca frequentam estas
actividades sofrem uma redução significativa. De qualquer forma, mantém‑se
a mesma distância relativa entre cada espaço: os públicos do Rivoli são os que
mais frequentemente aderem a estas práticas. Segue‑se o B Flat e em último
a Praia da Luz, com 75.3% dos
inquiridos a declararem o seu afastamento.
Quadro
XLVI - Frequência de práticas receptivas e informativas de públicos cultivados
por espaço
|
Espaço |
||||
Práticas Receptivas e Informativas de Públicos Cultivados |
B Flat N=142 (28,3%) |
Praia da Luz N=81 (16,2%) |
Rivoli N=278 (55,5%) |
|
|
Frequentemente N=48 (9,6%) |
5,6 |
4,9 |
12,9 |
|
|
Com Alguma Frequência N=189 (37,7%) |
35,2 |
19,8 |
44,2 |
|
|
Raramente/Nunca N=264 (52,7%) |
59,2 |
75,3 |
42,8 |
|
|
É
curioso analisar a comparação entre o Rivoli e o B Flat. O primeiro, apesar da
polivalência em termos de oferta cultural que se orgulha em assumir, está mais
fortemente ligado à cultura erudita. O que não é de admirar, já que a maior
parte dos espectáculos se pode incluir nesta esfera (a diversidade existe, mas
a identidade do espaço afirma‑se preferencialmente através da adesão à
cultura consagrada). Por outro lado, a distância dos públicos do B Flat em
relação à cultura sobrelegitimada pode‑se eventualmente interpretar como
indicador de uma concentração mais exclusiva no jazz sem trânsito assinalável para outros géneros musicais ou
diferentes formas de expressão artística “nobre”. Sinal de uma maior
coerência/homogeneidade de gostos?
O Quadro XLVII referente ao grau de
identificação com os autores musicais classificados como consagrados clássicos
mostra idêntica orientação: a média e alta identificação é maioritária entre os
inquiridos que frequentam o Rivoli e minoritária nos restantes espaços, com
especial ênfase na Praia da Luz o que, uma vez mais, pode ser associado como
traço de especificidade de uma cultura juvenil predominante neste espaço.
Inversamente, a média e alta identificação com os “consagrados modernos” apenas
é superior a 50% na Praia da Luz (Anexo
V/Quadro XIII), enquanto que a rejeição dos “não consagrados” é transversal
aos vários espaços (Anexo /Quadro XIV).
Quadro
XLVII - Grau de identificação com os compositores "consagrados
clássicos" por espaço
|
Espaço |
||||
Música – Consagrados Clássicos |
B Flat N=103 (26,2%) |
Praia da Luz N=63 (16,0%) |
Rivoli N=227 (57,8%) |
|
|
Nulo Grau de Identificação N=53 (13,5%) |
8,7 |
28,6 |
11,5 |
|
|
Baixo Grau de Identificação N=156 (39,7%) |
41,7 |
46,0 |
37,0 |
|
|
Médio Grau de Identificação N=84 (21,4%) |
24,3 |
20,6 |
20,3 |
|
|
Alto Grau de Identificação N=100 (25,4%) |
25,2 |
4,8 |
31,3 |
|
|
É curioso constatar que esse perfil juvenil
(internamente multifacetado) encontra uma grande correspondência na descrição
que Bourdieu faz dos “novos intelectuais”,
designadamente quando o autor francês acentua o “repertório de «recursos» da anti‑cultura adolescente” ou o
seu “humor anti‑institucional”
avesso a hierarquias e a todas as formas de classificação[964]. Se considerarmos,
como Featherstone, que os estilos de vida dos “novos intermediários culturais” se generalizaram[965], ou ainda, no
seguimento de Inglehart, que os valores das primeiras gerações pós‑materialistas
(que terão surgido na década de 70 nos países ocidentais mais desenvolvidos) se
tornaram dominantes[966], poderemos
compreender melhor a similitude entre o conteúdo da actual tipicidade juvenil e
a “nova pequena burguesia”. Tendo em
conta o papel dominante que exercem ao nível da produção e difusão de
informação (designadamente ao nível de um controle das posições‑chave nas
indústrias culturais e nos mass media)[967] parece credível que
surjam como os intermediários culturais por excelência da contemporaneidade[968], simbolizando nos
seus valores e estilos de vida o espírito do tempo.
Uma das
características desses novos estilos de vida, anteriormente referida em várias
ocasiões, é a informalização dos padrões de consumo e das relações sociais,
marcada pela diluição e flexibilização (para muitos indicador de anomia) de
regras outrora precisas, rígidas e consistentes[969]. A adesão à
categoria que apelidamos de “práticas expressivas semi‑públicas”,
fortemente propiciadoras de redes de sociabilidade em contextos de interacção,
constitui, em nossa opinião, um sinal de inserção nessa orientação normativa
mais vasta.
Ora, de
acordo com o quadro XLVIII, é de
novo a Praia da Luz o espaço onde os inquiridos mais aderem a esse conjunto de
práticas. Aliás, a própria frequência do lugar constitui uma actividade
passível de ser enquadrada na referida categoria. É por aí, aliás, que passa,
como já referimos, a sua identidade específica.
Quadro XLVIII - Frequência de práticas expressivas semi-públicas por
espaço
|
Espaço |
||||
Práticas Expressivas Semi‑Públicas |
B Flat N=135 (27,7%) |
Praia da Luz N=78 (16,0%) |
Rivoli N=274 (56,3%) |
|
|
Frequentemente N=43 (8,8%) |
8,1 |
20,5 |
5,8 |
|
|
Com Alguma Frequência N=324 (66,5%) |
75,6 |
66,7 |
62,0 |
|
|
Raramente/Nunca N=120 (24,6%) |
16,3 |
12,8 |
32,1 |
|
|
No
entanto, convém referir que, no que se refere ao cinema e à literatura, as
clivagens são muito menos significativas. Vejamos o caso do cinema (Anexo V/Quadros XV, XVI e XVII). É
patente a diluição dos pólos “clássico” e “moderno” no que concerne aos filmes
“consagrados”. De facto, o grau de identificação é, para ambos os casos,
baixíssimo. Mesmo o eixo “consagrado”/”não consagrado” afigura‑se pouco
discriminativo : apenas se verifica
uma maior adesão (dentro de índices globalmente muito baixos) por parte dos
inquiridos da Praia da Luz.
Quanto à
literatura (Anexo V/Quadros XVIII, XIX e
XX) os praticantes culturais revelam‑se mais competentes: diminuem os
índices de reduzida identificação e a resposta modal centra‑se no médio
grau de identificação embora não se registem, uma vez mais, diferenças
significativas (exceptuando uma proximidade ligeiramente superior por parte dos
inquiridos da Praia da Luz no que concerne aos autores “consagrados modernos”).
O melhor indicador da posse de uma competência cultural legítima encontra‑se
na clara rejeição, amplamente partilhada, dos autores “não consagrados”. Em
suma, a literatura surge como a prática mais distintiva (identificação
generalizada com o pólo consagrado), traduzindo, eventualmente, a “nobreza cultural” de quem possui um
elevado capital cultural. Na música, não deixando de se registar um
distanciamento face aos nomes não consagrados, verifica‑se uma clivagem
“clássicos/modernos”. Para além de se ligar à identidade específica de cada
espaço e da sua programação cultural, adiantámos a hipótese de se articular,
igualmente, com a composição etária dos diferentes públicos. No caso do cinema,
a inexistência de qualquer eixo de diferenciação (consagração/não consagração e
clássicos/modernos) pode estar relacionado com o seu estatuto menos
prestigiante de “arte média”.
Ao
observarmos agora a prática de leitura de livros (quadro XLIX) verificamos que ela é, no geral, relativamente elevada
já que apenas uma minoria (apenas ultrapassando os 20% na Praia da Luz)[970] declara não ler. Em
relação a um estudo de âmbito nacional sobre hábitos de leitura, é visível a
sobrepresentação na nossa amostra dos inquiridos que afirmam ler frequentemente
ou com alguma frequência, o que sem dúvida estará articulado com o elevado
volume global de capital escolar da amostra[971].
Quadro XLIX - Frequência de leitura de livros por espaço
|
Espaço |
||||
Ler Livros |
B Flat N=143 (26,9%) |
Praia da Luz N=95 (17,9%) |
Rivoli N=294 (55,2%) |
|
|
Frequentemente N=217 (40,8%) |
39,2 |
25,3 |
46,6 |
|
|
Com Alguma Frequência N=229 (43,0%) |
45,5 |
47,4 |
40,5 |
|
|
Raramente/Nunca N=86 (16,2%) |
15,4 |
27,4 |
12,9 |
|
|
Há no
entanto um aspecto dissonante face ao estudo de âmbito nacional. Os inquiridos
da Praia da Luz são quem lê menos. Ora, na referida investigação detecta‑se
que a leitura de livros é inversamente proporcional à idade. Por outras
palavras, quanto mais jovem se é, mais se lê (apesar de um ligeiro recuo nas
classes etárias menos elevadas face a idêntico inquérito de 1988[972]). Necessitaríamos
de ter aprofundado esta dimensão no inquérito para podermos construir uma
interpretação fundamentada. De qualquer forma ela consolida ainda mais o perfil
que temos vindo a traçar sobre o universo simbólico dos inquiridos da Praia da
Luz, nomeadamente no que diz respeito a um afastamento dos mecanismos de
educação e consagração cultural tradicionais, maxime a escola. Olivier Donnat fala de uma “transformação dos actos de leitura”[973] que privilegia não
só suportes alternativos fora da esfera da leitura, nomeadamente o audiovisual
e a microinformática (“o lugar cada vez
maior que ocupa o audiovisual na formação dos saberes e das representações do
mundo induz maneiras de ver, de raciocinar e sentir diferentes; é provável que
favoreça o desenvolvimento de faculdades específicas que as «gerações‑TV»
utilizam em cada uma das suas actividades”[974]) mas igualmente o
recuo do livro face à imprensa escrita (livros, revistas, etc.), correlativo de
um dissipar de fronteiras entre as “boas” e “más” leituras. O próprio livro, ao
divulgar‑se e banalizar‑se, “deslegitima‑se”,
perdendo o seu cariz de prática distintiva. Esta última hipótese explicativa
não nos parece porém aplicável ao
caso português, marcado por altíssimos níveis de iliteracia e por níveis de
escolaridade globais ainda bastante afastados da média europeia.
Existirá,
junto dos públicos da Praia da Luz, uma concepção que tende a ver o livro como
símbolo do passado e da tradição, já que este sofre “um défice de imagem junto daqueles que são os mais sensíveis aos
valores da juventude ou à imagem de modernidade veiculada pela economia
mediático‑publicitária”[975]. Esta hipótese
interpretativa parece‑nos plausível e aplica‑se aos principais
eixos de caracterização do universo simbólico dos utentes desse espaço.
3.3. Breve Síntese.
Em suma,
podemos delinear da seguinte forma o perfil distintivo de cada um dos espaços
em análise (apesar de características transversais, como a acentuada
juvenilização dos seus públicos e uma alto nível de credenciação escolar):
A) Praia da Luz: constitui, a par do café‑concerto
do Rivoli, um espaço marcado pela informalização das relações sociais e da
estilização dos modos de apresentação. Tornam‑se especialmente visíveis
certos grupos (não só pela disposição cénica do espaço, como pelo cariz
restrito dessas “tribos”) que investem fortemente numa indumentária pouco
comum, explorando as suas potencialidades distintivas. Existe uma clara
identificação destas fracções (diminutas) com a legitimação de franjas
emergentes do campo cultural e artístico (moda, design, publicidade, música alternativa) nas quais assenta a
programação do local.
Apesar de, a nível da composição social, se
estar em presença de grupos socialmente favorecidos, como de resto sugere o
significativo peso relativo do “alto capital escolar tradicional”, podendo
mesmo falar‑se de um certo fechamento social, não é automático que esse
grupos de apresentação estilizada construam a sua fachada simbólica em termos
rigidamente classistas. Eventualmente tal disposição estará mais presente na
homogeneidade do estilo “desportivo/informal elegante” que marca a imagem
global dos praticantes deste espaço. Já Simmel consagrava numa tipologia a
possibilidade de existência de “modas
pessoais”, mais efémeras mas igualmente potenciadoras da tensão entre o
desejo de distinção e a tendência mimética, neste caso exprimindo‑se pela
imitação de si através da “concentração da consciência nesta única
forma ou neste único conteúdo”[976].
No que
se refere às constelações de gosto, é de referir um maior afastamento face ao
pólo “clássico/patrimonial”, com prolongamento numa fraca adesão à cultura
cultivada, o que revelará uma orientação “moderna”, virada para canais e
conteúdos alternativos de consagração cultural, fenómeno que não deixa de ser
curioso tendo em conta o já referido grande peso do “alto capital escolar
tradicional”[977].
B) B Flat: Sendo o espaço mais
selectivo em termos de capital escolar tem, no entanto, um peso inferior de
“herdeiros” em relação à Praia da Luz, sendo permeável a franjas de público
cujo alto capital escolar resulta de uma trajectória ascendente (sendo por nós
classificado de “moderno”). Os modos de apresentação do seu público, sendo
informais, não deixam de obedecer aos cânones da moda, embora aparentemente sem
grande investimento simbólico, o que, aliás, é semelhante à forma como os
músicos surgem em cena.
O
universo de gostos dominante (e que constitui, por assim dizer, a identidade
específica do espaço) situa‑se a meio caminho entre o Rivoli e a Praia da
Luz (embora mais perto do teatro municipal), ocupando os públicos do primeiro
uma posição relativamente próxima do pólo cultivado, consagrado e clássico.
C) Rivoli: Dentro das limites das
características globais da amostra apresenta‑se como o espaço mais
eclético, tanto no que se refere à diversidade etária, como ainda à composição
social (tomando como indicadores o capital escolar de pertença e de origem). Na
sua programação misturam‑se, igualmente, referências clássicas e
consagradas com conteúdos iconoclastas e não legitimados pelo campo cultural
tradicional. Cada subespaço possui, assim, a sua clientela específica. No
entanto, a imagem mais ampla do Teatro Municipal associa‑se à identidade
do grande auditório, tendencialmente ligado à cultura consagrada clássica,
enquanto uma das principais salas de espectáculos da cidade, com toda a carga
simbólica que tal circunstância acarreta.
4. Capital escolar, trajectórias sociais e
práticas culturais.
4.1. Estrutura do capital
escolar: o peso da origem social e a correcção da trajectória.
Tivemos
anteriormente ocasião de realçar o facto de estarmos em presença de uma amostra
bastante seleccionada em termos de capital escolar. O Quadro L confirma‑nos essa mesma constatação.
Quadro L - Capital escolar de ego
Capital Escolar de Ego |
N |
% |
Baixo Capital Escolar |
30 |
5,9 |
Médio Capital Escolar |
109 |
27,2 |
Alto Capital Escolar |
372 |
72,8 |
No entanto, antes de tirarmos conclusões
apressadas sobre a pretensa homogeneidade de tal elite, convém analisarmos com
alguma minúcia a estrutura do capital escolar dos inquiridos, tendo em conta o
efeito de trajectória. Nesse sentido, inspiramo‑nos em Bourdieu quando
afirma: “a capital escolar equivalente,
as diferenças de origem social (cujos efeitos se exprimem já em diferenças de
capital escolar) estão associadas a disparidades importantes (...) O peso
relativo do capital escolar no sistema dos factores explicativos pode mesmo ser
mais fraco que o peso da origem social já que apenas se pede aos inquiridos que
exprimam uma familiaridade estatutária
com a cultura legítima ou em vias de legitimação, relação paradoxal, feita
dessa mistura de segurança e de ignorância (relativa) onde se afirmam os
verdadeiros direitos de burguesia, que se medem pela antiguidade”[978]. O autor francês
pretende por conseguinte distinguir entre duas estruturas diferentes de capital
escolar dentro das classes dominantes: uma marcada pela antiguidade e
exprimindo uma precoce e paulatina familiarização com a “cultura nobre”
(privilégio do verdadeiro “conhecedor”, capaz de se distanciar dos universos
escolares para demonstrar o seu “natural” à vontade[979]); outra mais
recente e dependente de uma “aprendizagem
institucional”, ou seja, escolar.
No
entanto, a tipologia que construímos[980], recolhe também
importantes contributos de Olivier Donnat, nomeadamente quando este distingue
entre universos culturais “clássicos” e “modernos”. De facto, nas últimas
décadas têm ocorrido, não só transformações significativas no campo da oferta,
como na composição dos públicos. No primeiro caso, ganha particular relevância
a emergência de novos critérios e instâncias de socialização ligadas à ascensão
da cultura audiovisual e das indústrias a que nenhum campo artístico escapa.
Donnat refere a necessidade dos artistas em gerirem “o equilíbrio instável entre dois registos, o do seu campo de pertença
e o da economia mediático‑publicitária (...) cada um deve procurar em
permanência conciliar estas duas temporalidades visto que a notoriedade
acumulada sobre o terreno mediático funciona como um capital susceptível de ser
convertido nos capitais específicos do domínio de origem (...) a grande maioria
dos artistas procuram hoje a estratégia ideal que permite acumular o máximo de
capital mediático sem perder a consideração do seu meio”[981]. No caso da procura
assiste‑se a uma forte recomposição social ligada a uma massificação
escolar (muito recente, embora extremamente visível no caso português) e à
consequente inflação e desvalorização dos diplomas. Ou seja, para alcançar uma
posição social privilegiada torna‑se necessário acumular cada vez mais
credenciais escolares. Por outro lado, em especial para as jovens gerações,
diversificam‑se as fontes de transmissão e aquisição de capital cultural,
quebrando o monopólio do duo família‑escola: os mass media, os grupos de pares e as redes de sociabilidade em geral
apresentam‑se como canais de difusão e produção de novas formas
culturais. Os aparelhos ideológicos (para utilizar a terminologia
althusseriana) apresentam‑se crescentemente de maneira difusa e informal,
penetrando com uma intensidade inaudita no próprio espaço privado. Assim, torna‑se
fundamental perceber se a estrutura do capital escolar é de índole “clássica”
(resultando de uma situação de reprodução da posição social de origem) ou
“moderna” (resultando de um processo recente de mobilidade social ascendente ou
descendente). Esta distinção permite, para além do que Bourdieu afirmou,
compreender situações de quebra de homologia, ou seja, situações em que a um
alto capital escolar não corresponde, necessariamente, uma inculcação das
predisposições da cultura “legítima” (ela própria em processo de
diversificação, dada a pluralidade de instâncias de consagração, muitas vezes
alternativas e/ou conflituosas). Tal tenderá a acontecer com os indivíduos
portadores de um alto capital escolar de cariz moderno, na medida em que, às
condições iniciais de transmissão e inculcação familiar de um certo volume de
capital cultural, se sobrepõem os comportamentos e aquisições cognitivas
posteriores mercê de um contacto mais prolongado com a escolaridade e, não
menos importante, com um outro modelo de escola[982], ameaçada no seu
monopólio de agência oficial de educação formal (e de aplicação da violência social legítima: uma violência
simbólica, dissimulada), sem as antigas condições de impor arbitrariamente o
seu arbítrio cultural, ou seja uma cultura particular apresentada como a única,
a universal, a legítima[983]. Estes indivíduos
tenderão a ver a cultura legítima tradicional, com as suas hierarquias e
sistemas de classificação, como uma das várias divisões da realidade possíveis,
aumentando a sua predisposição para o ecletismo e para o que Donnat apelida de universo cultivado moderno[984].
De
qualquer forma, as formas de incorporação
de capital cultural extra‑familiar tenderão a ser predominantes nas
situações em que o cariz “moderno” do capital escolar resulta de trajectórias
intergeracionais de mobilidade ascendente (correspondente aos inquiridos
com capital escolar “moderno” e alguns casos de médio capital escolar “moderno”[985]). É certo que
existirá uma tendência transversal (e de certo modo transclassista) ligada à
condição juvenil, pelo que já anteriormente foi explicado: o período formativo das novas gerações
coincide com a “explosão” da economia mediático‑publicitária e da cultura
audiovisual, com a correspondente superestrutura de valores dominante. Além do
mais, dada a clara juvenilidade da amostra, tal facto será ainda mais pesado. No entanto, estamos em crer que a um capital
escolar tradicional (resultante de uma lógica de reprodução social) corresponderão
universos culturais relativamente mais “clássicos”.
A centralidade do capital escolar nas
estratégias de mobilidade e reprodução social intergeracional da sociedade
portuguesa encontra‑se aliás eloquentemente demonstrada por estudo
recente: “...quanto mais se moderniza um
país semiperiférico, pelas lógicas de classe diferenciadas na relação com a
escola, maior será a impermeabilidade das qualificações, isto é, mais decisivo
será o facto de se possuir ou não um diploma escolar”[986].
Por
outro lado, numa sociedade como a nossa, em que se revelam elevadas taxas
brutas de mobilidade social intergeracional, aumenta, como de resto já
mencionámos, a necessidade de plasticizar o conceito de habitus e de homologia[987]. De facto, torna‑se
cada vez mais frequente a existência de descoincidências entre a origem e a
actual posição social, em grande parte devido a um maior investimento no
capital escolar. Desta forma, é mais difícil impor pela socialização familiar
um conjunto durável de disposições estéticas e de orientações normativas. Mesmo
a acção pedagógica escolar vê‑se confrontada com a escola paralela (cultura audiovisual) e com a renovada importância
das redes de sociabilidade.
Uma boa
parte destas considerações encontra tradução adequada no Quadro LI. Com efeito, verificamos que, globalmente, os níveis de
escolaridade do agregado familiar de origem são bastante mais baixos, apesar de
quase 50% dos agregados já possuírem um alto capital escolar, o que de alguma
forma dá conta da inércia da estrutura social.
Quadro LI - Capital escolar do agregado familiar
Capital Escolar do Agregado Familiar |
N |
% |
Baixo Capital Escolar |
90 |
19,9 |
Médio Capital Escolar |
151 |
33,3 |
Alto Capital Escolar |
212 |
46,8 |
De
qualquer forma, impõe‑se registar, quando observamos a situação de ego,
uma quebra de 2/3 no que respeita ao baixo capital escolar e um aumento
superior ao dobro no que toca aos inquiridos com alto capital escolar (?).
Assim, comparando o capital escolar com o efeito de trajectória, deparamos com
o Quadro LII.
Quadro LII — Trajectória
social com base no capital escolar
|
Ego |
||
Agregado Familiar |
Baixo |
Médio |
Alto |
Baixo |
Baixo capital
escolar tradicional (2%) |
Médio capital Escolar moderno (5.2%) |
Alto capital escolar moderno (12.7%) |
Médio |
Baixo capital escolar moderno (0.5%) |
Médio capital escolar tradicional (6.8%) |
Alto capital escolar moderno (24.9%) |
Alto |
Baixo capital escolar moderno (0.0%) |
Médio capital escolar moderno (6.1%) |
Alto capital escolar tradicional (41.9%) |
Aí é
marcante o peso do alto capital escolar, quer tradicional (situação de
reprodução social: 41.9%), quer
moderno (duas situações possíveis: uma de ascensão “brusca”, resultante do
cruzamento de um baixo capital escolar de origem com um alto capital escolar de
ego, contabilizando 12.7% e outra,
mais “suave”, fruto do cruzamento entre um médio capital escolar de origem e um
alto capital escolar de ego, com 24.9%).
Por
outro lado, é visível a tendência para a mobilidade ascendente ser muito
superior aos fluxos descendentes. Com efeito, enquanto que dos inquiridos com
baixo capital escolar apenas 0.5%
decaem em relação à situação familiar de origem, cujo capital escolar é médio, 17.8% ascendem a patamares mais
elevados. No que se refere aos inquiridos provenientes de um agregado familiar
com alto capital escolar, somente 6.1%
sofrem uma descida para o médio capital escolar e nenhum para o baixo capital
escolar. Esta constatação, de resto, encontra‑se bem patente no Quadro LIII, referente à situação na
trajectória.
Quadro LIII - Situação na trajectória de ego
Situação na Trajectória |
N |
% |
Trajectórias Ascendentes |
189 |
42,8 |
Situações de Reprodução |
224 |
50,7 |
Trajectórias Descendentes |
29 |
6,6 |
Assim,
nota‑se uma grande capacidade de retenção por parte das camadas mais
privilegiadas em capital escolar (a aposta nas qualificações escolares como
factor de reprodução social, o que é consentâneo com as teses de Bourdieu), ao
mesmo tempo que se verifica uma enorme porosidade por parte dos grupos com
médio e baixo capital escolar de origem para ascenderem a posições
privilegiadas, nalguns casos “saltando” mesmo patamares (passando, por exemplo,
de um baixo capital escolar de origem para um alto capital escolar de pertença,
situação que abrange 12.7% dos
inquiridos).
Podemos
pois afirmar que a nossa amostra se caracteriza por segmentos sociais
extremamente permeáveis ao movimento social, característica que, segundo Jean
Viard, é essencial para se compreenderem as novas formas de estruturação social
e os conflitos daí decorrentes. Com efeito, este autor considera que a grande
fractura social se estabelece em torno da mobilidade, dividindo os grupos
sociais “móveis” dos “imóveis”[988]. Importa, no
entanto, estabelecer duas ressalvas. A primeira prende‑se com a
influência desta mobilidade com base no capital escolar face à mobilidade
social global. Apesar da sua importância ser central na sociedade portuguesa,
como de resto tivemos ocasião de realçar, outros factores devem ser tidos em
conta. A teoria de Erik Olin Wright, por exemplo, confere igualmente relevo aos
recursos em meios de produção (propriedade) e aos recursos organizacionais
(autoridade)[989]. Outros autores
falam ainda da importância das redes de sociabilidade, que analisaremos
adiante. A segunda ressalva liga‑se à desvalorização dos títulos
escolares, também já referida. De facto, as expectativas em alcançar uma
determinada posição social adequada ao capital escolar obtido tornam‑se
cada vez mais difíceis de cumprir, dada a inflação dos títulos escolares, a par
de uma compressão do mercado de trabalho, em especial nos seus segmentos mais
qualificados. Assim, a circunstância de se deter um alto capital escolar não
implica, automaticamente, uma inserção privilegiada no mercado das categorias
sociais. Bourdieu refere ainda uma dimensão complementar a este fenómeno de
inflação dos diplomas: a perda de “qualidade
social” dos seus detentores. Por outras palavras, “um título que se torna mais frequente é por essa mesma razão
desvalorizado, mas ele perde ainda o seu valor ao tornar‑se acessível a
pessoas sem valor social”[990]. No entanto, o
autor francês reconhece que a massificação escolar e a democratização dos
patamares mais elevados do sistema de ensino modificaram a relação dos agentes
sociais com a cultura sem afectar, ainda assim, os mecanismos simbólicos da
distinção. Como é possível tal paradoxo? De acordo com Bourdieu, “a elevação do nível da procura determina
uma translação da estrutura dos gostos, estrutura hierárquica, que vai do mais
raro (...) ao menos raro”[991]. À medida que
certos bens ou práticas culturais se vão tornando comuns, as classes dominantes
accionam processos simbólicos de “reintrodução
da raridade abolida”, passando, muitas vezes, pela maneira, cada vez mais subtil, de os consumir ou frequentar,
marcando a sua diferença “natural”.
Da mesma forma funcionam as estratégias de “reconversão”
destinadas a manter as posições herdadas ou para reproduzir a relação anterior
entre o título escolar e o posto de trabalho (procurando, por exemplo, as
fileiras menos desvalorizadas do sistema de ensino). Muitas dessas estratégias
funcionam, de acordo com Bourdieu, através da manutenção de uma “representação antiga do valor do título que
favorece a hysteresis dos habitus”, facilitando, assim, com a cumplicidade
objectiva dos aparelhos de estado, a existência de situações subjectivas de
mistificação e negação da despromoção social (“hysteresis das categorias de percepção e de apreciação”[992]) e a reprodução
aparente da ancestral legitimidade.
No
entanto, perante as múltiplas rectificações feitas aos capitais escolares de
origem pelos movimentos de trajectória (que, só por si, contrariam o círculo
vicioso da reprodução social via escola) somos levados a pensar que haverá mais
do que uma alteração de superfície (mera translação, com manutenção das
distâncias relativas) na escolha e hierarquização dos gostos e práticas
culturais. Por outro lado, a objectivação e incorporação da relação entre o
título desvalorizado e o posto afigura‑se incontornável, dada a
generalização de tal situação (apesar da capacidade de resistência ser
socialmente diferenciada), tornando‑se elemento integrante das condições
de existência (“estrutura estruturante”,
segundo Bourdieu). Assim, haverá maior probabilidade de complementaridade e/ou
choque entre dimensões contraditórias das condições objectivas de existência
associadas a uma diversificação das vias e conteúdos de aprendizagem social e,
consequentemente, dos percursos de acesso a uma determinada posição na
estrutura social. Ou seja, as homologias
tenderão a ser menos rígidas e unívocas e aumentará a probabilidade de se
cruzarem níveis diferentes de legitimidade cultural. O habitus, princípio gerador das práticas, perde, por isso, poder de
unificação.
Podemos
evocar aqui o conceito de “pluralização
de mundos de vida” que Giddens importa de Berger e que o autor inglês
relaciona com a multiplicidade de “ambientes
de acção específicos” na ordem pós‑tradicional (menos sujeita ao peso
da tradição e da reprodução social)[993], cada vez mais “diversos e fragmentados”[994]. Algo semelhante
está presente na conceptualização de Berger e Luckmann quando referem que “cada papel abre uma entrada para um sector
específico do acervo total do conhecimento possuído pela sociedade”[995]. Com efeito, altos
níveis de mobilidade social (como é o caso da nossa amostra, em que pouco mais
de 50% das situações se reproduzem)
tenderão a aumentar o leque de práticas rotinizadas disponíveis, incluindo os
papéis sociais e os estilos de vida[996]. Estes sem deixarem
de remeter para os condicionamentos sociais, oferecem maior resistência a serem
classificados e a clarificarem. Os contextos de mediação entre as estruturas de
classe e as práticas sociais multiplicam‑se, deixando de depender
estritamente da inculcação inicial (familiar) e do percurso escolar. Torna‑se
mais opaca, assim, a relação outrora “transparente” entre condição de classe e
representações simbólicas. Alguns autores, desejosos de romperem com as mais
ténues reminiscências marxistas e/ou weberianas, apesar de identificarem com
argúcia alguns epifenómenos (crescente importância do consumo e dos estilos de
vida; novo papel da informação e do conhecimento; ascensão do mito
individualista; busca de auto‑expressão e pluralização das formas
identitárias; visibilidade dos novos movimentos sociais; etc.) procuram
restringir o conceito de classe social a uma função meramente descritiva
(recusando‑lhe poder explicativo ou a sua existência enquanto entidade
autónoma que represente mais do que a soma das suas partes). Outros desistem
mesmo de procurar as cumplicidades e interacções entre práticas e estrutura
social, proclamando com pompa e circunstância o fim das classes sociais[997]. Não será esse,
todavia, o nosso caminho.
Aliás,
há que assinalar que estes fluxos de mobilidade social via capital escolar não
são independentes de recomposições recentes na estrutura socioprofissional da
população portuguesa, designadamente no que se refere às categorias mais
exigentes em termos de qualificações escolares, nomeadamente as profissões
intelectuais, científicas, técnicas e de enquadramento, pertencentes às novas classes médias urbanas ou à nova pequena burguesia[998]. De acordo com
vários autores[999], é precisamente
nestes grupos que se tendem a desenvolver novos estilos de vida e modas sociais
enquanto especialistas da produção simbólica e privilegiados intermediários
culturais. Giddens, aliás, considera as oportunidades de mobilidade social como
um dos mais importantes factores de “estruturação
mediata das relações sociais de classe”[1000]. Assim, quanto
maior for a probabilidade de mobilidade (intergeracional ou no ciclo de vida
individual), menos identificável se torna a formação de classes. Esse é o caso,
precisamente, da nossa amostra o que obriga a considerar, para além da posição
ocupada na divisão social do trabalho e na propriedade dos meios de produção,
factores como os modos de vida e os estilos de consumo. Giddens chama a atenção
para o funcionamento dos grupos
distributivos como um dos elementos de estruturação
imediata das relações de classe: “relações
sociais que envolvem padrões de consumo de bens económicos, a despeito de os
indivíduos terem ou não algum tipo de avaliação consciente da sua honra ou
prestígio relativamente a outros”[1001]. Os grupos distributivos funcionam, por
isso, como princípio de complexificação e desagregação das principais divisões
de classe e podem existir simultaneamente, na nossa perspectiva, como causa e
consequência de um diferencial acesso ao mercado dos bens simbólicos, cada vez
mais centrais na economia política dado condensarem níveis desiguais de
informação, competência e qualificação.
4.2. Da insuficiência do
capital escolar como princípio explicativo.
Ao
observarmos o Quadro LIV, referente
ao cruzamento entre práticas receptivas e informativas eruditas e capital
escolar dos inquiridos, somos levados a reafirmar conclusões de anteriores
trabalhos. Com efeito, apesar de o capital escolar fazer sentir a sua
influência (os indivíduos com formação superior são os que menos se localizam
na categoria “raramente/nunca”), esta revela‑se insuficiente para
contrariar a tendência transversal de forte afastamento. Repare‑se,
aliás, que não existe qualquer clivagem imposta pelo capital escolar entre os
indivíduos que declaram aderir frequentemente a estas práticas. Atente‑se
ainda na frequência de idas ao teatro, concertos de música clássica e museus e
exposições (Anexo V/Quadros XXI, XXII e
XXIII). Com excepção das visitas a museus e exposições, a falta de adesão é
massiva.
Quadro LIV - Frequência de práticas receptivas e informativas de
públicos cultivados por capital escolar de ego
|
Capital Escolar de Ego |
||||
Práticas Receptivas e Informativas de Públicos Cultivados |
Baixo N=29 (6,0%) |
Médio N=98 (20,4%) |
Alto N=353 (73,5%) |
|
|
Frequentemente N=44 (9,2%) |
10,3 |
7,1 |
9,6 |
|
|
Com Alguma Frequência N=183 (38,1%) |
13,8 |
33,7 |
41,4 |
|
|
Raramente/Nunca N=253 (52,7%) |
75,9 |
59,2 |
49,0 |
|
|
Vários autores
têm reflectido sobre esta questão. João Sedas Nunes e Maria Paula Duarte
desmentem, com base nos resultados do inquérito às práticas culturais dos
lisboetas, a crença de que “ao aumento de
uma «impregnação» escolar corresponderia um acréscimo de apetência pelas obras
da «grande cultura»[1002] bem como a
ingenuidade de pensar que a escolaridade “se
tratará de uma condição simultaneamente necessária e suficiente”. Os
autores concluem que ela “é, muito
provavelmente, necessária; mas, em contrapartida, certamente insuficiente”[1003]. À mesma conclusão
chegam Augusto Santos Silva e Helena Santos, a propósito de um outro estudo
sobre práticas culturais, desta feita dirigido à população da área
metropolitana do Porto: “a escolarização
não representa uma condição suficiente — não chega esperar que a massificação
dos níveis relativamente elevados do sistema escolar opere o milagre da
democratização cultural”[1004]. Paulo Filipe Monteiro, por seu lado, ao estudar uma
série de inquéritos sobre frequentadores de teatro constata que a maior parte
tem progenitores com reduzido capital escolar: “é um público que criou ele próprio esse hábito, sobretudo quando
frequentou graus mais elevados de escolaridade”[1005].
Olivier
Donnat fala, a respeito das práticas culturais dos franceses, de um cenário em
tudo idêntico, levando‑o a registar, com cru realismo, o esgotamento das
utopias ligadas à emancipação do povo pela educação (designadamente, a
proliferação de equipamentos culturais, o mercado assistido — política de
baixos preços — a massificação escolar e a disseminação da televisão). No que
respeita à escolarização, Donnat assinala que “no final de mais de trinta anos de democratização escolar, constata‑se
que o alongamento da escolaridade foi acompanhado de um recuo no conhecimento
dos autores ou dos artistas que, ainda há quinze ou vinte anos, figuravam entre
os nomes mais prestigiados da cultura escolar, Isso não significa que o «nível
baixa», mas sim que a instituição escolar garante cada vez menos uma real
intimidade com o património literário e artístico que as elites transmitiam de
geração em geração”[1006]. O autor fala, em
consequência, de uma profunda recomposição no arcaico modelo unitário e
coerente do «homem cultivado». Hoje a cultura erudita vê‑se inserida em
processos de hibridização, fragmentação e legitimação de novas formas de
expressão cultural, intimamente associadas aos fenómenos da juvenilização e
espectacularização trazidos pela economia mediático‑publicitária.
Mas a
relação do capital escolar com as práticas culturais pode ser ainda analisada
por outros prismas, nomeadamente pela inversão dos critérios que estão na base
da classificação “arte média”. Esta
resulta, amiúde, da qualidade social dos
seus praticantes e do grau de raridade do capital escolar que possuem. No
entanto, se atentarmos numas actividade tradicionalmente enquadrada nesta
taxinomia na sua relação com o capital escolar dos inquiridos (fazer fotografia
com intuitos artísticos — Anexo V/Quadro
XXIV) compreendemos a inoperância de tais critérios. Com efeito, no caso da
fotografia, a “arte média” nobilita‑se
e torna‑se distintiva tal a raridade absoluta dos seus praticantes, mesmo
entre os que detêm maior capital escolar[1007]. No que se refere
ao cinema (Anexo V/Quadro XXV) a
nobilitação dá‑se não pela raridade em termos absolutos dos seus
praticantes, mas sim pelo seu público, de acordo com a amostra, ser
maioritariamente composto por inquiridos com alto capital escolar.
Há ainda
outra espécie de casos “atípicos”. Trata‑se de práticas criativas
situadas na esfera erudita (como por exemplo as artes plásticas ou a escrita
literária — AnexoV/ Quadros XXVI e XXVII)
em que não se nota qualquer discriminação significativa com base no capital
escolar. De facto, a raridade gritante de praticantes distribui‑se de
forma idêntica pelos níveis de capital escolar. É uma prática generalizadamente escassa. De forma
paralela há práticas generalizadamente
profusas. Atente‑se no exemplo do televisionamento (Anexo V/Quadro XXVIII). Apesar de uma
ténue clivagem entre os detentores de baixo capital escolar e os demais (os
primeiros são espectadores mais assíduos) é nítido tratar‑se de uma
prática amplamente partilhada.
No caso
da leitura (de livros e de jornais, não de revistas), no entanto, existem
diferenças (Anexo V/Quadros XXIX e XXX),
ainda que não sejam muito significativas. Os inquiridos com alto capital
escolar lêem‑nos mais frequentemente. Ainda assim, o valor modal de cada
grupo etário situa‑se na mesma categoria (“frequentemente”). E entre o
médio e o alto capital escolar não há clivagens a assinalar. Tais dados são,
uma vez mais, descoincidentes face ao recente inquérito nacional aos hábitos de
leitura onde a relação com o capital escolar apresenta uma “«causalidade nítida»”[1008]. As práticas de
leitura tornam‑se mais intensas à medida que sobe quer o capital escolar
de origem, quer o capital escolar adquirido dos inquiridos.
Em suma,
as análises que se cingem ao estabelecimento de relações entre o capital
escolar e um leque de práticas culturais deparam com as limitações intrínsecas
a tal procedimento. A correlação apresenta‑se variável ou mesmo
inexistente. É difícil atribuir‑lhe a carga de variável explicativa quase
universal com que surge em certas pesquisas[1009]. Em particular na “cultura de apartamento hegemónica”[1010] e nos tempos doméstico‑receptivos
(“colonizados pela televisão”[1011]). No entanto, mesmo
nas “práticas intelectivas”[1012] ligadas à leitura e
na “cultura de saídas”, onde o capital escolar impõe distinções, torna‑se
difícil considerá‑lo como grande princípio explicativo.
Se é
verdade que a selectividade social de certos públicos e práticas continua a ser
uma “evidência”, não é menos verdade, como refere Idalina Conde que as
barreiras persistem mas de outro modo e com outra complexidade: “perduram com segmentações mais precisas que
imbrincam na expansão eclética do «cultural», correspondendo na modernidade a
um maior pluralismo de referências com os seus vários centros de legitimidade”[1013]. Mesmo as classes
dominantes, detentoras, por tradição, de um poder simbólico que lhes permite
apresentar o seu padrão de gostos como universal e o único legítimo, vêem‑se
confrontadas com uma crescente segmentação, baseada quer em atitudes receptivas
heterogéneas, algumas delas “incompetentes”[1014], quer em
especializações ou “«pericialidades»
eruditas suficientemente restritivas para retraírem a elite do(s) público(s)
artístico(s) no interior do(s) público(s) cultivado(s)”[1015].
No
entanto, o cruzamento da situação na trajectória (ascendente, de reprodução,
descendente) com o grau de identificação face aos pólos consagrado/não
consagrado e moderno/clássico nos domínios do cinema, literatura e música não
nos fornece qualquer contributo significativo (Anexo V/ Quadros XXXI a XXXIX). De facto, a principal conclusão a
que se chega prende‑se com o grau global de incompetência dos públicos da
amostra. O pólo constituído pelo grau nulo e baixo de identificação é sempre
superior ao conjunto dos níveis médio e alto (este último quase sempre
residual, com excepção dos consagrados musicais clássicos, amplamente banalizados
e divulgados pelas indústrias culturais e mass
media). Esta constatação, no entanto, não é de somenos importância, já que
contribui para derrubar o mito de que o credencialismo escolar é um passaporte
seguro para a apropriação distintiva da alta cultura.
4.3. Da desertificação do
espaço público e suas consequências.
Atente‑se
nos Quadros LV e LVI. Duas constatações ressaltam com nitidez. Em primeiro lugar, o
espaço semi‑público é muito mais frequentado que o espaço público que
quase se pode considerar terra de ninguém.
Em segundo lugar, a posse de capital escolar encontra‑se associada à
frequência do espaço semi‑público (quanto maior é o capital escolar, mais
elevada se torna a frequência), não exercendo, porém, qualquer efeito em
relação à esfera pública.
Quadro LV - Frequência do espaço semi-público por capital escolar de
ego
|
Capital Escolar de Ego |
||||
Espaço Semi‑Público |
Baixo N=25 (5,5%) |
Médio N=94 (20,5%) |
Alto N=340 (74,0%) |
|
|
Frequentemente N=151 (32,9%) |
16,0 |
30,9 |
34,7 |
|
|
Com Alguma Frequência N=245 (53,4%) |
56,0 |
47,9 |
54,7 |
|
|
Raramente/Nunca N=63 (13,7%) |
28,0 |
21,3 |
10,6 |
|
|
Tais distinções ligam‑se, a nosso ver, às características intrínsecas de cada esfera na sua relação com as características sociais dominantes no espaço‑tempo em que vivemos. De facto, a frequência do espaço semi‑público liga‑se a um conjunto de práticas que prolongam, nalguns casos, os quadros de vida do habitat residencial (certos cafés ou cervejarias; ir à missa ou a cerimónias religiosas; fazer compras; etc.) ou que, noutros casos, requerem um investimento em redes de sociabilidade de entes afectivamente próximos (embora em graus diferentes, com vínculos de intensidade distinta). Por outro lado, certos segmentos do espaço semi‑público apresentam um acesso diferencial, quer em termos de crenças (frequentar a Igreja, por exemplo), quer em volume de capital económico (ir almoçar ou jantar fora; ir a bares e discotecas; etc.), quer ainda em recursos culturais (por exemplo, ir ao cinema).
Quadro LVI - Frequência do espaço público por capital escolar de ego
|
Capital Escolar de Ego |
||||
Espaço Público |
Baixo N=23 (5,3%) |
Médio N=89 (20,4%) |
Alto N=325 (74,4%) |
|
|
Frequentemente N=2 (0,5%) |
|
|
0,6 |
|
|
Com Alguma Frequência N=73 (16,7%) |
26,1 |
25,8 |
13,5 |
|
|
Raramente/Nunca N=362 (82,8%) |
73,9 |
74,2 |
85,8 |
|
|
Ora, o
espaço público, por seu lado, caracteriza‑se por ser, à partida,
acessível a qualquer um e indiferente às redes de afinidades electivas
(efectivamente, no entanto, quanto mais fechada for uma sociedade e certos
recursos forem monopólio de grupos, classes, etnias ou sexo, mais o espaço
público tenderá a restringir‑se ou, no limite, a desaparecer). Como faz
notar Habermas, a origem clássica deste conceito remete‑nos para o
sujeito público, portador da opinião
pública e garante de uma esfera comum a todos os cidadãos livres (categoria que
na antiguidade greco‑latina era, ela própria, extremamente selectiva...)[1016]. Através da
conversação (lexis) e da prática
comunitária (praxis), desenvolve‑se
a identidade específica do espaço público: “tudo
se torna visível a todos”[1017]. Mas, mais do que
isso, os fundamentos da ordem social são discutidos e analisados, longe dos “gabinetes dos príncipes”, exercendo o
público um verdadeiro poder de supervisão: “a
totalidade do público constitui um tribunal que vale mais do que todos os
tribunais reunidos”.
Mas o
que acontece, hoje em dia, para tamanha desvitalização do espaço público?
Antes de
mais, devemos enfatizar o carácter relacional deste conceito. O público só
existe em função do privado e vice‑versa. Ora, o que tende a verificar‑se
actualmente é a omnipresença do privado, com a destruição do equilíbrio e da
tensão que entre ambos existia. Como refere Sennett, “tornamos o facto de estarmos em privado, a sós connosco próprios e com
a família e amigos íntimos, um fim em si mesmo”[1018]. Do mesmo modo, o
privado torna‑se o padrão de tudo: não só o auto‑conhecimento se
tornou uma obsessão, como a preocupação principal reside nas pessoas, na sua
psique e não nas suas acções ou projectos (veja‑se o que se passa na
esfera política, em que a natureza de classe do poder é mistificado pela crença
nas qualidades pessoais dos actores políticos, doravante o principal critério
de avaliação das suas acções). De certa forma, estamos a assistir a uma
obliteração do carácter social da existência humana. Tudo se torna um assunto
de âmbito pessoal e de resolução íntima. A vida social e os assuntos públicos
passam a ser tratados como sentimentos e emoções pessoais. O espaço privado, em
suma, deixa de estar confinado a barreiras precisas. A “tirania da intimidade” resulta, por isso, da redução da
complexidade da realidade social (e da sua divisão em classes...) a um só
princípio subjectivo: a autenticidade dos sentimentos de cada um. A grande
“armadilha” reside no aumento de expectativas face às recompensas pessoais. De
facto, na medida em que o self se
encontra num processo de auto‑absorção narcísica, aumenta a ansiedade e a
desordem emotiva; na medida em que o outro
perde o seu significado social e a sua própria especificidade, a interacção
desvaloriza‑se. Mais do que a sua identidade, procuramos saber o que o
interlocutor íntimo significa para nós. Este processo impede‑nos de “compreender o que pertence ao domínio do
self e da auto‑gratificação e o que lhe é exterior”[1019]. O mundo torna‑se
“um espelho de mim”[1020], superfície onde se
reflectem os contornos de um eu omnipresente. No fundo, perdemo‑nos na
busca perpétua de “quem somos”, negligenciando o significado social dos
encontros na esfera pública, por definição propiciadora de cruzamentos mais ou
menos aleatórios com estranhos; pessoas que avaliaríamos pelas suas acções
(gestos, posturas, discurso) através da “objectividade
dos signos expressivos”[1021] e não mediante a sua personalidade. O “mercado de troca de auto‑revelações”[1022] acaba, assim, por
destruir o espaço público. Toda a apresentação no espaço público (a começar
pela indumentária) acaba por ter um significado associado às características
humanas, psicologizando‑se. Desta forma, a sociedade íntima torna‑se
uma ameaça. Qualquer pormenor pode revelar a estranhos as nossas
idiossincrasias mais pessoais. O espaço público passa a ser um lugar de
passagem e não de encontro; de silêncio e não de diálogo; de “sentimentos
congelados” e não de expressividade; de observação e voyeurismo e não de
participação activa. A casa e a família emergem como refúgios moralmente
seguros e tornam‑se um claro contraponto à ordem pública. A sociedade
íntima condiz, afinal, ao isolamento.
Compare‑se
o quadro anterior com os que em seguida apresentamos, referentes às práticas
domésticas receptivas, de consumo e/ou fruição (Quadro LVII), essencialmente baseadas na cultura audiovisual, e às
práticas domésticas expressivas, de interacção e sociabilidade (Quadro LVIII) como ir a casa de amigos
e familiares ou recebê‑los em sua casa.
Quadro
LVII - Práticas domésticas receptivas de consumo e/ou fruição por capital
escolar de ego
|
Capital Escolar de Ego |
||||
Práticas Domésticas Receptivas, de Consumo e/ou Fruição |
Baixo N=28 (6,2%) |
Médio N=94 (20,7%) |
Alto N=332 (73,1%) |
|
|
Frequentemente N=331 (72,9%) |
71,4 |
63,8 |
75,6 |
|
|
Com Alguma Frequência N=117 (25,8%) |
28,6 |
36,2 |
22,6 |
|
|
Raramente/Nunca N=6 (1,3%) |
|
|
1,8 |
|
|
Ao
contrário do espaço público, desertificado, o espaço doméstico, locus por excelência do espaço privado,
revela‑se hiperpovoado, características transversal aos três níveis de
capital escolar e que se reflecte com especial incidência nas práticas
receptivas. Por outras palavras, para além do retraimento na esfera do “lar”,
nota‑se um maior centramento nas actividades que não requerem, por si sós,
o exercício da sociabilidade. Duplo retraimento, portanto.
Quadro
LVIII - Práticas domésticas expressivas, de interacção e sociabilidade por
capital escolar de ego
|
Capital Escolar de Ego |
||||
Práticas Domésticas Expressivas, de Interacção e Sociabilidade |
Baixo N=27 (5,7%) |
Médio N=101 (21,3%) |
Alto N=346 (73,0%) |
|
|
Frequentemente N=187 (39,5%) |
37,0 |
37,6 |
40,2 |
|
|
Com Alguma Frequência N=216 (45,6%) |
48,1 |
45,5 |
45,4 |
|
|
Raramente/Nunca N=71 (15,0%) |
14,8 |
16,8 |
14,5 |
|
|
A análise das
entrevistas torna esta constatação ainda mais clara. Como se pode observar pelo
Quadro LIX, as referências positivas
sobre o espaço doméstico (79.5%)
suplantam largamente as negativas (20.5%).
A casa surge como um manancial de imagens que sugerem uma idealização; uma
“âncora” que funciona como “bastidor” de uma “região de fachada” (para
utilizarmos conceitos caros a Goffman). Um local que permite o desvendamento, a
autenticidade, a segurança afectiva e o relaxamento, ao contrário do controlo
social e da vigilância presentes nas “regiões frontais” ou “fachadas”.
Quadro LIX — Imagens associadas à casa e a “estar em
casa
Positivas |
Nº * |
Negativas |
Nº * |
.As pessoas/a família .”O meu espaço” .”O meu quarto” .Refúgio .Relaxamento/descanso .Isolamento e introspecção .Conforto .Privacidade .Paz e tranquilidade .O local ideal .”Onde nos sentimos bem” “O ninho” |
16 13 13 12 10 9 9 6 6 3 3 2 |
.Um aborrecimento .Uma obrigação .Local de passagem .Solidão .Não fazer nada .O sítio onde se dorme |
9 5 4 3 3 3 |
Total |
105 |
Total |
27 |
* Número de ocorrências
Mas repare‑se
que a casa é, antes de mais, a célula familiar que, contra os discursos sobre o
seu “fim” iminente, persiste em revelar a sua centralidade. Perante a “selva”
exterior, a casa familiar assemelha‑se a um “baluarte” afectivo, embora
nada nos permita concluir da generalização de uma representação que a tende a
ver como um domínio “moralmente superior” em regime de autarcia. Aliás, a
oposição dominante afasta casa e trabalho/estudo (“o mundo de fora”); tempo de
desgaste e tempo de recuperação e repouso (“o mundo de dentro”), mostrando, uma
vez mais, a sua estreita ligação, e não directamente espaço público e privado.
Habermas acentua essa relação entre uma esfera profissional que se autonomiza e
a família que “se recolhe a si mesma”[1023]. De facto, parecem ser
extemporâneos os Requiems pelo fim do
trabalho e do seu carácter estruturador das rotinas diárias, o que não impede
que a habitação surja como “ponto fixo”
(o “pivot” das sociedades‑arquipélago[1024]) em contextos de
acentuada distância casa/trabalho e de crescente mobilidade sócio‑profissional[1025]:
“Ficar em casa é uma oportunidade de ficar
com a família. Normalmente passo o dia fora de casa e regresso à noite, por
isso só estamos juntos ao fim do dia. A casa é um refúgio”; “Ficar em casa é
mais para descansar e conviver com a família”; “A casa é o sítio onde nasci,
cresci e espero envelhecer e ficar em casa é passar uma noite agradável na
companhia de familiares ou de amigos”; “é
uma forma de refúgio, conforto, de esquecer o mundo cá fora e os problemas”.
Graham
Allan refere a este propósito a importância de que a casa se reveste para as
novas classes médias, enquanto local preferencial de sociabilidade e espaço
privilegiado onde se recebem os amigos. Desta forma, a casa torna‑se “um meio efectivo de descontextualizar e
alargar os parâmetros da sociabilidade”[1026], libertando as
amizades dos constrangimentos do círculo social onde nasceram. Assim, a
habitação surge como uma confortável arena privada e uma expressão da
identidade pessoal e social do seu proprietário[1027]. Transforma‑se
em signo e local de apresentação e representação (Allan analisa a este respeito
o papel ritual dos jantares de cerimónia[1028], enquanto ocasião
de dar a conhecer a versão pública do
espaço privado), ou, de acordo com a terminologia bourdiana, um exemplo de
capital cultural objectivado.
No
entanto, por vezes a dicotomia interior (casa)/exterior (cidade) remete‑nos
para as questões da (in)segurança e das patologias urbanas. Neste sentido,
Sennett fala de uma “sociedade
incivilizada” em que apenas uma minoria de favorecidos, morando em zonas
recatadas e seguras, pode usufruir da urbanidade.
“A casa é um refúgio do dia, do dia‑a‑dia,
da selva que é a cidade”; “Ficar em casa é um porto seguro”; “A casa é o
abrigo, o refúgio onde nos sentimos mesmo à vontade, é o reino”.
No
entanto, importa relativizar o papel de âncora da família. Existe uma
hierarquia interna que tende a privilegiar o quarto e a possibilidade de total
recolhimento e privacidade. Dentro do “lar”, as zonas comuns são muitas vezes
preteridas pelo espaço que mais directamente prolonga a intimidade, o que de
certa forma confirma tanto as análises de Sennet como as de Giddens e
Featherstone quando estes autores identificam, apesar de daí retirarem ilações
antagónicas, a busca de auto‑identidade enquanto traço característico da
contemporaneidade. Repare‑se na utilização recorrente do determinante
possessivo:
“Em
casa estou mais no quarto, é onde tenho mais privacidade”; “A casa...entendo
isso como o meu canto...o meu canto privado...mas também pode ser o meu
quarto”; “Apesar de viver com a minha namorada eu tenho um espaço meu, o meu
quarto, onde gosto muito de estar, sinto‑me lá bem...as minhas coisas
pessoais, as minhas brincadeiras...ouvir música, brincar com a viola”; “na casa
gosto do meu quarto, é o meu território (...) está tudo à minha medida, é o meu
espaço”, “ficar em casa é como encontrar um lugar para mim, para estar sozinha”.
Habermas
realça esta modificação em que a casa se torna menos um espaço familiar e mais
um espaço feito à medida do indivíduo, deixando de ser o prolongamento privado
do espaço colectivo: “Caso olhemos para o
interior de nossas moradias, então descobre‑se que o «espaço familiar», o
lugar de permanência em comum (...) tornou‑se cada vez menor ou
desapareceu por completo. Em compensação, os quartos privados de cada um dos
membros da família tornaram‑se cada vez mais numerosos, sendo decorados
de modo característico”[1029]. Um dos
entrevistados não podia ser mais explícito: “quando
estou em casa estou comigo”. Esta ênfase no recolhimento no interior do
espaço doméstico parece dar razão a Senett quando este autor refere a
necessidade de haver barreiras que protejam a intimidade das pessoas e impeçam
a vigilância e o controlo permanentes: “As
pessoas são tanto mais sociáveis quanto mais existam barreiras tangíveis entre
elas (...) Os seres humanos necessitam de alguma distância em relação à
observação íntima por parte dos outros, de forma a sentirem‑se sociáveis”[1030]. Esta necessidade
de protecção e de isolamento em relação ao “clã” familiar será ainda maior no
caso dos jovens que, devido ao prolongamento do período de moratória, são
obrigados a permanecer na dependência dos pais. Eles, mais do que as outras
categorias sociais, são os especialistas da construção de micro‑casas: a casa dentro da casa.
Existem
situações, inclusivamente, em que a casa se dissocia da família e em que os
modos de habitabilidade traduzem a necessidade de mobilidade associada a uma
vida independente, sem vínculos afectivos associados ao espaço residencial.
Quebra‑se, por isso, a imagem da casa como lugar identitário:
“Felizmente “barra” infelizmente vivo
acompanhado ... mas é engraçado ... é tipo uma comunidade franciscana...em que
as pessoas como têm horários completamente diferentes, praticamente nunca se
vêem...o que se passa é uma coisa extremamente cómoda...mas pronto, quando é
preciso pagar as contas ao fim do mês está toda a gente lá reunida para o bem e
para o mal. As pessoas lá de casa...um colega meu dedica‑se a orçamentar
estruturas móveis...aeroportos, estações de comboios. É engenheiro, um tipo
porreiro, mas é engenheiro...tenho outro colega meu que é de medicina
dentária...por isso tem o quarto extremamente bem decorado...tem lá nos frascos
umas dentaduras, umas coisas do género...uma mala cheia de brocas, parafusos
horríveis. Aquilo parece a tortura inquisitória. É um tipo agradável, para
contactar de quinze em quinze dias. Eu lá estou, de vez em quando...Estou em
casa sem ter casa” (Sexo masculino, 22 anos, gestor)
Mas o
significado da casa não deixa de ser ambivalente. Para uma minoria ela é
sinónimo de prisão e de tédio, de sociabilidades amorfas. A única função da
casa parece ser a de assegurar a passagem entre o dia que acaba e o que começa:
“A casa é o pousio, mas depende das idades, a
certa altura é só para comer e dormir”; “ficar em casa é uma monotonia”; “eu
fico em casa quando estou cansado, quando não estou saio (...) a casa é para
dormir”, “ficar em casa é pastar...”, “a casa hoje em dia é mais um local de
passagem, é um dormitório”
Esta
minoria constrói, igualmente, uma representação muito favorável das saídas
nocturnas e de todo o espaço‑tempo exterior à casa. Coincide, muitas
vezes, com pessoas que vivem sós ou fora do local onde habita a família.
Em
síntese, apesar da instituição familiar aparecer como núcleo‑duro da
afectividade, parece extremamente precipitado concluir que é em seu redor que
se estruturam os espaços‑tempos domésticos. A fuga para o quarto, a procura de introspecção e recolhimento, têm
necessariamente efeitos de diluição de uma pretensa omnipresença familiar.
Neste sentido, somos levados a reforçar a ideia já anteriormente avançada de
que os contextos de reprodução social extra‑familiares têm vindo a ganhar
importância, a par do desenvolvimento de uma cultura auto‑centrada que,
ao contrário do que muitos propagam, não se deve a motivos de índole
estritamente psíquica, encontrando‑se pelo contrário radicada nas
transformações sócio‑culturais mais amplas das sociedades contemporâneas.
Em suma, não se confirma uma desestruturação da família, tão‑pouco o seu
fim, mas também não existe uma reprodução inerte dos velhos modelos familiares.
François Ascher refere, neste âmbito, que “o
reforço dos laços familiares opera‑se igualmente num quadro de autonomia
crescente de cada um dos membros, o que exprime, também a este nível, o
processo de individualização, contribuindo para fazer dos parentescos sistemas
cada vez mais complexos”[1031].
O espaço
privado tende, aliás, a ser penetrado por influências cada vez mais distantes,
criando‑se uma espécie de “lugar
fantasmagórico”, segundo a expressão de Giddens, promovendo relações com
interlocutores ausentes, “distantes de
qualquer situação de interacção face‑a‑face”[1032]. Os mass media contribuem intensamente para
este esvaziamento do espaço e para a perda das relações de proximidade,
aumentando a “indiferença possível”
perante os outros que partilham a mesma unidade residencial. Como refere
Ascher, “os verdadeiros vizinhos
metapolitanos ignoram‑se”[1033], contrariando a “mitologia comunitária” do bairro da
cidade industrial.
Atente‑se
no Quadro LX referente às
actividades predominantes no espaço doméstico, de acordo com as declarações dos
entrevistados.
Quadro LX ‑Actividades Predominantes no
Espaço Doméstico
Dos entrevistados |
* |
Dos familiares |
* |
.Ver TV .Ouvir música .Ler .Trabalhar/estudar .Ver programas em vídeo .Dormir .Jogar no computador .Conversar .Tocar um instrumento .Jogar .Escrever .Lides domésticas .Falar ao telefone |
58 44 30 18 17 14 13 11 8 5 3 3 2 |
.Ver TV .Conversar .Ler .Sair com amigos .Ouvir música .Lides Domésticas .Trabalhar .Jogar no computador .Ver programas em vídeo .Ir ao café |
37 18 8 8 7 4 4 4 3 2 |
* Número de ocorrências
Ver TV é
sem sombra de dúvidas a actividade hegemónica. Podemos mesmo afirmar que existe
um nítido domínio da cultura audiovisual e da dupla som/imagem (ouvir música,
assistir a programas em vídeo, jogar no computador). Esse domínio é mais
visível nas práticas referentes aos próprios entrevistados, o que não será de
estranhar dada a grande juvenilidade (comprovada pelo inquérito) dos utentes
dos espaços em estudo. No entanto, não podemos deixar de realçar a importância
relativa das práticas de leitura, nem tão‑pouco a diversidade de
actividades mencionadas. O espaço doméstico não é atravessado por uma lógica
unidimensional de apropriação cultural, apesar do claro domínio televisivo.
Mesmo os usos que se fazem da televisão podem conduzir a práticas interactivas,
através de processos complexos de recepção cultural que contribuem para
interpretações social e culturalmente diferenciadas (ou mesmo divergentes)
sobre as mensagens transmitidas.
Habermas
tem, a este respeito, uma perspectiva claramente pessimista. Ao falar dos modos
de socialização “imediatos” que se imiscuem no espaço privado, desafiando o
papel tradicional da família, o autor alemão fala de consumismo e da
constituição de uma pseudo‑esfera pública (mass media) que se assemelha a uma “espécie de superfamília”: “Mesmo
ao se ir junto ao cinema, ao se escutar conjuntamente rádio ou a olhar televisão,
dissolveu‑se a relação característica da privacidade correlata a um
público”[1034]. O resultado é a
transformação do que seria um público numa massa, fenómeno agravado pela
dissolução dos contextos de comunicação pública “em actos estereotipados de recepção isolada”[1035]. A família deixa de
ser uma “esfera privada protectora e
sustentadora”[1036] e o indivíduo,
perante uma cultura que serve meramente como integração, “torna‑se um número no programa dos astros da rádio e da
televisão”[1037]. Algumas afirmações
dos entrevistados parecem dar razão à análise de Habermas, segundo a qual o
esvaziamento da função socializadora da família, entre outros factores,
contribui para uma mudança de paradigma do “homem
pensador de cultura” para o “homem
consumidor de cultura”:
“Se der um bom filme na TV vejo, senão posso
alugar um filme ou então vou para a cama”; “Quando fico em casa vejo TV, ouço música, pode ainda ser o computador,
o telefone para pôr a conversa em dia e jogar cartas. Às vezes, mesmo tendo
gente em casa procuro estar sozinha, nem sempre convivemos”; “ficar em casa é
deitar no sofá e ouvir música o dia todo”; “Trabalhar e dormir. Ao fim de
semana descansar ou passear pelos arredores”; “Os meus familiares vêem muita
televisão. Só se conversa à hora das refeições”; “Os meus familiares estão em
casa a dormir ou a ver televisão”; “A
minha mãe vê televisão ou está na lida da casa, o meu pai ou está com os
comboios dele ou está a ver televisão”.
Mas
muitos outros excertos demonstram a preocupação em diversificar os espaços‑tempos
domésticos, dotando‑os de um conteúdo convivial, expressivo e mesmo
criativo. Há também posicionamentos críticos em relação à programação
televisiva, o que vai contra a figura do consumidor passivo e adormecido
(próprias do sistema do “don't talk back”)
e da descrição que Habermas faz do público telespectador, sem a distância
necessária ao exercício das capacidades emancipadoras e sem a “oportunidade de poder dizer e contradizer”[1038]. Alguns
entrevistados denotam ainda uma tendência para uma certa especialização de
gostos e escolhas:
“Vejo filmes vídeo, a televisão não
presta...ler, muitas vezes ler, basicamente é isso”; “Ouço música, gosto de
ler, vejo às vezes filmes”; “Ouço
música, vejo filmes, converso com os amigos. A música é escolhida por mim”;
“televisão vejo cada vez menos, por
exemplo ao Sábado à noite há o Big Show Sic e coisas do género...”; “Fico
em casa e vejo um filme, convivo com os amigos, leio e escrevo”; “Costumo ler e pintar”.
Não
faltam igualmente referências às saídas nocturnas: “Os meus pais só ficam em casa para trabalhar, senão saem”; “Os meus pais saem à noite, conversam,
lêem...”.
Em
síntese, somos de opinião que, mesmo tendo em conta situações de potencial
reprodução de uma “ordem social negativa”
em que “integração e inanição deixam de
se distinguir com nitidez”, propiciando situações de “anomia implosiva”[1039], não se pode falar,
em relação a este conjunto específico de entrevistados (seleccionados em
situações de saída cultural nocturna,
com uma probabilidade eventualmente elevada de serem praticantes culturais
assíduos) de uma total subjugação a uma lógica unidimensional de consumo.
O que,
bem entendido, não invalida a constatação de hipertrofia do espaço público
urbano e de desvitalização dos valores de uma certa mundanidade e cosmopolitismo.
No entanto, importa salientar a inadequação
da teoria habermasiana da esfera pública às novas condições da cultura,
designadamente no que se refere à compressão do espaço‑tempo, tornada
possível, entre outros factores, pela globalização da informação e pelos novos
meios electrónicos de comunicação[1040]. Ao contrário da
concepção de esfera pública do autor alemão, baseada na interacção face‑a‑face,
as nossas sociedades são, cada vez mais, “sociedades‑arquipélago”,
marcadas por um maior conhecimento do longínquo face ao geograficamente
próximo: “Lá onde o camponês conhecia
cada detalhe de alguns hectares, nós, nós conhecemos alguns detalhes do planeta
inteiro”[1041]. O vizinho passa a
ser o desconhecido próximo de nós, ou, nas palavras de Viard, “o longínquo pode estar mais próximo do que
o próximo e o próximo mais longínquo que o longínquo”[1042]. Neste sentido,
modifica‑se, em especial para os agentes “multipolares e multi‑informados”, socialmente minoritários,
mas com reflexos em todo o tecido social, a representação do território e das
escalas de intervenção. Seguindo
Giddens, a actividade social e as relações sociais são “arrancadas” dos “contextos locais de interacção” e
reestruturadas “através de extensões
indefinidas de espaço‑tempo”[1043]. Consequentemente,
o território torna‑se descontínuo, fragmentário, baseado em redes e
fluxos. Em suma, “um imenso patchwork”
que resulta da montagem que cada um faz das suas deslocações na “cidade invisível”[1044] que em muito
ultrapassa os velhos limites materiais e administrativos da urbe. François
Ascher, a propósito da sua “Metapolis”,
conceito de urbanidade que substitui a metrópole, fala das “combinações múltiplas, flutuantes e relativamente diluídas” dos
modos de vida e das mentalidades urbanas.
Todos
estes contributos, no entanto, não nos devem fazer esquecer a necessidade de
preservação das condições de comunicação face‑a‑face. Se é verdade
que o distante e o próximo se interligam de forma complexa e que a mobilidade
está no centro das estratégias dos actores sociais (diferentemente mobilizável
consoante a distribuição de poder), não é menos verdade que a dissolução dos
encontros e cenários de co‑presença contribui para um enfraquecimento da
imaginação social e dos processos sociais de comunicação. Desenraizados face
aos contextos físicos de interacção, envoltos em sociabilidades e redes
virtuais ou intermutáveis, imbuídos da lógica das transacções distantes no
espaço‑tempo, os agentes perdem toda a riqueza da comunicação não‑verbal
e das suas componentes extralinguísticas. A gama possível de sinais expressivos e de variações de estilo[1045] reduzem‑se a um conjunto de procedimentos e
linguagens minimais (como o Basic English
da informática ou as abreviações e ícones da comunicação/conversa via Internet)
que não exploram as características de um ambiente específico rico em
pormenores que dignificam a comunicação, processo inserido numa “complexa trama histórica e social”[1046].
Outra
dimensão criticada em Habermas é o seu alegado elitismo, a lembrar o retrato
dos “intelectuais apocalípticos” traçado por Eco. A relação que estabelece com
a cultura de massas enquadra‑se na descrição que DiMaggio tece sobre
certas perspectivas teóricas que fazem a síntese das “preocupações liberais sobre a cidadania na era pós‑fascista com
as noções marxistas de alienação e um desprezo elitista pela cultura popular”[1047]. Nesta linha, Jim
McGuigan propõe que não se trate a esfera pública como uma entidade abstracta e
universal, mas sim como “uma referência
normativa assente nas suas formas plurais enquadradas em contextos específicos”[1048], sem deixar de lado
a arte, os media e as modalidades
afectivas e quotidianas de construção de sentido e de identidade. Em suma, uma
esfera pública adequada a uma realidade sócio‑cultural multidimensional.
4.4. Cultura e redes sociais.
Paul
DiMaggio é um dos autores que mais tem tentado relacionar a estruturação dos
campos culturais (ele apelida‑os de “sistemas
de classificação artísticos”) com a existência de redes de sociabilidade,
enquanto elemento fundamental de circulação de informação utilizada nos
processos sociais de construção do gosto e de reposicionamento social. A sua
proposta centra‑se na análise das “formas
através das quais as pessoas utilizam a cultura para estabelecerem contactos
entre si”[1049]. Por outras
palavras, o gosto cultural é simultaneamente causa e consequência de interacção
social e de mobilização de redes sociais relativamente extensas. Se os bens
culturais são signos, sistemas comunicantes que exprimem categorias e
classificações, o acto de os consumir, pelo seu carácter efémero e evanescente,
tornam‑se um “meio portátil e por
conseguinte potente, de troca interaccional”[1050]. Os interesses
culturais são, em suma, um tema de conversa que permite, nos contactos com
estranhos que se estabelecem na esfera pública e semi‑pública,
seleccionar os elementos que desejamos integrar nas nossas redes de
sociabilidade. Além do mais, a sua análise enquanto “sistema relacional” que estabelece uma mediação entre os contextos
e círculos sociais e o espaço pessoal
permite, como referem tanto Claire Bidart como Félix Requena Santos,
estabelecer um olhar transversal aos vários domínios do social (empresa,
família, amigos, saídas culturais, vida associativa, etc.) bem como articular
variáveis macrossociológicas (estrutura social, padrões culturais, variáveis
ecológicas como a densidade e dispersão da população, etc.) com análises
microssociológicas (personalidade, relações de amizade, estilos de vida, etc.)[1051].
No
inquérito e entrevistas que aplicámos, procurámos testar a validade e o potencial
heurístico da proposta de DiMaggio para os contextos em estudo. Atente‑se
por conseguinte no Quadro LXI. Os
amigos constituem os companheiros mais frequentes das saídas nocturnas em
qualquer dos espaços em análise, seguido do namorado(a) no B Flat e Praia da
Luz e do cônjuge no Rivoli. Apenas nesta última instituição têm algum relevo as
modalidades de aparecer acompanhado por familiares ou sozinho.
Quadro LXI - Modalidade em que costuma aparecer por espaço
|
Espaço |
||||
Costuma Frequentar este Espaço |
B Flat N=135 (30,3%) |
Praia da Luz N=80 (17,9%) |
Rivoli N=231 (51,8%) |
|
|
Só N=26 (5,8%) |
4,4 |
1,3 |
8,2 |
|
|
Acompanhado por Amigos N=272 (61,0%) |
71,9 |
65,0 |
53,2 |
|
|
Acompanhado por Familiares, Cônjuge/Namorado N=148 (33,2%) |
23,7 |
33,8 |
38,5 |
|
|
Claro que esta centralidade dos amigos está
ligada à juvenilidade da amostra e ao facto associado da existência de um
grande número de solteiros. Claire Bidart[1052] e François Héran[1053] salientam o facto
de a sociabilidade decrescer claramente com o aumento da idade e com
determinadas etapas do ciclo de vida, em particular o casamento e o nascimento
do primeiro filho. Aliás, o facto de ser celibatário retarda o retraimento na
disposição de estabelecer contactos com outros que se verifica com a idade.
Mas, mais importante ainda, a idade e o estado civil relacionam‑se
intimamente com a orientação das práticas sociabilidade. Com efeito, os novos e
solteiros possuem uma mais intensa sociabilidade externa, intimamente ligada à
cultura de saídas. Pelo contrário, a orientação endo‑domiciliar é reforçada
com o casamento (instituição que marca verdadeiramente o “fim da juventude”)
aumentando com a idade até um certo ponto, onde o grau do decréscimo depende
essencialmente da posição social[1054].
O
“efeito idade” na estruturação das saídas culturais encontra‑se bem
visível no Quadro LXII. Repare‑se
que o item “costuma aparecer acompanhado por amigos”, apesar de ser
extremamente expressivo em todos os grupos etários, decresce com a idade.
Quadro LXII - Modalidade em que costuma aparecer por escalão etário
|
Escalões Etários |
|||||
Costuma aparecer |
Até 20 N=61 (14,4%) |
21‑30 N=219 (51,5%) |
31‑40 N=73 (17,2%) |
Mais de 40 N=72 (16,9%) |
|
|
Só N=23 (5,4%) |
9,8 |
3,2 |
5,5 |
8,3 |
|
|
Acompanhado por Amigos N=263 (61,9%) |
67,2 |
66,7 |
58,9 |
45,8 |
|
|
Acompanhado por Familiares, Cônjuge/Namorado N=139 (32,7%) |
23,0 |
30,1 |
35,6 |
45,8 |
|
|
Quando
esta sobe, a partir dos 31 anos, aumentam também os inquiridos que se fazem
acompanhar pelo cônjuge:
“Geralmente vou com a minha namorada... há
certos casais com quem também nos damos, mas especialmente saímos muito os
dois”
(Praia da Luz; sexo masculino; 32 anos).
“Digamos que saio cinquenta por cento
sozinho, cinquenta por cento com grupos de amigos...é ao acaso...par hasard” (B Flat; sexo
masculino; 38 anos; director financeiro).
Importa,
por conseguinte, distinguir a amizade das relações familiares ou de parentesco.
À partida a amizade tem quatro características fundamentais: autonomia
(carácter voluntário da escolha de amigos — eleição mútua), informalidade,
pessoalização e vínculo emocional (não instrumental)[1055]. No entanto,
importa relativizar o significado destas dimensões. Sendo do domínio do íntimo,
do privado e da escolha pessoal, a amizade (assim como a sociabilidade em
geral) não deixa de estar situada em espaços sociais e imersa em constelações
de valores, símbolos, esquemas perceptivos, expectativas, modelos culturais,
etc. Mesmo o seu cariz mais elementar — a relação pessoal — é uma fonte de
aprendizagem social: “É no encontro e na
interacção com o outro que o indivíduo apreende as diferenciações sociais,
aprendendo a situar‑se, a filiar‑se, a negociar o seu lugar na
sociedade”[1056]. Assim, ao
contrário da aura “romântica” da amizade pairando acima das vicissitudes e
constrangimentos terrenos (que, não raras vezes, se associa a uma
psicologização reducionista da pesquisa), somos confrontados com um fenómeno
eminentemente cultural. Ao contrário de Simmel que concebia a sociabilidade e a
amizade como “sentimento puro” ou “forma lúdica”, entendem‑se aqui
esses processos relacionais como práticas culturais, formas de mediação entre o
social e o individual, intimamente associadas aos quadros de interacção (ou “círculos sociais”, para utilizar a
terminologia de Bidart[1057]) por sua vez
inseridos em contextos sociais mais vastos (profissionais, residenciais, institucionais,
etc.). Graham Allan defende a mesma ideia ao referir que a sociabilidade deve
ser analisada através de uma articulação entre as regularidades do “ambiente social imediato” e as
convenções culturais dominantes. Por outras palavras, exige‑se ao investigador
que analise as relações informais em relação com os aspectos estruturais da
vida em sociedade[1058], salientando a
inclusão das escolhas pessoais num campo mais ou menos restrito de
possibilidades. Neste sentido, a sociabilidade é aqui entendida, retomando o
seu significado primeiro, ou seja, enquanto “capacidade
de estabelecer relações sociais” em círculos e contextos determinados[1059].
No entanto, é preciso que fique claro que não
encaramos o capital relacional como mera variável dependente, desprovida de
qualquer autonomia e incapaz de produzir efeitos na distribuição do volume
global de capital. Pelo contrário, a proposta de DiMaggio salienta a utilização
instrumental da cultura através das redes de sociabilidade. Os usos sociais da
cultura não são neutrais e os seus veículos e suportes — as redes sociais —
também não. Assim sendo, importa considerar a “economia afectiva do intercâmbio recíproco”[1060] presente nas
relações de amizade e a sua combinação de aspectos expressivos (os mais
salientes em termos de senso comum) e instrumentais (revelados pela análise
social, mas igualmente explícitos em situações de conflito ou quebra de
vínculo). Como refere Graham Allan, sendo uma relação de igualdade (por
oposição às relações de mercado) a amizade exige uma equivalência de
transacções, tanto no plano material como emocional (mesmo não existindo um
cálculo explícito nem tão‑pouco uma obrigação de reciprocidade imediata).
Embora não visando o “lucro” ou a procura de vantagem, o equilíbrio relacional
requer um regular “give and take”[1061].
O
carácter distintivo da amizade reside ainda no carácter relativamente
voluntário da sociabilidade (em especial por oposição ao parentesco, mais
rígido e formal), no seu cariz não hierárquico (ao contrário, igualmente, do
que se passa na família, em que existe sempre uma distribuição diferencial da
autoridade e do poder) e menos ligado ao contexto do que o mero colega (de
trabalho ou de estudo) ou vizinho. Desta forma, funciona como uma relação
potencialmente mobilizadora da acção em conjunto, tanto mais que geralmente se
partilham códigos, valores e condutas. Esta mesma característica reflecte‑se
na organização das saídas culturais. Tínhamos já observado que a
indisponibilidade dos amigos para sair é um dos principais obstáculos ao deslocamento
para o exterior do espaço doméstico. Se analisarmos o Quadro LXIII constatamos precisamente que as redes de amigos
funcionam como circuitos privilegiados de informação e mobilização para a
frequência de locais e práticas culturais.
Quadro LXIII - Fonte através da qual tomou conhecimento do espaço frequentado
|
Espaço |
||||
Como tomou conhecimento do Espaço Frequentado |
B Flat N=119 (34,2%) |
Praia da Luz N=76 (21,8%) |
Rivoli N=153 (44,0%) |
|
|
Através das Redes de Sociabilidade N=255 (73,3%) |
84,0 |
93,4 |
54,9 |
|
|
Através dos Meios de Comunicação Social N=93 (26,7%) |
16,0 |
6,6 |
45,1 |
|
|
O Rivoli
parece ser a excepção, com uma maior fragmentação das respostas e uma
valorização relativamente superior dos mass
media, o que não é de admirar, já que é a única instituição a utilizar
esses veículos de divulgação. No entanto, se somarmos os índices respeitantes
aos vários tipos de relações de sociabilidade (amigos, colegas, familiares,
namorado, cônjuge) atingimos valores elevados.
De igual
modo, ao observarmos o Quadro LXIV concluímos
que o principal factor que motiva os inquiridos a estarem presentes para
assistirem a um determinado espectáculo, novamente com a excepção do Rivoli,
radica nas referências e convites oriundos das suas redes de sociabilidade. No
caso do Teatro Municipal o destaque vai para a familiaridade com os artistas e
suas obras. Recordemos o que anteriormente referimos sobre o perfil cultural
dos seus públicos: apesar da sua diversidade e ecletismo, dominava a imagem de
uma ligação privilegiada à cultura consagrada.
Quadro LXIV - Motivos para estar presente por espaço
|
Espaço |
||||
Motivos para estar presente no Espaço Frequentado |
B Flat N=86 (25,2%) |
Praia da Luz N=51 (14,9%) |
Rivoli N=205 (59,9%) |
|
|
Referências através dos Meios de Comunicação Social N=62 (18,1%) |
7,0 |
5,9 |
25,9 |
|
|
Referências através das Redes de Sociabilidade N=168 (49,1%) |
76,7 |
70,6 |
32,2 |
|
|
Familiaridade com os Artistas e a sua Obra N=112 (32,7%) |
16,3 |
23,5 |
42,0 |
|
|
Este novo indicador reforça a ideia de um
maior à‑vontade nos códigos e circuitos do campo artístico por parte de
uma fracção significativa desses públicos. Ou seja, na constituição do seu
universo simbólico continua a ser importante a aquisição de competências
específicas na esfera da alta cultura. Atentando agora num dos indicadores que
foram agregados na categoria “familiaridade com os artistas e sua obra”, neste
caso o “conhecimento do percurso e da obra do artista” (Quadro LXV), identificamos, precisamente, o cluster de inquiridos do Rivoli (representando 32%) que possivelmente constrói o seu gosto pela relação de
proximidade (se não mesmo de homologia) com a cultura “nobre” e que denota a
incorporação de uma disposição cultivada. No que se refere à idade (Quadro LXVI) confirma‑se uma vez
mais a tendência para a identificação ao pólo consagrado aumentar com a idade.
Quadro LXV - Conhecimento do percurso/obra do artista por espaço
|
Espaço |
||||
Conhecimento do Percurso / Obra do Artista ou Executante |
B Flat N=142 (28,0%) |
Praia da Luz N=84 (16,6%) |
Rivoli N=281 (55,4%) |
|
|
Sim N=102 (20,1%) |
8,5 |
|
32,0 |
|
|
Não N=405 (79,9%) |
91,5 |
100,0 |
68,0 |
|
|
Quadro LXVI - Conhecimento do percurso/obra do artista por escalão
etário
|
Escalões Etários |
|||||
Conhecimento do Percurso / Obra do Artista ou Executante |
Até 20 N=73 (15,0%) |
21‑30 N=243 (50,0%) |
31‑40 N=84 (17,3%) |
Mais de 40 N=87 (17,7%) |
|
|
Sim N=99 (20,3%) |
5,5 |
18,5 |
26,2 |
32,2 |
|
|
Não N=388 (79,7%) |
94,5 |
81,5 |
73,8 |
67,8 |
|
|
No
entanto, a imensa maioria, ainda mais esmagadora nos restantes espaços,
confirma a tese de DiMaggio segundo a qual a participação e o interesse pela
“alta cultura” não se associa necessariamente a um elevado conhecimento da
mesma. Já anteriormente tínhamos concluído pela disseminação de uma atitude de
falta de identificação com referências cruciais (autores e obras) da “alta
cultura”. Desta forma, o autor americano defende que as referências simbólicas
e culturais funcionam como recursos importantes nas situações de interacção em
redes sociais difusas. De facto, a maior complexidade social (traduzida por uma
diversidade na estrutura de papéis) requer repertórios alargados. Ou seja, a
móvel e novel classe média, necessita de manipular com habilidade (embora não
necessariamente com profundidade) uma gama vasta de referências culturais.
Assim se compreende que DiMaggio refira com acutilância que essa classe média
utiliza “interruptores” para ligar ou desligar um determinado discurso de
acordo com o círculo social a que se dirige. Ora, como refere François Héran, o
vínculo emocional dessas redes difusas sugere “laços fracos”, mas com um grande
raio de acção. Este tipo de redes são característicos das grandes cidades onde
a proliferação de subculturas se liga à grande diferenciação estrutural (em
grande parte derivada da especialização económica e espacial) patente na
diversidade de estatutos ocupacionais, de situações de classe, de estilos de
vida, etc.[1062]. Exigem, por isso,
uma acentuada multiplicidade de laços, tanto mais que tende a aumentar a
incongruência entre os papéis oriundos de diferentes contextos sociais (a
categoria ocupacional, por exemplo, pode não encontrar correspondência no stock disponível de recursos e
competências culturais e um elevado capital cultural institucionalizado —
capital escolar —, como de resto observámos, pode não se traduzir em capital
cultural incorporado). Daqui resulta, por sua vez, uma maior diferenciação nos
géneros artísticos, mas igualmente um maior conhecimento e cruzamento de
géneros diferentes, a par de um esbatimento das classificações rituais,
fronteiras e hierarquias, com o desenvolvimento de justaposições e combinações
ecléticas. Aliás, o alargamento do acesso aos patamares superiores do ensino,
em curso na sociedade portuguesa, contribui para consolidar esta tendência
aventada por DiMaggio, na medida em que reduz substancialmente o valor de
raridade do capital cultural, contribuindo para “uma mútua validação da legitimidade dos diferentes gostos”[1063].
Fischer
corrobora de certa maneira esta tendência para a des‑classificação
cultural e o ecletismo simbólico ao considerar que a diversidade subcultural
urbana aumenta a probabilidade de normas e gostos heterogéneos e desviantes
face a um padrão geral, ao mesmo tempo que a diversificação de fontes de
difusão de informação possibilitará “a
adopção por parte dos membros de uma subcultura das crenças e comportamentos de
outra”[1064]. O contraste entre
os vários círculos sociais, resultante da sua multiplicidade, origina não só
fenómenos de interdependência como também de competição e de conflito. Neste
contexto, mantém toda a pertinência a análise dos consumos culturais como marcadores
de status e de identificação/diferenciação identitária.
No entanto, esta tendência não nos parece
poder ser alargada a toda a estrutura social. Ela aplica‑se
essencialmente às novas classes médias em movimento, cuja posição social não é
facilmente assinalável de acordo com parâmetros clássicos e cujo destino social
virtual não se encontra nitidamente definido. Nos grupos menos móveis manter‑se‑ão,
assim o pensamos, padrões clássicos de familiarização ou distanciamento face a
classificações culturais mais tradicionais, embora nos pareça, dada a
proliferação de obras e consumos de fronteira,
que a dicotomia bourdiana distinção/destituição
deva ser substituída por um continuum que melhor ilustre a especificidade dos
posicionamentos face à cultura. Nesse aspecto, não queremos nem podemos ir
muito mais longe, dada a relativa homogeneidade sócio‑demográfica da
amostra em análise, que nos impossibilita a comparação entre comportamentos e
atitudes culturais representativos da globalidade da estrutura social.
Importa compreender um pouco melhor a
especificidade destas redes. Em primeiro lugar, são redes caracterizadas por
uma homofilia[1065] apenas relativa,
dada a incongruência das várias dimensões de posicionamento social. DiMaggio
salienta a sua abertura a trajectos sociais ascensionais, como é o caso de
segmentos privilegiados de minorias étnicas ou das classes trabalhadoras.
Graham Allan refere a este propósito, as características distintivas da nova classe operária, desenraizada das
suas comunidades de origem, habitando grandes conjuntos residenciais onde não
se desenvolvem fortes laços de pertença e se proporcionam contactos mais
heterogéneos e diversificados, em detrimento dos modelos tradicionais de
sociabilidade centrados na vizinhança e na família[1066]. Jan C. Rupp
salienta, igualmente, na sua teoria de um espaço social a duas dimensões
(económica e cultural), a existência de uma “fracção
cultural das classes populares” com investimentos em certos tipos de arte e
em determinados estilos de vida[1067]. Nestes casos, as
altas expectativas de mobilidade social suscitam uma participação em círculos
sociais onde os recursos culturais interaccionais são centrais. Claro está que
nas redes sociais difusas, próprias das novas
classes médias urbanas os “laços fracos” são “laços ricos”. Pretendemos
ilustrar com esta expressão a constatação de François Héran segundo a qual os
circuitos de interlocutores diversificados e distantes associam‑se,
todavia, a relações socialmente mais “rentáveis”,
fora dos círculos de parentesco e vizinhança, permitindo aumentar o repertório
cultural e informacional dos agentes neles inseridos. Por outras palavras,
redes sociais muito densas, com vínculos emocionais intensos, estão associadas
a um maior fechamento social e a uma elevada “estreiteza de relações”: “A
densidade das trocas no seio de um meio social não reside na densidade das
redes interpessoais mas sim, pelo contrário, na sua dilatação. As duas
densidades variam em sentido inverso”[1068]. Estas redes
funcionam com base nos contactos de “segunda
ordem”, de acordo com a terminologia utilizada por Barnes e retomada por
Félix Requena Santos[1069], ou seja,
interacções accionadas na rede extensa,
formada pelos conhecimentos dos elementos que constituem a nossa rede efectiva, a qual é constituída por
um círculo de pessoas estreitamente ligadas entre si. Ora, os agentes com um
elevado capital cultural e relacional caracterizam‑se pela vastidão da
sua rede extensa, pouco densa,
heterogénea, mas com ramificações em domínios sociais cruciais. A este
propósito alguns antropólogos falam do multiculturalismo presente na vida
quotidiana das sociedades hodiernas, extremamente ligado à crescente
especialização profissional que se desenvolve nessas sociedades. Assim, aumenta
a competência subcultural dos agentes, na medida em que apenas podemos
generalizar determinadas expectativas face a conjuntos limitados de outros. As
expectativas multiplicam‑se em ritmo paralelo à diversidade de situações,
papéis e relações sociais. Claro está que a profundidade dessa competência
multicultural depende do grau de poder desigual dos agentes. Existe, desta
forma, um acesso diferencial à variedade subcultural[1070].
Esta
multiplicação dos laços de sociabilidade e dos repertórios culturais (cada novo
conhecimento abre‑nos os seus pequenos
mundos) está bem patente no discurso de alguns entrevistados:
“Hoje vim assistir a este espectáculo com os
meus pais, mas podia ter vindo com um grupo de amigos que gostassem de música
clássica. Depende um pouco: se for com amigos que gostem de outro género de
música de que eu também goste, acabarei por ir também a concertos de música
brasileira, rock, sei lá, de tudo um pouco, música portuguesa também, porque
não, se houverem bons concertos...” (Rivoli; sexo masculino; estudante do ensino
superior).
“Quando é para o teatro há pessoas que gostam
mesmo, ou quando é para ir a um bar de jazz tem de se gostar mesmo, senão acham
uma seca, enquanto que para um bar alinham todos” (Rivoli; sexo feminino; 23
anos; estudante de um curso de tinturaria).
“Saio com a namorada ou com os amigos. Mas
também organizamos programas para sair no grupo da faculdade” (Praia da Luz; sexo
masculino; 22 anos; estudante do ensino superior).
Convém
no entanto frisar que as saídas nocturnas a lugares de consumo cultural parece
basear‑se mais no grupo de amigos relativamente próximos (na rede efectiva) e não tanto nos circuitos
difusos com interlocutores mais distanciados (rede extensa):
“A importância dos amigos é grande, a pessoa
só vai a um certo sítio se souber que estão lá amigos” (Praia da Luz; sexo
masculino; 25 anos; arqueólogo).
“Nós temos sempre o nosso grupo de amigos,
combinamos sempre e quando temos que sair, saímos sempre juntos. Eu só consigo
curtir a noite se estiver com os meus amigos” (Rivoli; sexo masculino;
estudante do ensino superior)
“A escolha do local depende dos amigos. Por
exemplo, sozinha não saio. Sou capaz apenas de ir ao teatro ou ao cinema
sozinha, mas com os amigos saio mais” (B Flat; sexo feminino; professora de
educação física).
Aliás,
esta constatação obriga‑nos a relativizar o papel das redes difusas de
sociabilidade. De facto, em redes de amigos relativamente homogéneas (a nível
etário, étnico, de status social e mesmo de género, como múltiplos estudos
comprovam[1071]) a informação
circulará ainda mais facilmente e a uma velocidade maior, dada a probabilidade
de existir um forte consenso sobre os pressupostos da comunicação evitando‑se
“ruídos” e facilitando‑se a comunicação. Por conseguinte, e apesar do “acréscimo da «mobilidade de sociabilidade»”[1072] não se pode
generalizar a ideia de uma permeabilidade interclassista isenta de obstáculos.
O estudo recente de Elísio Estanque e José Manuel Mendes indica, precisamente,
que as qualificações, na ligação ao capital cultural, são a dimensão menos
permeável das fronteiras de classe nas redes de amizade, chegando mesmo a
introduzir uma distância simbólica acentuada entre posições de classe
estruturalmente próximas. Concluem por isso os autores que “estamos perante uma estrutura social relativamente rígida também na
constituição de amizades, sendo as qualificações a dimensão estruturadora das
relações sociais de amizade”[1073]. Graham Allan
realça, com base em vários trabalhos anteriores, que a pressão dos círculos
sociais vai no sentido de se “defender” um determinado estatuto social através
do recrutamento de amigos com uma afinidade de habitus: “Claramente, é mais
fácil tratar como iguais aqueles que realmente são iguais”[1074]. Nos nossos dados
encontramos igualmente indícios de um certo fechamento nas redes sociais. De
acordo com o Quadro LXVII são em
valor residual os inquiridos que consideram que “conhecer pessoas novas” é um
dos motivos que os levam a frequentar espaços de vocação cultural. O que
contribui para a ideia de que as saídas culturais se enquadram em redes de
sociabilidade já estabelecidas e não funcionam como uma esfera propícia à sua
dilatação.
Quadro LXVII - Possibilidade de conhecer pessoas novas por espaço
|
Espaço |
||||
É a possibilidade de conhecer pessoas novas que o leva a frequentar este local? |
B Flat N=145 (26,5%) |
Praia da Luz N=98 (17,9,%) |
Rivoli N=304 (55,6%) |
|
|
Sim N=18 (3,3%) |
5,5 |
2,0 |
2,6 |
|
|
Não N=529 (96,7%) |
94,5 |
98,0 |
97,4 |
|
|
De
qualquer forma, as ressalvas anteriores não desmentem nem são incompatíveis com
os múltiplos estudos que apontam para uma cumulatividade por parte das classes
médias e superiores nas diferentes modalidades de sociabilidade. Estas não só
possuem redes mais vastas como, simultaneamente, desenvolvem ao máximo relações
de intimidade. Importante, ainda, é o facto dessas redes não consistirem em
contactos redundantes. Pelo contrário, fornecem uma renovação intensa do
capital informacional, e uma maior electividade. Na medida em que os circuitos
sociais são heterogéneos e assentes em várias esferas da actividade social,
diminui a evidência da pressão social, dando lugar ao desenvolvimento de
relações pessoalizadas. É de supor, por isso, que as saídas culturais não se
organizem sempre com os mesmos amigos já que, ao contrário das classes
populares, os encontros, embora diversificados, afiguram‑se pouco
frequentes e os amigos conhecem‑se menos entre si, ao mesmo tempo que
cada agente apenas revela uma parte do seu
self, aumentando por isso a sua privacidade. Em suma, as classes
privilegiadas ganham em vários tabuleiros: “possuem
mais laços fracos, mas igualmente mais laços reforçados, e mais amigos e
relações electivas não limitadas a um meio ou quadro de inscrição”[1075]. Dito por François
Héran, de uma forma bem mais expressiva, “em
matéria de relações sociais o capital atrai capital” (“Le capital va au capital”)[1076]. Esta maior
independência face aos contextos e quadros de interacção liga‑se
intimamente à noção de rede, distanciando‑se do conceito de “comunidade”,
próprio de segmentos tradicionais e doravante minoritários das classes
operárias[1077]. Esta vivência em
mundos sociais supra‑locais articula‑se, por sua vez, com a
importância de que se reveste a mobilidade social, em especial para as novas
classes médias urbanas: “As relações, tal
como os lugares de residência, constituem signos sociais”[1078], indicadores de
trajectos, referências e aspirações, portadoras de sentido e geradoras de
representações subjectivas, embora inscritas objectivamente no espaço social.
Finalmente,
importa precisar um pouco melhor o alcance (e os limites) das propostas de
DiMaggio para uma nova conceptualização das relações entre cultura e estrutura
social. O autor americano nunca o referiu com exactidão, mas as suas teses
aplicam‑se nitidamente (e essa é uma das suas limitações, como adiante
explicaremos) aos chamados “novos intermediários culturais” ou à fracção que
Bourdieu apelidou de nova pequena
burguesia e que nós temos vindo a designar, talvez com excesso de conforto,
por novas classes médias urbanas. No
entanto, ao contrário de Bourdieu, que vê na relativa indeterminação social
desta fracção de classe o resultado de uma “trajectória
interrompida”[1079], quer porque não se
conseguiram conservar as elevadas posições de origem (indivíduos em trajectória
descendente, oriundos da burguesia — “pequeno‑burgueses
desclassificados, pretendentes à reclassificação”[1080]), quer porque se
pretende rentabilizar o diploma obtido através de um processo ascensional,
pensamos que ela representa hoje em dia o pleno do capital cultural. O autor
francês associa os seus comportamentos culturais à tensa “pretensão à distinção”, muitas vezes exercida através do bluff cultural (em especial na sub‑fracção
caracterizada por trajectórias descendentes). No entanto, ao definir os seus
domínios profissionais (“apresentação e
representação”; “venda de bens e
serviços simbólicos”; “produção e
animação cultural” e profissões artísticas[1081]) Bourdieu
salientou, sem lhes reconhecer a devida importância, os poderosos recursos de
que esta fracção actualmente dispõe, em íntima associação com a “nova burguesia”[1082] e que lhe conferem um estatuto central na reprodução
social global.. O seu estilo de vida obedece, a nosso ver, a um padrão comum,
definido, precisamente, pela sua posição face quer à produção, quer ao consumo
simbólicos. Sem constituir uma surpresa, a argúcia analítica do autor francês
capta o essencial dos seus modos de vida: “A
nova burguesia é a iniciadora da conversão ética exigida pela nova economia da
qual retira a sua força e os seus lucros e cujo funcionamento depende tanto da
produção de necessidades e de consumidores, como da produção dos próprios
produtos. A nova lógica da economia substitui a moral ascética da produção e da
acumulação, fundada na abstinência, na sobriedade, na poupança, no cálculo, por
uma moral hedonista do consumo baseada no crédito, no gasto, na fruição. Esta
economia pretende um mundo social que julgue os homens de acordo com as suas
capacidades de consumo, o seu standing,
o seu estilo de vida, assim como pelas suas capacidades de produção”[1083]. O que os pós‑modernos
vêem como a desarticulação dos modelos fordistas[1084] em direcção a uma
pluralidade, dispersão e fragmentação libertadoras (causa e consequência da
novas formas de acumulação do capital, ditas flexíveis) e demarcadas de lógicas classistas (estilização das
experiências de vida; exploração lúdica do quotidiano, ligação das posturas
corporais e modos de apresentação à expressão do self; diluição de hierarquias e classificações; maior importância
dos códigos simbólicos do que do estatuto social e das pertenças de classe;
aumento do espaço pessoal e dos
repertórios de gosto; etc.) é analisado por Bourdieu como mera eufemização do habitus e simulacro de descontracção, de forma a tornar a dominação
mais doce e dissimulada: “Apenas os ingénuos podem ignorar, depois de
tantos trabalhos históricos sobre a simbólica do poder, que os modos
vestimentários e cosméticos são um elemento capital do modo de dominação”[1085]. A questão reside,
uma vez mais, na unidimensionalidade da perspectiva do autor francês ao colocar‑se
no extremo oposto da “ingenuidade”. Desta forma, apenas vê criticamente
dominação e imposição arbitrária onde podem existir dimensões existenciais não
negligenciáveis (autoexpressão, autorealização, projectos de vida) e lógicas
sociais mais complexas. Voltaremos a este ponto nas conclusões e reflexões
finais.
A nossa
amostra fornece‑nos informação limitada, indirecta e parcial, a respeito
da preponderância destas novas classes
sociais nos públicos de certas instituições culturais urbanas. De facto,
como já foi referido, escasseiam os dados sobre a profissão e a situação na
profissão dos inquiridos, por ausência de resposta. As nossas afirmações têm
essencialmente em conta os dados sobre a mobilidade social com base no capital
escolar[1086], bem como o volume
de que este se reveste. Realçamos, em particular, a intensidade das
trajectórias de mobilidade social ascendente em direcção a situações de posse
de grande volume de capital escolar como um indicador significativo. No
entanto, um inquérito realizado pela direcção do B Flat (e por nós tratado) fornece‑nos
alguma informação que em parte complementa a lacuna antes referida. Atentemos
no quadro seguinte:
dos públicos do B Flat
Grupos Profissionais |
N |
% |
Dirigentes e quadros superiores |
24 |
5 |
Profissões intelectuais e científicas |
231 |
47.8 |
Profissões técnicas intermédias |
66 |
13.7 |
Empregados e outros assalariados do terciário |
45 |
9.3 |
Trabalhadores da agricultura e pescas |
1 |
0.2 |
Operários qualificados |
8 |
1.7 |
Desempregados, reformados e domésticas |
2 |
0.4 |
Estudantes |
106 |
21.9 |
TOTAL |
483 |
100 |
De
acordo com estes dados, e se somarmos o peso relativo dos dirigentes e quadros
superiores ao das profissões intelectuais e científicas, obtemos 52.8%. Necessitaríamos de desagregações
mais finas, mas muito provavelmente estaremos em presença do que Bourdieu
apelidou de nova burguesia e nova pequena burguesia e que outros
simplesmente apelidam de novos
intermediários culturais[1087] (designação também
presente em Bourdieu). Muitos dos estudantes presentes nesta amostra irão
certamente engrossar o peso desta categoria. Aliás, pela análise da composição
etária, a sua grande maioria frequenta o ensino superior. São estas as camadas
sociais que mais concentram as suas energias rotineiras na obtenção de capital
simbólico, mediante a produção, difusão e consumo de bens e serviços que
assentam o seu cariz distintivo na sua estrutura igualmente simbólica. Os seus
estilos de vida encontram‑se em íntima conexão com as tendências mais
“avançadas” do chamado capitalismo
tardio”: “A flexibilidade pós‑moderna,
por seu turno, é dominada pela ficção, pela fantasia, pelo imaterial
(particularmente do dinheiro), pelo capital fictício, pelas imagens, pela
efemeridade, pelo acaso e pela flexibilidade em técnicas de produção, mercados
de trabalho e nichos de consumo”[1088]. A “economia vodu” e as tendências
culturais mais visíveis e marcantes da contemporaneidade não estão, por
conseguinte, em dissociação. A dominância do estético e das dimensões
ontológicas encontram correspondências materiais e objectivas nos processos
sociais globais, embora fora de lógicas de determinação unilinear.
A
questão afigura‑se, por isso, bastante diferente do que habitualmente é
proposto. Sem negarmos a existência de amplos movimentos, ritmos e tempos
culturais contraditórios e assincrónicos (por exemplo a coexistência conflitual
da modernidade, da modernidade tardia
e da pós‑modernidade em vez da sua sucessiva superação e
incompatibilidade) e sublinhando a ambivalência de que se revestem, urge
aceitar, simultaneamente, a multiplicidade de factores que estão associados
(embora seja por vezes extremamente difícil saber em que medida funcionam numa
relação directa de causa e/ou efeito) à emergência e consolidação (por mais
paradoxal que possa parecer este termo, em tempos de ávida circulação/substituição
de referências) de novos modos de vida. Só assim conseguiremos localizar nos
planos social e espácio‑temporal, o grau de generalização e/ou
localização de significativas mudanças sócio‑culturais que aqui foram
sendo assinaladas. Nenhum conjunto de mudanças, por mais profundo e
revolucionário que seja, se furta à história e à geografia de uma dada formação
social.
CAPÍTULO XII
DA RECEPÇÃO CULTURAL
A Activista Cultural
O
passo decidido não acerta com o cismar do
palácio
O ouvido não ouve a flauta da penumbra
Nem
reconhece o silêncio
O
pensamento nada sabe dos labirintos do tempo
O
olhar toma nota e não vê
Sophia de
Mello Breyner Andresen in O Búzio de Cós
e Outros Poemas
1. A recepção, o corpo e os
seus contextos.
As
formas de ocupação dos cenários de interacção pelos agentes sociais e as
posturas corporais que lhes estão associadas traduzem uma determinada atitude
receptiva face ao ambiente social circundante. A análise das expressões
transmitidas mas sobretudos emitidas (“de
tipo mais teatral e contextual, de tipo preferencialmente não verbal e
aparentemente não intencional”[1089], como Goffman
sublinha) fornece importantes indícios de como os indivíduos percepcionam, a um
nível nem sempre consciente, por vezes mesmo quase inconsciente[1090], as linguagens dos
espectáculos que presenciam. Trata‑se, por assim dizer, de um espectáculo dentro do espectáculo,
uma representação de segunda ordem a que o investigador acede pela sua grelha
de análise. Como refere Serge Collet, “o
espectador é «actor» no seu corpo no próprio lugar do espectáculo”[1091].
Muitos
desses indícios (que são efectivamente formas
de comunicação) conseguem ser captados pelos produtores e programadores
culturais mais atentos às reacções e performances
dos públicos:
“P‑ Através de que
indicadores é que captas a adesão dos públicos?
R‑
Normalmente através das reacções que se observam nos intervalos ou no final dos
espectáculos. Em alguns casos só mesmo por observação, porque não conheço as
pessoas e elas não se dirigem a mim. Noutros casos conheço as pessoas e falo
com elas e há ainda outras que vêm ter comigo porque percebem que estou ligada
ao teatro e gostam de expor a sua opinião” (programadora cultural do
Rivoli).
Podemos seguir os modelos interaccionistas e afirmar que
grande parte dos significados não verbais captados pelo investigador no decurso
de um processo de observação directa fazem parte de uma intenção mais vasta de desempenho, por forma a alcançar, face
aos interlocutores e à audiência, um consenso
operacional sobre a situação de interacção[1092]. No entanto,
assistir a um espectáculo cultural constitui uma ocasião de relativa fuga à
rotina, considerando não só a raridade relativa das saídas culturais, como o
grau de ritualização e poder simbólico que exprimem, em particular em locais
como os que se encontram em estudo. Nesse sentido, a incorporação corporal de
hierarquias e sistemas de classificação, ou, pelo contrário, a sua transgressão
mais ou menos intencional, traduzem o processo mais vasto de socialização das posturas
e performances corporais. Assim,
apropriarmo‑nos analiticamente da apropriação social presente na
corporalidade, conduz‑nos à multiplicidade de actos perceptivos em
contextos de recepção cultural. Tal démarche,
por sua vez, obriga‑nos à abdicação de qualquer ponto de vista soberano,
patente nas versões mais etnocêntricas e logocênticas de um objectivismo que “constitui o mundo social como um
espectáculo que se oferece a um observador que adopta «um ponto de vista» sobre
a acção, retirando‑se para a observar”[1093]. É dessa visão “quase‑corporal” do mundo, “que não supõe nenhuma representação nem do
corpo nem do mundo”[1094] que nos propomos em
seguida falar, assumindo as posturas corporais e sensitivas como plenas
práticas culturais. No entanto, ao considerarmos a corporalidade como conceito
integrante do habitus, não
pretendemos reduzi‑la a uma mera representação interna de um mundo social
exterior. Ou seja, se é verdade que o “corpo
socialmente informado” não escapa “à
acção estruturante dos determinismos sociais”[1095] não é menos verdade
que ele transcende a mera exteriorização das aprendizagens sociais e das
estruturas simbólicas. Dito de outra forma, o corpo não será o produto de uma
simples domesticação social; ao tornar‑se, também ele, fonte e veículo
dos vínculos relacionais, intersubjectivos, produz e experimenta continuamente
o mundo. Ora, se não analisamos apenas as representações mentais e cognitivas;
se não nos quedamos somente pelos conceitos que os agentes produzem enquanto lay sociologists; se não nos contentamos
com o estudo da verbalidade e da escrita (as “práticas de inscrição”[1096]) somos obrigados
não só a relacionar o corpo com o corpo
social (lugar de memória social permanentemente actualizada) mas igualmente
a entendê‑lo como disposição afectiva. Como refere Vale de Almeida: “A experiência corporizada não pode ser
entendida só pelo cognitivismo e pelo modelo de significação linguística,
reduzindo o corpo ao estatuto de símbolo. O significado não pode ser reduzido a
um símbolo que existe num nível separado, exterior às acções do corpo (...) ao
cultivarmos o hábito é o nosso corpo que compreende”[1097]. Além do mais, a
emoção é também um estado cognitivo, uma forma de conhecimento e de mobilização
de atitudes[1098].
Pretendemos em seguida, de acordo com vários exemplos
extraídos das nossas incursões etnográficas, problematizar e ilustrar o que
anteriormente defendemos.
1.1. As palmas ou a ambivalência dos comportamentos.
“Bernard Dort escreveu um dia que os aplausos
são o fim de tudo. É, igualmente, o último momento do confronto entre actores e
público, o fim do seu diálogo silencioso”.
Cláudia de Oliveira, A Vida em Silêncios Comunicantes[1099]
Algumas
das situações que presenciamos traduzem com acutilância a ligação das posturas
corporais ao conjunto de convenções interiorizadas de forma socialmente
diferenciada de acordo com os meios sociais dos agentes. O bater de palmas
fornece‑nos, a esse respeito, interessantes pistas.
De
facto, bater palmas em diferentes momentos de um espectáculo é considerado uma
das formas mais visíveis (audíveis...) e socialmente reconhecidas de demonstrar
o (des)gosto e o grau de apreço pelo desempenho dos artistas. Ao mesmo tempo,
torna‑se um indicador precioso do carácter efémero, único e irrepetível,
de cada concerto, peça de teatro ou performance,
evidenciando a base instável e evanescente de transmissão de significados das
artes vivas.
Assistimos
a um momento em que convenções sócio‑culturais estabelecidas e
sedimentadas (institucionalizadas) foram subvertidas, não sem ambivalência, por
fracções significativas do público que assistia a um concerto em que Maria João
Pires interpretava Schubert, intercalada pela leitura de Eunice Muñoz de
fragmentos de O Viajante Magnífico.
Ora, ao sentarem‑se nos seus lugares, os espectadores eram confrontados
com um folheto onde se pedia expressamente para apenas se aplaudir no final do
concerto‑récita, excluindo‑se mesmo o momento de interrupção para
intervalo. No entanto, ao contrário de tal solicitação, as palmas irromperam
não só no final da primeira tarde, como depois da leitura particularmente
expressiva de alguns textos ou ainda posteriormente a cada andamento. Tal
comportamento suscitou interpretações ambivalentes por parte dos próprios
espectadores. Houve quem assumisse uma atitude iconoclasta de afronta a um
pedido tido como impertinente ou quase ofensivo (qualificando o folheto de “ridículo” e “desnecessário”. Weber e Bourdieu certamente que não deixariam de
descobrir aqui um efeito de “defesa de honra” que caracteriza certos grupos de
status. O autor francês quiçá iria mais longe e aventaria a hipótese de uma
reacção ao ultraje dos pergaminhos culturais de certas classes sociais. Afinal,
ensina‑se o padre‑nosso a quem tão bem sabe rezar e se movimenta
com sobejo à‑vontade nas liturgias culturais... Outras pessoas com quem
conversámos salientaram, pelo contrário, a incompetência cultural de boa parte
do público, pouco familiarizado, apesar da presença de várias figuras ilustres
do mundo da política e dos negócios, com os rituais e competências deste tipo
de espectáculo. Aliás, uma senhora não deixou escapar uma crítica implícita ao aggiornamento da etiqueta da “cultura
nobre”: “Aquelas pessoas que batem palmas
antes do tempo... Eu também fazia isso quando era criança e envergonhava muito
o meu pai”.
Alguns
registos de observação abonam a favor desta hipótese interpretativa que
enfatiza a relativa disjunção entre capital económico e cultural. Com efeito, o
cenário da ocasião afigurava‑se diferente das habituais soirées do Rivoli. Casacos de peles,
penteados cuidados, gravatas e laços surgiam com profusão, confirmando a
aparência sofisticada das formas de apresentação em cena. No espaço de entrada,
multiplicavam‑se os sinais de inter‑reconhecimento, como que a
confirmar o carácter restrito de um círculo social relativamente homogéneo,
onde destoavam fortemente alguns grupos minoritários de jovens com traje
informal ou “pormenores” provocadores (cabelos multicoloridos). As conversas
que conseguimos captar e registar remetiam para universos exteriores à cultura
cultivada, reenviando‑nos para um pequeno mundo mundano: os brinquedos
que o filho recebeu no Natal; a situação económica de uma determinada empresa,
o falar de alguém ausente que ainda no dia anterior foi reconhecido na missa.
Um comentário dissonante ficou ainda registado no diário de campo : “Hoje cheira muito a naftalina”.
Moral da
história: as palmas podem ter vários significados. No caso presente, oscilaram
entre a incompetência cultural de uma burguesia incapaz de converter
eficazmente o seu capital económico em capital cultural (o que mais uma vez nos
alerta para a heterogeneidade dos comportamentos das classes dominantes), pouco
socializada em saídas culturais frequentes e atraída pelo valor simbólico do
“nome” de Maria João Pires e Eunice Muñoz e a subversão momentânea das regras
por quem se sentiu ofendido pelo implícito questionamento da sua competência
cultural.
Um outro
caso relacionado com a exteriorização do gosto através do bater de palmas
ocorreu com a representação da peça de teatro Hotel Orpheu de Gabriel Gbadamosi. No final, e perante o pequeno
auditório dividido entre um grupo de jovens oriundo de escolas secundárias e um
outro de idosos, provenientes de instituições públicas, era nítido o agrado dos
primeiros, traduzido em palmas, e o embaraço dos segundos, denunciado pelo
silêncio. De facto, se tivermos em conta o realismo cru da peça, e em
particular de determinadas passagens, compreenderemos melhor esta recepção
diferencial. De facto, só para mencionar o exemplo talvez mais elucidativo, a
um dado momento, numa atmosfera algo claustrofóbica de um pequeno quarto de uma
pensão lisboeta, assiste‑se à preparação de uma dose injectável de
estupefacientes, com todos os utensílios que lhe estão associados: a colher, o
isqueiro, a seringa. Nada, como fazia notar uma das programadoras do Rivoli que
entrevistámos, que não caiba no universo de possíveis do jovem público. No
entanto, um quadro suficientemente afastado das categorias cognitivas dos
idosos para lhes causar estranheza, perplexidade, eventualmente repulsa. Dito
de outra forma, os códigos (sistemas de signos) transmitidos não se integravam
no seu “modo habitual de percepção”[1100].
Um
último exemplo. Numa espectáculo de jazz “experimental”,
com um forte grau de improvisação, a desatenção selectiva do público
generalizava‑se a grande parte da sala. Apenas uma minoria activa,
situada em frente ao palco (se é que se pode ainda falar de palco quando
existe, como é o caso do B Flat, uma total continuidade com a sala) aplaudia no
fim de cada “melodia”, trocando sorrisos cúmplices com os artistas durante as
actuações e escutando muitas as vezes a música de olhos fechados, em estado de
aparente sintonia receptiva. Se fizéssemos um travelling etnográfico pelo resto do espaço, depararíamos com muita
gente de pé, perto do balcão, a beber e a conversar, em especial homens,
totalmente abstraídos do espectáculo, sem sequer bater palmas. Numa mesa um
grupo de homens fala de negócios que envolvem “para cima de 700 contos”. Noutra mesa, um casal disserta
igualmente sobre dinheiro: “Para que
queres o dinheiro? Para gastar em coisas que te digam alguma coisa. Se calhar,
noutra altura da tua vida, tens filhos, uma casa. Agora não!”[1101]. Não deixa de ser
curioso constatar que, de facto, a maior parte dos presentes, naquela actuação
marcada “pela improvisação colectiva”,
pelo “risco e a urgência”, conforme
consta do folheto que publicita o espectáculo, não se encontra sintonizado e
sincronizado com os tempos da mesma. Enquanto que a “selectividade perceptiva” da minoria de espectadores
familiarizados com as regras sem regra da improvisação jazzística os leva a
evidenciar sinais corporais de atenção, distensão e prazer, a maioria da
clientela exibe desconhecimento, desinteresse, fuga (para locais distantes do palco
ou para temas de conversa totalmente dissonantes com a actuação). Não se trata
sequer da falta de inteligibilidade dos “melómanos
profanos”, que os conduz a atitudes de desorientação e perplexidade
perceptiva, nem tão pouco de sentimentos de “agressão
auditiva” de que nos fala Pierre‑Michel Menger[1102] e que Robert
Francès também regista em situações em que se rompe o equilíbrio entre os
códigos habituais da oferta e as competências treinadas do público homólogo[1103]. O que observámos
foram indícios de uma completa desatenção perceptiva, uma forma de recepção
pela não‑recepção, possível em espaços informais e conviviais como o B
Flat e a Praia da Luz, mas incompatível com a “rigidez” do teatro municipal.
1.2. Theatrum mundi ou o palco do público.
Cláudia
de Oliveira retoma Bernard Dort para defender a ideia de uma delimitação de
fronteiras entre espaços de representação distintos: o dos artistas e o dos
espectadores: “De facto, verificamos que
os espectadores têm no foyer o espaço de representação para um público
imaginário. Se a sala os “bane” da cena, eles encontram nesse recanto do teatro
a sua própria cena, onde se “representa” a peça do público (...) através das
observações desenvolvidas, tornou‑se explícito que o intervalo retirava
ao público o anonimato da sala, devolvendo‑lhe a possibilidade de usar o
seu corpo e a palavra”[1104]. Não poderíamos
estar mais de acordo, com excepção de um aspecto fundamental: o público‑alvo
desta representação “secundária” não é meramente imaginário. É um público real,
visível, quase palpável e sujeito a uma avaliação pragmática no contexto de
interacção. Os actores que são também o público do seu próprio espectáculo,
accionam uma panóplia de rituais e de competências avaliativas, assentes em
convenções culturais de apresentação em cena, que lhes permitem, mediante a
utilização desses sistemas codificados (linguísticos, gestuais, corporais no
sentido mais vasto), fazer referência a signos e valores ausentes da percepção
imediata (carácter simbólico da interacção)[1105], que remetem para
diferentes posições nos processos de construção social da realidade. Por isso,
sem deixar de compartilhar com a representação “primeira” qualidades “lúdicas, ficcionais e ilusórias” o jogo
social acarreta, igualmente, consequências reais e objectivas.
As
regras de cortesia tradicionais atingem nos intervalos de determinados
espectáculos do Rivoli que se realizam no grande auditório (em especial na
música e bailado clássicos) a sua expressão mais visível. Nos restantes espaços
do teatro municipal, na Praia da Luz e no B Flat a informalidade reinante
(embora por vezes estudada) permite a interacção entre artistas e público,
aliás muito próximos fisicamente. Há espectáculos no B Flat, em especial quando
se toca um tipo de jazz dançável, que
levam o público a uma grande exuberância de sinais, batendo palmas
sincopadamente com o ritmo. Esta constitui uma forma frequente de recepção
activa, apesar de não se manifestar verbalmente, de forma intelectual ou
analítica, modalidade frequente através dos comentários e das conversas em
comum, em que se desconstrói a pluralidade de conteúdos e de mensagens do
espectáculo a que se assistiu, de forma a integrá‑las, depois de
“trabalhadas” de acordo com o horizonte
de expectativa de cada agente, em modos
de percepção estabelecidos que são, eles próprios, objectos de uma
acumulação de repertórios e de capital informacional sujeitos a uma constante reprodução interpretativa[1106], de acordo com as
novas apropriações perceptivas. De facto, não há mimesis na recepção das obras, tão pouco mera interiorização
indiferenciada e mecânica dos seus significados. Tudo depende, a nosso ver, de
uma tríade fundamental: a estrutura da obra, o sistema de referências e o
projecto cultural do receptor (ou a sua ausência) e o cenário de interacção onde
se desenrola a apreensão da mesma. Frequentemente, esta cadeia de interrelações
e negociações, traduz‑se corporalmente em estados receptivos
exteriorizados e captados pelas grelhas analíticas do investigador. Um cantor
de um grupo de blues que salta repentinamente
para uma mesa, contaminando a assistência com a sua espontaneidade
(calculada?), quebrando e desmistificando (ainda que para a reforçar...) a
fronteira que divide artistas e audiência, teria grande probabilidade de ser
recebido com entusiasmo no B Flat, como de facto aconteceu, ou no café concerto
do Rivoli, mas encontraria barreiras físicas e cognitivas no grande auditório
do teatro municipal, onde o próprio conforto reinante convida a uma agradável
posição de espectador calmo e corporalmente menos activo.
Esta
questão leva‑nos a exprimir uma discordância face às teses
ultrapessimistas da teoria crítica de Richard Sennett sobre os comportamentos
na esfera pública e semi‑pública. De acordo com este autor, a sociedade
íntima destruiu a expressividade na arena pública, já que a moral da
autenticidade desenvolve uma relação hostil com a teatralidade dos papéis
sociais. Dito de outra forma, as máscaras, as convenções e as regras de
relacionamento são consideradas obstáculos ao processo mútuo de auto‑ desvendamento de que nos fala Giddens[1107]. Perde‑se,
ainda segundo Sennett, a criatividade existente na distância que existia entre
a representação e o self, outrora
mais resguardado. Sennett interpreta toda a teoria da interacção desenvolvida
por Goffman como um sinal de que os papéis sociais se tornaram meramente
acomodativos face à situação[1108]. Todavia, todo o
nosso trabalho de observação directa metódica e sistemática permitiu‑nos
registar uma grande variedade comportamental associada à componente contextual
da representação de papéis em que se mantêm distâncias significativas entre a
apresentação em cena e os domínios recônditos do self, bem como uma diversidade assinalável de reacções face à
definição da situação.
Serge
Collet defende que o espectador é ainda um actor “no momento de circulação das impressões e de julgamentos, de um
espectador a outro, de um espectador a um futuro espectador”[1109]. Reencontramos,
nesta afirmação, a ênfase que DiMaggio coloca na cultura como motivação para a
mobilização grupal e para a interacção colectiva, mesmo que tal se faça com
sacrifício dos seus significados intencionais. De facto, registamos centenas de
pequenas conversas que ocorriam no intervalo das actuações, ou após o seu fim,
transmitindo uma sensação que a nosso ver se aproxima do significado que Eco
pretendia com o conceito de “obra aberta”.
No entanto, as conversas direccionadas para o
debate e apreciação do espectáculo são apenas maioritárias no pequeno e grande
auditório do Rivoli, reenviando‑nos para um tipo de recepção mais
analítica e reflexiva, em que o receptor integra e relaciona várias dimensões,
desenvolvendo mesmo a competência de pensar sobre a sua própria percepção[1110]. Geralmente são os
espectadores mais familiarizados com o género artístico em questão, que
conhecem o percurso dos artistas e que acumulam informação de várias fontes, em
particular através da crítica especializada[1111]. No outro oposto do
continuum, temos a recepção feita corpo, ao nível da consciência prática e dos
juízos estéticos implícitos e não formulados discursivamente: “o espectador está preso ao que percepciona
(...) estabelece uma relação mais sentida que conceptualizada entre os
diferentes significantes do espectáculo e os seus significados”[1112]. De certa maneira
fora deste eixo está a não‑recepção que é, paradoxalmente, um tipo
específico de recepção (constitui um registo cognitivo, uma atitude) e que
encontra expressão adequada nas várias dezenas de registos de situações de
interacção em que os temas de conversa se desviavam totalmente do campo
semântico da representação, versando desde as insinuações sexuais mais ou menos
subtis (público adolescente da Praia da Luz); os comentários cosmopolitas e
mundanos sobre destinos de viagens (jovens adultos quer do B Flat, quer da
Praia da Luz[1113]); futebol (Praia da
Luz, adolescentes); percursos escolares (estudantes universitários, comum aos
três espaços); gastronomia requintada (adultos, B Flat); avaliações do grau de
diversão da noite anterior (Praia da Luz, adolescentes e jovens adultos);
apreciações sobre pessoas ausentes (comum aos três espaços e a todas as faixas
etárias); etc.
Em suma,
nos “palcos” em que os espectadores se tornam actores, antes mesmo de analisar
o tipo de recepção em eixos que podem ir da percepção imediata/espontânea, à
percepção analítica ou percepção do “esteta”
ou do “sábio” à da “gente comum”[1114], ou ainda da
percepção intelectual à percepção corporal/sensual[1115], importa considerar
o projecto cultural dos agentes em questão. Dito de outra forma, urge conhecer
a constelação e hierarquia de motivos que os levam a estar presentes num
determinado local para assistir a um determinado espectáculo: razões
intrínsecas ao mesmo (qualidade, curiosidade, familiarização preexistente,
etc.)?; impulso convivial, no quadro de uma ética de diversão?; desejo de
distinção e reconhecimento social?; vontade de “aprender” com o contacto com a
obra e os artistas, compensando um défice de formação cultural?; querer estar
na moda e manter‑se actualizado?; atracção pelo cenário onde decorre o
espectáculo; combinações entre estes e outros possíveis motivos?
O Quadro LXX fornece‑nos algumas
pistas a esse respeito. Com efeito, a escolha de um dos três locais em análise,
como se pode constatar, obedece, antes de mais (22.2%, se não contarmos com os inquiridos que assinalam vários
elementos) a factores extrínsecos ao próprio lugar e que têm a ver com as redes
de sociabilidade, o que confirma pistas interpretativas lançadas em capítulos
anteriores. Seguem‑se as dimensões intrínsecas ao espaço em questão e
apenas em terceiro lugar as motivações ligadas à aprendizagem e fruição
culturais. Ou seja, muitas das pessoas que frequentam os locais de espectáculo
fazem‑no também por outras razões que não as directamente ligadas à sua
vocação principal (com excepção da Praia da Luz, onde as apresentações
culturais aparecem como reforço da função principal de
bar/restaurante/esplanada). Podemos mesmo considerar que o peso relativo dos
“activistas culturais” é reduzido e minoritário. Por outras palavras, os usos
dos locais de cultura não se cingem às utilizações culturais no seu sentido
mais estrito e denunciam, igualmente, uma recomposição profunda do campo
cultural e das suas práticas.
Quadro LXX - Factores predominantes para a presença no local por
capital escolar de ego
|
Capital Escolar de Ego |
||||
Factores Predominantes para a presença no local |
Baixo N=24 (5,4%) |
Médio N=99 (22,5%) |
Alto N=318 (72,1%) |
|
|
Factores Intrínsecos N=82 (18,6%) |
8,3 |
15,2 |
20,4 |
|
|
Factores Extrínsecos de Sociabilidade N=98 (22,2%) |
12,5 |
38,4 |
17,9 |
|
|
Factores Extrínsecos de Cultura de Saídas N=57 (12,9%) |
25,0 |
13,1 |
11,9 |
|
|
Factores Extrínsecos de Aprendizagem e Fruição Cultural N=69 (15,6%) |
29,2 |
12,1 |
15,7 |
|
|
Factores Vários N=135 (30,6%) |
25,0 |
21,2 |
34,0 |
|
|
2. Recepção cultural e horizonte de expectativa.
Se
analisarmos o Quadro LXXI
constatamos que o espectáculo a que os inquiridos acabaram de assistir apenas
frustrou as expectativas para uma minoria. Para a maior parte dos indivíduos
que possuem um médio ou alto capital escolar, as expectativas foram correspondidas
e para um número significativo, ainda que menor, a exibição excedeu as
expectativas. Aliás, o mesmo aconteceu para a maioria dos inquiridos com um
baixo capital escolar.
Algumas
ilações podem ser retiradas a partir destes resultados. Por um lado, a relativa
adequação mútua entre o espectáculo e as expectativas criadas a seu respeito.
Tal poderá indicar um grau elevado de familiarização com o género em questão,
os códigos utilizados, a interpretação dos artistas ou o seu percurso. Não há
grande margem de manobra para surpresas, sejam elas agradáveis ou
decepcionantes. A recepção actua no horizonte de uma certa previsibilidade.
Quadro LXXI - Opinião sobre o espectáculo por capital escolar de ego
|
Capital Escolar de Ego |
||||
Opinião sobre o Espectáculo |
Baixo N=20 (5,1%) |
Médio N=84 (21,4%) |
Alto N=289 (73,5%) |
|
|
Excedeu Expectativas N=139 (35,4%) |
70,0 |
35,7 |
32,9 |
|
|
Correspondeu às Expectativas N=199 (50,6%) |
25,0 |
47,6 |
53,3 |
|
|
Frustrou as Expectativas N=40 (10,2%) |
5,0 |
15,5 |
9,0 |
|
|
Outra Resposta N=15 (3,8%) |
|
1,2 |
4,8 |
|
|
Como o
próprio Jauss refere, a recepção está em boa parte inscrita na própria obra e
na relação que o receptor estabelece com as obras antecedentes. Starobinski
acentua este aspecto, ao sublinhar que “que
uma obra (...) não se apresenta como uma novidade absoluta surgindo num deserto
de informação (...) o novo texto evoca para o leitor (ou auditor) o horizonte
de expectativas e de regras do jogo com o qual os textos anteriores o
familiarizaram”[1116]. Esta, no entanto, não esgota o campo de possíveis da
recepção. Repare‑se que, para a maior parte dos inquiridos com baixo
capital escolar, as expectativas foram ultrapassadas pela positiva.
Provavelmente estes inquiridos “usufruem” de uma maior liberdade e
indeterminação interpretativas na medida em que foram menos colonizados e
socializados pelas regras legítimas do jogo receptivo. Estas hipóteses
compreensivas não invalidam, bem entendido, que no conjunto dos que não foram
“surpreendidos” pela representação não coexistam atitudes receptivas
heterogéneas. O julgamento estético e a apropriação activa da obra, mesmo
actuando num sistema de referências ou guião preestabelecidos relativamente
rígido, não são isentos de novidade e modificação.
Conhece‑se
a este respeito o critério de qualidade estabelecido por Jauss. Sempre que a
obra confirma um determinado horizonte de
expectativa, ela aproxima‑se da “arte
culinária”, que preenche essencialmente funções de “simples divertimento”[1117]. Pelo contrário,
existindo um desvio ou hiato entre o horizonte
de expectativa do receptor e a obra, abre‑se o espaço à inovação e à “mudança de horizonte”, característica
seminal do artístico.
Ora,
seguindo à letra estes critérios, poderíamos um tanto ou quanto apressadamente
pensar que a maior parte dos inquiridos com médio e alto capital escolar se
confronta com um tipo de arte que cumpre perfeitamente “a expectativa suscitada pelas orientações do gosto dominante, satisfaz
o desejo de ver o belo reproduzido sob formas familiares, confirma a
sensibilidade nos seus hábitos”[1118]. E no entanto Jauss
pensa fundamentalmente na sociedade do espectáculo, aquela que “serve o «sensacional» sob a forma de
experiências estranhas à vida quotidiana (...) ou então levanta problemas
morais — mas apenas para os «resolver» no sentido mais edificante”[1119].
Se aqui
levantamos este paradoxo foi com a intenção de colocarmos em evidência algumas
das ambiguidades que a proposta de Jauss acarreta. Não só a dicotomia “arte culinária”/”verdadeira arte”[1120] se revela
reducionista como, para fazer sentido, deve ser aplicada às formas de recepção
competente da “arte legítima”, por parte de “públicos legítimos”. Por outras
palavras, se estes vêem mais ou menos confortavelmente (re)confirmado o seu “horizonte de expectativa”, então
estamos em presença de uma atitude receptiva que aponta para a presença de uma “arte culinária”, mesmo que se trate de
uma obra que joga com as disposições cultivadas (herdadas e/ou adquiridas em
diferentes níveis de aprendizagem e socialização) de determinadas audiências.
Neste mesmo sentido, os inquiridos que são surpreendidos pelo espectáculo (e
que são maioritários, convém não esquecê‑lo, entre os que possuem apenas
um baixo capital escolar) constituem supostamente o núcleo que experimentou
novas experiências estéticas, reconfigurando o seu sistema de referências.
A grande
vantagem da teoria da recepção de Jauss reside, a nosso ver, na síntese que
efectua entre as correntes que defendem a irredutibilidade do estético a
qualquer coordenada político‑ideológica ou histórico‑social
(defendendo que as questões estéticas essenciais são de todos os tempos e
espaços) e as que recusam a existência do valor estético em absoluto, apoiando‑se
no relativismo cultural e sociológico. De facto, o conceito de horizonte de expectativa reconcilia a
história da arte com as histórias de vida dos agentes sociais mas, ao mesmo
tempo, postula um critério de validade artística, ao distanciar a Arte “com
maiúscula” da frugal e banal “arte
culinária”. E se é verdade que as apreciações estéticas (do especialista ou
do leigo mais ou menos “competente”) são histórica e culturalmente contigentes,
não podemos expulsar o problema do valor do campo da discussão (voltaremos a
esta questão no último capítulo).
De
qualquer forma, em termos de eficácia da pesquisa científica, somos levados a
concordar com Nathalie Heinich quando a autora refere que a questão crucial em
termos de análise da percepção estética é: “O
que vê quem? O que vêem aqueles que vão ver, e em que condições o que eles vêem
(o que entendem, ou sentem, ou tocam) é por eles apreendido em termos de beleza
ou ausência de beleza?”[1121]. Neste âmbito,
nesta aproximação à percepção estética da gente comum, não pode haver qualquer
cedência a critérios ou julgamentos de valor sobre a qualidade das obras. Tão
pouco podemos aferir da qualidade das obras pela qualidade dos públicos e vice‑versa.
3. Representações sociais da recepção.
Atente‑se
no Quadro LXXII. Aparentemente ao
contrário do que anteriormente constatámos (veja‑se, por exemplo, o Quadro LXX e os comentários que tecemos
a seu respeito), a esmagadora maioria dos inquiridos declara que as principais
ideias e impressões que lhes foram transmitidas pelo espectáculo a que
assistiram se relacionam com características intrínsecas ao espectáculo[1122], próprias de uma
apreciação mais cuidada, intelectual e analítica, ao contrário da primeira
categoria que se associa claramente a uma dimensão emocional e vivida.
Como
explicar tal disparidade? A nosso ver, ela pode residir numa definição
“defensiva” de identidade face ao objecto “legítimo” de recolha de informação
que é o inquérito por questionário. Ou seja, tendo subjacente ou presente a
imagem ideal de si projectada pelas suas representações sobre o espectáculo,
poderá ter havido uma crença amplamente partilhada, ainda que a níveis pouco
conscientes da acção, de que a revelação de estados emotivos totalmente
subjectivos (“fez‑me sentir bem”;
“causou‑me incómodo e terror”,
etc.) seria um “atestado” de incompetência receptiva que a si mesmos passariam;
por outras palavras, constituiria uma confissão involuntária de actos
receptivos pouco elaborados, ingénuos, rudes. E se a incompetência cultural
destes públicos, como anteriormente registámos, é, em termos dos códigos e
referências da “cultura legítima”, relativamente baixa, nada nos garante que
ignorem o seu nível de ignorância. Ou seja, enquanto frequentadores de espaços
de fruição de cultura, inseridos em redes vastas de sociabilidade, é‑lhes
exigido o domínio de um mínimo
denominador comum cultural que sustente repertórios suficientemente ágeis,
ainda que superficiais.
Quadro LXXII - Ideias e impressões do espectáculo por capital escolar
de ego
|
Capital Escolar de Ego |
||||
Ideias/Impressões do Espectáculo |
Baixo N=13 (5,1%) |
Médio N=46 (18,0%) |
Alto N=197 (76,9%) |
|
|
Apropriação Pessoal do Espectáculo N=63 (24,6%) |
7,7 |
6,5 |
29,9 |
|
|
Características Intrínsecas ao Espectáculo N=193 (75,4%) |
92,3 |
95,5 |
70,1 |
|
|
Estaremos
assim eventualmente em presença de processos sócio‑cognitivos de auto‑categorização
social em que o domínio, ainda que aparente, de competências culturais se
revela central na reflexividade associada à definição de uma identidade real
e/ou imaginária. Como sustenta Jorge Vala, “a
identidade social pode ser concebida como decorrendo da resposta que os
indivíduos se dão à interrogação seguinte: «Quem sou eu?» (...) é provável que
uma parte da resposta a esta questão provenha de uma associação entre o eu e
diversas categorias sociais. Este processo de associação do eu a uma categoria
social (...) e a identidade que dele decorre são determinados tanto por
factores sócio‑estruturais como por fenómenos de comunicação, de
aprendizagem e de reflexividade”[1123].
É certo
que, para alguns, um público não chega a ser um grupo social[1124], mas em “situação de comunicação” falam uma “linguagem comum” e é essa linguagem que
faz dele “uma estrutura social, ainda que
muito amorfa”[1125]. Veja‑se o Quadro LXXIII.
Quadro LXXIII - Razões de sustentação
da opinião sobre o espectáculo por capital escolar de ego
|
Capital Escolar de Ego |
||||
Razões de sustentação da opinião sobre o espectáculo |
Baixo N=15 (5,6%) |
Médio N=54 (20,1%) |
Alto N=200 (74,3%) |
|
|
Conhecimento pessoal da obra/género N=59 (21,9%) |
20,0 |
22,2 |
22,0 |
|
|
Qualidade do Espectáculo N=124 (46,1%) |
66,7 |
53,7 |
42,5 |
|
|
Qualidade da Interpretação/Execução N=82 (30,5%) |
13,3 |
24,1 |
33,5 |
|
|
Apropriação Pessoal do Espectáculo e da Interpretação N=4 (1,5%) |
|
|
2,0 |
|
|
Uma vez
mais os inquiridos respondem maioritariamente (e com um peso relativo que se
torna mais elevado em razão inversa ao capital escolar) que o essencial para
justificarem o grau de adequação do espectáculo a que assistiram face às suas
expectativas é a qualidade intrínseca do próprio espectáculo. As razões
relativas à qualidade da interpretação e execução da obra (uma dimensão
particular da qualidade global da representação) aparecem a seguir. A
apropriação pessoal do espectáculo tem um valor insignificante. Ou seja, somos
levados a pensar que a apropriação dominante é de tipo estético, embora
possamos falar desta categoria em sentido amplo. Com efeito, como refere Russell
Belk, opondo a recepção estética à recepção propriamente artística, “a apreciação estética de um obra não requer
nem o conhecimento do seu contexto histórico, nem informações sobre outras
obras, enquanto que uma apreciação artística ou própria da história de arte se
funda sobre um tal saber, em vez de se referir unicamente às características
físicas, intrínsecas da obra”[1126]. Esta concepção
permite‑nos, uma vez mais, aproximar a análise das atitudes perceptivas
“leigas”, rejeitando qualquer tipo de etnocentrismo epistemológico. O que nos
causa perplexidade, no entanto, levando‑nos a falar de um efeito de construção de imagem com intuitos
comunicativos é a tão fraca ênfase colocada nos estilos cognitivos, ou seja, nas capacidades individuais de
tratamento da informação[1127], em favor de uma
aparente descodificação da estrutura da obra, o que, para além de se desligar
de uma componente afectiva, nos remete para processos de familiarização com a
educação artística. O que, aliás, surge contraditoriamente face a outras
respostas, em que as motivações ligadas à sociabilidade apareciam, com excepção
de um segmento minoritário, como a dimensão mais significativa de organização
das saídas culturais.
As teses
de DiMaggio podem, de novo, fornecer‑nos esclarecimentos adicionais. Se o
interesse pela “alta cultura”, enquanto tema de conversa, favorece as
interacções em grupos de status privilegiados, canalizando, inclusivamente,
aspirações de mobilidade social, uma vez mais a construção de uma fachada relativamente frágil de adesão a
essas expressões culturais se coaduna com tais expectativas.
Em suma,
a aproximação a um conjunto de representações sociais da recepção contribui
para a elaboração reflexiva de um conceito de self (simultaneamente real, ideal e social[1128]), ao mesmo tempo
orientado para si (auto‑identificação) e para os outros (componente
relacional). Os usos da recepção não são por isso neutros, obedecem ao valor de
signo dos consumos culturais e aos interesses do e no jogo social. O
mais curioso nestas representações consiste no afastamento face aos
estereótipos da doxa pós‑moderna de um consumo socialmente descentrado e
desinteressado, puramente hedonista, fragmentado, por vezes esquizofrénico,
assente numa desordem de significantes e sustentado pela emoção e afectividade
efémeras de quem pretende unir arte e vida. A recepção dominante revela, pelo
contrário, um entendimento surpreendentemente “estável” e coerente das
produções culturais, tomando‑as como objectos analisados intrinsecamente
e não a partir de estados flutuantes de espírito.
4. Televisão e fast thinking.
Vários
correntes e autores têm vindo a alertar para a necessidade de não analisarmos a
exposição aos mass media e em
particular à televisão sem considerar o efeito de filtragem de instâncias
mediadoras, como a família, os amigos e outros círculos sociais. A própria
noção de horizonte de expectativa
pode ser aplicada a este domínio, de forma a realçar a importância do
património cultural, vivencial e cognitivo dos receptores como variáveis
activamente implicadas nos processos de recepção e descodificação da mensagem
televisiva. Esta perspectiva contraria a visão largamente difundida que atribui
aos mass media um impacto directo
sobre a forma como as pessoas fabricam e imaginam o mundo social. Pierre
Bourdieu resvala para esta posição dramático‑fatalista ao considerar, por
exemplo, que “a televisão tem uma espécie
de monopólio de facto sobre a formação dos cérebros de uma parte muito
importante da população”[1129], acentuando o seu
potencial de “opressão simbólica” que
preenche “o tempo raro com vazio, com
nada ou quase‑nada”[1130], Bourdieu sugere a
universos orwellianos “em que o mundo
social é descrito‑prescrito pela televisão, em que esta se transforma no
árbitro do acesso à existência social e política”[1131].
Observemos, no entanto, o Quadro
LXXIV.
Quadro LXXIV - Comenta programas de TV por capital escolar de ego
|
Capital Escolar de Ego |
||||
Comenta Programas de TV com Colegas ou Amigos? |
Baixo N=29 (5,8%) |
Médio N=105 (21,1%) |
Alto N=364 (73,1%) |
|
|
Sim N=452 (90,8%) |
96,6 |
93,3 |
89,6 |
|
|
Não N=46 (9,2%) |
3,4 |
6,7 |
10,4 |
|
|
A esmagadora maioria dos inquiridos comenta
habitualmente os programas televisivos com colegas ou amigos, independentemente
do nível de capital escolar que possui. Quais as razões que justificam, segundo
os inquiridos, este comportamento tão claramente registado? De acordo com o Quadro LXXV, a resposta reside na
capacidade de criticar os conteúdos da programação, sujeita igualmente a debate
e troca de impressões.
Quadro LXXV - Razões por que comenta programas de TV por capital
escolar de ego
|
Capital Escolar de Ego |
||||
Razões da Resposta à questão: Comenta Programas de TV com Colegas ou Amigos? |
Baixo N=6 (2,2%) |
Médio N=56 (20,9%) |
Alto N=206 (76,9%) |
|
|
Troca de Impressões Sobre Programas N=14 (5,2%) |
16,7 |
3,6 |
5,3 |
|
|
Atenção à Vida Política e Económica N=4 (1,5%) |
|
|
1,9 |
|
|
Crítica dos Programas N=66 (24,6%) |
|
26,8 |
24,8 |
|
|
Dialogar/Trocar Opiniões N=31 (11,6%) |
|
14,3 |
11,2 |
|
|
Não Sabe/Não Responde N=104 (38,8%) |
83,3 |
41,1 |
36,9 |
|
|
Outras Respostas N=49 (18,3%) |
|
14,3 |
19,9 |
|
|
O ofício de recepção prolonga‑se,
assim, para além do momento imediato de apropriação, (re)trabalhando a mensagem
inicial, corrigindo‑a, acrescentando‑lhe novos contornos,
assimilando selectivamente conteúdos. Certamente que a hipótese de uma
reprodução acrítica e passiva não pode ser posta de lado, em particular se
pensarmos nos mais desapossados de capital cultural e socialmente isolados. A
nossa amostra, convém uma vez mais referi‑lo, é extremamente singular,
contendo uma notória sobrerepresentação das camadas sociais mais favorecidas.
Contudo, não podemos negligenciar os mecanismos micro‑sociais de
influência, de índole intragrupal, em particular quando as mensagens não são
unívocas, transmitindo vários significados possíveis. Como refere Robert Francès,
“a passagem a uma situação de grupo
acarreta pouco a pouco um aumento importante do número de respostas dos
indivíduos, suscitando interpretações que superam a banalidade”[1132]. O mesmo autor
acrescenta, mostrando a importância das redes de sociabilidade que “a influência micro‑social sobre a
percepção é mais intensa quando a vida em grupo é feita de trocas e de
interacções entre os seus membros”[1133]. Aliás, ao
verificarmos, com mais pormenor, o significado das categorias contidas no
quadro anterior, deparamos com respostas como “crítica à programação”, “crítica
à falta de qualidade”, “debate/troca
de ideias/discussão/comentários”, “atenção
à vida política e económica”, etc., sugerindo uma atitude activa de
negociação de significados.
Claro
que isto não significa que sejamos ingénuos ao ponto de negarmos um efectivo
poder de manipulação e “opressão
simbólica”, através de um trabalho técnico‑político de bastidores que selecciona conteúdos (implicando
mecanismos mais ou menos voluntários de censura) e constrói realidades
fictícias e fantasiosas. Diana Crane, por exemplo, fala de uma subrepresentação
dos trabalhadores manuais nos programas televisivos e de uma sobrerepresentação
das profissões liberais e empresariais, a par de uma forte tendência para a
produção de conteúdos reconfortantes e uma fraca inclinação à promoção do risco
e da novidade[1134]. No entanto, a
mesma autora salienta as diferentes formas de “ver” televisão, ao mesmo tempo
que sublinha as dificuldades das grandes sistemas organizacionais ligados à
comunicação de massas em percepcionar correctamente as suas audiências, factor
que os leva frequentemente a errar o “alvo” quanto ao perfil‑tipo dos
potenciais destinatários. Além do mais, contrariamente à visão extremamente
negativa que Bourdieu revela sobre os novos intermediários culturais, em
particular sobre os profissionais da comunicação, importa reintroduzir uma
perspectiva conflitual que exprima os conflitos de interesses e a ambivalência
do campo mediático (e as diferenças internas às novas classes), onde se confrontam e cruzam lógicas diferentes, não
se podendo erradicar, a priori a
possibilidade de expressão de mundividências emancipadoras.
O grande
contributo do estudo dos usos da cultura e das formas da recepção é,
precisamente, o de restituir a um objecto a sua multiplicidade, o seu cariz
plurívoco e conflitual, a sua íntima associação às novas formas mediadoras de
pensar e dizer o social.
CAPÍTULO XIII
DOZE CONCLUSÕES PARA UMA
TESE
“—
Gatinho Cheshire — começou Alice,
timidamente (...) — Diga‑me, por
favor, a partir daqui, que caminho é que devo seguir?
— Isso depende bastante do sítio para onde queres ir — respondeu o Gato.
— Pouco me importa para onde — disse Alice.
— Então não tem importância para que lado vais — disse o Gato.
— Contanto que vá dar a qualquer parte — acrescentou Alice, explicando‑se
melhor.
— Ah, isso é que vais, de certeza — disse o Gato —, se andares o suficiente...”
Lewis Carroll, Alice no País das Maravilhas
1.
Doze conclusões.
1.1.
Uma
das conclusões mais marcantes tem a ver com o alto grau de juvenilidade da
amostra, intimamente associada a grupos etários que, usufruindo também de um
estado civil liberto de compromissos familiares, possuem objectivamente maior
disponibilidade temporal para uma cultura de saídas relativamente intensa.
Prolongamento da escolaridade, dificuldade de ingresso no mercado de trabalho,
multiplicação dos estatutos híbridos, intermitentes e precários, adiamento da
formalização do laço conjugal, constituem peças interligadas de um mosaico em
que sobressai a dilatação do período de moratória que torna os jovens de certa
forma prisioneiros de um eterno estado de passagem. A gestão do provisório
passa, assim, por investimentos preferenciais no domínio do lazer, com
importantes consequências na configuração das identidades tendencialmente
desligadas da esfera do trabalho, da vizinhança e do parentesco e orientadas
para a fruição da vida quotidiana, em estilos que se traduzem por graus
diferenciados de informalização, altos níveis de consumo e por um individualismo
de tipo relacional, convivial ou mesmo festivo. São igualmente constituídos por
jovens os grupos relativamente restritos que demonstram, pela sua adesão a um consumo ostentatório e a uma ética
corporal de apresentação em cena, a vontade de transgredir as fronteiras entre
vida e arte, através de um novo projecto de dandismo,
assente em estilos de consumo distintivos. Dissimulando o valor de uso dos
bens, transformados em signos, a especificidade destes estilos juvenis seria
jogada numa espécie de “racionalidade
expressiva” que aposta tudo na comunicação[1135] e na
complexificação simbólica, mediantes processos de “colagem”, “importação‑exportação”,
descontextualização e recontextualização de estilos e mestiçagens várias.
Perante o argumento de que a estilização da vida (ou mesmo, segundo alguns, o
triunfo da arte sobre a vida) e a implantação de uma ordem artificial baseada
no consumo são fenómenos historicamente recorrentes, contrapõe‑se a
generalização actual de tais atitudes e comportamentos.
Todavia, não foi esse o grau de difusão que encontrámos.
Com efeito, tais grupos, como já referimos, não só se revelaram numericamente
restritos, como dominavam apenas pequenas regiões no interior dos espaços que
analisámos. Era notória, em várias ocasiões, a sua proximidade e familiaridade
com os artistas, o que nos leva a dizer que se trataria, de acordo com a
terminologia de Diana Crane (inspirada em Becker) de um tipo particular de Culture World: um trabalho artístico
orientado em rede, dotado de um relativo fechamento (Network‑oriented/isolated network[1136]), caracterizado,
precisamente, por uma grande familiaridade entre artistas e consumidores, com a
assimilação comum de convenções culturais iconoclastas, experimentais ou
emergentes, tal como aconteceu na Praia da Luz e no Café‑Concerto do
Rivoli, formando um estilo singular.
Na maior parte dos casos, porém, a
presença juvenil orienta‑se, em termos de apresentação pública, por uma
certa uniformidade informal, ligada à própria estrutura do consumo cultural nos
cenários de interacção, num descomprometimento aparente face a qualquer
narrativa da vida quotidiana de contornos excepcionais ou extraordinários, como
de certa forma se verificava nos pequenos grupos anteriormente referidos.
Dominam, assim, as imagens próprias de rotinas conviviais reproduzidas no dia‑a‑dia,
em vez da heroicização dos aventureiros
de espírito e de estilo das anti‑narrativas pós‑modernas[1137].
1.2. Verifica‑se
a existência de uma especificidade ou tipicidade juvenil, embora internamente
diferenciada entre públicos adolescentes e pós‑adolescentes. Os primeiros
aderem tendencialmente mais às práticas de abandono, ligadas, de novo, a um
quotidiano de pequenas narrativas aparentemente sem história, mas enunciadoras
de um espaço‑tempo difuso e distanciado de enquadramentos institucionais.
São igualmente praticantes assíduos do espaço semi‑público, em particular
na sua vertente convivial e expressiva, enquanto eventual possibilidade de
“fuga” ao controle endodomiciliar (acentuado pelo seu estatuto de grande
dependência económica face à família) e de experimentação de novos cenários de
interacção, num processo paralelo (e de mútuo reforço) ao aumento da oferta
urbana de lazer. Por outro lado, os segundos aderem mais às práticas receptivas
semi‑públicas, bem como às iniciativas eruditas de cariz informativo, o
que sublinha a existência de um patamar etário mínimo de recrutamento para
actividades que exigem a acumulação de um certo volume de capital informacional
e cultural. Da mesma forma, exigem ritmos desiguais de envelhecimento cultural.
Este afigura‑se mais precoce no campo das práticas criativas, favorecidas
quando existe uma maior disponibilidade de tempo, como é o caso dos
adolescentes. Poder‑se‑á ainda pensar que tais actividades serão
enquadradas e/ou motivadas por actividades paraescolares (como as que a
autarquia tem vindo a desenvolver nas áreas da criação e formação de públicos)
e ainda por uma necessidade de expressão de todo o trabalho de construção das
identidades e de conquista de autonomia, factor central para quem se encontra
envolvido em prolongados rituais de passagem.
1.3. Essa
tipicidade juvenil encontra ainda prolongamento numa particular estruturação e
orientação dos universos e mapas simbólicos. De facto, as faixas mais jovens demonstram
uma menor adesão às referências “clássicas” ou “patrimoniais”, fruto de um
mínimo denominador comum “oficial”, prescrito e difundido pelas instâncias
formais de ensino, com alianças mais ou menos espúrias na globalidade dos
discursos e aparelhos ideológicos tradicionais. Esta tendência, tantas vezes
associada a uma representação mortificadora do “declínio cultural e
civilizacional”, não significa tanto um “nivelamento por baixo”, mas muito mais
uma profunda mutação sócio‑cultural, ligada à mercantilização (em grau
diferencial) das várias franjas do campo cultural e artístico (doravante
colocado no centro da economia política do capitalismo
tardio da ordem mundial pós‑fordista) e à emergência nesse campo de
novas expressões que seguem vias alternativas de consagração e legitimação,
algumas estreitamente ligadas à cultura audiovisual e ao que Donnat apelida de
economia mediático‑publicitária. Por outro lado, a própria instituição
escolar não escapa ao cerne da discussão, na medida em que os novos universos
culturais se distanciam visivelmente (não de forma meramente dissimulada, tão‑pouco
com a consciência minoritária de um qualquer movimento contra‑cultural)
da norma escolar, colocando em cheque currículos, práticas pedagógicas e
políticas educativas. Além do mais, não parece desprovido de sentido falar de
um efeito‑família, já que, numa sociedade como a portuguesa, em que o
processo de massificação escolar é tardio e ainda incompleto, boa parte das
aquisições obtidas em sede escolar correm o risco de se diluir em meios sociais
distantes e pouco confiantes face à validade e utilidade da cultura escolar.
Finalmente, importa ter em consideração a importância das redes de
sociabilidade e dos grupos de pares, em boa parte responsáveis pela relativa
invasão juvenil do espaço semi‑público não erudito, enquanto agentes de
rápida circulação de valores e informação exterior à família e à escola,
amortizando a acção pedagógica dos grupos de pertença, das instituições e das
organizações associativas e propagando uma normativa e uma simbólica do
informal, do difuso, do individual relacional, da autoexpressão, da
autorealização e da multiplicação/fragmentação de referências.
1.4.
A
diferença de possibilidades de acção consoante o género encontra‑se bem
patente no desigual acesso ao espaço público e ao espaço semi‑público
organizado. De facto, as mulheres encontram‑se relativamente mais
arredadas da esfera onde a opinião pública se forma, se veicula e se controla,
bem como da acção colectiva organizada, própria do movimento associativo. Dito
de outra forma, as mulheres sofrem um défice de cidadania e de participação nos
quadros de mediação e regulamentação normativa, o que significa, igualmente, um
défice na utilização dos mecanismos comunicacionais que permitem a representação
dos seus interesses específicos e a discussão e o questionamento da ordem
oficial. Ultrapassada a barreira da escolaridade, vencido o desafio da entrada
no mercado de trabalho, resta ainda o muro que impede a expressão legítima de
uma identidade de género e de uma pluralidade de estilos de vida que lhe estão
associados. A política da vida,
sugerida por Giddens, símbolo da superestrutura de valores da modernidade tardia, necessita do
complemento activo das políticas
emancipadoras, estandarte de uma modernidade
inacabada.
1.5. Existe
uma certa homologia entre o perfil dos espaços que estudamos e o tipo de
públicos que os frequentam. Contudo, sob essa relação de correspondência,
afirmam‑se lógicas de transgressão de fronteiras e hierarquias simbólicas.
Os espaços possuem um cariz híbrido e multifuncional, ora na estrutura da sua
programação cultural; ora na sua configuração física, enquanto cenários de
interacção internamente regionalizados;
ora ainda pela pluralidade de funções que desempenham. Especifiquemos: o B
Flat, apesar de se dedicar a um género musical consagrado (o jazz), procura diversificar a sua oferta
através da exploração criativa de cruzamentos com outros géneros musicais (os
ritmos latino‑americanos, o rock, o techno, etc.), ao mesmo tempo que
funciona como sala de espectáculos e bar; o Rivoli, espaço plurifacetado,
oferece desde repertórios clássicos até projectos iconoclastas de
contracultura, assegurando igualmente funções de representação simbólica, lazer
e diversão; a Praia da Luz, finalmente, é esplanada, bar e restaurante e
consolida a sua clientela com expressões de novas tendências no campo cultural.
Todavia, a homologia
relativa existe. A identidade específica do B Flat remete‑nos para
públicos predominante adultos que gerem a sua apresentação em cena de forma
intencionalmente informal e desprovida de signos de consumo ostentatório, como
que a reforçar a sua concentração na percepção intelectual do espectáculo. O
seu perfil liga‑se de igual forma a uma elevada selectividade social,
traduzida por altos níveis de capital escolar.
O Rivoli, dada a sua assumida pluralidade, é um compósito
de subidentidades e de subculturas. No entanto, não exageraremos se afirmarmos
que sobressai a ligação à cultura “erudita”, quer de feição clássica e
consagrada, quer de referências contemporâneas estabilizadas, quer ainda de
tipo experimental, em vias de consagração. Ressalta, ainda, o aparato simbólico
necessário a um campo cultural local em vias de expansão, bem como o cerimonial
e a ritualização de uma instituição ligada ao poder.
A Praia da Luz, por fim, é o reino dos adolescentes
privilegiados, muitos deles acumulando “heranças”, outros recém‑chegados,
o que nos leva a falar de um fechamento social relativo. Esta jeunesse dorée afastada dos referenciais
clássicos e atenta à celebração de novas formas de expressão, apresenta‑se
predominantemente dentro de estilos informais e desportivos, embora
“elegantes”, o que de certa forma traduz disposições de uma ética hedonista
relativamente contida. Destacam‑se algumas “tribos” que fazem da transformação da vida numa obra de arte
o seu passaporte simbólico de entrada num universo que em nada se identifica
com as disposições ascéticas descritas por Weber e que, de uma forma difusa e
provavelmente inconsequente, traduzem o desejo de inverter o desencantamento de um mundo
secularizado, racionalizado e burocratizado.
1.6. Uma homologia imperfeita está subjacente na
diversidade das trajectórias da amostra analisada, reflectindo combinações
díspares da “componente clássica” e “moderna” do capital escolar,
complexificando as relações outrora mais transparentes entre classes sociais e
classes simbólicas, ou, se preferirmos, entre condições objectivas inscritas na
posição ocupada e práticas sociais. Dito de outra forma, a alta mobilidade
intergeracional revelada em particular através de trajectórias ascendentes que
partem de estratos baixos e médios, contribui, apesar de uma alta capacidade de
retenção das classes privilegiadas, para a coexistência, entre os detentores do
capital cultural institucionalizado, de relações relativamente desordenadas e dispersas com os universos de gosto.
Prova disso é o alto grau de incompetência cultural no
sentido estrito, bourdiano do termo. De facto, com a excepção de uma elite dentro da elite que mantém uma
postura de “familiaridade estatutária”
com a “alta cultura”, revelam‑se, de forma quase transversal, elevados
níveis de desconhecimento e/ou falta de identificação com os cânones da cultura
clássica consagrada. O título não só não se transforma em posto, como, pelo
estudo que nos ocupa, não assegura, através de qualquer quase‑automatismo,
um estatuto de nobreza cultural.
Caído o pano sob o mito da escolaridade como condição suficiente para o acesso
à cultura cultivada, talvez se compreenda, com acréscimo de lucidez, que,
entretanto, essa cultura, tal como era concebida, deixou de existir para uma
grande maioria dos diplomados, ou então tornou‑se apenas uma de muitas
possibilidades de fruição cultural, num alargamento efectivo do mercado
cultural. Transcrevendo o que anteriormente escrevemos, “haverá maior
probabilidade de complementaridade e/ou choque entre dimensões contraditórias
das condições objectivas de existência, associadas a uma diversificação das
vias e conteúdos de aprendizagem social e, consequentemente, dos percursos de
acesso a uma determinada posição na estrutura social. Ou seja, as homologias tenderão a ser menos rígidas e
unívocas e haverá a probabilidade de se cruzarem níveis diferentes de
legitimidade cultural”. O que, bem entendido, se nos permite falar da
necessidade de plasticização do
conceito de habitus, complementando‑o
com a pluralização dos papéis sociais e dos códigos e repertórios que lhes
estão associados, não nos confere, de forma alguma, o direito de defender o fim
da estrutura social e a morte das classes, apesar da sua recomposição e
mutação.
1.7.
As
redes de sociabilidade extensas, densas nas interacções que proporcionam,
apesar de se basearem em laços pouco intensos, são características de agentes
sociais com posicionamentos privilegiados na estrutura social, como é o caso de
boa parte da nossa amostra. Desta forma, consolidam‑se como instâncias de
mediação entre o “espaço pessoal” ou “ambiente social imediato” dos agentes,
os seus círculos sociais e os contextos estruturais mais vastos onde se
movimentam, permitindo‑lhes, através das regras de uma economia afectiva de intercâmbio, uma
rápida circulação e actualização da informação. Assim, a probabilidade de
modernização permanente do seu capital cultural afigura‑se elevada,
facilitando, deste modo, o alargamento de repertórios e o contacto com teias
complexas de papéis sociais, extremamente diversificados, inclusivamente para a
mesma pessoa.
De facto, sai‑se principalmente à noite com amigos
e a seu convite, em especial quando se é jovem e solteiro. O compromisso
conjugal significa, a maior parte das vezes, uma enorme restrição na
disponibilidade para sair, sendo encarado por muitos autores como o “fim da juventude”. De igual modo, o
divórcio, quando não é imediatamente seguido de uma recomposição familiar,
possibilita a recuperação mais ou menos provisória da condição juvenil que,
desta forma, cada vez se associa menos a uma idade particular. Aliás, as
representações da noite estruturam‑se em torno do eixo amigos/diversão, o
que acentua a dimensão mundana e convivial da fruição cultural, e a sua
importância como núcleo de mobilização e consolidação de redes sociais que se
expandem tentacularmente a diversos contextos de interacção, obtendo‑se,
dessa forma, inúmeras vantagens e benefícios sociais que reforçam e motivam
trajectórias sociais ascendentes (os “laços sociais fracos” em termos de
intensidade do vínculo, são os laços mais “ricos” em termos de recursos e
capitais).
Assim, apenas uma minoria relativamente escassa organiza
as suas saídas culturais em função da familiaridade com as referências e os
conteúdos intrínsecos de um determinado campo cultural. A centralidade das
redes de sociabilidade na definição dos modelos dominantes de consumo cultural
propicia uma legitimação de vários universos de gosto e das múltiplas formas
pelas quais se cruzam, permitindo que ancestrais fronteiras se des‑sacralizem
e des‑ritualizem. Ao mesmo tempo, e dado não existir uma concentração
exclusiva num único género, esfera ou nível cultural, aumenta a tendência para
um conhecimento superficial, embora ágil, de cada sistema de referências. Na
mesma linha, poderemos falar de uma cultura self‑service,
de combinações plurais, em que o repertório dominante depende, em boa parte, do
contexto social onde foram recrutados os amigos com quem se sai. Há amigos para
assistir a uma peça de teatro; amigos para passar a noite numa discoteca;
amigos para ver um filme; etc.
1.8.
Este
modelo cultural está, no entanto, longe de se encontrar generalizado ou
democratizado a toda a estrutura social. A sintonia de referências e a
sincronização de rotinas que estão subjacentes à eficácia comunicacional das
redes de sociabilidade requerem um certo nível de homogeneidade social, uma certa
afinidade de habitus. Por outro lado,
esta orientação e disponibilidade para o consumo e fruição culturais encontram
certamente correspondência no significativo acréscimo dos contigentes das novas
elites urbanas, localizadas em grupos socioprofissionais de perfil dirigente,
intelectual e científico, ligados à administração pública e ao terciário
superior e à franca, ainda que recente, expansão dos níveis mais elevados de
ensino. Estas classes sociais encontram‑se, aliás, intimamente ligadas a
funções de produção e intermediação cultural, ao mesmo tempo que difundem
estilos de vida baseados em padrões relativamente altos de consumo cultural. Em
suma, urge não perder de vista a localização específica no espaço social destas
novas tendências dos mundos da cultura.
O seu carácter frequentemente fragmentário, evanescente e efémero contribui
para dissipar a relação de mútuo reforço que estabelecem com os processos
emergentes de recomposição social e reestruturação económica.
1.9.
A
diversidade inerente às práticas culturais pode ainda ser analisada de um
ângulo substantivamente diferente, se partirmos dos usos da cultura patentes
nas actividades de percepção e recepção cultural. O enfoque na relação entre as
obras e os públicos leva‑nos a abordagens mais finas e de pendor
qualitativo, de forma a captar o que os
públicos fazem das obras que fazem os públicos. Dito de outra maneira,
importa superar a visão/ilusão de que os produtos culturais contêm em si mesmos
características objectivas suficientes e unívocas para a compreensão dos
universos simbólicos dos seus consumidores. Mais ainda, urge compreender que,
com a passagem do conceito de consumo (níveis de posse, de frequência, etc.)
para o de percepção/recepção, se opera uma mudança de paradigma que sublinha as
poderosas interacções estabelecidas entre a intenção do autor, a estrutura da
obra, o sistema de referências do receptor e o projecto cultural que o anima.
1.10. O agente cultural
revela‑se um “actor no seu próprio
corpo”, o qual supera, na sua expressividade e nas impressões que a partir
dele se captam, a interiorização passiva e mecânica de um conjunto limitado de
condições objectivas de existência. De facto, ao recusarmos um logocentrismo
arrogante, somos levados a compreender como, dentro de contextos específicos e
delimitados, o corpo se assume enquanto veículo e produtor de modos
particulares de percepção. O corpo em acção sublinha as dimensões cognitivas,
afectivas e existenciais de um self
activo e performativo.
Bater palmas, por exemplo, além de se traduzir por
diferentes modalidades consoante os cenários de interacção, tem implícitas
plurais imbricações com a praxis
social. Pode querer afirmar uma atitude iconoclasta e provocadora; assumir
formas celebratórias mais ou menos ritualizadas; exprimir graus diferenciais de
competência cultural e poder simbólico ou ainda níveis díspares de
selectividade perceptiva.
Através do corpo, o processo de reprodução interpretativa
da obra em interacção, não se esgota
em mimesis empobrecedora,
acrescentando significados ao significado, ou, se preferirmos, adicionando
história à obra. Da mesma maneira, os papéis sociais não se cingem a uma
simples acomodação a ordens normativas preexistentes ou previamente
codificadas. Cada papel social é também uma porta de entrada num mundo novo.
1.11.
Os
modos dominantes de recepção apresentam características aparentemente
contraditórias. Se é verdade que a eleição de um local de fruição cultural se
associa, antes de mais, a motivações conviviais ou pelo menos assentes nas redes
de sociabilidade, a apropriação das obras apresentadas é relacionada com
características que lhes são intrínsecas, nomeadamente critérios de qualidade.
Perante o contraste que se estabelece entre uma panóplia de discursos
(incluindo os corporais) que salientam a apropriação pessoal e idiossincrática
e uma recepção aparentemente artística (ou estética no sentido restrito),
analítica, intelectualizada (a referência a significados intrínsecos às obras)
e confirmadora do horizonte de
expectativas (ausência de surpresa, novidade e choque) dos públicos, e
tendo em conta ainda os elevados níveis de “incompetência cultural”
anteriormente registados, somos levados a enfatizar a existência de um eventual
efeito ou reacção de prestígio. De
facto, os públicos, apesar da dispersão e ecletismo dos seus universos de
gosto, continuam maioritariamente a imaginar a cultura em volta de esquemas,
classificações e hierarquias tradicionais. Por outras palavras, se as suas
práticas nos remetem para universos aparentemente desordenados (ecléticos,
feitos de cruzamentos e combinatórias várias, por vezes esquizofrénicos), as
representações continuam a fabricar um mundo de uma harmonia antiga, em que
sobressai, precisamente, o respeito por formas de legitimidade que julgávamos
ultrapassadas. Inquietante paradoxo.
1.12.
Espaço
público e espaço semi‑público organizado (associativo): duas terras de
ninguém, dois desertos que ferem de morte as crenças emancipatórias no poder
reflexivo da esfera colectiva. Desterritorialização e descontextualização da
acção social, fantasmagoria, compressão do espaço‑tempo, mediatização da
comunicação, são factores habitualmente associados a este fenómeno. A
desvitalização de ambos denuncia, igualmente, um mal‑estar profundamente
enraizado nas vivências urbanas. Ao contrário do que o discurso neo‑liberal
propaga, considerar a cultura no âmbito estrito do “marketing de cidade” não é suficiente para criar dinâmicas de
envolvimento colectivo. Os processos em curso de “enobrecimento e regeneração urbanos”, se é verdade que investem
culturalmente para uma modificação profunda da imagem de cidade, apostando no
estético como estratégia de atracção de capitais e “massa crítica”, nem sempre respeitam a especificidade e autonomia
de tal esfera. A cidade do Porto não é excepção. Ao lado de tentativas de
reanimação do velho centro da cidade, com a reabertura de espaços culturais
renovados, agudizam‑se tendências de privatização crescente das
sociabilidades, com o aumento em flecha da lógica segregacionista dos condomínios
privados (os ghettos dos ricos) e a
abundância dos mundos artificiais, selectivos e vigiados dos centros
comerciais. Os impulsos regeneradores da economia baseada na sociedade de
informação dos serviços e alta finança têm feito esquecer, sob a aparência da
explosão do simbólico e do consumo, os vastos “interesses materiais envolvidos na reconstrução da vida urbana na
época pós‑industrial”[1138]. A gentrificação é
amiúde sinónimo de yuppificação e
contribui para reificar as lógicas especulativas do mercado.
As tendências de crescente dissolução e privatização dos
espaços públicos tem efeitos corrosivos no ideal romântico da cidade errática,
onde, por mero acaso, estranhos se cruzam e se conhecem; onde a conversação e a
acção comunicativa transformam o público em sujeito de discurso; onde a
representação e a linguagem se politizam e a palavra se desprivatiza[1139]. Ora, o que está em
causa é, não só a despolitização, neutralização e esvaziamento da esfera
pública, mas igualmente “o esgotamento
das energias utópicas” numa situação de opacidade
em que “o futuro é ocupado negativamente”[1140], não se
vislumbrando as condições para uma “praxis
comunicativa do quotidiano”[1141]. A tirania da intimidade, que Sennett anuncia, com a
sua obsessão pelo privado e pelo ego e a sua espiral de auto‑revelações,
acaba por nos fazer perder a ideia da singularidade do Outro.
Em sociedades de intensa mobilidade, em que os lugares
públicos se atravessam de um só fôlego, com a energia do transitório e da mera
passagem, a casa surge como o único lugar habitado, uma espécie de baluarte
afectivo contra a pressão exterior e a vigilância; um prolongamento da pessoa e
da sua segurança ontológica e não tanto um espaço comum do clã familiar; uma
recusa da teatralidade pública e da ordem representativa, com o seu jogo de
papéis que oscila entre o secreto e o manifesto[1142].
No entanto, ao contrário de Sennett, não resvalamos para
o pensar fatalista que considera o voyeurismo e a banalidade como únicas
alternativas à ordem representacional da esfera pública. Os usos da casa e as
lógicas expressivas patentes na organização do espaço doméstico desmentem a
hegemonia absoluta de um real artificial e estereotipado. Da mesma forma, o
povoamento do espaço semi‑público, apesar da sua lógica selectiva,
legitima algum optimismo.
2. Uma tese: a (pós)modernidade num continuum.
“(...)
para os jovens e os ricos, para os educados e privilegiados, as coisas não
podiam ter sido melhores. O mundo dos imóveis, das finanças e dos serviços
cresceu, bem como a “massa cultural” dedicada à produção de imagens, de
conhecimento e de formas estéticas e culturais. A base político‑económica
e, com ela, toda a cultura das cidades foram transformadas.”
David Harvey, Condição Pós‑Moderna
“Imagine
por um momento que está num satélite, a grande distância para além dos actuais
satélites; você pode ver o “planeta Terra” a partir de um ponto distante e,
invulgarmente para alguém que apenas tem intenções pacíficas, você está
equipado com o tipo de tecnologia que lhe permite ver as cores dos olhos das
pessoas e os números das matrículas. Você pode ver todo o movimento e
sintonizar todas as comunicações que estão a decorrer. A maior distância estão
os satélites, depois os aviões, o longo caminho entre Londres e Tokyo e o salto
de S. Salvador à cidade da Guatemala. Uma parte desta paisagem são pessoas a
movimentarem‑se, outra é negócio interpessoal, outra ainda publicidade
mediática. Existem fax, e‑mails, redes de distribuição de filmes, fluxos
financeiros e transacções. Vendo de mais perto, lá estão os barcos e comboios,
comboios a vapor subindo laboriosamente uma colina algures na Ásia. Vendo ainda
de mais perto existem camiões e autocarros, e aproximando‑se mais do
chão, algures na África sub‑sahariana, uma mulher — entre muitas outras —
descalça, que passa ainda horas a fio a recolher água”.
Doreen Massey[1143]
Fomos confrontados, ao longo deste trabalho, com a
persistência de atitudes e conceitos ambivalentes e propiciadores de uma
multiplicidade de interpretações.
Para alguns autores, a época em que vivemos pode, do
ponto de vista cultural, ser correctamente apreendida por uma ampla
transformação societal que dá pelo nome de pós‑modernismo, termo
inicialmente circunscrito a uma elite de ensaístas (mormente na crítica
literária) e a áreas artísticas delimitadas (música, literatura, arquitectura),
mas rapidamente alargado ao debate sobre a mudança social contemporânea. Fala‑se,
então, da imaterialização e estetização da vida quotidiana e do conjunto das
transacções, incluindo as económicas; da morte de uma sociedade baseada em
classes sociais; da ascensão dos estilos de vida fluídos e plurais como base da
estratificação social; do fim da ideia de originalidade e de vanguarda (já se
disse tudo, já de tudo se viu e experimentou); do culto do corpo, das
sensações, do prazer e do irracional; da subversão das narrativas e da
linearidade pelo caos e pela desordem; da emergência do glocal, expressão de uma geografia imaginária de cruzamento do
global e do local; da negação da história ou pelo menos de uma direcção ou teleologia; do colapso do
público e do privado; do fim dos monopólios simbólicos; da compressão do
passado e do futuro num presente contínuo (nem origens, nem utopia, apenas
nomadismo); da negação dos heróis singularizados e das suas façanhas épicas em
favor do encantamento do anónimo e do quotidiano; da inversão da ética ascética
em ética hedonista e de uma reorientação da produção para o consumo, da ética
para estética; etc.; etc.[1144].
Outros autores, apesar de acentuarem e valorizarem as
mesmas tendências, adoptam aqui e ali uma atitude mais prudente, considerando
que a ideia de superação, subjacente ao conceito de pós‑modernidade, é um
paradoxo evidente (como falar em superação, se é colocada a ênfase na negação
de qualquer evolução ou direcção histórica?), preferindo defini‑la como o
conjunto de “possíveis transformações
para além das instituições da modernidade”[1145] e tirando ilações
políticas das novas configurações societais, em particular no que se refere ao
papel central da auto‑identidade reflexiva[1146], cerne do que
Giddens apelida de modernidade tardia
ou modernidade radicalizada.
Os críticos da pós‑modernidade, como Habermas, vêem
neste movimento uma expressão neoconservadora que dá prioridade ao mercado em
detrimento do Estado social e aposta num retorno “ao romantismo social do capitalismo”, sem compreender que as
formas de vida se encontram “ameaçadas
por uma colonização interna”[1147]. Perante tal
cenário, de desintegração de domínios como a escola, a família e a esfera
pública, Habermas apoia‑se na “modernidade
cultural” como “único fundo ao qual
poderíamos ir beber”[1148].
Sennett, já o sabemos, fala com pessimismo no fim do
homem público e da cidade, em favor de uma idolatria intimista em que a auto‑absorção
narcísica surge como o único princípio válido, em prejuízo da civilidade que
consiste na manutenção de uma ordem teatral através da qual a “máscara” e as
convenções nos protegem da “obrigação” de nos desvendarmos, bem como da
vigilância dos outros, condições necessárias para uma salutar sociabilidade[1149].
Lash, por seu lado, insiste igualmente na presença do
ego, mas distanciando‑se tanto das críticas ao excesso de narcisismo ou
egoísmo da cultura contemporânea (muitas vezes fundada em princípios morais
duvidosos), como das correntes que glorificam a concentração no self como fonte de auto‑realização
e auto‑descoberta (linha em que Giddens se situa). O autor caracteriza o
estado actual do ego como o de uma dependência face ao mundo imaterial do
consumo degradado, representando “a outra face” de um quotidiano laboral
igualmente degradado. De facto, a sobrevivência torna‑se o principal
motivo da existência, assente na gestão das impressões transmitidas, num mundo
em que tudo se transforma em imagens. Desenvolve‑se, assim, sob uma
pretensa possibilidade ilimitada de escolha (definida por Lash como “ideologia pluralista”[1150]), uma “dissolução do mundo das coisas
substanciais”[1151]. Desta forma, o
narcismo representa, afinal, uma estratégia de sobrevivência, fundada numa “tecnologia do ego” como única possibilidade
de escapar à desintegração e ao vazio. Ao contrário da procura reflexiva de
identidade, defendida por Giddens, verificar‑se‑ia uma nítida perda
de identidade, em que o “eu” se vê cercado e desprovido de referências
estáveis.
Perante este breve esboço de uma complexa polémica que
traduz, afinal, as múltiplas formas de interpretar o “espírito da época” e a dificuldade de obter um consenso sobre os
eixos significativos pelos quais se pauta a mudança social, somos levados a não
rejeitar, a priori, qualquer das
linhas de interpretação aqui traçadas. Não se trata, por conseguinte, de
delinear uma qualquer síntese (as famosas “terceiras” ou “quartas” vias), nem
tão‑pouco de rejeitar o esforço subjacente a uma opção nítida entre as
alternativas em presença. A nossa perspectiva analítica rejeita, pois, tanto a
opção de enfileirar por uma das correntes já existentes como a de criar ex abrupto uma nova linha teórica. Em
que consiste, então?
Antes de mais, em defender que existe um continuum e não uma dicotomia redutora
entre modernidade e pós‑modernidade. O que, desde logo, nos permite
escapar a posicionamentos por vezes essencialistas, que definem uma ou outra
como intrinsecamente positivas ou negativas, em função de determinados
critérios e juízos, nem sempre explicitados.
Existe, em nosso entender, uma realidade sócio‑cultural
tensa e contraditória, composta por ritmos espácio‑temporais desiguais. O
passado ainda não acabou e o futuro já começou. Por outras palavras, há
realidades em que se cruzam temporalidades distintas, numa coexistência de
assincronismos. Por outro lado, importa não renunciar à localização dos factos
sócio‑culturais no espaço e na estrutura social. É uma ilusão pensar, sob
a aparência de uma glorificação quotidiana da estética, que tal processo
significa o mesmo em todos os lugares, em todas as épocas e para todos os
grupos sociais. Não nos repugna, por isso, retomar a afirmação de David Harvey
segundo a qual “o grau de fordismo e
modernismo, ou de flexibilidade e pós‑modernismo, varia de época para
época e de lugar para lugar”[1152]. Acrescentamos: e
de grupo social para grupo social, no interior de uma mesma classe. Há que, por
isso, reconstituir essa totalidade em interrelação, provisória e situada, em
cujos esferas e domínios específicos podem ter validade os sistemas teóricos há
pouco esboçados, sem que se auto‑excluam previamente.
O estudo de públicos e das suas práticas que levamos a
cabo, permite, precisamente, reforçar esta tese. A população estudada reflecte
posicionamentos sociais privilegiados, com uma identidade comum (que não pode,
de forma alguma, ser alargada artificialmente a toda a estrutura social) mas
igualmente com pontos de divergência e heterogeneidade internas. Há uma minoria
que segue esquemas consagrados de familiarização com a “alta cultura”, mas,
para a maioria, altera‑se o significado de legitimidade cultural, diluído
em combinações eventualmente menos sólidas mas mais ágeis, na medida em que se
adaptam com facilidade à “pluralidade dos
mundos de vida” e ao complexo sistema de papéis sociais dos grupos urbanos
favorecidos. Traduzem, por isso, universos culturais relativamente actualizados
(modernos), embora superficiais. No entanto, o discurso, um passo atrás das
práticas, assenta ainda em representações de uma ordem cultural anterior.
Abandona‑se o espaço público, habita‑se a
casa, mas sai‑se à noite para fruir cultura em locais específicos. O
espaço semi‑público não morreu, está activo e recomenda‑se. Ele
torna‑se essencial para o accionar de complexas redes de sociabilidade,
fornece um “terreno comum” de entendimento, embora restrito e selectivo. E um
palco, uma cena, onde a apresentação de si, sob o signo da “máscara” ou da
“autenticidade” cumpre funções simbólicas de expressão de uma condição social
que reproduz heranças ou investe em trajectórias ascendentes.
Estes elementos constituem a dimensão dominante dos
universos culturais dos grupos sociais que estudamos e que podemos enquadrar no
que Bourdieu apelida de nova burguesia e
nova pequena burguesia e que, pela sua
constituição, desmentem quer a lógica de uma total autonomização da esfera
cultural, porquanto se associam a poderosas transformações económicas (peso
crescente dos serviços; elevado grau de imaterialidade da estrutura económica
actual; associação entre crescimento económico e circulação de informação;
importância da “destruição criativa” de bens e recursos tendo em vista a
implantação de novas necessidades, desejos e aspirações; reprodução da lógica
capitalista através da constante produção de novidade; etc.) quer a teoria dos
“espelhos” de um economicismo redutor e automático, já que as suas práticas
culturais, valores e estilos de vida são dificilmente enquadráveis em
categorias tradicionais, revelando igualmente um papel activo do sujeito na
apropriação, recepção e transformação das obras culturais. Para além de se
verificarem outras clivagens, baseadas na idade e no género, não menos
interessantes e que não podem ser reduzidas à mesma base material.
Admitir a possibilidade de graus diferenciais de modernismo
e pós‑modernismo, consoante o segmento geográfico, histórico e social —
eis a nossa proposta. O que permite, como faz Harvey, crítico marxista da
condição pós‑moderna, resgatar do cerne distintivo dessa condição,
elementos emancipadores: “um modo de
pensamento anti‑autoritário e iconoclasta, que insiste na autenticidade
de outras vozes, que celebra a diferença, a descentralização e a democratização
do gosto, bem como o poder da imaginação sobre a materialidade, tem de ser
radical, mesmo quando usado indiscriminadamente. Nas mãos dos seus praticantes
mais responsáveis, toda a bagagem de ideias associadas com o pós‑modernismo
podia ser empregue para fins radicais”[1153].
Na mesma linha, Jameson, outro crítico marxista a manter
uma relação simultaneamente crítica e ambivalente com o pós‑modernismo,
fala, em vários momentos, de “sobredeterminação”,
“sobreposição de modos de produção”, “interacção recíproca”; “descontinuidade histórica”, etc.
Tudo depende, por isso, do ponto de onde parte a análise
e da escala de observação. Visto de outro planeta, a Terra é uma unidade e
podemos cair em generalizações fáceis e abusivas, como falar de uma pós‑modernidade
generalizada a todas as classes sociais e a todos os espaços. Ou insistir na
mobilidade e na compressão do espaço‑tempo como traços distintivos do
“novo mundo”, esquecendo a sua variação de acordo com níveis de desigual acesso
ao poder. Mas, mudando de súbito o ângulo e a escala de análise, não nos
admiremos se encontrarmos uma impaciente fila de espera numa paragem de
autocarros (nada que se compare à circulação dos cibernautas ou ao tráfego do
ciberespaço...) ou aquela mulher que caminha há horas, na aridez sub‑sahariana,
à procura de umas gotas de água.
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ANEXOS
ANEXO I
Indicadores
Demográficos por NUTS I, II e III em 1996 |
|
|
|
|
|
|
|
|
|
NUTS I, II e
III |
Saldo Natural |
Saldo Migratório |
Acréscimo Populacional |
Taxa Crescimento Natural |
Taxa Crescimento Migratório |
Taxa Crescimento Efectivo |
Taxa Natalidade |
Taxa Mortalidade |
Taxa Mortalidade Infantil |
|
(milhares) |
|
|
(percentagem) |
|
|
(permilagem) |
|
|
PORTUGAL |
3,36 |
10,00 |
13,35 |
0,03 |
0,10 |
0,13 |
11,1 |
10,8 |
6,9 |
CONTINENTE |
2,20 |
9,27 |
11,47 |
0,02 |
0,10 |
0,12 |
11,0 |
10,8 |
6,6 |
Norte |
10,96 |
3,02 |
13,98 |
0,31 |
0,09 |
0,40 |
12,2 |
9,1 |
7,8 |
Minho Lima |
-0,65 |
0,80 |
0,15 |
-0,26 |
0,32 |
0,06 |
9,6 |
12,2 |
5,9 |
Cávado |
2,28 |
1,21 |
3,49 |
0,62 |
0,33 |
0,95 |
13,9 |
7,8 |
8,6 |
Ave |
2,84 |
0,34 |
3,18 |
0,60 |
0,07 |
0,67 |
13,4 |
7,5 |
8,4 |
Grande Porto |
3,39 |
0,54 |
3,93 |
0,28 |
0,05 |
0,33 |
11,8 |
9,0 |
8,2 |
Tâmega |
3,42 |
-0,60 |
2,82 |
0,64 |
-0,11 |
0,53 |
14,6 |
8,1 |
7,2 |
Entre Douro Vouga |
1,26 |
0,87 |
2,13 |
0,48 |
0,33 |
0,81 |
12,4 |
7,6 |
6,2 |
Douro |
-0,54 |
0,05 |
-0,49 |
-0,23 |
0,02 |
-0,21 |
9,4 |
11,7 |
5,9 |
Alto Trás Montes |
-1,03 |
-0,20 |
-1,23 |
-0,45 |
-0,09 |
-0,54 |
8,5 |
13,0 |
11,0 |
Centro |
-3,66 |
2,33 |
-1,32 |
-0,21 |
0,14 |
-0,08 |
10,0 |
12,1 |
5,3 |
Baixo Vouga |
0,65 |
1,46 |
2,11 |
0,18 |
0,41 |
0,59 |
11,8 |
10,0 |
4,9 |
Baixo Mondego |
-0,55 |
0,06 |
-0,49 |
-0,17 |
0,02 |
-0,15 |
9,8 |
11,4 |
6,0 |
Pinhal Litoral |
0,31 |
0,89 |
1,20 |
0,13 |
0,39 |
0,53 |
11,3 |
9,9 |
3,5 |
Pinhal Interior Norte |
-0,79 |
-0,12 |
-0,91 |
-0,59 |
-0,09 |
-0,68 |
9,4 |
15,3 |
4,0 |
Pinhal Interior Sul |
-0,50 |
-0,38 |
-0,88 |
-1,07 |
-0,82 |
-1,89 |
7,0 |
17,7 |
3,1 |
Dão Lafões |
-0,68 |
0,74 |
0,06 |
-0,24 |
0,26 |
0,02 |
9,8 |
12,2 |
5,8 |
Serra Estrela |
-0,34 |
0,02 |
-0,32 |
-0,64 |
0,03 |
-0,61 |
7,6 |
14,0 |
7,6 |
Beira Interior Norte |
-0,68 |
-0,27 |
-0,95 |
-0,60 |
-0,24 |
-0,84 |
8,2 |
14,2 |
7,5 |
Beira Interior Sul |
-0,66 |
0,14 |
-0,52 |
-0,84 |
0,18 |
-0,66 |
7,3 |
15,7 |
3,5 |
Cova Beira |
-0,42 |
-0,20 |
-0,62 |
-0,47 |
-0,22 |
-0,69 |
9,3 |
14,0 |
8,3 |
Lisboa E Vale Do Tejo |
-0,70 |
3,68 |
2,98 |
-0,02 |
0,11 |
0,09 |
10,7 |
10,9 |
6,0 |
Oeste |
-0,67 |
1,46 |
0,79 |
-0,19 |
0,40 |
0,22 |
10,4 |
12,3 |
6,4 |
Grande Lisboa |
1,24 |
-2,17 |
-0,93 |
0,07 |
-0,12 |
-0,05 |
11,0 |
10,4 |
6,6 |
Península Setúbal |
0,66 |
3,40 |
4,06 |
0,10 |
0,51 |
0,61 |
11,0 |
10,0 |
5,7 |
Médio Tejo |
-1,05 |
0,54 |
-0,51 |
-0,47 |
0,24 |
-0,23 |
9,0 |
13,7 |
2,0 |
Lezíria Tejo |
-0,89 |
0,46 |
-0,43 |
-0,38 |
0,20 |
-0,19 |
9,3 |
13,2 |
4,6 |
Alentejo |
-3,47 |
-1,50 |
-4,97 |
-0,67 |
-0,29 |
-0,95 |
8,4 |
15,0 |
5,3 |
Alentejo Litoral |
-0,58 |
-0,35 |
-0,93 |
-0,62 |
-0,37 |
-0,98 |
7,8 |
14,0 |
9,4 |
Alto Alentejo |
-0,95 |
-0,39 |
-1,34 |
-0,78 |
-0,31 |
-1,09 |
8,2 |
15,9 |
2,0 |
Alentejo Central |
-0,75 |
-0,22 |
-0,96 |
-0,44 |
-0,13 |
-0,57 |
8,9 |
13,3 |
5,3 |
Baixo Alentejo |
-1,19 |
-0,55 |
-1,74 |
-0,88 |
-0,41 |
-1,29 |
8,2 |
17,0 |
5,4 |
Algarve |
-0,93 |
1,73 |
0,80 |
-0,27 |
0,50 |
0,23 |
10,7 |
13,4 |
5,4 |
Algarve |
-0,93 |
1,73 |
0,80 |
-0,27 |
0,50 |
0,23 |
10,7 |
13,4 |
5,4 |
R. AUTÓNOMA AÇORES |
0,84 |
0,29 |
1,13 |
0,35 |
0,12 |
0,47 |
14,7 |
11,2 |
7,9 |
R. AUTÓNOMA MADEIRA |
0,32 |
0,43 |
0,75 |
0,13 |
0,17 |
0,29 |
11,7 |
10,5 |
11,9 |
Fonte: INE, Estimativas de População Residente, nº24. |
|
|
|
|
|
|
|
|
|
ANEXO II
ANEXO III
ANEXO IV
GUIÃO DE ENTREVISTA PARA INFORMANTES
PRIVILEGIADOS
1ª
Parte - Representações e opiniões sobre a
"noite" em geral
1. Tipos de actividades nocturnas que
desempenha.
2.
Significado pessoal da
"noite" e das saídas nocturnas.
3.
Carácter distintivo da
"noite" face aos outros espaços-tempos quotidianos, em especial os de
cariz doméstico.
4. Especificidade da "noite"
portuense.
5. Opinião sobre o binómio "noite como
profissão"/"noite como lazer".
2ª
Parte - Representações e opiniões sobre
os públicos da "noite"
1. Opinião sobre a eventual especificidade
das pessoas que frequentam assiduamente os espaços-tempos nocturnos.
2.
Opinião sobre a eventual
diversidade desses públicos e os seus critérios diferenciadores:
. de cariz social
. de cariz sexual
. de cariz etário
. de cariz étnico
. de cariz
estilístico (modos de apresentação pública, por exemplo)
. outros critérios
3. Relação entre espaços diferenciados e
tipos de públicos.
4.
Posição sobre uma
eventual evolução ao longo do tempo dos públicos nocturnos.
5.
Práticas desses públicos
("o que se faz à noite").
6.
Traços que distinguem
"os que saem à noite" dos que "ficam em casa".
GUIÃO DE ENTREVISTA AOS "PRATICANTES CULTURAIS" NOCTURNOS
1ª
Parte
1. Frequência/regularidade com que costuma
sair à noite *
2. Locais habitualmente escolhidos **
3. Companhia(s) habitual(ais)/importância
dos amigos na estruturação das "saídas nocturnas"
4. Significado (s) de "sair à noite" e da "cidade
à noite"
2ª
Parte
1. Quando se escolhe ficar em casa, quais
as actividades mais frequentes e os equipamentos *** mais utilizados
2. Actividades mais frequentes dos
familiares que compartilham a residência
3.
Significado de "ficar em casa" e da "casa"
3ª
Parte
1.
Obstáculos a uma maior
intensidade das "saídas", em especial as nocturnas
2. Vantagens e desvantagens de "sair" versus "ficar em
casa"
*
Todos os dias, algumas
vezes por semana, ao fim de semana, algumas vezes por mês, etc. **
Captar, para além do polo restaurantes/cafés/bares/ discotecas, a frequência de
espectáculos musicais, teatro, cinema, etc.
*** Televisão, vídeo, rádio, Hi Fi, etc.
ANEXO V
Quadro I
|
Escalões Etários |
|||||
Não Fazer Nada |
Até 20 N=75 (15,9%) |
21-30 N=243 (51,4%) |
31-40 N=80 (16,9%) |
Mais de 40 N=75 (15,9%) |
|
|
Frequentemente N=120 (23,0%) |
41,3 |
30,5 |
22,5 |
22,7 |
|
|
Com alguma frequência N=361 (69,3%) |
1,3 |
2,9 |
3,8 |
4,0 |
|
|
Raramente/Nunca N=21 (4,0%) |
57,3 |
66,7 |
73,8 |
73,3 |
|
|
Quadro II
|
Escalões Etários |
|
||||
Ouvir Música |
Até 20 N=77 (15,1%) |
21-30 N=257 (50,4%) |
31-40 N=87 (17,1%) |
Mais de 40 N=89 (17,4%) |
||
Frequentemente N=490 (96,1%) |
96,1 |
96,9 |
95,4 |
94,4 |
||
Com alguma frequência N=10 (2,0%) |
3,9 |
1,2 |
3,4 |
1,1 |
||
Raramente/Nunca N=10 (2,0%) |
|
1,9 |
1,1 |
4,5 |
||
Quadro III
|
Escalões Etários |
|
||||
Ir a Bares |
Até 20 N=76 (15,2%) |
21-30 N=254 (50,7%) |
31-40 N=85 (17,0%) |
Mais de 40 N=86 (17,1%) |
||
Frequentemente N=243 (48,5%) |
57,9 |
60,6 |
35,3 |
17,4 |
||
Com alguma frequência N=112 (22,4%) |
13,2 |
23,2 |
27,1 |
23,3 |
||
Raramente/Nunca N=146 (29,1%) |
28,9 |
16,1 |
37,6 |
59,3 |
||
Quadro IV
|
Escalões Etários |
|
||||
Ir a Discotecas |
Até 20 N=76 (15,1%) |
21-30 N=253 (50,3%) |
31-40 N=87 (17,3%) |
Mais de 40 N=87 (17,3%) |
||
Frequentemente N=111 (22,1%) |
36,8 |
25,3 |
12,6 |
9,2 |
||
Com alguma frequência N=110 (21,9%) |
21,1 |
24,5 |
18,4 |
18,4 |
||
Raramente/Nunca N=282 (56,1%) |
42,1 |
50,2 |
69,0 |
72,4 |
||
Quadro V
|
Escalões Etários |
|
||||
Escrever Poemas, Contos, etc. |
Até 20 N=76 (15,3%) |
21-30 N=250 (50,2%) |
31-40 N=86 (17,3%) |
Mais de 40 N=86 (17,3%) |
||
Frequentemente N=70 (14,1%) |
23,7 |
14,8 |
10,5 |
7,0 |
||
Com alguma frequência N=42 (8,4%) |
14,5 |
6,8 |
8,1 |
8,1 |
||
Raramente/Nunca N=386 (77,5%) |
61,8 |
78,4 |
81,4 |
84,9 |
||
Quadro VI
|
Escalões Etários |
|
||||
Visitar Museus, Exposições, etc. |
Até 20 N=76 (15,1%) |
21-30 N=252 (50,2%) |
31-40 N=87 (17,3%) |
Mais de 40 N=87 (17,3%) |
||
Frequentemente N=117 (23,3%) |
18,4 |
21,8 |
29,9 |
25,3 |
||
Com alguma frequência N=210 (41,8%) |
38,2 |
44,0 |
32,2 |
48,3 |
||
Raramente/Nunca N=175 (34,9%) |
43,4 |
34,1 |
37,9 |
26,4 |
||
Quadro VII
|
Escalões Etários |
|
||||
Ver Televisão |
Até 20 N=77 (15,2%) |
21-30 N=256 (50,4%) |
31-40 N=89 (17,5%) |
Mais de 40 N=86 (16,9%) |
||
Frequentemente N=422 (83,1%) |
87,0 |
80,9 |
83,1 |
86,0 |
||
Com alguma frequência N=5 (1,0%) |
1,3 |
1,2 |
1,1 |
|
||
Raramente/Nunca N=81 (15,9%) |
11,7 |
18,0 |
15,7 |
14,0 |
||
Quadro VIII
|
Escalões Etários |
|
||||
Ler Livros |
Até 20 N=77 (15,4%) |
21-30 N=251 (50,1%) |
31-40 N=86 (17,2%) |
Mais de 40 N=87 (17,4%) |
||
Frequentemente N=342 (68,3%) |
58,4 |
70,5 |
72,1 |
66,7 |
||
Com alguma frequência N=78 (15,6%) |
22,1 |
15,1 |
8,1 |
18,4 |
||
Raramente/Nunca N=81 (16,2%) |
19,5 |
14,3 |
19,8 |
14,9 |
||
Quadro IX
|
Escalões Etários |
|
||||
Ler Jornais |
Até 20 N=76 (15,1%) |
21-30 N=255 (50,6%) |
31-40 N=86 (17,1%) |
Mais de 40 N=87 (17,3%) |
||
Frequentemente N=396 (78,6%) |
53,9 |
79,6 |
86,0 |
89,7 |
||
Com alguma frequência N=38 (7,5%) |
17,1 |
7,1 |
3,5 |
4,6 |
||
Raramente/Nunca N=70 (13,5%) |
28,9 |
13,3 |
10,5 |
5,7 |
||
Quadro X
|
Escalões Etários |
|
||||
Ler Revistas |
Até 20 N=77 (15,5%) |
21-30 N=252 (50,7%) |
31-40 N=85 (17,1%) |
Mais de 40 N=83 (16,7%) |
||
Frequentemente N=396 (78,6%) |
70,1 |
69,8 |
64,7 |
66,3 |
||
Com alguma frequência N=38 (7,5%) |
16,9 |
20,6 |
28,2 |
20,5 |
||
Raramente/Nunca N=70 (13,5%) |
13,0 |
9,5 |
7,1 |
13,3 |
||
Quadro XI
|
Sexo |
|||
Ler Revistas |
Masculino N=182 (46,0%) |
Feminino N=214 (54,0%) |
|
|
Frequentemente N=18 (4,5%) |
5,5 |
3,7 |
|
|
Com alguma frequência N=265 (66,9%) |
68,1 |
65,9 |
|
|
Raramente/Nunca N=113 (28,5%) |
26,4 |
30,4 |
|
|
Quadro XII
|
Situação na Trajectória |
||||
Espaço Frequentado |
Trajectórias Ascendentes N=189 (42,8%) |
Situações de Reprodução N=224 (50,7%) |
Trajectórias Descendentes N=29 (6,6%) |
|
|
B Flat N=122 (27,6%) |
30,7 |
26,3 |
17,2 |
|
|
Praia da Luz N=79 (17,9%) |
12,2 |
21,9 |
24,1 |
|
|
Rivoli N=241 (54,5%) |
57,1 |
51,8 |
58,6 |
|
|
Quadro XIII
|
Espaço Frequentado |
||||
Música – Consagrados Modernos |
B Flat N=103 (26,2%) |
Praia da Luz N=63 (16,0%) |
Rivoli N=227 (57,8%) |
|
|
Nulo Grau de Identificação N=43 (10,9%) |
12,6 |
4,8 |
11,9 |
|
|
Baixo Grau de Identificação N=242 (61,6%) |
66,0 |
54,0 |
61,7 |
|
|
Médio Grau de identificação N=77 (19,6%) |
16,5 |
28,6 |
18,5 |
|
|
Alto Grau de Identificação N=31 (7,9%) |
4,9 |
12,7 |
7,9 |
|
|
Quadro XIV
|
Espaço Frequentado |
||||
Música – Não Consagrados |
B Flat N=103 (26,2%) |
Praia da Luz N=63 (16,0%) |
Rivoli N=227 (57,8%) |
|
|
Nulo Grau de Identificação N=180 (45,8%) |
49,5 |
22,2 |
50,7 |
|
|
Baixo Grau de Identificação N=190 (48,3%) |
45,6 |
65,1 |
44,9 |
|
|
Médio Grau de identificação N=22 (5,6%) |
3,9 |
12,7 |
4,4 |
|
|
Alto Grau de Identificação N=1 (0,3%) |
1,0 |
|
|
|
|
Quadro XV
|
Espaço Frequentado |
||||
Cinema – Consagrados Clássicos |
B Flat N=64 (22,9%) |
Praia da Luz N=53 (18,0%) |
Rivoli N=162 (58,1%) |
|
|
Nulo Grau de Identificação N=49 (17,6%) |
15,6 |
24,5 |
16,0 |
|
|
Baixo Grau de Identificação N=95 (34,1%) |
28,1 |
41,5 |
34,0 |
|
|
Médio Grau de identificação N=92 (33,0%) |
37,5 |
24,5 |
34,0 |
|
|
Alto Grau de Identificação N=43 (15,4%) |
18,8 |
9,4 |
16,0 |
|
|
Quadro XVI
|
Espaço Frequentado |
||||
Cinema – Consagrados Modernos |
B Flat N=64 (22,9%) |
Praia da Luz N=53 (18,0%) |
Rivoli N=162 (58,1%) |
|
|
Nulo Grau de Identificação N=53 (19,0%) |
9,4 |
22,6 |
21,6 |
|
|
Baixo Grau de Identificação N=157 (56,3%) |
65,6 |
62,3 |
50,6 |
|
|
Médio Grau de identificação N=50 (17,9%) |
18,8 |
11,3 |
19,8 |
|
|
Alto Grau de Identificação N=19 (6,8%) |
6,3 |
3,8 |
8,0 |
|
|
Quadro
XVII
|
Espaço Frequentado |
||||
Cinema – Não Consagrados |
B Flat N=64 (22,9%) |
Praia da Luz N=53 (18,0%) |
Rivoli N=162 (58,1%) |
|
|
Nulo Grau de Identificação N=67 (24,0%) |
25,0 |
17,0 |
25,9 |
|
|
Baixo Grau de Identificação N=140 (50,2%) |
56,3 |
50,9 |
47,5 |
|
|
Médio Grau de identificação N=45 (16,1%) |
15,6 |
18,9 |
15,4 |
|
|
Alto Grau de Identificação N=27 (9,7%) |
3,1 |
13,2 |
11,1 |
|
|
Quadro XVIII
|
Espaço Frequentado |
||||
Literatura – Consagrados Clássicos |
B Flat N=67 (22,4%) |
Praia da Luz N=50 (16,7%) |
Rivoli N=182 (60,9%) |
|
|
Nulo Grau de Identificação N=14 (4,7%) |
4,5 |
8,0 |
3,8 |
|
|
Baixo Grau de Identificação N=159 (53,2%) |
49,3 |
60,0 |
52,7 |
|
|
Médio Grau de identificação N=79 (26,4%) |
31,3 |
18,0 |
26,9 |
|
|
Alto Grau de Identificação N=47 (15,7%) |
14,9 |
14,0 |
16,5 |
|
|
Quadro XIX
|
Espaço Frequentado |
||||
Literatura – Consagrados Modernos |
B Flat N=67 (22,4%) |
Praia da Luz N=50 (16,7%) |
Rivoli N=182 (60,9%) |
|
|
Nulo Grau de Identificação N=13 (4,3%) |
6,0 |
4,0 |
3,8 |
|
|
Baixo Grau de Identificação N=164 (54,8%) |
53,7 |
56,0 |
54,9 |
|
|
Médio Grau de identificação N=97 (32,4%) |
34,3 |
32,0 |
31,9 |
|
|
Alto Grau de Identificação N=25 (8,4%) |
6,0 |
8,0 |
9,3 |
|
|
Quadro XX
|
Espaço Frequentado |
||||
Literatura – Não Consagrados |
B Flat N=67 (22,4%) |
Praia da Luz N=50 (16,7%) |
Rivoli N=182 (60,9%) |
|
|
Nulo Grau de Identificação N=189 (63,2%) |
65,7 |
58,0 |
63,7 |
|
|
Baixo Grau de Identificação N=89 (29,8%) |
31,3 |
32,0 |
28,6 |
|
|
Médio Grau de identificação N=18 (6,0%) |
3,0 |
8,0 |
6,6 |
|
|
Alto Grau de Identificação N=3 (1,0%) |
|
2,0 |
1,1 |
|
|
Quadro XXI
|
Capital Escolar de Ego |
||||
Ir ao Teatro |
Baixo N=30 (6,1%) |
Médio N=100 (20,4%) |
Alto N=360 (73,5%) |
|
|
Frequentemente N=79 (16,1%) |
13,3 |
17,0 |
16,1 |
|
|
Com alguma frequência N=128 (26,1%) |
20,0 |
22,0 |
27,8 |
|
|
Raramente/Nunca N=283 (57,8%) |
66,7 |
61,0 |
56,1 |
|
|
Quadro XXII
|
Capital Escolar de Ego |
||||
Ir a Concertos de Música Clássica |
Baixo N=29 (5,9%) |
Médio N=103 (20,9%) |
Alto N=362 (73,3%) |
|
|
Frequentemente N=48 (9,7%) |
6,9 |
7,8 |
10,5 |
|
|
Com alguma frequência N=108 (21,9%) |
17,2 |
18,4 |
23,2 |
|
|
Raramente/Nunca N=338 (68,4%) |
75,9 |
73,8 |
66,3 |
|
|
Quadro XXIII
|
Capital Escolar de Ego |
||||
Visitar Museus, Exposições |
Baixo N=29 (5,9%) |
Médio N=104 (21,1%) |
Alto N=361 (73,1%) |
|
|
Frequentemente N=118 (23,9%) |
20,7 |
19,2 |
25,5 |
|
|
Com alguma frequência N=204 (41,3%) |
24,1 |
34,6 |
44,6 |
|
|
Raramente/Nunca N=172 (34,8%) |
55,2 |
46,2 |
29,9 |
|
|
Quadro XXIV
|
Capital Escolar de Ego |
||||
Fazer Fotografia (sem ser em festas ou férias) |
Baixo N=29 (5,9%) |
Médio N=104 (21,0%) |
Alto N=363 (73,2%) |
|
|
Frequentemente N=77 (15,5%) |
|
17,3 |
16,3 |
|
|
Com alguma frequência N=78 (15,7%) |
20,7 |
9,6 |
17,1 |
|
|
Raramente/Nunca N=341 (68,8%) |
79,3 |
73,1 |
66,7 |
|
|
Quadro XXV
|
Capital Escolar de Ego |
||||
Ir ao Cinema |
Baixo N=28 (5,7%) |
Médio N=103 (20,9%) |
Alto N=363 (73,5%) |
|
|
Frequentemente N=265 (53,6%) |
25,0 |
38,8 |
60,1 |
|
|
Com alguma frequência N=155 (31,4%) |
53,6 |
41,7 |
26,7 |
|
|
Raramente/Nunca N=74 (15,0%) |
21,4 |
19,4 |
13,2 |
|
|
Quadro XXVI
|
Capital Escolar de Ego |
||||
Artes Plásticas (Pintar, Desenhar) |
Baixo N=28 (5,7%) |
Médio N=105 (21,3%) |
Alto N=361 (73,1%) |
|
|
Frequentemente N=97 (19,6%) |
10,7 |
21,0 |
19,9 |
|
|
Com alguma frequência N=39 (7,9%) |
21,4 |
2,9 |
8,3 |
|
|
Raramente/Nunca N=358 (72,5%) |
67,9 |
76,2 |
71,7 |
|
|
Quadro XXVII
|
Capital Escolar de Ego |
||||
Escrever Poemas, Contos |
Baixo N=29 (5,9%) |
Médio N=103 (21,0%) |
Alto N=361 (73,1%) |
|
|
Frequentemente N=68 (13,8%) |
24,1 |
14,6 |
12,8 |
|
|
Com alguma frequência N=42 (8,6%) |
10,3 |
9,7 |
8,1 |
|
|
Raramente/Nunca N=381 (77,6%) |
65,5 |
75,7 |
79,1 |
|
|
Quadro XXVIII
|
Capital Escolar de Ego |
||||
Ver Televisão |
Baixo N=29 (5,8%) |
Médio N=105 (21,1%) |
Alto N=364 (73,1%) |
|
|
Frequentemente N=413 (82,9%) |
93,1 |
82,9 |
82,1 |
|
|
Com alguma frequência N=5 (1,0%) |
3,4 |
1,0 |
0,8 |
|
|
Raramente/Nunca N=80 (16,1%) |
3,4 |
16,2 |
17,0 |
|
|
Quadro XXIX
|
Capital Escolar de Ego |
||||
Ler Livros |
Baixo N=29 (5,9%) |
Médio N=102 (20,7%) |
Alto N=361 (73,4%) |
|
|
Frequentemente N=338 (68,7%) |
62,1 |
56,9 |
72,6 |
|
|
Com alguma frequência N=77 (15,7%) |
17,2 |
22,5 |
13,6 |
|
|
Raramente/Nunca N=77 (15,7%) |
20,7 |
20,6 |
13,9 |
|
|
Quadro XXX
|
Capital Escolar de Ego |
||||
Ler Jornais |
Baixo N=28 (5,7%) |
Médio N=105 (21,2%) |
Alto N=362 (73,1%) |
|
|
Frequentemente N=390 (78,8%) |
67,9 |
69,5 |
82,3 |
|
|
Com alguma frequência N=36 (7,3%) |
7,1 |
11,4 |
6,1 |
|
|
Raramente/Nunca N=69 (13,9%) |
25,0 |
19,0 |
11,6 |
|
|
Quadro XXXI
|
Situação na Trajectória |
||||
Cinema – Consagrados Clássicos |
Trajectórias Ascendentes N=98 (41,7%) |
Situações de Reprodução N=117 (49,8%) |
Trajectórias Descendentes N=20 (8,5%) |
|
|
Nulo Grau de Identificação N=39 (16,6%) |
15,3 |
17,1 |
20,0 |
|
|
Baixo Grau de Identificação N=77 (32,8%) |
31,6 |
29,1 |
60,0 |
|
|
Médio Grau de identificação N=80 (34,0%) |
32,7 |
38,5 |
15,0 |
|
|
Alto Grau de Identificação N=39 (16,6%) |
20,4 |
15,4 |
5,0 |
|
|
Quadro XXXII
|
Situação na Trajectória |
||||
Cinema – Consagrados Modernos |
Trajectórias Ascendentes N=98 (41,7%) |
Situações de Reprodução N=117 (49,8%) |
Trajectórias Descendentes N=20 (8,5%) |
|
|
Nulo Grau de Identificação N=45 (19,1%) |
21,4 |
20,5 |
|
|
|
Baixo Grau de Identificação N=126 (53,6%) |
50,0 |
53,0 |
75,0 |
|
|
Médio Grau de identificação N=46 (19,6%) |
19,4 |
20,5 |
15,0 |
|
|
Alto Grau de Identificação N=18 (7,7%) |
9,2 |
6,0 |
10,0 |
|
|
Quadro
XXXIII
|
Situação na Trajectória |
||||
Cinema – Não Consagrados |
Trajectórias Ascendentes N=98 (41,7%) |
Situações de Reprodução N=117 (49,8%) |
Trajectórias Descendentes N=20 (8,5%) |
|
|
Nulo Grau de Identificação N=64 (27,2%) |
30,6 |
25,6 |
20,0 |
|
|
Baixo Grau de Identificação N=117 (49,8%) |
44,9 |
53,0 |
55,0 |
|
|
Médio Grau de identificação N=34 (14,5%) |
16,3 |
11,1 |
25,0 |
|
|
Alto Grau de Identificação N=20 (8,5%) |
8,2 |
10,3 |
|
|
|
Quadro
XXXIV
|
Situação na Trajectória |
||||
Literatura – Consagrados Clássicos |
Trajectórias Ascendentes N=113 (43,5%) |
Situações de Reprodução N=132 (50,8%) |
Trajectórias Descendentes N=15 (5,8%) |
|
|
Nulo Grau de Identificação N=11 (4,2%) |
3,5 |
5,3 |
|
|
|
Baixo Grau de Identificação N=143 (55,0%) |
59,3 |
50,8 |
60,0 |
|
|
Médio Grau de identificação N=71 (27,3%) |
24,8 |
31,1 |
13,3 |
|
|
Alto Grau de Identificação N=35 (13,5%) |
12,4 |
12,9 |
26,7 |
|
|
Quadro
XXXV
|
Situação na Trajectória |
||||
Literatura – Consagrados Modernos |
Trajectórias Ascendentes N=113 (43,5%) |
Situações de Reprodução N=132 (50,8%) |
Trajectórias Descendentes N=15 (5,8%) |
|
|
Nulo Grau de Identificação N=13 (5,0%) |
2,7 |
5,3 |
20,0 |
|
|
Baixo Grau de Identificação N=138 (53,1%) |
52,2 |
53,8 |
53,3 |
|
|
Médio Grau de identificação N=71 (32,3%) |
31,9 |
33,3 |
26,7 |
|
|
Alto Grau de Identificação N=35 (9,6%) |
13,3 |
7,6 |
|
|
|
Quadro
XXXVI
|
Situação na Trajectória |
||||
Literatura – Não Consagrados |
Trajectórias Ascendentes N=113 (43,5%) |
Situações de Reprodução N=132 (50,8%) |
Trajectórias Descendentes N=15 (5,8%) |
|
|
Nulo Grau de Identificação N=161 (61,9%) |
59,3 |
65,9 |
46,7 |
|
|
Baixo Grau de Identificação N=83 (31,9%) |
31,9 |
29,5 |
53,3 |
|
|
Médio Grau de identificação N=15 (5,8%) |
8,0 |
4,5 |
|
|
|
Alto Grau de Identificação N=1 (0,4%) |
0,9 |
|
|
|
|
Quadro
XXXVII
|
Situação na Trajectória |
||||
Música – Consagrados Clássicos |
Trajectórias Ascendentes N=142 (42,9%) |
Situações de Reprodução N=165 (49,8%) |
Trajectórias Descendentes N=24 (7,3%) |
|
|
Nulo Grau de Identificação N=44 (13,3%) |
16,9 |
10,3 |
12,5 |
|
|
Baixo Grau de Identificação N=133 (40,2%) |
43,0 |
38,2 |
37,5 |
|
|
Médio Grau de identificação N=71 (21,5%) |
16,9 |
24,8 |
25,0 |
|
|
Alto Grau de Identificação N=83 (25,1%) |
23,2 |
26,7 |
25,0 |
|
|
Quadro XXXVIII
|
Situação na Trajectória |
||||
Música – Consagrados Modernos |
Trajectórias Ascendentes N=142 (42,9%) |
Situações de Reprodução N=165 (49,8%) |
Trajectórias Descendentes N=24 (7,3%) |
|
|
Nulo Grau de Identificação N=33 (10,0%) |
10,6 |
10,3 |
4,2 |
|
|
Baixo Grau de Identificação N=201 (60,7%) |
58,5 |
61,8 |
66,7 |
|
|
Médio Grau de identificação N=69 (20,8%) |
22,5 |
19,4 |
20,8 |
|
|
Alto Grau de Identificação N=28 (8,5%) |
8,5 |
8,5 |
8,3 |
|
|
Quadro
XXXIX
|
Situação na Trajectória |
||||
Música – Não Consagrados |
Trajectórias Ascendentes N=142 (42,9%) |
Situações de Reprodução N=165 (49,8%) |
Trajectórias Descendentes N=24 (7,3%) |
|
|
Nulo Grau de Identificação N=159 (48,0%) |
46,5 |
49,7 |
45,8 |
|
|
Baixo Grau de Identificação N=152 (45,9%) |
43,7 |
47,3 |
50,0 |
|
|
Médio Grau de identificação N=19 (5,7%) |
9,2 |
3,0 |
4,2 |
|
|
Alto Grau de Identificação N=1 (0,3%) |
0,7 |
|
|
|
|
ÍNDICE
INTRODUÇÃO
- FUGA E PARTITURA OU UMA METÁFORA PARA UMA DISSERTAÇÃO
CAPÍTULO
I - ITINERÁRIO TEÓRICO EM TORNO DA PRODUÇÃO DOS FENÓMENOS SIMBÓLICOS
Ponto de partida: a trilogia dos
fundadores...................................................p. 14
1.1.
Karl
marx e o materialismo histórico.............................................................p. 14
1.2.
Émile
Durkheim e a tendência para a reificação da sociedade...................p. 20
1.3.
Max
Weber e a produção de
sentido..............................................................p. 28
1.4.
Breve
balanço.....................................................................................................p.
33
2.
Tendências
actuais da sociologia no estudo da cultura..................................p.
35
2.1. A análise da vida quotidiana:
fenomenologia social, etnometodologia e interaccionismo simbólico
2.2. A sociedade como totalidade:
funcionalismo, estruturalismo e pós-estruturalismo
2.3. Breve balanço e
reencaminhamento em direcção à complexidade..............p. 51
2.4. Algumas "teorias de
síntese"............................................................................p.
57
2.4.1. Clifford Geertz e a concepção
semiótica de cultura....................................p. 58
2.4.2. Peter Berger e Thomas
Luckmann - a construção social da realidade
2.4.3. Pierre Bourdieu e o
conhecimento prático do mundo................................p. 63
2.4.4. Anthony Giddens e a teoria da
estruturação...............................................p. 68
3. Novo ponto de partida em direcção a uma análise pluriperspectivada dos fenómenos
culturais
CAPÍTULO
II - O LUGAR DOS
PÚBLICOS......................................................p. 80
2.1. De um modelo estático e hierarquizado
dos níveis de cultura a um modelo dinâmico e plural
2.2. Diferentes olhares sobre o
lugar dos públicos e os gostos culturais............p. 92
2.2.1. A lógica das
homologias..................................................................................p.
92
2.2.2. Perspectivas complementares
e/ou alternativas - a questão pós-moderna
3.
Transformações
na esfera das identidades....................................................p.
111
CAPÍTULO
III - Os públicos em acção ou o ofício de receptor........................p.
114
1.
Análise
da recepção cultural como prática
social.........................................p. 114
2. A resistência cultural e as classes
populares....................................................p. 127
3. Diferentes tipos de recepção cultural e o
papel da animação sócio-cultural
4. Os contextos da
recepção....................................................................................p.
138
5. O estético no quotidiano e a dupla função
da moda
CAPÍTULO
IV - A CULTURA N(D)A CIDADE
1. A cidade e os comportamentos humanos:
diferentes perspectivas
2. A cidade e a apropriação do espaço
3. Redução semântica versus explosão do simbólico
4. Intervenção cultural em espaço urbano
CAPÍTULO V - POLÍTICAS E PRÁTICAS CULTURAIS
EM PORTUGAL: PONTO DE SITUAÇÃO E GRANDES TENDÊNCIAS
1.Uma visão de conjunto
1.1.
A
domesticidade e a sedentarização cultural
1.2.
O peso
do capital escolar
1.3. A juvenilidade das práticas culturais
1.4. Distinções segundo o género
2. Uma exclusão amplamente partilhada
3. Uma política cultural inexistente?
CAPÍTULO
VI - BREVE RETRATO DA SOCIEDADE PORTUGUESA NOS ANOS 90
1. Da necessidade de contextualizar as
práticas culturais
2. Evolução demográfica e reordenamento do
território
3. Reordenamento do território e assimetrias
regionais: retrato de um país a várias velocidades
3.1.
A sociedade
dualista
3.2.
A
complexificação do xadrez territorial
3.3.
O
modelo de desenvolvimento português: rupturas e permanência
CAPÍTULO
VII - O PORTO DOS ANOS 90
1. O Norte no conjunto do país
2. A área metropolitana do Porto no conjunto
do Norte
3. O Porto no conjunto da área metropolitana
4. Novo ponto de partida
CAPÍTULO VIII - DO PORTO ROMÂNTICO À CIDADE
DOS CENTROS COMERCIAIS. BREVE VIAGEM PELO TEMPO
I. O Porto de Oitocentos
1. A burguesia triunfante
2. Vida cultural, sociabilidades e estilos de
vida da «boa sociedade»
3. O reverso da «boa sociedade»
II. O novo século
1. As novidades
2. Uma nova realidade: a metrópole
3. Um período de discrição e
semiclandestinidade
4. Uma nova fase: a aplicação de uma política
cultural autárquica
5. As novas faces da cidade
CAPÍTULO
IX - ESTRATÉGIAS DE PESQUISA
1. Elogio do ecletismo metodológico
2. Breve reflexão sobre as técnicas
utilizadas
2.1. Análise documental de fontes
estatísticas
2.2. Entrevistas exploratórias
2.3. O inquérito por questionário
2.4. As entrevistas semi-directivas
2.5. A observação directa
3. Um estudo de casos comparativo
4. Uma nova grelha de classificação das
práticas culturais
CAPÍTULO
X - ESPAÇOS E TEMPOS DE UMA INVESTIGAÇÃO
1.Rivoli: a fénix renascida
1.1.
Breve historial
1.2.Um
novo modelo organizacional e de programação cultural
1.3. As expectativas do campo cultural portuense
2. A esplanada da Praia da Luz
2.1. Uma certa cultura mundana
2.2. A programação: uma ilustração da expansão do
campo cultural
3. B Flat: um clube de jazz?
3.1. Um francês em Portugal
4. As «vozes» da noite
4.1. Os lugares da noite
4.2. A noite e os seus paradoxos
CAPÍTULO
XI - DOS PÚBLICOS, DA CULTURA E DAS SUAS PRÁTICAS
1. Caracterização genérica
1.1. Uma «cultura jovem»
2. Género: o fim do «duplo padrão» de comportamento?
3.1. Espaços, perfis de públicos e
formas de apresentação
3.1.1. Praia da Luz ou a cidade e a
moda: em direcção a um habitus
plasticizado?
3.1.2. B Flat: ecletismo, mas
3.1.3. Rivoli
3.2. Espaço, competências e modelos
simbólicos dos públicos
3.4. Breve síntese8
A) Praia da Luz
B)
B Flat
C) Rivoli
4. Capital escolar, trajectórias sociais e práticas culturais
4.1. Estrutura do capital escolar: o peso da origem
social e a correcção da trajectória
4.2. Da insuficiência do capital escolar como
princípio explicativo
4.3. Da desertificação do espaço público e suas
consequências
4.4. Cultura e redes sociais
CAPÍTULO
XII - DA RECEPÇÃO CULTURAL
1. A recepção, o corpo e os seus contextos
1.1. As palmas ou a ambivalência dos comportamentos
1.2. Theatrum mundi ou o palco do público
2. Recepção cultural e horizonte de
expectativa
3. Representações sociais da recepção
4. Televisão e fast thinkin
CAPÍTULO
XIII - DOZE CONCLUSÕES PARA UMA TESE
1. Doze conclusões
2. Uma tese: a (pós)modernidade num continuum
BIBLIOGRAFIA
1. Livros
2. Artigos
ANEXOS
Anexo I
Anexo II
Anexo III
Anexo IV
Anexo V
[1] AGRADECIMENTOS
Esta
dissertação de doutoramento não teria sido possível sem a prontidão com que a
Drª Isabel Barbosa e o Professor Ivo Carneiro de Sousa diligenciaram no sentido
de apresentarem a minha candidatura aos apoios do PRODEP. Da mesma forma guardo
como excelente lembrança o incentivo com que, sem hesitação, o Professor
António Teixeira Fernandes me motivou a prosseguir, bem como a cooperação por
si constantemente reiterada.
Ao meu orientador e amigo José
Madureira Pinto, exemplo de honestidade e rigor, devo a sagacidade e a
oportunidade dos seus comentários críticos (que muito frequentemente acertaram
no alvo...) assim como a inesquecível lição de que "mais importante do que
salvar a teoria é salvar a realidade" (espero não o ter desiludido...).
Da mesma forma, saliento os
preciosos contributos informais, "recolhidos" em inúmeras conversas e
sessões de trabalho, dos meus colegas do Observatório das Actividades
Culturais, em particular Maria de Lourdes Lima dos Santos, António Firmino da
Costa, Eduardo de Freitas, Idalina Conde e João Sedas Nunes.
Do ponto de vista institucional
não posso igualmente deixar de referir a preciosa ajuda que o suporte
bibliográfico do GEDES (Gabinete de Estudos de Desenvolvimento do Território)
me prestou.
Uma especial palavra de
agradecimento a todos os que colaboraram directamente neste trabalho,
nomeadamente André Aleixo, Helena Gradim, João Mata, Nuno Almeida Alves, Paula
Pechincha, Rosa Carvalho, Rui Pinto e Sofia Alexandra Cruz.
À família Pinho (Srª D. Madalena,
Sr Jorge, Madalena Sofia e Sara) agradeço a generosa cedência da sua casa de
praia, onde preparei e redigi uma parte significativa desta dissertação e ao
Filipe, por me ter prontamente disponibilizado um precioso computador portátil.
À minha família e aos amigos,
pela insubstituível e incontornável raiz dos afectos. À minha Avó Maria
Julieta, em particular, por ter lidado de mais perto com os aspectos
desagradáveis do convívio com um doutorando.
À Helena, por tudo ter suportado
sem nunca perder o ânimo e a confiança.
[2] Este conceito inspira-se no modelo utilizado por Fredric Jameson. De
acordo com Ana Lúcia A. Gazolla, “Jameson
e os seus defensores argumentam (...) que seu modelo rejeita os esquemas
redutores do modelo ortodoxo de base e estrutura (...) para conectar as várias
esferas da existência social, tais como a economia, o estado e a cultura, sem
estabelecer dependências mecanicistas. A utilização da categoria dialéctica da
mediação permite relacionar essas diversas esferas sem reduzir uma à outra”,
vd. “Fredric Jameson: uma epistemologia ativista” in F. Jameson, Espaço e Imagem. Teorias do Pós-Moderno e
outros Ensaios”, Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
1995, p. 12.
[3] Cf. a este respeito o artigo de Jorge Vala sobre as orientações paradigmáticas em psicologia social, “As representações sociais no quadro dos paradigmas e metáforas da psicologia social” in Análise Social, nº 123-124, 1993, em particular pp. 890 e 895. Apesar de se situar num campo disciplinar diferente do nosso, a reflexão sobre o seu carácter de interface e mediação ajudou-nos a sedimentar a nossa perspectiva.
[4] Tal é a proposta, reducionista a nosso ver, de Jeffrey C. Alexander,
vd. “Cultural sociology
or sociology of culture (Toward a strong program)”, American Sociological
Association, www.art.cult2.htm.
[5] Varela, citado por Jorge Vala, vd. art. cit., p. 907.
[6] Vd. Clifford Geertz, A Interpretação das Culturas, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1978, p. 227.
[7] Karl Marx, “Misère de la philosophie: réponse à la philosophie de la misère de M. Proudhon” in Oeuvres, Paris, Gallimard, 1969, p. 79.
[8] Vd. K. Marx e F. Engels, A Ideologia Alemã, Lisboa, Editorial Presença/Livraria Martins Fontes, 1974, Volume I, p. 17.
[9] Idem, ibidem, pp. 24‑25.
[10] Idem, ibidem, p. 26.
[11] Idem, ibidem, p. 26.
[12] Idem, ibidem, p. 56.
[13] Giddens refere mesmo que o ponto crucial
em Marx é “a afirmação de ordem geral de
que a consciência é determinada pela actividade humana em sociedade”; cf.
A. Giddens, Capitalismo e Moderna Teoria
Social, Lisboa, Presença, 1984, p. 76.
Berger e Luckmann seguem na mesma linha, ao dissociarem as teses neo‑marxistas do marxismo original: “O que interessava a Marx é que o pensamento humano funda‑se na actividade humana («trabalho» no sentido mais amplo da palavra) e nas relações sociais produzidas por esta actividade. O melhor modo de compreender as expressões «infraestrutura» e «superestrutura» é considerá‑las respectivamente como actividade humana e mundo produzido por essa actividade” in A Construção Social da Realidade, Petrópolis, Vozes, 1985, p. 18.
[14] Karl Marx, “Misère de la Philosophie...”, op. cit.,
pp. 83‑84.
[15] Carta de Engels a Bloch, onde se refere, a dado passo, que a superestrutura exerce “igualmente a sua acção nas lutas históricas, e em muitos casos, determinando de forma preponderante a sua forma”. Ver a este respeito a abordagem de José Madureira Pinto in Ideologias: Inventário Crítico de um Conceito, Lisboa, Presença/GIS, 1978. O mesmo autor faz ainda notar as referências de Marx às “razões extra‑económicas” que contribuem para a alienação do trabalhador.
[16] A Ideologia Alemã, ed. cit., p. 49.
[17] Vd. Louis Althusser, Pour Marx, Paris, La Découverte, 1996 (em especial o pequeno ensaio “Contradiction et surdétermination (notes pour une recherche)”.
[18] Idem, ibidem, p. 104.
[19] Idem, ibidem, p. 111, sublinhados do autor.
[20] Já para não falar de uma concepção antitética sobre a divisão social do trabalho, tida para Marx como fonte de alienação e para Durkheim como força integradora.
[21] No caso de Marx o social funde‑se com o económico.
[22] José Machado Pais, “Durkheim: das Regras do Método aos métodos desregrados” in Análise Social, nº 131‑132, p. 245.
[23]‑ Vd. Émile Durkheim, De la Division du Travail Social, Paris, PUF, 1996.
[24] Durkheim defende, aliás, que as categorias que servem de base à organização do moderno pensamento abstracto, assentam na lógica dos sistemas primitivos de classificação, já que o conhecimento e as suas coordenadas espácio‑temporais são extraídas da sociedade.
[25] A. Giddens, op. cit., p. 168.
[26] É. Durkheim, As Regras do Método Sociológico, Lisboa, Presença, 1984, p. 18.
[27] É. Durkheim, Les Formes Élementaires de la Vie Religieuse. Le Systéme Totémique en Australie, Paris, P.U.F., 1979.
[28] Vd. Augusto Santos Silva, Entre a Razão e o Sentido, Porto, Edições Afrontamento, 1988, pp. 35‑36.
[29] Vd. A. Teixeira Fernandes, O Conhecimento Sociológico, Porto, Brasília Editora, 1983, p. 21.
[30] José Machado Pais, art. cit., p. 254.
[31] Idem, ibidem, p. 253.
[32] Vd É. Durkheim, As Regras..., p. 24.
[33] José Machado Pais, art. cit., p. 244.
[34] Vd. Franco Crespi, Manual de Sociologia da Cultura, Lisboa, Editorial Estampa, 1997, p. 44.
[35] Idem, ibidem, p. 82.
[36] Ainda segundo Crespi, “O facto de haver concebido a natureza do indivíduo como essencialmente a‑social (...) leva Durkheim a descurar a dimensão que, no indivíduo, deriva da necessidade de determinação, isto é, da busca de uma confirmação da própria identidade (...) os indivíduos são ao mesmo tempo, potencialmente a‑sociais, pela sua capacidade de negação das objectivações, e potencialmente sociais, devido à sua necessidade de identificação”, ibidem, p. 85.
[37] Vd. Max Weber, Economia y Sociedad, Mexico, Fondo de Cultura Economica, 1944, p. 4.
[43] É clara a influência em Weber do historicismo alemão e, em particular, de Wilhelm Dilthey, nomeadamente, quando este defende a especificidade dos objectos histórico‑sociais e a irredutível singularidade de cada tempo histórico. De igual forma, a importância da compreensão, do papel cognitivo do sujeito culturalmente motivado e da empatia entre observador e actor surgem já com grande evidência na obra deste autor.
[51] Durkheim, a propósito do suicídio, refere a impossibilidade de o analisar cientificamente a partir das pré‑noções do senso comum: “as palavras da língua corrente, como os conceitos que exprimem, são sempre ambíguos e o estudioso que os explorasse tal como os recebe na utilização que deles é feita diariamente, haveria necessariamente de incorrer em graves confusões”, vd. O Suicídio, Lisboa, Editorial Presença, 1977, p. 7.
[56] O mesmo autor acrescenta: “Contudo, na realidade, Weber tinha uma inclinação materialista bastante forte. Nos seus escritos políticos, em particular, desvaloriza geralmente a possibilidade de que os valores ou a ideologia possam deixar marcas de modo decisivo nas realidades duras da estrutura social”, ibidem, p. 23.
[61] Vd. Alfred
Schutz, The Structures of the Life‑World,
Evanston, Northwestern University Press, 1973, p. 3.
[64] José Madureira Pinto interpreta desta forma a centralidade do estudo das performances corporais em Schutz: “(o corpo) é o centro ou origem de toda a percepção, onde se inscreve o sistema de condições de possibilidade da acção e de apreensão do mundo”; vd. “Questões de metodologia sociológica (II)” in Cadernos de Ciências Sociais, nº 2, p. 122.
[65] Vd. Peter Berger e Thomas Luckmann, A Construção Social da Realidade, Petrópolis, Vozes, 1985, pp 43.
[66] Definidos por Schutz como “um estilo particular de experiência de vida” in The Structures..., p.23.
[68] Como refere Franco Crespi, a propósito de Schutz, “no mundo social a relação com o outro é sempre mediada por modelos de significado já codificados, isto é, por tipificações do agir (...) que, como conjunto de vivências típicas, surgem assimiladas através da comunicação social, ou seja, da linguagem, dos exemplos práticos, do ensino, da leitura, etc.” in op. cit., p. 120.
[69] Expressão utilizada por G. Poujol e R. Labourie in Les Cultures Populaires, Toulouse, Edouard Privat Éditeur, 1979.
[72] “O objecto da nova forma de
análise é o património de conhecimentos de senso comum (etno)usados (método) pelos indivíduos para definir e determinar praticamente a sua realidade
social”; vd. F.
Crespi, op. cit., p. 124.
[73] Vd. Harold
Garfinkel, “What is ethnomethodology?” in AAVV, The polity Reader in Social Theory, Cambridge, Polity Press, 1994,
p. 62.
[76] O que, em última análise, como refere Crespi, inviabiliza o próprio exercício das ciências sociais, já que “parece impedir qualquer possibilidade de desenvolver generalizações cognitivas relativamente aos fenómenos sociais no seu conjunto”, ibidem, p. 127.
[78] Erving Goffman, A Apresentação do Eu na Vida de Todos os Dias, Lisboa, Relógio d'Água, 1993, p. 9.
[84] Vd. a esse respeito o nosso artigo “As escolas urbanas como cenários de interacção” in Sociologia. Revista da Faculdade de Letras, I Série, vol V, 1995, pp. 91‑150.
[85] Vd. João Arriscado Nunes, “Erving Goffman, a análise de quadros e a sociologia da vida quotidiana” in Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 37, 1993, p. 45.
[87] Ainda a propósito de Goffman e da sua
“perspectiva ecológica” vd. Randall Collins, “Erving Goffman on ritual and
solidarity in social life” in AAVV, The
Polity Reader in Social Theory, op. cit., pp. 71‑78.
[88] Um outro ponto significativo em comum prende‑se com o privilegiar das interacções e formas de comunicação não‑verbal, com particular insistência nas performances corporais e gestuais (no caso de Goffman o estudo da face reveste‑se de uma importância particular). Goffman refere claramente que o seu objecto de estudo são principalmente as “expressões emitidas” (e não as “expressões (discursivamente) transmitidas” (Vd. op. cit., pp 15‑19).
[89] Vd. José Madureira Pinto, Ideologias: Inventário Crítico dum Conceito, Lisboa, Presença/Gabinete de Investigações Sociais, 1978, p. 17.
[93] O princípio da “equivalência funcional” constitui já uma actualização crítica do funcionalismo mais clássico, na medida em que considera que “uma mesma necessidade biológica ou mesmo um imperativo do sistema social poderão encontrar satisfação em formas culturais diversas, enquanto necessidades ou imperativos sociais diversos poderão encontrar satisfação numa mesma forma cultural”, F. Crespi, op. cit., p. 87.
[94] Saussure
citado in A. Giddens, Social Theory and
Modern Sociology, Cambridge, Polity Press, 1990, p. 75.
[95] A propósito da análise sistémica e estrutural, Vd. ainda A. Teixeira Fernandes, O Conhecimento Sociológico. A Espiral Teórica, Porto, Brasília Editora, 1983, pp. 37‑104.
[96] Vd. Gilles Deleuze, “Como reconhecer o estruturalismo” in François Châtelet (dir.), A Filosofia do Século XX, Lisboa, Publicações D. Quixote, 1981, p. 278.
[98] Aqui em sentido lato, pretendendo englobar igualmente a abordagem etnometodológica e interaccionista.
[99] Pense‑se nas trocas de sentido, nas transferências semânticas, nos jogos de palavras, na montagem de indícios que conduzem a interpretações erradas, etc., já para não se falar nas ocasiões em que intencionalmente se transmitem falsas informações.
[100] Como refere José Machado Pais, “no «conhecimento prático» ou «quotidiano» (...) a rotina aparece como uma espécie de «cunha» entre as acções «inconscientes» (tomada a expressão no seu corrente sentido psicológico) e aquelas que são levadas a cabo de uma forma deliberadamente consciente”, vd. “Nas rotas do quotidiano” in Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 37, 1993, p.109.
[101] A este propósito, Adriano Duarte Rodrigues, ele próprio um adepto das abordagens fenomenológicas, refere o seguinte:”... os indivíduos inseridos na multiplicidade de quadros que definem a vida quotidiana nunca esgotam, nas suas manifestações, a totalidade dos papéis que desempenham nem dão, por conseguinte, a ver totalmente a sua identidade”, vd. “Para uma sociologia fenomenológica da experiência quotidiana” in Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 37, 1993, pp. 123‑124.
[103] Vd. “The
micro‑sociological challenge of macro‑sociology: towards a
reconstruction of social theory and methodology” in knorr-Cetina e A.V.
Cicourel (orgs.) Advances in Social
Theory and Methodology - Toward an Integration of Micro and Macro-Sociologies,
Routledge and Kegan Paul, 1981.
[107] Atente‑se no caso paradigmático da entrevista e de todos os problemas levantados pela influência de factores como os estatutos e papéis sociais do entrevistador e do entrevistado e da forma como mutuamente se percepcionam e avaliam durante a situação interaccional que a entrevista representa.
[108] Vd. José Madureira Pinto, Propostas para o Ensino das Ciências Sociais, Porto, Ed. Afrontamento, 1994, em especial pp. 197‑200.
[111] Vd. Clifford Geertz, A Interpretação das Culturas, Rio de Janeiro, Zahar editores, 1978, p. 15.
[118] De Karl Mannheim retiram a defesa do «relacionismo», enquanto “sóbrio reconhecimento de que o conhecimento tem sempre de ser conhecimento a partir de uma certa posição”, vd. A Construção Social da Realidade, Petrópolis, Vozes, 1985, p. 23.
[120] Definidas como “tipificação recíproca de acções habituais por tipos de actores”, op. cit., p. 79.
[123] Da mesma forma, não concordamos com a crítica formulada por Moisés de Lemos Martins a Berger e Luckmann, designadamente quando refere que a sua proposta se reduz “à experiência ou intenção do sujeito”. De facto, os nossos autores são muito claros na rejeição de um subjectivismo simplista, conferindo uma grande importância aos processos de institucionalização e de socialização que condicionam os agentes (Vd. Moisés de Lemos Martins, “A epistemologia do saber quotidiano” in Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 37, 1993, pp. 79‑100).
[124] Veja‑se como esta proposta se aproxima do conceito de habitus de Bourdieu, designadamente enquanto processo de interiorização da exterioridade e de exteriorização da interioridade.
[128] Bourdieu critica ao objectivismo estruturalista o ponto de vista “soberano” sobre a acção social em que as práticas sociais aparecem como meras execuções de agentes passivos, bem como a reificação das estruturas, tidas como entidades autónomas que se substituem à vontade dos agentes. Por outro lado, distancia‑se das correntes fenomenológicas e hermenêuticas, ao impor o princípio de recusa da “ilusão da transparência” e assumindo o primado do sistema de relações sociais. Desta forma, consegue conciliar o interesse pelas actuações interpretativas dos agentes, sem resvalar para um conceito minimalista de estrutura social, tida pelas correntes hermenêuticas como mero resultado ou agregado das acções conscientes dos indivíduos.
[130] Cd. Pierre Bourdieu, “Le Sens Pratique” in Actes de la Recherche en Sciences Sociales, nº 1, 1976, p. 43.
[131] Sistema estruturado de posições em concorrência pela definição legítima das regras do jogo e dos limites do próprio campo, regido por interesses não totalmente redutíveis às outras esferas (ou campos) da acção social.
[136] Vd. Paulo Filipe Monteiro, “Bourdieu e as críticas que cairam ao chão” in Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 37, 1993, pp. 101‑103.
[137] Além do mais, Bourdieu refere explicitamente que não há dois habitus iguais, assim como não há duas pessoas iguais, apesar de haver, pela existência de um habitus de classe, maior ou menor probabilidade de realização de determinadas acções (vd. José Madureira Pinto, Ideologias..., pp 108‑115). O habitus reproduz de uma “forma transformada” as condições objectivas de que é produto.
[139] Vd. Pierre Bourdieu, Lição sobre a Lição, V. N. de Gaia, Estratégias Criativas, s/ data, pp. 45‑46.
[143] Vd. a este respeito, Fernando J. García Selgas, Teoría Social e Metateoría hoy ‑ El Caso de Anthony Giddens, Madrid, Siglo XXI Editores, 1994, em especial pp. 104‑113.
[144] Como refere Fernando J. García Selgas, op. cit., existe uma constelação de factores históricos que influencia fortemente a produção teórica de Giddens, nomeadamente a recessão económica e o fim do optimismo ocidental, o desabar dos regimes “comunistas”, o subdesenvolvimento de grande parte do globo e as novas desigualdades no seio das sociedades “desenvolvidas”.
[145] Do marxismo, Giddens retira a noção de praxis e a defesa do carácter descontínuo da modernidade.
[146] Ou, se preferirmos, conciliando produção e reprodução, mudança e estabilidade, diacronia e sincronia.
[147] A. Giddens,
“Elements of the theory of structuration” in AAVV, The Polity Reader in Social Theory, Cambridge, Polity Press, 1994,
p. 81.
[148] Em inglês, Agency. Refere‑se à capacidade de fazer coisas, ou seja, ao poder. Liga‑se, por isso, às principais características da acção: capacidade, cognoscibilidade e continuidade espácio‑temporal, vd. F. J. García Selgas, op. cit., p. 128.
[149] “Vêem os seres humanos como agentes decididos, conscientes de si próprios, enquanto agentes e encontrando razões para aquilo que fazem, mas têm poucos meios para lidarem com assuntos que assentam largamente em perspectivas funcionalistas e estruturais – problemas de constrangimento, poder e organização social em larga escala”, vd. Novas Regras..., p. 12.
[150] “Os agentes são tratados como inertes e incapazes – marionetas de poderes mais fortes do que eles”, idem, ibidem.
[161] Daí a linguagem só poder ser entendida enquanto um conjunto de significados enraízados nos cenários de interacção da vida quotidiana.
[163] Segundo Giddens, constrangimentos de
competências e de ligação, isto é, referentes a actividades levadas a cabo com
outras pessoas, vd. A. Giddens, “Time, space and regionalisation” in Derek
Gregory e John Urry (eds), Social Relations
and Social Structures, London, MacMillan, 1985.
[164] Ou mesmo uma metateoria, enquanto um conjunto de “esquemas interpretativos de carácter filosófico com o intuito de entender esses esquemas interpretativos da realidade que chamamos teorias científicas”, U. Moulines in Fernando J. García Selgas, op. cit., p. 20.
[165] É a este respeito bastante clara a sua afirmação de que “todos os sistemas sociais de larga escala dependem, de facto, dos padrões da interacção social” in Sociology, Cambridge, Polity Press, 1993, p. 91.
[166] Expressão de Augusto Santos Silva, vd. Tempos Cruzados — Um Estudo Interpretativo da Cultura Popular, Porto, Ed. Afrontamento, 1994, em especial os primeiros capítulos.
[167] Vd. Tristes Escolas — Um Estudo Sobre Práticas Culturais Estudantis no Espaço Escolar Urbano, Porto, Ed. Afrontamento, 1997.
[169] Daniel Roche critica o modelo de hierarquização da “cave ao sotão”, baseado numa grelha que ordena “os factos do económico ao social, do social ao cultural, em níveis sucessivos”, vd. “Uma declinação das Luzes” in Jean‑Pierre Rioux e Jean‑François Sirinelli (coords.), Para Uma História Cultural, Lisboa, Editorial Estampa, 1998.
[170] Utilizando a argumentação de Paulo Filipe Monteiro face à relação arte/sociedade, poderemos afirmar que a dimensão simbólico‑cultural não está de fora, nem tão‑pouco perante a sociedade; ela está na sociedade, dela fazendo parte integrante, vd. Os Outros da Arte, Celta, Oeiras, 1996, p. 19.
[171] Vd. M. de L. Lima dos Santos, “Deambulação pelos novos mundos da arte e da cultura” in Análise Social, n.º 125‑126, 1994, p. 424.
[172] Becker dá o exemplo do desenvolvimento
do romance, que apenas se tornou possível devido a um novo conceito de ficção
assente na difusão generalizada da literacia junto dos trabalhadores e das
classes médias, que não tinham, todavia, os conteúdos de uma educação
“clássica” necessários para a apreciação de géneros mais formais, vd. Art Worlds, Berkeley, University of
California Press, 1982.
[174] Vd. Paul
DiMaggio, “Classification in Art” in American
Sociological Review, vol. 52, 1987, pp. 440‑455.
[176] Vd. a este respeito a obra de Augusto Santos Silva, Tempos Cruzados. Um Estudo Interpretativo da Cultura Popular, Porto, Ed. Afrontamento, 1994, em especial o capítulo IV.
[177] Data desta altura o fenómeno que Jacques Leenhardt caracterizou como o da confiscação da produção artística por determinadas classes e grupos sociais. Este período opõe‑se a um outro, anterior, em que a indiferenciação dos públicos era a pedra de toque, e em que não se pode sequer falar da existência do subcampo da arte erudita. Apenas existe “uma arte que fala a toda a gente da mesma maneira, em função de um código recebido e interiorizado por todos”, vd. “Recepção da obra de arte” in Mikel Dufrenne (org.), A Estética e as Ciências da Arte, Amadora, Bertrand, 1982, p. 63.
[178] Vd. Maria de Lourdes Lima dos Santos, “Questionamento à volta de três noções (a grande cultura, a cultura popular, a cultura de massas)” in Análise Social, nº 101‑102, 1988, p. 690 ou então na obra colectiva organizada por Alexandre de Melo, Arte e Dinheiro Lisboa, Assírio e Alvim, 1994, p. 102.
[179] Vd. Theodor Adorno e Max Horkheimer, Dialectic of Enlightenment, New York, Continuum, 1993. Originalmente publicado em 1944 sob o título Dialektik der Aufklarung.
[180] Vd. Theodor Adorno, “Culture
industry reconsidered” in The Culture
Industry: Selected Essays on Mass Culture, London, Routledge, 1991.
[181] Vd. Walter Benjamin, “A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica” in Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, Lisboa, Relógio d'Água, 1992, p. 79.
[188] Vd. Jurgen Habermas, Mudança Estrutural da Esfera Pública, Rio de Janeiro, Edições Tempo Brasileiro, 1984, p. 16.
[189] Nas palavras de C. W. Mills: “Num público (...) virtualmente tantas pessoas expressam opiniões quantos as recebem. As comunicações são organizadas de tal modo que há uma chance imediata e efectiva de responder a qualquer opinião expressa em público” in J. Habermas, op. cit., p. 289.
[190] Ainda nas palavras de C. W. Mills: “Numa massa, muito menos gente expressa opiniões do que as recebe, pois a comunidade do público torna‑se uma colecção abstracta de indivíduos que recebem impressões dos meios de comunicação de massa” in Idem, ibidem.
[191] Vd C. Lalive d'Épinay et al., Temps Libre. Culture de Masse et Culture de Classes Aujourd'Hui, Lausanne, Pierre‑Marcel Favre, 1982, p. 147.
[196] Assim se compreendendo as análises que Eco elaborou a partir da matéria‑prima constituída pelos cartoons, banda desenhada, música ligeira, romances policiais, programas televisivos, etc. Mesmo neste ponto, é clara a reabilitação da cultura de massas enquanto objecto legítimo de estudo académico.
[197] Diana Crane define esta tendência como
uma “busca desesperada de novidade ou de
aparência de novidade”, vd. The Production
of Culture. Media and the Urban Arts, Newbary Park, Sage,
1992, p. 10.
[201] Vd. a este respeito a análise da arte comtemporânea como sistema in Alexandre Melo, O Que é Arte, Lisboa, Difusão Cultural, 1994, em especial pp. 13‑31.
[203] Verifica‑se que os mais poderosos mass media, em especial a TV, subrepresentam, nos seus programas, os trabalhadores manuais, ao contrário do que acontece com as profissões liberais e empresariais.
[208] Neste sentido e como refere Augusto Santos Silva, “a sociologia da cultura é, em grande parte, a história da formação da cultura, ou seja, da formação e do funcionamento de campos culturais” in Tempos Cruzados. Um estudo Interpretativo da Cultura Popular, Porto, Edições Afrontamento, 1994, p. 33.
[209] A autonomia do campo cultural e dos subcampos artísticos varia segundo o grau de subordinação aos princípios da hierarquização externa. Quanto maior for essa dependência, menor é a margem de autonomia.
[210] Desta forma, Bourdieu recusa “o angelismo do interesse puro pela forma pura” in Les Régles..., p. 15.
[212] “(...) estrutura da distribuição das espécies de capital (ou de poder) cuja posse comanda a obtenção de lucros específicos (...) colocados em jogo no campo”, Idem, ibidem, p. 321.
[214] Vd. a este respeito as distinções entre capital cultural incorporado, capital cultural objectivado e capital cultural institucionalizado; Pierre Bourdieu, “Les trois états du capital culturel” in Actes de la Recherche en Sciences Sociales, nº 30, 1979, pp. 3‑6.
[217] Cf. Paulo Filipe Monteiro, op. cit., p. 151. Deixamos de lado as referências críticas que o autor de Os Outros da Arte enumera e que nos parecem menores ou mesmo destituídas de pertinência, como a que importa de Hennion e que reduz o elaborado esquema de Bourdieu a uma espécie de sistematização habilidosa da “hipersensibilidade de certas camadas médias ao jogo subtil da diferenciação social”.
[218] Vd. José Luís Casanova, “Uma avaliação conceptual do habitus” in Sociologia Problemas e Práticas, nº 18, 1995, p. 60.
[219] Vd. Michel de Certeau, L'Invention du Quotidien 1 Arts de Faire, Paris, Éd. Gallimard, 1990, p. 90.
[221] O habitus é concebido em termos de uma improvisação estruturada. Desta forma, as práticas sociais não podem ser mecanicamente deduzidas das suas condições estruturais. Ainda que dentro de limites relativamente estreitos, o habitus possui uma certa margem de manobra.
[223] Bourdieu é claro ao afirmar que “(...) os agentes, por mais estritas que sejam as necessidades inscritas na sua posição, dispõem sempre de uma margem objectiva de liberdade” in Les Règles..., p. 332.
[224] Vd. Craig Calhoun,
Edward LiPuma e Mishe Postone (eds), Bourdieu.
Critical Perspectives, Cambridge, Polity Press, 1995.
[225] Yves Evrard considera que o paradima teórico de Bourdieu acaba por
privilegiar, de forma monolítica, uma variável de descrição do consumidor (a classe
social) e uma função do consumo (a distinção), esquecendo todas as dimensões
“intrínsecas” da experiência cultural, ligadas ao imaginário, à emoção, à
fantasia e a uma crescente vertente de fruição hedonista (voltaremos mais
adiante a este ponto), cf. “Les déterminants des consommations culturelles” in AAVV, Économie et Culture, Paris, La
Documentation Française, 1987.
[226] Vd. Pierre‑Michel Menger, “L'oreille spéculative. Consommation et perception de la musique contemporaine” in Revue Française de Sociologie, vol. XXVII, 1986, p. 447.
[227] Encontram‑se neste caso os engenheiros, sobrerepresentados no público da música contemporânea e destituídos, na sua maioria, de uma cultura musical aprofundada.
[230] Vd. Patrick Parmentier, “Les genres
et leurs lecteurs” in Revue française de
Sociologie, XXVII, 1986, pp. 397‑430.
[234] O estilo de vida é considerado por Mitchell como um modo de vida único baseado em “valores, crenças, necessidades, sonhos e pontos de vista particulares” in Diana Crane, op. cit., p. 39.
[236] Vd. Jean‑François Lyotard, “Apostila às narrativas” in O Pós‑Moderno Explicado às Crianças, Lisboa, Publicações D. Quixote, 1987, pp .31‑34.
[237] Vd. Zygmunt
Bauman, “Modernity and ambivalence” in AAVV, The Polity Reader in Social Theory, Cambridge, Polity Pres, 1994,
pp. 351‑361.
[238] Vd. Jean Baudrillard, “De la marchandise absolue” in A. Melo (org.), Arte e Dinheiro, Lisboa, Assírio e Alvim, 1994, p. 36.
[240] Esta posição é defendida, entre outros, por Gillo Dorfles, vd. Modas e Modos, Lisboa, Edições 70, 1990, em especial pp. 59‑64.
[241] Alguns falam mesmo do regresso do social. Mas como falar do regresso de algo que nunca nos deixou?
[244] “Enquanto que o indivíduo era antes de tudo concebido como produtor, sendo o consumo privilégio de uma minoria, na fase da sociedade industrial ascendente, ele é doravante redefinido como produtor e como consumidor, como trabalhador e como usuário”, Idem, ibidem, p. 43.
[245] Definido como “conjuntos de trabalhos artísticos classificados na base de
similaridades apreensíveis”, vd. “Classification in Art” in American Sociological Review, vol. 52, 1987, p. 441.
[249] Vd. Augustin Girard, “As investigações sobre as práticas culturais” in Jean‑Pierre Rioux e Jean‑François Sirinelli (coords.), Para uma História Cultural, Lisboa, Editorial Estampa, 1998, pp. 281‑292.
[253] Vd. Jan C. C. Rupp, “Les classes populaires dans um espace social à deux dimensions” in Actes de La Recherche en Sciences Sociales, nº 109, 1995.
[255] “Sair muito significa associar vários tipos de saídas e de visitas, sair frequentemente e solicitar um conjunto de familiares e de amigos”, vd. “L'évolution des pratiques culturelles des français” in Cahiers Français Culture et Societé, Paris, La Documentation Française, nº 260, s/ data, p. 106.
[256] Scott Lash e John Urry utilizam esta
expressão por oposição ao conceito de “capitalismo organizado”, defendido por
Jurgen Kocka. Este último caracteriza‑se, entre outros factores, pela
concentração e centralização industrial, pelo incremento da racionalização e
burocratização das sociedades segundo o modelo weberiano, pelo crescimento
urbano e, no plano ideológico, pela glorificação da ciência e da técnica. Pelo
contrário, o paradigma do “capitalismo desorganizado” defende a integração à
escala mundial das economias, com o consequente declínio das actividades e empresas
nacionais, pelo incremento dos serviços e das profissões liberais, ligados a
maiores investimentos pessoais na formação, pelo declínio em termos absolutos e
relativos da classe trabalhadora, pelos novos movimentos sociais que cada vez
mais actuam fora da esfera política institucionalizada, pelo declínio do volume
de emprego, e, no plano ideológico, pela fragmentação e pluralismo conceptuais,
vd. Scott Lash e Johen Urry, “The end of organized capitalism” in AAVV, The Polity Reader..., pp. 267‑275.
[257] Vd. Jorge Vala, “Identidade, estruturas cognitivas e transformações culturais” in AAVV, Dinâmicas Multiculturais Novas Faces Outros Olhares, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 1996, p. 26.
[260] Vd. José Azevedo, “Perspectivas psicossociais no estudo da identidade” in Sociologia, Faculdade de Letras do Porto, Vol.II, 1992, p. 115.
[261] Vd. Augusto Santos Silva, “Identidades sociais: continuidade e mudança” in AAVV, Dinâmicas Multiculturais..., ed. cit., pp. 33‑34.
[263] Vd. Jorge Vala, art. cit., p. 28.
[264] Vd. Otávio Velho, “Valores sociais, modernidade e movimentos sociais, vistos da perspectiva dos processos de globalização” in AAVV, Dinâmicas Multiculturais..., ed. cit., p. 60.
[265] Idem, ibidem, p. 59.
[266] Vd. Augusto Santos Silva, Tempos Cruzados ‑ Um Estudo Interpretativo da Cultura Popular, Porto, Edições Afrontamento, 1994.
[267] Vd. “Alguns contributos para o (re)pensar da noção de recepção cultural” in Cadernos de Ciências Sociais, nº 15‑16, 1996, pp. 121‑131 e ainda “A experiência estética como prática social” in Cadernos de Ciências Sociais, nº 18, 1998, pp. 110‑113.
[272] Vd. Pour une Esthétique de la Recéption, Paris, Gallimard, 1978. A sua proposta dirige‑se à literatura. No entanto, dado o aprofundamento e o grau de abstracção da sua abordagem, pensamos que pode ser aplicada a qualquer forma de expressão artística e cultural.
[273] “A obra que tinha o dever de conferir a imortalidade passou a ter o direito de matar, de ser a assassina do seu autor”, vd. Michel Foucault, O Que é um Autor?, Lisboa, Vega, 1992, p. 36. Ou ainda António Hespanha: “Se o sujeito deixou de estar na génese dos textos (...) o autor saiu daqui. Saiu daqui e ficou estilhaçado”, vd. “Nota sobre algumas perspectivas recentes sobre questões tradicionais da história dos saberes” in AAVV, Dinâmicas Multiculturais. Novas Faces. Outros Olhares, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, 1996, p. 49, volume I.
[274] Vd. a este respeito Jean‑Christophe Marcel, “L'évolution des pratiques culturelles des français” in Yves Léonard (dir.), Culture et Societé. Cahiers Français, Paris, La Documentation Française, n.º 260, s/ data, pp. 102‑108.
[276] Definido por Jauss como um “sistema de referências objectivamente formulável” in op. cit., p. 49.
[277] Proporcionando uma “fusão de horizontes” (noção herdada de Gadamer) baseada na tensão entre a historicidade do texto (diacronia) e o tempo presente da sua apropriação (sincronia).
[280] Vd. Andrea L.
Press, “The sociology of cultural reception: notes toward an emerging paradigm”
in Diane Crane, The Sociology of Culture,
Cambridge, Basil Blacwell, 1994, pp. 221‑245.
[281] Vd. Maria de Lourdes Lima dos Santos, “«Cultura dos ócios» e utopia” in M. L. L. dos Santos (coord.), Cultura e Economia, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, 1995, p. 166.
[283] Vd. Peter Bondanella, op. cit., p. 141. No limite, como Eco sagazmente refere, resvala‑se para uma forma contemporânea de gnosticismo (supostamente “pós‑moderna”, mas segundo Eco, muito próxima do hermetismo antigo...) que recusa qualquer possibilidade de interpretação: “Para salvar o texto (...) o leitor tem que suspeitar de que cada linha sua esconde um outro sentido secreto; as palavras, em vez de dizerem, escondem o não dito; a glória do leitor é descobrir que os textos podem significar tudo, excepto aquilo que o seu autor queria que significassem (...) os derrotados são os que terminam o processo dizendo: «compreendi»”, vd. “Interpretação e História” in Stefan Collini (dir.), Interpretação e Sobreinterpretação, Lisboa, Editorial Presença, 1993, p. 41.
[287] Por “tesouro social” Eco entende “não só uma dada língua enquanto conjunto de regras gramaticais mas também toda a enciclopédia que as realizações dessa língua promoveram, nomeadamente as convenções culturais que a língua produziu e a própria história das interpretações anteriores de numerosos textos, compreendendo o texto que o leitor está a ler”, vd. “Entre autor e texto” in S. Collini (dir.), op. cit., p. 63.
[291] Jauss considera que a obra que se limita a confirmar ou “reconfortar” o horizonte de expectativa do receptor pertence à categoria da “arte culinária”, isenta de inquietação e sentido crítico.
[295] Intervenção oral registada em Augusto Santos Silva e Vítor oliveira Jorge (orgs.), Existe uma Cultura Portuguesa?, Porto, Edições Afrontamento, 1993, pp. 121‑122. Na mesma linha, e falando do teatro, Jean‑Marie Piemme refere que o espectador‑ideal ocupa o lugar do Outro na dialéctica do imaginário: “Na cabeça daqueles que fazem teatro não há um espectador ideal: há cem. Há mil. Há tantos quantos os seus desejos” in AAVV, Le Rôle du Spectateur. Théâtre Public, nº 55, 1984, p. 51.
[296] Vd. Pio Ricci Bitti e Bruna Zani, A Comunicação como Processo Social, Lisboa, Editorial Estampa, 1993, p. 39.
[298] Poderíamos mencionar aqui o conceito de máximo de consciência possível de Lucien Goldmann. Nas suas palavras, “existem efectivamente informações cuja transmissão é incompatível com as características fundamentais de um determinado grupo social. É o caso em que as informações ultrapassam o máximo de consciência possível do grupo (...) Para além desse limite as informações apenas podem passar se se conseguir transformar a estrutura do grupo” in A Criação Cultural na Sociedade Moderna, Lisboa, Editorial Presença, 1976, pp. 14‑15.
[300] Vd. Tempos Cruzados. Um Estudo Interpretativo da Cultura Popular, Porto, Edições Afrontamento, 1994, p. 113.
[303] Vd. Michel de Certeau, L'Invention du Quotidien, 1. Arts de Faire, Paris, Éditions Gallimard, 1990, pp. I‑LIII.
[304] Definidas por Certeau como “cálculo das relações de força que se torna possível a partir do momento em que um sujeito de querer e de poder é isolável de um «ambiente» (...) lugar susceptível de ser circunscrito como um lugar próprio e de servir de base, por isso, a uma gestão das suas relações com uma exterioridade distinta”, ibidem, p. XLVI.
[305] A este respeito, refere Maria de Lourdes Lima dos Santos o seguinte: “(...) pode perguntar‑se se determinados contributos da teoria da cultura (Jameson, Giddens, Certeau, etc.) não pecam por excesso de optimismo quando afirmam a presença, implícita ou explícita, da dimensão mediático‑publicitária, ou quando sublinham o papel activo e inovador dos que a consomem, mesmo nos casos social e culturalmente mais desfavorecidos”, vd. “«Cultura dos ócios» e utopia” in Cultura e Economia, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, 1995, p. 165.
[306] Vd. Idalina Conde, “O sentido do desentendimento nas Bienais de Cerveira: arte, artistas e público” in Sociologia ‑ Problemas e Práticas, nº 2, 1987.
[307] Uma escultora entrevistada pela autora, chega mesmo a afirmar: “Só não incendiamos a casa porque não nos apeteceu”, vd. art. cit., p. 55.
[309] Vd. Diana
Crane, The Production of Culture. Media
and the Urban Arts, Newbury Park, Sage Publications, 1992, em especial o
capítulo V, “Approaches to the analysis of meaning in media culture”, pp. 77‑108.
[310] De acordo com Bourdieu, o capital cultural pode assumir as formas de capital incorporado, objectivado e institucionalizado, vd. “Les trois états du capital culturel” in Actes de la Recherche en Sciences Sociales, nº 30, 1979, pp. 3‑6.
[311] Veja‑se, a este respeito, um importante trabalho sobre as capacidades perceptivas, com as suas implicações psicológicas e sociais, de Robert Francès, La Perception, Paris, Presses Universitaires de France, 1992, em especial os capítulos II, V e VI.
[314] Eco refere‑se a esta antinomia como a luta de uma «cultura de proposta» contra uma «cultura de entretenimento», cf. o capítulo anterior onde se explicita mais pormenorizadamente o pensamento do autor.
[318] Veja‑se a este respeito o ressurgimento do iconoclasmo face a obras de arte contemporâneas, em que as populações não reconhecem o carácter propriamente estético dessas obras: Dario Gamboni, “L'iconoclasme contemporain: agressions physiques contre des oeuvres d'art et perception esthétique” in Idalina Conde (coord.), Percepção Estética e Públicos da Cultura, Lisboa, Acarte/Fundação Calouste Gulbenkian, 1992, pp. 35‑43, bem como o artigo já citado desta autora.
[319] Vd. Jacques Leenhardt, “Recepção da obra de arte” in Mikel Dufrenne (org), A Estética e as Ciências da Arte, Amadora, Bertrand, 1982, p. 78.
[320] Definida por Anne‑Marie Gourdon
nos seguintes termos: “Julgamentos
implícitos que não atingem o nível da consciência clara (...) o espectador está
preso ao que se percepciona (...) estabelece uma relação mais sentida que
conceptualizada entre os diferentes significantes do espectáculo e os seus
significados”. Pelo contrário, a recepção de tipo analítico é definida pela
capacidade do receptor em se analisar a si próprio como sujeito perceptivo, ao
mesmo tempo que reflecte sobre o que é percepcionado, vd. Anne‑Marie
Gourdon, “Le public du théâtre et sa perception” in Théâtre Public, nº 55, s/data, p. 9.
[321] Vd. Wolfgang
Welsch, “Aestheticization processes. Phenomena, distinctions and prospects” in Theory, Culture & Society, vol.
13(1), 1996, pp. 1‑24.
[322] Vd. Pierre Bourdieu, “Éléments d'une théorie sociologique de la perception artistique” in Revue Internationale des Sciences Sociales, nº 4, 1968, p. 645.
[323] Yves Evrard critica igualmente em Bourdieu uma concepção normativa e
“educativa” da relação com a cultura, já que sobrevaloriza os aspectos
cognitivos de apropriação dos códigos culturais, negligenciando as dimensões
hedonistas, ligadas à emoção e à afectividade, vd. “Les Déterminants des consommations
culturelles” in AAVV, Économie et Culture,
Paris, La Documentation Française, 1987.
[326] Dario Gamboni constata a existência de um duplo sentimento de exclusão experimentado pelos habitantes de uma cidade escolhida para uma exposição de escultura em que as obras se encontravam espalhadas pelas ruas e espaços públicos: “(...) exclusão das práticas (estéticas) que esta presença manifestava e exclusão do espaço momentaneamente consagrado a estas práticas”, art. cit., p. 40.
[329] Vd. José Madureira Pinto, “História da produção cultural e percepção estética (Comentário ao texto de Bernardo Pinto de Almeida “História da arte e estética da recepção)” in Cadernos de Ciências Sociais, n.º18, 1998, p. 117.
[330] Vd. E. Prado Coelho, “Os conteúdos das indústrias” in Público. Leituras, 5 de Julho de 1997, p. 8.
[334] Como refere Anne Ubersfeld, “desde
o momento em que uma pessoa se senta numa sala de espectáculos, esta impõe‑lhe,
de imediato, uma configuração que corresponde a certos códigos. De seguida, há
uma determinada forma teatral que se conhece, porque já se assistiu a
representações utilizando um sistema de códigos semelhante, e uma outra que não
se conhece”, vd. “Apprentissage
et liberté” in Le Rôle du Spectateur, op.
cit., p. 29.
[335] Vd. “Percepção estética e públicos da cultura: perplexidade e redundância” in Idalina Conde (coord.), Percepção Estética e Públicos da Cultura, Lisboa, Acarte/Fundação Calouste Gulbenkian, 1992, pp. 143‑167.
[337] Vd. “Estruturas espaciais e práticas sociais ‑ a inexistente opção entre o local e o global” in Sociologia, I série, volume IV, 1994, pp. 219‑229 e ainda “As escolas urbanas como cenários de interacção” in Sociologia, I Série, volume V, 1995, em especial pp. 91‑107.
[341] “(...) ângulo em que as pessoas se situam no espaço em relação uma à outra (...) As duas principais orientações que duas pessoas assumem no decurso de uma interacção são as de «cara a cara” e de «lado a lado»” in Pio Ricci Bitti e Bruna Zani, op. cit., pp. 142‑143.
[342] Vd. Denis Bablet, “Le lieu, la
scénographie et le spectateur” in Le Rôle
du Spectateur, op. cit., p. 17.
[343] Vd. Maria de Lourdes Lima dos Santos, art. cit. e ainda “Deambulação pelos novos mundos da arte e da cultura” in Análise Social, nº 125‑126, 1994, em especial pp. 428‑433.
[347] Como refere Adriano Duarte Rodrigues “O ideal moderno da arte prosseguiu sempre um constante ideal de ruptura (...) Ao atingir a sua aceleração máxima, este processo de ruptura acaba hoje por se apresentar sob a forma de dissuasão das próprias obras, para se dar a ver de maneira evanescente como sugestão do gesto criador, nos justamente designados happenings, realizações efémeras que se apagam no próprio instante em que se produzem”, vd. Comunicação e Cultura, op. cit., p. 74.
[349] W. Welsch refere a este propósito: “O estético não mais pertence meramente à superestrutura, mas sim à base”, art. cit., p. 4.
[351] Ver, a este respeito, para além do artigo já citado de Yves Evrard, os seguintes textos, publicados no mesmo volume (Économie et Culture): Russell W. Belk, “La consommation symbolique d'art et de culture” e Luisa Uusitalo, “Sur la consommation de peinture”.
[352] Adriano Duarte Rodrigues insiste na diferenciação entre objecto artístico e objecto estético, este fundado na experiência estética que se encontra “de maneira difusa e fragmentária, em todos os domínios da experiência do mundo”, mas realça, igualmente, a aproximação contemporânea que tende a diluir as suas fronteiras, vd. op. cit., pp. 111‑113.
[354] Vd. Georg Simmel, “La mode” in La Tragédie de la Culture, Paris, Éditions Rivages, 1988, p. 92.
[355] Vd. a este respeito José Machado Pais, “Éticas e estéticas do quotidiano” in Maria de Lourdes Lima dos Santos (coord.) Cultura e Economia, op. cit., pp. 129‑152.
[357] Dossier Público sobre a Conferência do Cairo. Vd. igualmente J. Manuel Nazareth, Princípios e Métodos de Análise da Demografia Portuguesa, Lisboa, Editorial Presença, 1988, em especial a segunda parte.
[360] Vd. “Nota de abertura” in AAVV, Viver (n)a Cidade, Lisboa, Grupo de Ecologia Social (LNEC) e Centro de Estudos Territoriais (ISCTE), 1990, p. 1.
[361] Nuno Portas define esse quadro semântico a partir de um continuum delimitado pelos seguintes pólos: “concentração e dispersão, artifício e natureza, ruído e calma, mistura e separação, padronização e identidade, ordem e flexibilidade, mundialização e regionalismo, telecomunicação e encontro directo, produtividade e festa, programação e invenção (ou anarquia), infra‑estrutura e cosmética, e como pano de fundo disto tudo, um permanente conflito entre a pressão para satisfazer necessidades quantitativas e as novas aspirações qualitativas” in idem, ibidem, p. 7.
[362] A esse respeito, Carlos Fortuna cita um aforismo da Alemanha pré‑moderna: Os ares da cidade libertam!; vd. “As cidades e as identidades: patrimónios, memórias e narrativas sociais” in Maria de Lourdes Lima dos Santos (coord.), Cultura e Economia, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, 1995, p. 209.
[363] Luís Soczka remonta a visão pessimista do urbano “às análises oitocentistas subsequentes ao movimento populacional maciço dos campos para as cidades, em consequência da revolução industrial”, vd. “Ecologia social do risco psicológico em meio urbano” in Viver (n)a Cidade Psicologia. Revista da Associação Portuguesa de Psicologia, Vol. VI, nº 3, 1988, p. 310.
[365] Vd. Georg Simmel, “A metrópole e a vida do espírito” in Carlos Fortuna (org.), Cidade, Cultura e Globalização, Oeiras, Celta, 1997.
[366] Simmel defende o seu estilo analítico, quando refere: “...sejamos nós adeptos ou opositores dos modos particulares sob que as metrópoles se expressam, estas continuam acima e para além da mais acertada das nossas avaliações (...) a nossa missão não é a de as condenarmos ou aceitarmos, mas tão‑só a de as compreendermos”, vd. art. cit., pp. 42‑43.
[369] O próprio Simmel o afirma: “a metrópole é a sede desta cultura, que eliminou todas as características da pessoa (...) por todo o lado deparamos com impressionantes formas de cristalização e despersonalização dos empreendimentos culturais, perante as quais a personalidade dos homens, por assim dizer, só muito dificilmente pode ser conservada”, vd. art. cit., p. 41.
[372] Questão que Simmel analisa com argúcia a propósito do fenómeno da moda, vd. “La mode” in G. Simmel, La Tragédie de la Culture, Paris, Editions Rivages, 1988.
[374] Como refere Walter Benjamin, “a questão decisiva em Baudelaire é o substrato social, moderno, do «idílio mortal» da cidade. A modernidade é a tónica essencial na sua poesia. É a modernidade que, com o spleen, estilhaça o ideal”, vd. W. Benjamin, “Paris, capital do século XIX” in Carlos Fortuna (org.), op. cit., pp. 74‑75.
[376] Segundo exemplo de Soczka, as comunidades chinesas de Hong Kong, apesar de possuírem elevadíssimos níveis de densidade populacional não apresentam a intensidade de manifestações de desregulação social anteriormente referidas.
[377] Os autores fornecem o exemplo do ruído,
defendendo que a sensibilidade aos efeitos que ele provoca dependem, também, da
estrutura social e dos modelos culturais: “A
diferença vem, não da intensidade do ruído, mas da sensação de harmonia ou de
caos, ligada à identificação ou não identificação cultural dos sons.”, vd. La Ville et l'Urbanisation..., p. 32.
[378] Vd. Jean Rémy e Liliane Voyé, A Cidade: Rumo a uma Nova Definição?, Porto, Edições Afrontamento, 1994, p. 13.
[379] Vd. Claude S.
Fischer, “Toward a subcultural theory of urbanism” in Mark Baldassare (ed.), Cities and Urban Living, New York, 1983,
pp. 84‑114.
[382] Vd. Michel de Certeau, L'Invention du Quotidien. 1. Arts de Faire, Paris, Éditions Gallimard, 1990, em particular o capítulo VII.
[383] Definidos como “estrutura linguística que manifesta sobre o plano simbólico (...) a maneira de estar no mundo fundamental de um homem” in op. cit., p. 151.
[384] Entendidos como “o fenómeno social através do qual um sistema de comunicação se manifesta de facto” in Idem, ibidem.
[385] Vd. Susan Sontag, “Sob o signo de Saturno”, Prefácio às obras de Walter Benjamin, Rua de Sentido Único e Infância em Berlim por volta de 1900, Lisboa, Relógio d'Água, 1992, pp. 14‑15.
[387] Categorias de Warren utilizadas por Maria João Freitas, “Redes sociais em meio urbano. Dois bairros sociais da cidade de Lisboa em análise” in AAVV, Viver (n)a Cidade”, op. cit., p. 35.
[388] Neste aspecto, a abordagem de Rémy e Voyé é bem mais pessimista do que a de Fischer: “Estes pequenos grupos constituem uns tantos ilhéus de solidariedade, ganhando forma num fundo de individuação” in op. cit., p. 89.
[391] No entanto, Rémy e Voyé não afastam a possibilidade de existência de conflitos. De facto, actores sociais diferentemente posicionados na matriz das hierarquias sociais possuem projectos e interesses distintos (por exemplo, os proprietários de imóveis onde habitam populações desfavorecidas podem ter interesse em despejá‑las, gerando uma situação de antagonismo). De qualquer forma, os actores, apesar de ocasionais movimentos colectivos, encontram‑se atomizados no que se refere à apropriação do espaço, o que pode favorecer lógicas de produção do espaço altamente concentradas e centralizadas.
[392] Vd. Filomena Silvano e João Neves, “Enraizamento e cosmopolitismo: contributo para uma análise da recomposição urbana” in AAVV, Viver (n)a Cidade, op. cit., p. 119.
[397] “Na realidade, um meio ambiente característico e legível não oferece apenas segurança mas também intensifica a profundidade e a intensidade da experiência humana (...) A cidade é potencialmente o símbolo poderoso de uma sociedade complexa. Se for bem desenvolvida do ponto de vista óptico, pode ter um forte significado expressivo” in idem, ibidem, p. 15.
[398] Vd. A. Teixeira Fernandes, “Espaço social e suas representações” in Sociologia, vol. II, 1992, p. 71. Ver igualmente, na mesma publicação, o artigo de Paula Guerra, “Tecido urbano actual: continuidade ou descontinuidade?”, pp. 145‑175.
[402] Joanathan Raban in David Harvey, Condição Pós‑Moderna, São Paulo, Edições Loyola, 1992, p. 17.
[404] Termo que surge do inglês “gentrification”, com origem na palavra “gentry”, pequena nobreza (Vd. Walter Rodrigues, «Gentrification» e emergência de novos estilos de vida na cidade” in AAVV, Viver (n)a Cidade, op. cit., p. 50). O conceito teve origem nos anos 60, em Inglaterra, com fortes repercussões nos Estados Unidos e rápida institucionalização no vocabulário das ciências sociais.
[405] “O consumo, como esfera de actividade económica, reconverte a estrutura económica das cidades (...) reconvertendo progressivamente a imagem da cidade que faz substituir a chaminé da fábrica como símbolo da cidade do século passado, pelo espaço de grandes dimensões para o desempenho de actividades de consumo” in Walter Rodrigues, “Urbanidade e novos estilos de vida” in Sociologia Problemas e Práticas, nº 12, 1992, p. 94.
[406] Vd. Os artigos de Neil Smith e
Peter Williams, “Alternatives to orthodoxy: invitation to a debate” e de Robert
Beauregard, “The chaos and complexity of gentrification” in N. Smith e P. Williams
(eds.), Gentrification of the city;
London, Allen e Unwin, 1986.
[407] Como refere Peter Williams, “Para
muitos, a gentrificação na idade adulta segue‑se a uma infância
suburbana”, vd. P.
Williams, “Class constitution through spacial reconstruction? A re‑evaluation
of gentrification in Australia, Britain and the United States” in N. Smith et al., op. cit., p. 68.
[408] Vd. M. Jager, “Class definition and
the esthetics of gentrification: Victoriana in Melbourne” in N. Smith e P.
Williams, op. cit., p. 84.
[409] Jager retoma de Elias o conceito de luta em duas frentes: “Por um lado, as classes médias têm de se defender das pressões das classes dominantes, por outro lado, devem continuar a demarcar‑se das classes mais baixas”, idem, ibidem, p. 80.
[410] A perspectiva funcionalista da cidade, relacionada com uma racionalidade de tipo burocrático, liga‑se intimamente a uma necessidade de previsibilidade dos comportamentos humanos. A cidade era vista como uma “máquina económica”, defendendo‑se uma visão global sobre a cidade, o que gerava, inevitavelmente, um um planeamento centralizado e rígido de onde resultava uma uniformidade monótona, vd. Jean‑Pierre Gaudin, Les Nouvelles politiques Urbaines, Paris, Presses Universitaires de France, 1993.
[412] Esta orientação das políticas culturais não é isenta de contornos ideológicos: “Há uma representação ideológica do espaço, porque ele possui também uma dimensão política e estratégica. Alguns grupos sociais apropriam‑no para o explorar e gerir.” in art. cit., p. 87.???
[415] David Harvey define assim esse modelo: “Uma arquitectura do espectáculo, com sua sensação de brilho superficial e de prazer participativo transitório, de exibição e de efemeridade, de joissance, se tornou essencial para o sucesso de um projecto dessa espécie” in op. cit., p. 91.
[418] Vd. Augusto Santos Silva, Elisa Babo, Helena Santos e Paula Guerra, “Agentes culturais e públicos para a cultura: alguns casos ilustrativos de uma difícil relação” in Cadernos de Ciências Sociais, nº 18, 1998.
[422] Vd. Augusto Santos Silva, “Políticas culturais municipais e animação do espaço urbano. Uma análise de seis cidades portuguesas” in Maria de Lourdes Lima dos Santos, op. cit., p. 262.
[423] Vd. José Madureira Pinto, “Uma reflexão sobre políticas culturais” in AAVV, Dinâmicas Culturais, Cidadania e Desenvolvimento Local, Lisboa, Associação Portuguesa de Sociologia, 1994, p. 770.
[424] Neste campo, como realça Augusto Santos Silva (“O jogo indeciso entre símbolos, práticas e políticas culturais” in AAVV, Dinâmicas..., pp. 683‑721) não importa apenas construir novos equipamentos. A sua gestão deve ser cuidadosamente planeada e executada, de forma a permitir uma real acessibilidade social.
[426] Vd. Ignacio Quintana, “Políticas culturales en las grandes ciudades” in Jordi Borja, Manuel Castells et al., Las Grandes Ciudades en la Decada de los Noventa, Madrid, Editorial Sistema, 1990, p. 524.
[427] Vd. “Intervenção cultural em espaços públicos” in Maria de Lourdes Lima dos Santos (coord.), op. cit., pp. 191‑207.
[430] Para esse efeito e segundo Marielle C. Gros, torna‑se essencial “que os diversos tipos de profissionais renunciem a analisar a “pobreza” exclusiva, ou mesmo, principalmente em termos de deficiências ou outras “faltas” próprias dos agentes que, assim, são reificados numa situação de inferioridade sociológica” in AAVV, Dinâmicas..., p. 474.
[432] Sobre as “artes menores”, ver o artigo de Helena Santos, “Dinamizações a partir das margens? Observações sobre participação sócio‑cultural a partir de algumas «produções culturais»” in AAVV, Dinâmicas..., pp. 677‑682.
[434] Segundo David Pratley, a exportação de produtos artísticos representa já para a Grã‑Bretanha cerca de 3% do volume total de exportações, sendo responsável por 23% de novos empregos entre 1981 e 1986. Além do mais, cada novo emprego nas indústrias culturais representa um acréscimo de 1.8 a 2.8 de empregos adicionais na economia regional.
[435] Ruy Vieira Nery, “A esquerda democrática e o princípio do serviço público cultural” in AAVV, O que é Governar à Esquerda?, Lisboa, Gradiva, 1997.
[436] O primeiro estudo de âmbito nacional foi coordenado por Jorge Gaspar, Práticas Culturais dos Portugueses, Lisboa, Direcção‑Geral de Acção Cultural/Centro de Estudos Geográficos, 1986/87.
[437] Vd. José Machado Pais (coord.), Práticas Culturais dos Lisboetas, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, 1994 e ainda Augusto Santos Silva e Helena Santos, Prática e Representação das Culturas: um Inquérito na Área Metropolitana do Porto, Porto, Centro Regional de Artes Tradicionais, 1995.
[438] Vd. Luísa Schmidt, A Procura e a Oferta Cultural e os Jovens, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais/Instituto da Juventude, 1993. Já na década de 80 encontramos estudos centrados na juventude, vd. José Machado Pais, Juventude Portuguesa. Situações. Problemas. Aspirações. V Uso do Tempo e Espaços de Lazer, Instituto de Ciências Sociais/Instituto da Juventude, sem data.
[439] Vd., por exemplo, Eduardo de Freitas e Maria de Lourdes Lima dos Santos, Hábitos de Leitura em Portugal. Inquérito Sociológico, Lisboa, D. Quixote, 1992. Ou ainda Maria de Lourdes Lima dos Santos (coord.), 10 Anos de Mecenato Cultural em Portugal, Lisboa, Observatório das Actividades Culturais, 1998.
[440] Um magnífico exemplo, na área da sociologia da juventude encontra‑se em José Machado Pais, Culturas Juvenis, Lisboa, Imprensa Nacional, 1993.
[441] São eles “Cenários de Práticas Culturais em Portugal” in Sociologia. Problemas e Práticas, nº 23, 1997 e “Contextos, culturas, identidades” in José Manuel Leite Viegas e António Firmino da Costa (orgs.), Portugal, que Modernidade?, Oeiras, Celta, 1998.
[442] Termo de uma tipologia utilizada por Christian Lalive d'Epinay e outros, Temps Libre. Culture de Masse et Cultures de Classes Aujourd'Hui, Lausanne, Pierre‑Marcel Favre éditeur, 1983.
[443] José Machado Pais (coord.), op. cit., pp. 69‑85 e 92‑93.
[444] Jorge Gaspar (coord.), op. cit., p. 17.
[445] A. Santos Silva Santos e Helena santos, op. cit., p. 18.
[446] Os homens, os jovens e os jovens adultos e os membros dos estratos alto e médio são quem mais possui recursos de dilatação dos seus tempos livre, vd. Idalina Conde, “Cenários de práticas culturais em Portugal”, op. cit.
[447] João Sedas Nunes, “Usos do tempo e gostos culturais” in J. Machado Pais (coord.), op. cit., p. 73.
[448] Vd. “Café com que?!. Uma análise sobre práticas semi‑públicas de sociabilidade em espaços /tempos “intermediários” da Baixa portuense” in Sociologia, I Série, Volume V, 1995, pp. 151‑176.
[449] Como salienta Idalina Conde: “a comparência na mesma categoria de referências tradicionais e triviais no quotidiano contemporâneo tem consequências interpretativas (…) Extensão ou retracção da «variável» sociabilidade local pode dever‑se a tendências internas dissemelhantes(…) O cenário dos números passa a ter de jogar (também hesitar) com combinatórias de princípios explicativos para produzir consistência, conduzindo a demasiada sinuosidade interpretativa, vd. op. cit., p. 146.
[450] De qualquer forma, o número de espectadores é ainda extremamente reduzido (menos de 1 milhão).
[451] António Barreto, “Três décadas de mudança social” in A Situação Social em Portugal (1960‑1995), Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, 1996, p. 52.
[452] Idem, ibidem, p. 51.
[453] Segundo os dados do estudo de A. Santos Silva e H. Santos, 58.8% dos inquiridos não lê um jornal diário, percentagem que aumenta para 73.7% no que se refere aos jornais semanários. 85.2% não lê romances e 86.9% não vai a concertos (op. cit., p. 19). Os dados do inquérito coordenado por Jorge Gaspar são ainda mais contundentes: apenas 19.2% lêem um jornal, semanalmente ou por mês. Somente 26.8% vão ao cinema uma vez por mês, percentagem que se reduz para 12.2% no caso do teatro (op. cit., p. 17). De acordo com o estudo dirigido por José Machado Pais, os tempos espectaculares informativos (ir ao cinema, ir ao teatro, ir a concertos, visitar museus e exposições) motivam não mais do que 29.6% dos inquiridos (op. cit., p. 73).
[454] Vd. Olivier Donnat, Les Français Face à la Culture. De l'Exclusion à l'Écletisme, Paris, Éditions la Découverte, 1994.
[455] Definidos por Donnat como “um conjunto de conhecimentos, de comportamentos e de gostos suficientemente estáveis para se distinguirem do resto da população” in op. cit., p. 339.
[456] Idem, ibidem, p. 147.
[457] Idem, ibidem, p. 146.
[458] Idem, ibidem, p. 147.
[459] Idem, ibidem, p. 149.
[460] Vd. Idalina Conde, “Contextos, culturas, identidades” in José M. L. Viegas e António F. da Costa, Portugal, que Modernidade?, Oeiras, Celta, 1998, p. 83.
[461] Vd. Maria de L. Lima dos Santos, “«Cultura dos ócios» e utopia” in M.L.L.S. (coord.), Cultura e Economia, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, 1995, p. 164.
[462] Com valores máximos na Região Autónoma da Madeira (97.8%) e Lisboa e Vale do Tejo (97.6%) e valores mínimos na região Centro (93.8%) ‑ Fonte: INE, Indicadores de Conforto das Famílias (1995).
[463] Com valores máximos em Lisboa e Vale do Tejo (57.4%) e valores mínimos de novo na região Centro (30.8%) Fonte: INE, Indicadores de Conforto das Famílias (1995).
[464] Com valores máximos de 18.9% em Lisboa e Vale do Tejo e valores mínimos no Alentejo (5.7%) Fonte: INE, Indicadores de Conforto das Famílias (1995).
[465] Com valores máximos de 11.5% em Lisboa e Vale do Tejo e valores mínimos de 0.1% na Região Autónoma da Madeira Fonte: Idem, ibidem.
[466] Op. cit., p. 108.
[467] Vd. Idalina Conde, “Cenários...”, art. cit., p. 136.
[468] Fenómeno que encontra correspondência numa certa demissão do papel regulador do Estado, que se limita, quando o faz, a estabelecer para o serviço público de televisão quotas de difusão de programas culturais, norma que é interpretada como um constrangimento ou uma mera formalidade.
[469] Vd. a este propósito os comentários elaborados sobre o audiovisual pela comissão francesa para a refundação das políticas culturais, Jacques Rigaud (coord.), Orientations Générales pour une Réfondation, Paris, La Documentation Française, 1996, em especial pp. 69‑73.
[470] José Machado Pais, op. cit., p. 108.
[471] Op. cit., p. 22.
[472] Conjunto bastante heterogéneo e unificado apenas por preguiça analítica e por uma necessidade pragmática de representação de um vasto conjunto de grupos intermédios no sistema de estratificação social. A propósito das dificuldades de operacionalização desta imagem sincrética, confessa, em tom coloquial, Augusto Santos Silva: “Começo por não saber identificar‑te. Sei delimitar, com algum rigor, a partir das condições socioprofissionais, um conjunto de fracções intermédias. Mas, justamente, devo designá‑las no plural. Retiro, de um lado, os empresários, os quadros dirigentes e os profissionais liberais; do outro, os operários industriais e agrícolas e os trabalhadores indiferenciados: consigo, assim, reter um leque relevante de grupos sociais intermédios. Mas, entre estes, devo distinguir, pelo menos, os pequenos comerciantes, artífices e agricultores, das classes assalariadas do terciário. E, se ficar só por estas últimas, não será de elementar bom senso separar, para uma banda, os empregados subalternos e, para a outra, os quadros técnicos e as profissões intelectuais?” in Textos Datados com Motivo e Causa, Matosinhos, Contemporânea/Jornal “Público”, 1996, p. 92.
[473] Vd. Idalina Conde, “Contextos, culturas, identidades” in J.M. L. Viegas e A.F. da Costa, op. cit., p. 96.
[474] Op. cit., p. 151.
[475] A. S. Silva e H. Santos, op. cit., p. 21.
[476] Vd. Idalina Conde, “Cenários...”, art. cit., em particular pp. 174‑175.
[477] O. Donnat, op. cit., p. 124.
[478] Idem, ibidem, p. 9.
[479] Paulo Filipe Monteiro, “Os públicos do teatro de Lisboa: primeiras hipóteses” in Análise Social, nº 129, 1994, p. 1237.
[480] Fonte: INE, Inquérito ao Emprego.
[481] Vd. António Teixeira Fernandes, “Etnicização e racização no processo de exclusão social” in Sociologia, I Série, Vol. V, 1995, p. 12.
[482] Vd. Ana Benavente (coord.) et al., Estudo Nacional de Literacia, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, 1995 (relatório preliminar). Entretanto publicado, em 1997, pela Fundação Calouste Gulbenkian.
[483] Idem, ibidem, p. 11.
[484] Vd. António Teixeira Fernandes, “Ensino e participação democrática” in Saber Educar, nº 1, 1996, p. 23.
[485] Vd. Alain Touraine, Carta aos Socialistas, Lisboa, Terramar, 1996, p. 86.
[486] Vd. José Madureira Pinto, “Lados encobertos da iliteracia (1)” in Jornal de Notícias, 23/1/96.
[487] Idem, “Os lados encobertos da iliteracia (2)”in Jornal de Notícias, 24/1/96.
[488] Vd. M. L. L. dos Santos, Práticas Culturais dos Portugueses: Configurações do Presente e Prefigurações do Futuro, p. 6, policopiado.
[489] Vd. Augusto Santos Silva, “Agentes culturais e públicos para a cultura”, art. cit., em especial pp. 88‑93.
[490] Vd. Olivier Donnat, op. cit., p. 342.
[491] Vd. Louis Porcher, A Escola Paralela, Lisboa, Livros Horizonte, 1977.
[492] Vd. Philippe Forest, “Le concept contemporain de culture” in Cahiers Français. Culture et Société Paris, La Documentation Française, 1993, p. 8.
[493] Vd. Eduardo de Freitas e Maria de Lourdes Lima dos Santos, Hábitos de Leitura em Portugal. Inquérito Sociológico, Lisboa, D. Quixote, 1992.
[494] Vd. A Procura e Oferta..., op. cit., p. 185.
[495] Vd. Práticas Culturais dos Lisboetas..., op. cit., pp. 275‑276.
[496] Vd. Práticas Culturais dos Portugueses..., op. cit., p. 11.
[497] Definido no trabalho de Donnat como o “número global de artistas conhecidos utilizados como indicador do grau de familiaridade de cada indivíduo com o mundo das artes e da cultura” in op. cit., p. 72.
[498] Vd. texto de apresentação de A Procura e Oferta Cultural e os Jovens..., op. cit.
[499] A propósito da crítica dos conceitos de “geração” e “geração social”, vd. o nosso trabalho Tristes Escolas..., op. cit., capítulo II.
[500] “A televisão não alterou o seu capital de conhecimentos, mesmo se abrandou as suas práticas culturais (menos saídas ao teatro e ao cinema)”, “Uma geração rasa” in Jornal Público, 25/5/94.
[501] Vd. art. cit.
[502] O. Donnat, op. cit., pp. 124‑125.
[503] Defendemos, aliás, em trabalho anterior, que a escola, ou melhor, o campo escolar, perdeu grande parte das características que asseguravam a sua reprodução. As instâncias de consagração mudaram, os enjeux também e a violência simbólica que assegura a perpetuação do sistema exerce‑se agora em terrenos mais difusos e informais. Esta transformação, que coloca os grupos de pares no centro das atenções, confere uma força inaudita ao capital de sociabilidade e prende‑se com a perda da crença nos mecanismos institucionais “clássicos”. Desta forma, e face a um amplo movimento de recusa da escola e dos seus espaços‑tempos lectivos, assiste‑se a um notório falhanço da função socializadora que esta instituição seria suposto exercer, vd. Tristes Escolas. Práticas Culturais Estudantis no Espaço Escolar Urbano, op. cit.
[504] O. Donnat, op. cit., p. 115.
[505] Vd. Texto de Apresentação de A Procura e Oferta..., op. cit.
[506] Op. cit., pp. 128‑129.
[507] Idem, ibidem, p. 183.
[508] Vd. Jorge Gaspar (coord.), op. cit., p. 19.
[509] Idem, ibidem, p. 23.
[510] Vd. A. Giddens, “Gender and sexuality” in Sociology, Cambridge, Polity Press, 1993, pp. 160‑207.
[511] Idem, ibidem, p. 205.
[512] Vd. Sylvia Walby, “Post‑postmodernism? Theorizing gender” in The Polity Reader in Social Theory, Cambridge, Polity Press, 1994, pp. 225‑236.
[513] Vd. Eduardo de Freitas, José Luís Casanova e Nuno Alves, Hábitos de Leitura. Um Inquérito à População Portuguesa, Lisboa, Publicações D. Quixote, 1998, p. 53.
[514] De acordo com Maria de Lourdes Lima dos Santos, “o nosso défice cultural torna‑se mais patente quando cotejamos os valores para Portugal com os existentes para esses outros países, ao aferir, por exemplo, a importância do aumento da oferta de bens e serviços culturais, da implementação de infra‑estruturas, do desenvolvimento dos esforços de descentralização ou da própria extensão das indústrias culturais”, vd. “E a cultura como vai?...” in AAVV, Portugal Hoje, Lisboa, Instituto Nacional de Administração, 1995, pp. 215‑216.
[515] Vd. Robert Wangermee, Évaluation des Politiques Culturelles Nationales, Conseil de la Coopération Culturelle, 1992, p. 3.
[516] Vd. António Barreto, op. cit., pp. 50‑51.
[517] Idem, ibidem, p. 51.
[518] Vd. Eduarda Dionísio, “As práticas culturais” in António Reis, (coord.), Portugal Vinte Anos de Democracia, Lisboa, Círculo de Leitores, p. 444.
[519] Vd. Idalina Conde, “Cenários...”, art. cit., p. 175.
[520] Maria de Lourdes Lima dos Santos, art. cit., p. 215.
[521] Vd. P. Urfalino, “A história da política cultural” in Jean‑Pierre Rioux e Jean‑François Sirinelli (dir.), Para uma História Cultural, Lisboa, Editorial Estampa, 1998, p. 295.
[522] Vd. P. Urfalino, L'Invention de la Politique Culturelle, Paris, La Documentation Française, 1996.
[523] Vd. Eduarda Dionísio, “As práticas culturais”, art. Cit., p. ???.
[524] Vd. Maria de Lourdes Lima dos Santos (coord.), As Políticas Culturais em Portugal (1985‑1995), Lisboa, Observatório das Actividades Culturais, 1998.
[525] Veja‑se, a este respeito, o interessante artigo de Rui Vieira Nery, que combina uma análise de longa duração, com a situação conjuntural da cultura em Portugal, no final dos anos 90. De acordo com este autor, que assumiu responsabilidades governamentais na área da cultura, o défice cultural português resulta da acumulação de vários atrasos, em muito enraizados na visão limitada da sociedade civil burguesa do século XIX (“Do século XIX recebemos um património histórico‑cultural em ruínas, os escassos arquivos e bibliotecas públicas deixados cair num verdadeiro caos, os museus quase inexistentes (...) nem um só teatro nacional, declamado ou lírico, nem uma só orquestra, nem uma só companhia de bailado”) mas com raízes mais profundas, ancoradas na “nossa tradição intelectual anterior, em particular o peso castrador de três séculos de repressão inquisitorial” e com um prolongamento severo durante o Estado Novo, vd. “A esquerda democrática e o princípio do serviço público cultural” in AAVV, O que é Governar à Esquerda?, Lisboa, Gradiva, 1997, pp. 286‑287.
[526] Verifica‑se, na realidade, um cruzamento entre dois tipos de assimetrias. Por um lado, as clivagens sociais e a hiperselectividade dos públicos ligados à maior parte das modalidades da cultura de saídas, por outro, a concentração da oferta cultural na Grande Lisboa, seguida do Grande Porto, em detrimento de grande parte do resto do país, vd. Idalina Conde, “Cenários de práticas culturais”, art. cit. e Augusto Santos Silva et al., “Agentes culturais e públicos para a cultura”, art. cit.
[527] Vd. Augusto Santos Silva, “Cultura: das obrigações do Estado à participação civil”, in Sociologia – Problemas e Práticas, n.º 23, 1997, p. 41.
[528] Vd. Jean‑Michel Djian, La Politique Culturelle, Paris, Le Monde Éditions, 1996, p. 16.
[529] Vd. A. S. Silva, “Cultura: das obrigações do Estado à participação civil”, art. cit., p. 41.
[530] Vd. José Madureira Pinto, “Uma reflexão sobre políticas culturais” in AAVV, Dinâmicas Culturais, Cidadania e Desenvolvimento Local, Lisboa, Associação Portuguesa de Sociologia, 1994.
[531] Na mesma linha, Santos Silva realça a importância deste “terceiro sector”, enquanto potencial parceiro privilegiado do Estado, num quadro que pretende ser alternativo quer à lógica estatal da cultura, quer aos objectivos de rentabilidade económica das indústrias culturais inseridas no movimento de globalização, quer ainda à incipiente acção mecenática do sector privado.
[532] O mesmo autor salienta: “Quando se defende a expansão e democratização do acesso às formas culturais mais elaboradas (e por isso mais exigentes no plano da descodificação), corre‑se o risco de parecer querer ratificar critérios dominantes e restritivos da excelência cultural, quando não mesmo a superioridade intrínseca dos padrões de gosto das elites cultas”, vd. Art. cit., p. 774.
[533] Vd. Jean‑Michel Djian, op. cit., p. 264.
[534] Vd. art. cit., p. 293.
[535] Vd. “Processos de uma modernidade inacabadamudanças estruturais e mobilidade social” in José Manuel Leite Viegas e António Firmino da Costa (orgs.), Portugal, que Modernidade?, Oeiras, Celta, 1998, p. 17.
[536] Vd. Augusto Santos Silva, Tempos Cruzados: um Estudo Interpretativo da Cultura Popular, Porto, Edições Afrontamento, p. 80.
[537] Idem, ibidem.
[538] Idem, ibidem, p. 49.
[539] Vd. António Barreto, “Três décadas de mudança social” in A Situação Social em Portugal (1960‑1995), Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, 1996, p. 35.
[540] Vd. João Ferrão, “Três décadas de consolidação do Portugal demográfico «moderno»” in A. Barreto (org.), op. cit., pp. 165‑190.
[541] Vd. A. Barreto , op. cit., p. 40.
[542] Embora seja possível distinguir, dentro da própria década de 70, movimentos distintos. De 1970 a 1974 o crescimento é quase nulo, devido aos saldos migratórios marcadamente negativos. O segundo sub‑período, de 74 a 76, caracteriza‑se por um aumento muito significativo da população, devido ao retorno em força dos portugueses que habitavam nas ex‑colónias e, em menor escala, devido ao retorno de emigrantes provenientes da Europa. A terceira fase, até ao final da década, revela um crescimento anual médio cada vez mais reduzido, numa clara aproximação à tendência predominante na década de 80.
[543] Maria Luís Rocha Pinto, “As tendências demográficas” in A. Reis (coord.), op. cit., p. 297.
[544] Idem, ibidem.
[545] “Em 1981, os homens casavam‑se pela primeira vez com 25.4 anos e as mulheres com 23.3 anos; desde 1984 que a idade média ao primeiro casamento não cessa de aumentar, coincidindo com o período em que se acentuou a diminuição dos nascimentos: o seu valor atinge, em 1992, os 26.4 anos para os homens e os 24.5 para as mulheres”, vd. Maria José Carrilho e João Peixoto, “A evolução demográfica em Portugal entre 1981 e 1992” in Estudos Demográficos, INE, nº 31, 1993, p. 9.
[546] Vd. M. J. Carrilho e J. Peixoto, art. cit., p. 15.
[547] Fonte: INE, Infoline. Estimativas de População Residente.
[548] Ou seja, para cada 100 elementos entre os 15‑64 anos, existiam 25.5 jovens (índice de dependência de jovens) e 21.9 idosos (índice de dependência de idosos).
[549] Vd. F. L. Machado e A. F. da Costa , “Processos de uma modernidade inacabada. Mudanças estruturais e mobilidade social” in José M. L. Viegas e António F. da Costa (orgs.), Portugal, que Modernidade? Oeiras, Celta, 1998, p. 21.
[550] Vd. João Ferrão, art. cit., p. 165.
[551] Vd. João Ferreira de Almeida, António Firmino da Costa e Fernando Luís Machado in A. Reis (coord.), Portugal, Vinte Anos de Democracia, Lisboa, Círculo de Leitores, p. 319.
[552] Fonte: INE, Inquérito ao Emprego, 1997.
[553] Vd. F. Luís Machado e A F. da Costa, art. cit., pp. 30‑33. Ainda assim e “apesar desta evolução rápida, os níveis de terciarização em Portugal são os mais baixos da União Europeia, longe dos registados nos países economicamente mais avançados. Para ter uma ideia desse desfasamento basta dizer que a actual taxa portuguesa de emprego nos serviços é igual, ou até mais baixa, da que apresentavam, nos anos 70, países como a Holanda, a Dinamarca, a Bélgica ou o Reino unido (...) No fim dos anos 80, quando o terciário ainda não se tornara maioritário em Portugal, aqueles países tinham taxas de terciarização que rondavam já os 70% (...) Em contrapartida (...) os mais de 10% de activos agrícolas de meados da década de 90 constituem um efectivo três ou quatro vezes superior, em termos relativos, aos desses países”, vd. F. Luís Machado e A. F. Da Costa, art. cit., p. 33.
[554] João Ferreira de Almeida et al., p. 320.
[555] Vd. Ana Benavente et al., A Literacia em Portugal. Resultados de uma Pesquisa Extensiva e Monográfica, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1996, pp. 36‑40. Encontram‑se desenvolvimentos em Fernando Luís Machado e António Firmino da Costa, art. cit., pp. 38‑43.
[556] Vd. F. L. Machado e A. F. da Costa, art. cit., p. 41.
[557] Ana Benavente et al., op. cit., pp. 31‑32.
[558] Conceito utilizado por Giddens e que constitui um dos três critérios de “estruturação imediata das relações de classe” (os restantes são a divisão do trabalho e as relações de autoridade, vd. Anthony Giddens, The Class Structure of the Advanced Societies, London, Hutchinson, 1983.
[559] Vd. Elísio Estanque e José Manuel Mendes, Classes e Desigualdades Sociais em PortugalUm Estudo comparativo, Porto, Edições Afrontamento, 1998.
[560] Idem, ibidem, p. 107.
[561] Idem, ibidem, p. 108.
[562] Baseada na aferição das “probabilidades relativas de deslocação na estrutura social” por parte das diferentes categorias de classe, vd. idem, ibidem.
[563] Idem, ibidem, p. 110.
[564] Idem, ibidem, p. 111.
[565] Vd. Carlos Farinha Rodrigues, “Medição e decomposição da desigualdade em Portugal (1980/811989/90)” in INE, InfolineEstudos (originalmente publicado in Revista de Estatística, nº 3, 1996).
[566] Vd. J. Ferreira de Almeida et al., art. cit., p. 317.
[567] Não se confirmando, assim, a estimativa, referida, entre outros, por António Barreto, de que em 1996 a participação feminina na população activa superasse a masculina.
[568] Vd. J. F. de Almeida et al., art. cit., p. 317.
[569] Vd. Art. cit., pp. 28‑31.
[570] Vd. E. Estanque e J. M. Mendes, op. cit., p. 210.
[571]“(...) em Portugal a proporção de activas entre as mulheres dos 15 aos 64 anos (62.6%) estava, em 1991, claramente acima da média da União Europeia (55.8%). Portugal apresenta nesse ano a Quinta taxa mais alta, apenas ultrapassado por países do Norte da Europa (...) Os países que, tanto em termos culturais como de estrutura social, estão mais próximos de Portugal (...) são justamente os que ficam neste ponto a maior distância, com taxas de actividade feminina muito mais baixas”, vd. F. L. Machado e A. Firmino da Costa, art. cit., pp. 30‑31.
[572] Os anos de crescimento mais significativo foram os de 1973‑74 (+1.29%) e 1974‑75 (+4.4%). O crescimento médio anual da década 1970‑80 situou‑se em +1.29%, vd. J. Manuel Nazareth, Princípios e Métodos de Análise da Demografia Portuguesa, Lisboa, Presença, 1988, p. 120.
[573] Apesar de a desertificação penetrar “até ao litoral em algumas regiões” in M. L. Rocha Pinto, art. cit., p. 299.
[574] João Ferrão, art. cit., p. 181.
[575] Idem, ibidem, p. 183.
[576] Vd. François Guichard, Atlas Demográfico de Portugal, Lisboa, Livros Horizonte, 1981, p. 23.
[577] Vd. Adérito Sedas Nunes, “Portugal, sociedade dualista em evolução” in Sociologia e Ideologia do Desenvolvimento, Lisboa, Moraes Editores, 1968, p. 203.
[578] De acordo com dados de 1960, “apenas 1.8% dos nossos operários especializados da indústria dispunham (...) dum curso técnico completo (não tendo ido 94% além do ensino primário) (...) cerca de 64% dos alunos cessam os seus estudos na 4ª classe (...) dos alunos entrados no ensino secundário, mais de 70% não atingem o final dos respectivos cursos (...) o número de diplomados em fundamentais cursos científicos e técnicos tende a estagnar e mesmo a retroceder”, Idem, ibidem, p. 270.
[579] Idem, ibidem, pp. 216‑217.
[580] Art. cit., p. 176.
[581] Vd. A. Sedas Nunes, art. cit., p. 203.
[582] Idem, ibidem, p. 214.
[583] Idem, ibidem,p. 256.
[584] Art. cit., p. 183.
[585] Em 1996, analisando os principais indicadores demográficos por Nuts I, II e III, constatamos, claramente, uma quase estagnação do Grande Porto (com taxas de crescimento migratório e crescimento efectivo quase nulas0.05% e 0.33% respectivamente), enquanto que sub‑regiões como o Cávado, o Ave e o Entre Douro Vouga registam acréscimos relativamente superiores. Da mesma forma, a Grande Lisboa regista mesmo um crescimento migratório e um crescimento efectivo negativos: ‑0.12% e‑0.05%. Ver Anexo I Quadro I.
[586] Art. cit., p. 187.
[587] Idem, ibidem.
[588] Álvaro Domingues, intervenção nas “Noites de Sociologia do Porto II” in Sociologia. Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, I Série, Vol. II, 1992, p. 187.
[589] Vd. Augusto Santos Silva, “Os lugares vazios do mapa português” in Textos Datados com Motivo e Causa, Matosinhos, Contemporânea/Jornal “Público”, s/data, pp. 12‑14.
[590] Idem, ibidem, p. 12.
[591] Vd. Mário Leston Bandeira, “Teorias da população e modernidade: o caso português” in Análise Social, nº 135, 1996, pp. 7‑43.
[592] Idem, ibidem, p. 39.
[593] Vd. F. L. Machado e A. Firmino da Costa, art. cit., p. 24.
[594] Vd. A. Barreto, “Três décadas de mudança social” in op. cit., p. 49.
[595] Vd. A. Barreto, “Portugal na periferia do centro: mudança social, 1960 a 1995” in Análise Social, nº 134, 1995, p. 843.
[596] Art. cit., p. 843.
[597] A. Barreto, “Três décadas de mudança social”, art. cit., p. 46.
[598] Vd. Art. cit., p. 26.
[599] Infelizmente não estão disponíveis, para 1995, dados sobre a composição sexual da população universitária.
[600] Idem, ibidem, p. 27.
[601] No entanto, persistem nesta área graves problemas de cariz estrutural, nomeadamente um notório desequilíbrio na distribuição territorial dos médicos e técnicos de saúde, hiperconcentrados em Lisboa, Porto e Coimbra. Por outro lado, as deficiências do Serviço Nacional de Saúde conduzem as populações para a utilização de serviços privados, o que acarreta custos acrescidos.
[602] A. Barreto, “Três décadas de...”, art. cit., p. 55.
[603] Fonte: INE, Inquérito aos Orçamentos Familiares, 1994/95.
[604] “(...) avanço da industrialização; o recuo da importância proporcional das actividades agrícolas; o rápido desenvolvimento do sector dos serviços; a maior abertura ao exterior; a forte expansão dos maiores grupos económicos; a densificação do tecido de pequenas e médias empresas; o despovoamento rural; a subida dos salários reais; o fortalecimento das classes médias; a melhoria acentuada dos níveis de consumo individual e dos indicadores de bem‑estar social, etc.”, J. da Silva Lopes, “O crescimento económico” in A. Barreto, op. cit., p. 249.
[605] Vd. Fernando Medeiros, “A formação do espaço social português: entre a «sociedade‑providência» e uma CEE providencial” in Análise Social, nº 118‑119, 1992, pp. 919‑941.
[606] Crescimento que, no entanto, em termos de convergência real, foi, como já mencionámos, de acordo com Silva Lopes, mais intenso entre 1960 e 1973. Nesse espaço, “Portugal passou, em termos grosseiros, de à volta de três quartos da média mundial em 1960 para cerca de 110% da mesma média em 1973”, vd. art. cit., p. 248. Ainda segundo o mesmo autor, “a redução do diferencial entre o nível de desenvolvimento económico de Portugal e a média comunitária prosseguiu após 1973, mas passou a ser bastante mais lenta e mais irregular”, Idem, ibidem.
[607] Vd. José Pereirinha, “Social exclusion in Portugal” in José da Silva Lopes (ed.), Portugal and EC Membership Evaluated, London, Pinter Publishers, 1993.
[608] Vd., por exemplo, João Ferreira de Almeida et al., Exclusão SocialFactores e Tipos de Pobreza em Portugal, Oeiras, Celta Editora, 1994.
[609] Vd. Fernando Ribeiro Mendes, “Por onde vai a segurança social portuguesa” in Análise Social, nº 131‑132, p. 415.
[610] Vd. Carlos Farinha Rodrigues, art. cit., p. 8
[611] Idem, ibidem, p. 17.
[612] Art. cit., p. 929.
[613] Vd. E. Estanque e J. M. Mendes, op. cit.
[614] Vd. Henrique M. Carreira., “O Estado e a Educação” in A. Barreto, op. cit., p. 462.
[615] Vd. Graça Franco, “Os limites do Estado social” in Público, 1/4/96.
[616] Aumento esse muito superior ao do crescimento médio anual do produto (4.45 entre 1960 e 1992).
[617] O que pode significar, também, alguma ineficiência na aplicação dos dinheiros públicos.
[618] Joaquim Azevedo citado em Graça Franco, art. cit.
[619] Vd. Ana Benavente et al., op. cit., p. 122.
[620] Adiantámos algumas possíveis explicações para este fenómeno no capítulo anterior.
[621] Vd. F. L. Machado e A. F. da Costa, art. cit., p. 17.
[622] Idem, ibidem, pp. 33‑38.
[623] Vd. E. Marçal Grilo, “Ensino formal e suas condições” in AAVV, Portugal Hoje, Lisboa, Instituto Nacional de Administração, 1995, p. 182.
[624] Marçal Grilo indica algumas dessas limitações: “insuficiente cobertura do sistema de educação pré‑escolar”; pouca prioridade concedida à acção social escolar, factor que alimenta desigualdades; “falta de relacionamento da escola com o exterior”; insuficiência e falta de diversidade de opções do ensino profissional; incipiente administração educativa; etc., vd. art. cit., p. 89.
[625] Art. cit., p. 187.
[626] Art. cit., p. 251.
[627] Vd. Fernando Medeiros, art. cit., em especial da p. 935 em diante.
[628] Idem, ibidem, p. 937.
[629] Vd. Boaventura de Sousa Santos, “O Estado e a Sociedade em Portugal (1974‑1988)”, Porto, Edições Afrontamento, 1990, p. 109.
[630] Idem, ibidem, p. 118.
[631] “Entendo por sociedade‑providência as redes de relações de interconhecimento, de inter‑reconhecimento e de ajuda mútua baseadas em laços de parentesco, de vizinhança e comunitários, através dos quais pequenos grupos sociais trocam bens e serviços numa base não mercantil e segundo uma lógica de reciprocidade” in B. S. Santos, “Pela Mão de Alice. O Social e o Político na Pós‑Modernidade”, Porto, Edições Afrontamento, 1996, p. 64.
[632] Augusto mateus, art. cit., p. 661.
[633] Vd. Elisa Ferreira, “Economia Portuguesa Hoje: Mitos e Realidades”, Matosinhos, Contemporânea Editora/Câmara Municipal de Matosinhos, s/data, em especial pp. 7‑21.
[634] De acordo com Elisa Ferreira, o peso relativo da indústria de vestuário passou de 10.5% para 15.2% (sendo, igualmente, o segmento onde se criaram mais empresas), enquanto o calçado, no que se refere às exportações, passou de 3.6% para 8.9%. No entanto, o principal problema reside no facto de serem estas as indústrias em que mais se degradaram as taxas de cobertura. Segundo o World Competitiveness Report, também citado pela autora, Portugal ocupa um lugar nada lisonjeiro entre os 41 países analisados: “ocupa sempre lugares abaixo do 35º no que respeita ao espírito de iniciativa e inovação, utilização de tecnologias de informação, compreensão das diferenças inter‑culturais, capacidade de delegar, organização do espaço de trabalho, responsabilidade social, etc.” in op. cit., p. 19.
[635] No entanto, A. Barreto complexifica a sua tese ao considerar também a existência de um paradoxo: apesar dos níveis de aspirações e de expectativas dos portugueses serem em tudo semelhantes aos dos outros habitantes dos países centrais, persistem fortes debilidades no sistema produtivo.
[636] Vd. “Pela Mão de Alice...”, op. cit., p. 58.
[637] Idem, ibidem, p. 65.
[638] Vd. Idalina Conde, “Contextos, culturas, identidades” in José Manuel Leite Viegas e António Firmino da Costa (orgs.), op. cit., pp. 80‑81.
[639] B. S. Santos, “Pela Mão de Alice...”,op. cit., p. 61.
[640] Vd. João Ferreira de Almeida, “Evoluções recentes e valores na sociedade” in AAVV, Portugal Hoje, Lisboa, Instituto Nacional de Administração, 1995, pp. 57‑70.
[641] Art. cit., pp. 69‑70.
[642] Vd. Leonor Coutinho, “Novas tendências do processo de urbanização” in AAVV, Portugal Hoje, Lisboa, Instituto Nacional de Administração, 1995, p. 125. O estudo em causa foi elaborado pela Direcção‑geral do Desenvolvimento.
[643] Vd. Carla Melo e Emília Saleiro, “A Região Norte segundo alguns indicadores das contas regionais portuguesas” in INE, Infoline Estudos, p. 4 (originalmente publicado in Estatísticas e Estudos Regionais, nº 12, 1996).
[644] Idem, ibidem, p. 6.
[645] A produtividade industrial da Região Norte representa apenas 85% da média nacional.
[646] Idem, ibidem, p. 2.
[647] Idem, ibidem, p. 7.
[648] Vd. António Eduardo Pereira, “Estudo sobre o poder de compra concelhio” in INE. Infoline Estudos, p. 2 (originalmente publicado in Estatísticas e Estudos Regionais, nº 9, 1995).
[649] Fonte: INE, Infoline. Estudo sobre o Poder de Compra Concelhio, Número III, 1997.
[650] Idem, ibidem.
[651] Incluem‑se, neste caso, a aparelhagem de alta fidelidade (Norte: 27.84%, Lisboa e Vale do Tejo: 40.69%); o leitor de “compact‑disco” (Norte: 17.44%, Lisboa e Vale do Tejo: 24.80%); o vídeo (Norte: 37.95%; Lisboa e Vale do Tejo: 52.49%); a câmara de vídeo (Norte: 6.43%; Lisboa e Vale do Tejo: 9.55%); o computador pessoal (Norte: 8.33%, Lisboa e Vale do Tejo: 14.45%). Fonte: INE, Infoline Distribuição Percentual dos Agregados por Alguns Bens de Equipamento, Meios de Transporte e Outros Bens segundo o Tipo de Agregado.
[652] Fonte: INE, Infoline (tendo por referência o Ministério da Educação).
[653] Com uma distribuição interna bastante desigual, já que o grande Porto concentra 69.1% da frequência regional do ensino superior e o concelho do Porto 62.9%, num total de 56.253 estudantes, dado fundamental a ter em conta no estudo das dinâmicas culturais, não só pela alta escolarização deste grupo, mas também pela elevada juvenilização de certas práticas.
[654] Vd. Sónia Torres, “Caracterização sócioprofissional da região Norte” in Estatísticas e Estudos Regionais, nº 7, Janeiro/Abril de 1995, pp. 6‑26.
[655] Idem, ibidem, p. 8.
[656] Elemento a que não será alheio o facto de uma parte significativa dos membros deste grupo se concentrarem na indústria transformadora com especial destaque para a indústria têxtil e no comércio por grosso e a retalho, “actividades onde a ausência de especificidades tecnológicas é compatível com a baixa formação de uma boa parte dos seus empresários e trabalhadores”, art. cit., p. 14.
[657] Vd. João Ferreira de Almeida et al., “Recomposição socioprofissional e novos protagonismos” in António Reis (coord.), Portugal 20 Anos de Democracia, Lisboa, Círculo de Leitores, 1994.
[658] Optámos por agregar dois grupos de profissões, por possuírem características idênticas: o Grupo 7 (trabalhadores da produção industrial e artesãos) e o grupo 8 (operadores de instalações industriais e máquinas fixas, condutores e montadores).
[659] A propósito do modelo industrial predominante no Norte do país, ver o capítulo anterior.
[660] A enorme juvenilização deste grupo é explicada por Sónia Torres pelo abandono precoce do sistema escolar.
[661] Uma tendência recente, aliás, mostra um aumento significativo do sector primário a nível nacional (11.7% durante o segundo trimestre de 1997), a par do crescimento dos isolados, o que se encontra certamente ligado a situações de reactivação das pequenas propriedades domésticas.
[662] Para uma análise mais detalhada destes dados, consultar “Tendências evolutivas da população activa 1981‑1991”, Cadernos Regionais, Porto, INE, nº 2, 1995, pp. 9‑13.
[663] À escala infraregional, contudo, verificam‑se grandes diferenciações, como teremos ocasião de referir mais adiante.
[664] Vd. João Ferreira de Almeida et al., “Recomposição socioprofissional e novos protagonismos” in A. Reis (coord.), op. cit., p. 320.
[665] Como de resto já foi referido no capítulo anterior.
[666] Vd. Sónia Torres, art. cit., pp. 22‑24.
[667] Vd. Maria Filomena Mendes, Amável Calixto Candeias e Alexandra Magalhães, “A evolução recente da família na área metropolitana do Porto” in Estatísticas e Estudos Regionais nº 14, 1997.
[668] Idem, ibidem, p. 7.
[669] Ver Quadro IX.
[670] Vd. António Joaquim Esteves e José Madureira Pinto, “O envelhecimento na área metropolitana do Porto” in Estatísticas e Estudos Regionais, nº 14, 1997, p. 23.
[671] Fonte: INE, Infoline Séries Cronológicas.
[672] Vd. Isabel Martins, “Tendências demográficas na área metropolitana do Porto” in Estatísticas e Estudos Regionais, nº 10, Janeiro/Abril de 1996, pp. 6‑34.
[673] Vd. art. cit., p. 9.
[674] Idem, p. 11.
[675] Fonte: INE, Infoline Séries Cronológicas.
[676] Vd. Isabel Martins, art. cit., p. 34.
[677] Vd. Emília Saleiro e Sónia Torres, “Alguns números para a avaliação do emprego e desemprego na área metropolitana do Porto” in Estatísticas e Estudos Regionais, nº 10, Janeiro/Abril de 1996.
[678] Vd. art. cit., p. 61.
[679] Em 1996 a taxa de desemprego do Grande Porto ascendia a 10.2%, penalizando mais as mulheres (com uma taxa de 10.5% contra 9.9% da taxa de desemprego masculina), vd. Sónia Torres, “Emprego e desemprego na região Norte : análise sub‑regional” in INE, Infoline Estudos, p. 8 (originalmente publicado in Estatísticas e Estudos Regionais, nº 12, 1996).
[680] Vd. Emília Saleiro e Sónia Torres, “Alguns números...”, art. cit., p. 65.
[681] Vd. Sónia Torres, “Emprego e desemprego...”, art. cit., p. 1.
[682] Vd. António Joaquim Esteves, “A área metropolitana do Porto: aspectos do estado recente da escolarização da sua população” in Estatísticas e Estudos Regionais, nº 10, Janeiro/Abril de 1996.
[683] Vd. art. cit., p. 39.
[684] Idem, p. 41.
[685] Fonte: INE, Anuário Estatístico da Região Norte, 1995.
[686] Vd. “Contributo para a definição de uma tipologia socioeconómica da região Norte” in Estatísticas e Estudos Regionais, nº 5, Maio/Agosto de 1994.
[687] Idem, ibidem, p. 12.
[688] Vd. Isabel Martins, “Tendências demográficas na área...”, art. cit., p. 9.
[689] Fonte: INE, Infoline Pesquisa por Unidade Territorial.
[690] Fonte: INE, Infoline Estimativas da população residente.
[691] Vd. António Joaquim Esteves e José Madureira Pinto, “O envelhecimento na área metropolitana do Porto” in Estatísticas e Estudos Regionais, nº 14, 1997, p. 24.
[692] Idem, ibidem, p. 25.
[693] Vd. António Joaquim Esteves, “A área metropolitana do Porto...”, art. cit., p. 39.
[694] Vd. Capítulo anterior.
[695] Vd. Sónia Torres, art. cit., em especial o anexo 2, p. 26.
[696] Vd., por exemplo, Neil Smith e Peter Williams (eds), Gentrification of the City, London, Allen e Unwin, 1986.
[697] 2.1 por mil em 1995. Fonte: INE, Infoline Pesquisa por Unidade Territorial.
[698] Vd. Maria Filomena Mendes, Amável Calixto Candeias e Alexandra Magalhães, “A evolução recente da família na área metropolitana do Porto” in Estatísticas e Estudos Regionais, nº 14, 1997.
[699] Idem, ibidem, p. 7.
[700] Vd. Paulo Gomes, Sérgio Bacelar e Emília Saleiro, art. cit., p. 12.
[701] Idem, ibidem, p. 8. No entanto, convém explicitar que estes grupos estão longe de representar a maioria da população activa concentrada no Porto, apesar de ser este o concelho onde alcançam um maior peso relativo.
[702] Vd. INE, Estudo sobre o Poder de Compra Concelhio, 1995.
[703] Vd. Emília Saleiro e Sónia Torres, art. cit., p. 64.
[704] Ver a este respeito João Ferreira de Almeida et. al., Exclusão Social. Factores e Tipos de Pobreza em Portugal, Oeiras, Celta Editora, 1994, em especial o capítulo I.
[705] Idem, ibidem, p. 9.
[706] Vd. a este respeito A. Teixeira Fernandes, “Etnicização e racização no processo de exclusão social” in Sociologia Revista da Faculdade de Letras, Vol. V, 1995, em especial pp. 7‑12. Ainda de acordo com o autor, “a dualização da sociedade promove uma profunda clivagem entre os que estão dentro e os que estão fora, com a substituição da anterior oposição entre dominantes e dominados. Os excluídos têm uma nula ou fraca participação económica e uma ausência total de relacionamento com os que estão integrados. A clivagem inscreve‑se nos espaços. Uns procuram o habitat mais aprazível, deixando à margem os que perderam a capacidade de inserção no sistema produtivo”, art. cit., p. 12.
[708] Vd. Marc Augé, Não‑Lugares Introdução a uma Antropologia da Sobremodernidade, Lisboa, Bertrand, 1994, em especial pp. 31‑43.
[709] Idem, ibidem, p. 37.
[710] Vd. E. J. Hobsbawm, A Era do Capital, Lisboa, Presença, 1979, p. 322. De referir que esta obra imprescindível deve ser incluída na trilogia composta, igualmente, pela Era das Revoluções e pela Era dos Extremos. Acrescenta o autor (p. 329): “O burguês era, senão uma espécie diferente, pelo menos o membro de uma raça superior, um estádio mais avançado da evolução humana, distinto das ordens inferiores, que se mantinham numa fase histórica e cultural equivalente à infância ou quando muito à adolescência (...) Assim, do senhor à raça de senhores ia só um passo. O direito de dominar, a superioridade indiscutível do burguês como espécie implicava não só a inferioridade, como ainda, idealmente, uma inferioridade reconhecida e aceite pelos próprios inferiores”.
[711] Idem, ibidem, p. 308.
[712] Vd. M. L. Lima dos Santos, “Para uma Sociologia da Cultura Burguesa em Portugal no Século XIX”, Lisboa, Presença/Instituto de Ciências Sociais, 1983, p. 20.
[713] Idem, ibidem, p. 8.
[714] Devendo nós próprios, exercer sobre esses relatos literários, apesar do seu pendor fortemente descritivo (e, por isso, aparentemente “verdadeiros”...), uma prudente desconfiança metódica. Como refere Roland Mousnier, citado por Maria Antonieta Cruz, “os contemporâneos nunca viam exactamente a realidade social do seu tempo. Só têm a experiência directa de uma pequena parte dos grupos sociais e imaginam as coisas mais estranhas sobre os outros”, vd. Os Burgueses do Porto na 2ª Metade do Século XIX, Porto, Ed. de Autor, 1994, p. 14.
[715] Idem, ibidem, p. 14.
[716] Vd. Isabel Pires de Lima (Antologia), Trajectos do Porto na Memória Naturalista, Lisboa, Guimarães Editora, 1989, p. 33.
[717] O primeiro liceu feminino surgirá no Porto em 1888.
[718] Vd. Maria Antonieta Cruz, op. cit., p. 578.
[719] Vd. Gaspar Pereira Martins, Famílias Portuenses na Viragem do Século (1880‑1910), Porto, Edições Afrontamento, 1995, p. 46.
[720] Vd. M. de L. Lima dos Santos, op. cit., p. 54.
[721] Vd. Gaspar Martins Pereira, O Porto de Camilo, policopiado, p. 2.
[722] Martins Pereira nota ainda que, “como as grandes cidades da Europa da época, descontando as diferenças de escala, o Porto oferece a imagem de uma cidade em obras, poeirenta e desventrada”, idem, ibidem.
[723] A cidade prolonga‑se para Ocidente e para Oriente, tornando‑se hábito, para a burguesia, o isolamento em unidades residenciais afastadas do centro (palacetes e chalés arborizados). O crescimento demográfico é também notável (a cidade cresce 75% entre 1878 e 1911, atraindo população de fora do concelho e mesmo de fora do distrito), a par da aceleração do processo de industrialização.
[724] Vd. G. Martins Pereira, O Porto de Camilo, p. 25.
[725] “...o peixe de cebolada no Maneta do Reimão; as tripas na estalagem do Rainha da Praça Nova; o chispe com ervas; a orelheira com feijão; as costeletas de vitela e as ostras na Águia d'Ouro”, vd. Vd. Gaspar M. Pereira, O Porto de Camilo, p. 26.
[726] Excerto de Eusébio Macário in Isabel Pires de Lima, op. cit., p. 42.
[727] O jardim de S. Lázaro era já considerado demasiado acanhado para o crescimento da burguesia portuense.
[728] Firmino Pereira, O Porto d'Outros Tempos, cit. in Hélder Pacheco, Porto, Lisboa, Presença, 1984, p. 178.
[729] José Augusto Vieira, A Divorciada in Isabel Pires de Lima, op. cit., p. 77.
[730] Vd. O Porto de Camilo, op. cit., p. 18.
[731] Vd. Georg Simmel, “La mode” in La Tragédie de la Culture, Paris, Ed. Rivages, 1988. O mesmo autor afirma que o fenómeno da moda “indica uma generalidade que reduz o comportamento de cada um a um puro e simples exemplo. Dito isto, ela satisfaz também a necessidade de distinção, a tendência à diferenciação, à variedade, à demarcação”, op. cit., p. 92.
[732] Vd. Gaspar M. Pereira, O Porto de Camilo, p. 20.
[733] Vd. E. J. Habsbawm, op. cit., p. 313.
[734] Idem, ibidem.
[735] Idem, ibidem.
[736] Júlio Lourenço Pinto, O Bastardo in Isabel Pires de Lima, op. cit., p. 143.
[737] Camilo Castelo Branco in G. M. Pereira, O Porto de Camilo, p. 22.
[738] Idem, ibidem.
[739] Em 1834, um punhado de negociantes e financeiros cria a Assembleia Portuense, que dará origem, por cisão, nos anos 50, ao aristocrático Clube Portuense. Com o reforço da pequena burguesia, e dada a segregação de que era alvo, tem origem a Nova Euterpe (fundada essencialmente por caixeiros), antecessora do Ateneu Comercial do Porto. Este servirá como veículo de ascensão e legitimação das «classes médias» que aspiram a lugares dominantes, sendo posteriormente dominado, na viragem do século, por negociantes, proprietários e financeiros, vd. Gaspar Martins Pereira e Luciano Vilhena Pereira, Álbum de Memórias do Ateneu Comercial do Porto (1869‑1994), Porto, Ateneu Comercial do Porto, 1995.
[740] Júlio Lourenço Pinto, Margarida in Isabel Pires de Lima, op. cit., pp. 130‑131.
[741] Manual de Civilidade citado in M. L. Lima dos Santos, op. cit., p. 42.
[742] Idem, ibidem, p. 43.
[743] Muitas vezes completamente subvertida em ocasiões festivas, como as que se realizavam nos conventos portuenses, aquando da eleição das respectivas abadessas: “Eram três dias de combates poéticos, de galhofa e de doçaria, entre o cerimonial e o profano, em que se ultrapassavam as barreiras da clausura, iniciando‑se, por vezes, ligações íntimas ou platónicas com as freiras ou as criadas”. Os outeiros ou abadessados (assim se chamavam as festividades) eram, segundo Camilo, “concorridos de poetas e senhoras, e muitos perturbadores que da taverna passaram ao outeiro”, in Gaspar. M. Pereira, “O Porto de Camilo”, p. 25.
[744] Idem, ibidem.
[745] Júlio Lourenço Pinto, Margarida, in I. P. de Lima, op. cit., pp. 138‑139.
[746] Vd. Maria do Carmo Serén e Gaspar Martins Pereira, “O Porto Oitocentista” in A. Oliveira Ramos, História do Porto, Porto, Porto Editora, 1994, p. 491. A fotografia é o documento, por excelência, que melhor demonstra a afirmação da nova classe dominante.
[747] De autores como Camilo, Herculano, Garrett, Eça, Ramalho Ortigão, Júlio Dinis, Oliveira Martins, Teófilo Braga, etc.
[748] Vd. Maria Antonieta Cruz, op. cit.
[749] Vd. Manuela Espírito Santo, O Teatro Baquet – no Centenário de uma Tragédia, Porto, Círculo de Cultura Teatral, 1988.
[750] Vd. Gaspar M. Pereira, O Porto de Camilo, p. 27.
[751] Idem, ibidem, p. 12.
[752] M. do Carmo Serén e G. M. Pereira, Art. cit., p. 498.
[753] Idem, ibidem, p. 492.
[754] José Augusto Vieira, A Divorciada in Isabel Pires de Lima, op. cit., p. 148.
[755] Idem, ibidem, pp. 151‑152.
[756] “No teatro há a vantagem de que se pode mostrar a toillette, namorar, passar noite –, e não se conversa (...) O teatro é a substituição barata do salão. Salão calado – e comprado no bilheteiro. De resto, o teatro favorece o namoro, que é o entretenimento querido do português e da portuguesa correlativa. De facto o teatro é o centro do namoro nacional. O que se passa pois no palco torna‑se secundário (...) Um director de teatro não é pois escrupuloso com o seu espectáculo: alguém bem vestido que fale e dê um pretexto para a luz do lustre – é o que basta. Sobretudo aos domingos. Então o mundo comercial burguês, que repousa e se diverte, enche a sala. Se se der Hamlet, vai, se se der Manuel Mendes Enxúndia, vai. Não é a beleza do espectáculo que o chama – é o tédio da casa que o repele”, Eça de Queirós, Uma Campanha Alegre in M. L. L. Dos Santos, op. cit., p. 41.
[757] Gaspar M. Pereira, O Porto de Camilo, p. 26.
[758] Idem, ibidem, pp. 26‑27.
[759] Vd. M. de L. Lima dos Santos, op. cit., p. 62.
[760] “«espaços acanhados onde dormem em pobres leitos, muito juntos os operários das aldeias, ou os aguadeiros e outros serviçais» (...) onde se aluga, por noite ou por semana, uma cama e um prego para pendurar a roupa” in G. M. Pereira, O Porto de Camilo, p. 48.
[761] Vd. Maria do Carmo Serén e Gaspar M. Martins, op. cit., p. 392.
[762] Vd. João Grave, Os Famintos – Episódios da Vida Popular in Isabel Pires de Lima, op. cit., pp. 200‑201.
[763] Gaspar. M. Pereira, O Porto de Camilo, p. 54.
[764] Idem, ibidem, p. 55.
[765] Idem, ibidem, p. 56.
[766] João Grave, Os Famintos in Isabel Pires de Lima, op. cit., pp. 206‑207.
[767] Vd. Hélder Pacheco, op. cit., p. 162.
[768] Vd. Walter Benjamin, “A obra de arte na era da sua reproductibilidade técnica” in Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, Lisboa, Relógio d'Água, 1992.
[769] Vd. Hélder Pacheco, op. cit., p. 162.
[770] Idem, ibidem, p. 178.
[771] José Gomes Bandeira, Rivoli, Teatro Municipal 80 Anos de Espectáculo, Porto, Edição da Câmara Municipal, 1993, p. 5.
[772] Idem, ibidem.
[773] Idem, ibidem, p. 8.
[774] Vd. François Guichard, “O Porto no século XX” in A. Oliveira Ramos, op. cit., p. 534.
[775] Idem, ibidem, p. 535.
[776] Idem, ibidem, p. 575.
[777] Idem, ibidem, p. 580.
[778] Vd. Gaspar M. Pereira e Luciano Vilhena, op. cit.
[779] Vd. “Intervenção de Alexandre Alves Costa” (Noites de Sociologia do Porto‑ II) in Sociologia – Revista da Faculdade de Letras, nº 2, 1992, p. 212.
[780] Em crónica recente, Regina Guimarães questionava sarcasticamente, a propósito da ideia de o Porto se candidatar a Capital Europeia da Cultura: “E, aqui entre nós, não acham que o Porto possui um número temível de artistas oficiais?”, vd. “Sejamos crus como nos compete, foda‑se!” in Hei!, nº 2, Abril de 1997, p. 10.
[781] Vd. Plano de Actividades para 1991, Pelouro de Animação da Cidade da Câmara Municipal do Porto.
[782] Vd. Viver no Porto Património Mundial Guia do Munícipe 1996/97, Porto, Câmara Municipal, 1996, p. 21.
[783] Um bom exemplo é o espectáculo encenado por Ricardo Pais e com direcção musical de Mário Laginha, “Raízes Rurais, Raízes Urbanas”, numa originalíssima miscegenação de fado, jazz e músicas tradicionais.
[784] Cf. José Madureira Pinto, “Uma reflexão sobre políticas culturais” in Dinâmicas Culturais, Cidadania e Desenvolvimento, Lisboa, Associação Portuguesa de Sociologia, 1994, pp. 767‑792. Ainda na mesma obra, vd. “Tempos e espaços da animação sociocultural: o desencontro entre a cidade e a escola”, pp. 643‑658 e ainda, Tristes Escolas Um Estudo sobre Práticas Culturais Estudantis no Espaço Escolar Urbano, Porto, Edições Afrontamento, 1997.
[785] Um recente anúncio, publicado na principal revista de cultura urbana – Hei! – , dava conta desse trabalho: “Ao longo do ano lectivo, dezanove escolas do Porto têm vindo a constituir, com o apoio de um monitor, grupos de trabalho nas áreas do teatro e da dança. O que estes alunos agora pretendem é mostrar o produto desse trabalho e partilhar consigo o prazer de se expressarem artisticamente”, Hei!, Junho de 1997, p. 20.
[786] De notar que, só no ano de 1997, o orçamento municipal para o Rivoli significava um milhão e trezentos mil contos, acima das verbas destinadas à acção social (961.675 contos), Educação (580 mil contos) e projecto‑piloto para a recuperação do bairro da Sé (400 mil contos).
[787] Sobre o recente panorama teatral portuense, vd. Carla Maria de Almeida, “Nunca se fez tanto teatro” in Hei!, nº 2, Abril de 1997, pp. 44‑49.
[788] Segundo inventário da Comissão de Coordenação da Região Norte (1991). Quanto a 1997, quando esta contabilização foi feita, a Grande Lisboa (Lisboa‑cidade, Linha de Sintra, Cascais, Oeiras e Linda‑a‑Velha) possuía em funcionamento 83 salas de cinema. De referir que, posteriormente a esta contagem, encerrou, no Porto, o cinema Pedro Cem (pouco antes tinham encerrado o cinema FOCO e as duas salas Lumière – efeito da conocorrência dos Multiplex?).
[789] Vd. João MacDonald, “Editores à mostra” in Hei!, Junho de 1997, pp. 36‑38.
[790] Em Agosto de 1997 era possível encontrar, em muitos destes espaços, exposições tão variadas como “Paneleiros e Pucareiros – A Louça Negra em Portugal” (Centro Regional de Artes Tradicionais do Porto); “Perspectiva: Alternativa Zero” (Fundação de Serralves) ou ainda exposições colectivas como “O Porto Reinventado” (Galeria Lóis), vd. “Bússola” in Hei!, nº 6, Agosto de 1997
[791] Vd. P. Le Moigne, “Les politiques cultureles de la culture: du développement culturel au conditionnement public (1977‑1990)”, in AAVV, Jalons pour l'Histoire des Politiques Culturelles Locales, Paris, Ministère de la Culture/La Documentation Française, 1995.
[792] Idem, ibidem, p. 83.
[793] Idem, ibidem, p. 778.
[794] Vd. Eduardo de Oliveira, “Sobre o Porto” in Eugénio de Andrade (org.), Daqui Houve Nome Portugal – Antologia de Verso e Prosa sobre o Porto, Porto, O Oiro do Dia, s/ data, p. 225.
[795] Vd. François Guichard, Porto, La Ville Dans sa Région, Paris, Fundação Calouste Gulbenkian/Centro Cultural Português, 1992, vol. II, p. 537.
[796] Idem, ibidem, p. 539. E ainda: “É lá que se encontram à noite os verdadeiros amigos e que se fala, bem melhor do que em sua casa ou nos cafés demasiado abertos, de coisas sérias: política, amores, problemas sociais, questões de honra e de dinheiro”.
[797] Vd. João Luís Pereira, “Ritmos” in Hei!, nº 4, Junho de 1997, p. 10.
[798] Francois Guichard, “O Porto no século XX” in A. Ramos, op. cit., p. 592.
[799] Vd. Anexo II.
[800] No Grande Porto, num curtíssimo espaço de tempo surgiram, entre outros: o Central Shopping, o Cidade do Porto, o Gaia Shopping, o Via Catarina, o Arrábida Shopping, o Maia Shopping e está em preparação o Norte Shopping. Perante a arrogância e a imponência da sua presença, quase coramos de incredulidade pela novidade que suscitaram, em inícios da década de 80, centros comerciais como o Dallas e o Brasília.
[801] Vd. Michael Sorkin (ed.), Variations on a Theme Park, New York, Hill and Wang, 1992.
[802] Vd. Margaret Crawford, “The world in a shopping mall” in op. cit., p. 9.
[803] Vd. Marc Augé, Não‑Lugares – Introdução a uma Antropologia da Sobremodernidade, Lisboa, Bertrand, 1994. Evocamos, a este propósito, uma ideia de Jean Starobinski que Augé recupera: “Presença do passado no presente que o excede e reivindica” (p. 81). A sobremodernidade, acrescenta Augé, faz do antigo e da história “um espectáculo específico – como o faz de todos os exotismos e particularismos locais (...) A história e o exotismo têm aqui a mesma função que as «citações» no texto escrito” (p. 115).
[804] No recém‑inaugurado Colombo, em Lisboa, o seu arquitecto fala‑nos do peculiar urbanismo imagético dos centros comerciais. Existe, por exemplo, a Praça do Novo Mundo onde as “fontes se transformam em cascatas, o chão é um mapa da época, os animais que servem de decoração são tucanos e espécies exóticas”. Na Praça do Mundo Antigo “o chão tem um padrão geométrico, há uma fonte de inspiração clássica onde surgirá uma escultura de Neptuno, o animal que aparece desenhado é um golfinho”, vd. “O novo templo do ócio”, Expresso, 13/9/97, pp. 16‑17. Ao lado do Colombo, classificado como de importância supra‑regional, com os seus 122 mil metros quadrados, os centros comerciais do Grande Porto são ainda miniaturas. Mas apressa‑se a construção do Norte Shopping, com 73.500 metros quadrados projectos, ainda assim um “mero” empreendimento regional. De referir que, segundo M. Crawford, os cálculos de viabilidade económica destes megaedifícios é feita com um cuidado máximo, prevendo‑se com a maior exactidão possível o número de possíveis clientes e a área de atracção. Desta forma, podem classificar‑se de acordo com as seguintes categorias: centros de vizinhança; centros de comunidade; centros regionais; centros supra‑regionais e, finalmente, no topo da hierarquia centros com capacidade de atracção internacional.
[805] Expressão de Margaret Crawford, art. cit., p. 22.
[806] Cit. in M. Crawford, art. cit., p. 14.
[807] Vd. Marc Augé, op. cit.
[808] “Existem espaços nos quais o indivíduo se sente espectador sem, verdadeiramente, se importar com a natureza do espectáculo. Como se a posição de espectador constituísse o essencial do espectáculo ou, em definitivo, como se a posição do espectador em si mesmo fosse, para o espectador, o seu próprio espectáculo”, idem, ibidem, p. 92.
[809] Vd. Marc Augé, op. cit., p. 108.
[810] Idem, ibidem, p. 116.
[811] Idem, ibidem, p. 111.
[812] Vd. M. Crawford, art. cit., pp. 14‑17.
[813] Vd. Norbert Elias, “Sur le concept de vie quotidienne” in Cahiers Internationaux de Sociologie, vol. 99, 1995, p. 239.
[814] José Madureira Pinto define‑as como “conjunto de instrumentos simultaneamente ajustados à especificidade do objecto de análise (e, por essa via, às hipóteses teóricas de referência) e às exigências operatórias da sua tradução empírica” ou ainda como “conjuntos de relações entre conceitos da «teoria principal» (...) e conceitos classificatórios adequados à observação e à medida dos fenómenos sociais”, vd. “Questões de metodologia sociológica (I)” in Cadernos de Ciências Sociais, nº 1, 1984, p. 27.
[815] Vd. José Madureira Pinto, “Questões de metodologia sociológica (II)” in Cadernos de Ciências Sociais, nº 2, 1984, p. 134.
[816] Vd. António Teixeira Fernandes, “Alguns desafios teórico‑metodológicos” in António Joaquim Esteves e José Azevedo (eds), Metodologias Qualitativas, Porto, Instituto de Sociologia da Faculdade de Letras, s/ data.
[817] Idem, ibidem, p. 18.
[818] Idem, ibidem, p. 17.
[819] Idem, ibidem, p. 17.
[820] Vd. José Madureira Pinto, “Questões de metodologia sociológica (I)”, art. cit., p. 35.
[821] Vd. O nosso estudo, “As estatísticas na área da cultura: breve reflexão” in Sociologia — Problemas e Práticas, nº 26, 1998. Ver também o artigo de José Madureira Pinto “Questões de metodologia sociológica (III)” in Cadernos de Ciências Sociais, nº 3, 1985, p. 137: “Recorde‑se que, quando provém de sectores bem distanciados dos princípios e práticas do empirismo, a crítica às estatísticas oficiais e às pesquisas sociológicas que a elas decorrem desprevenidamente incide sobretudo no desajustamento (tido com frequência por insanável) entre o conteúdo das nomenclaturas utilizadas pelas instâncias oficiais ou para‑oficiais de recolha padronizada de informação e o conjunto de significações associadas ao aparelho teórico‑conceptual requerido pela pesquisa”.
[822] Esta última expressão é utilizada por Christian Maroy, vd. “A análise qualitativa de entrevistas” in Luc Albarello et al., ??? p. 121‑122.
[823] Idem, ibidem, p. 122.
[824] Vd. Virgínia Ferreira, “O inquérito por questionário” in Augusto Santos Silva e José Madureira Pinto (coords), Metodologia das Ciências Sociais, Porto, Edições Afrontamento, 1987, p. 191.
[825] Vd. João Sedas Nunes, A Terceira Margem do Rio — Um Exercício de Reflexividade Sociológica a Partir de um Estudo sobre Práticas Culturais; Lisboa, Prova de Capacidade Científica em Sociologia, 1996, p. 62.
[826] Vd. a este respeito o nosso artigo, “Antropologia e sociologia: duas disciplinas em diálogo” in Vítor Oliveira Jorge e Raúl Iturra, Recuperar o Espanto: O Olhar da Antropologia, Porto, Edições Afrontamento, 1997, em particular pp. 42‑43.
[827] Vd. AAVV, Théâtre Public — Le Rôle du Spectateur, nº 55, 1984, p. 13.
[828] Idem, ibidem, p. 13.
[829] Vd. Raymond Quivy e Luc Van Campenhoudt, Manual de Investigação em Ciências Sociais, Lisboa, Gradiva, 1992, p. 197.
[830] Vd. Franco Crespi, Manual de Sociologia da Cultura, Lisboa, Editorial Estampa, 1997, p. 229.
[831] Vd. A. Joaquim Esteves, “Metodologias qualitativas. Perspectivas gerais” in A. J. Esteves e José Azevedo, (eds.), op. cit., p. 5.
[832] Vd. Judith Bell, Como Realizar um Projecto de Investigação, Lisboa, Gradiva, 1997, pp. 22‑24.
[833] Vd. José Madureira Pinto, “Uma reflexão sobre políticas culturais” in AAVV, Dinâmicas Culturais, Cidadania e Desenvolvimento Local, Lisboa, Associação Portuguesa de Sociologia, 1994, p. 768.
[834] Nomeadamente no inquérito às práticas culturais dos lisboetas, vd. José Machado Pais (coord.) et al., Práticas Culturais dos Lisboetas, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, 1994, pp. 70‑72.
[835] Agrega duas actividades que constam da lista de José Machado Pais: ler jornais e ler jornais semanários.
[836] Vd. Christian Lalive D'Epinay et al., Temps Libres — Culture de Masse et Culture de Classe Aujourd'Hui , Paris, Favre, 1982.
[837] Vd. Virgílio Borges Pereira, “Os índios e a vida selvagem” in Sociologia. Revista da Faculdade de Letras, Porto, nº 4, 1994, pp. 347‑349.
[838] Vd. Bernardo Pinto de Almeida, “Alguns olhares” in 3+3 Olhares sobre o Rivoli, Porto, Câmara Municipal do Porto, 1997, p. 5.
[839] Vd. a este respeito (questões da “multivocalidade” do espaço”), o nosso texto “Estruturas espaciais e práticas sociais ‑ a inexistente opção entre o local e o global” in Sociologia. Revista da Faculdade de Letras, Vol. IV, 1994.
[840] Vd. “O desafio como método Isabel Alves Costa, directora artística do Rivoli, em entrevista ao JN” in Jornal de Notícias ‑ Suplemento Rivoli, 16 de Outubro de 1997, p. 6.
[841] Excerto de entrevista que nos foi concedida.
[842] O S. João encontrava‑se ainda fechado, devido ao incêndio que o destruiu em 1908, mas encontravam‑se em funcionamento o Salão‑Jardim da Trindade, o Teatro Sá da Bandeira, o Águia d'Ouro, o Salão‑Jardim Passos Manuel , o Olympia e o Carlos Alberto, para além de “um grande número de salas na região do Porto, que passavam sobretudo filmes mudos”, vd. José Gomes Bandeira, “O Teatro Nacional de 1913” in Jornal de Notícias‑ Suplemento, 16 de Outubro de 1997, p. 9. Do mesmo autor, consultar ainda a brochura Rivoli ‑ Teatro Municipal ‑ 80 Anos de Espectáculos, Porto, Câmara Municipal do Porto, 1993.
[843] Citado in Maria Teresa Resende, Inventário ‑ Arquivo do Teatro Rivoli, Porto, Câmara Municipal do Porto, 1997, p. 21.
[844] Vd. José Gomes Bandeira, Rivoli ‑ Teatro Municipal..., ed. cit., p 6.
[845] Idem, “A última palavra em bom gosto” in Jornal de Notícias..., op. cit., p. 10.
[846] Idem, Rivoli ‑ Teatro Municipal..., ed. cit., p. 11.
[847] Marcante para muitos frequentadores, este período traduz‑se por inúmeras histórias. José Gomes Bandeira, através do relato de um desses habitués, dá‑nos conta de um frequente procedimento do projeccionista que “parava o filme num dado momento por causa de uma canção que comovia fortemente a plateia e a sequência voltava ao princípio para ser vista de novo. Depois batiam‑se palmas para agradecer ao projeccionista e para desanuviar”, vd. “O Rivoli de Maria Borges” in Jornal de Notícias..., op. cit., p. 15.
[848] Isabel Alves Costa, directora artística do Rivoli, refere‑se a esta experiência em entrevista ao jornal Expresso: “Com o atraso inicial da obra, pude experimentar alguma programação num espírito diferente depois de o Rivoli ter sido esvaziado do seu conteúdo. Quando se tiraram as cadeiras, transformou‑se num espaço teatral fantástico e que permitiu (até ao início das obras em Junho do ano seguinte) fazer o programa sem orçamento «Rivoli vazio». Desafiei escolas e grupos de teatro a fazerem aqui todo o tipo de experiências. Foi um tempo muito rico, após o qual a obra começou”, vd. Expresso, 11 de Outubro de 1997.
[849] Vd. Maria Teresa Resende, op. cit., p. 72.
[850] A vereadora do Pelouro de Animação da Cidade resume da seguinte forma essas vantagens: “É uma associação de funcionamento do tipo privado: pode planear; pode fazer a selecção de pessoal sem estar sujeita aos limites da função pública; pode tratar da imagem do Teatro sem ter que levar, de cada vez, as propostas para aprovação da Câmara; tem uma gestão financeira que aproveita os melhores preços” in Suplemento do Jornal de Notícias, 16/10/97, p. 19.
[851] Entrevista que nos foi concedida por Isabel Alves Costa.
[852] Vd. Teresa Lima, Centro de formação do Espectador (de Teatro), documento policopiado. Nesse projecto adiantam‑se algumas propostas de inegável potencialidade: o ensaio aberto, a preparação para o espectáculo, o debate após o espectáculo, as cenas formativas, encomendadas com intuitos pedagógicos a grupos de teatro, sessões teórico‑práticas subordinadas à temática “Da ideia ao espectáculo”, conferências e seminários, etc. Recupera‑se uma vez mais a noção de que a “arte de espectador” é, antes de mais, uma aprendizagem em moldes de progressiva familiarização.
[853] Vd. Jornal de Notícias ‑ Suplemento Rivoli, p. 16.
[854] Excerto de entrevista concedida por Isabel Alves Costa. A mesma preocupação com a criação de uma identidade específica que supere a atomização de iniciativas aparece patente num documento utilizado para discussão interna: “um Teatro Municipal não pode ser apenas um receptáculo para todo o tipo de usos, tem de ser um espaço que busque uma identidade própria, baseada na qualidade dinâmica e mesmo conflitual dos projectos (uns excluem por vezes os outros), claramente situados entre a dimensão popular e a experimentação, entre a tradição e a inovação, entre o «grande público» e as «minorias cultas»”, vd. Rivoli Teatro Municipal: um Projecto Cultural, policopiado.
[855] Vd. Jornal de Notícias‑ Suplemento Rivoli, art. cit., p. 5.
[856] Vd. Expresso, art. cit., p. 6
[857] Excerto de uma entrevista que nos foi concedida.
[858] Associado à animação da madrugada, em ambiente festivo.
[859] Programa de tertúlia.
[860] Vd. Jornal de Notícias ‑ Suplemento Rivoli, p. 19.
[861] Vd. entrevista a Isabel Alves Costa, Expresso, art. cit., p. 6.
[862] Vd. o nosso trabalho “As estatísticas na área da cultura: breve reflexão” in Sociologia ‑ Problemas e Práticas, nº 26, 1998, pp. 121‑122.
[863] Vd. A. Giddens, As Consequências da Modernidade, Oeiras, Celta Editora, 1992, em especial pp. 8‑22.
[864] Vd. Marc Augé, Não‑Lugares ‑ Introdução a uma Antropologia da Sobremodernidade, Lisboa, Bertrand Editora, 1994.
[865] Vd. Frederic Jameson, “Transformações da imagem na pós‑modernidade” in F. Jameson, Espaço e Imagem ‑ Teorias do Pós‑Moderno e Outros Ensaios, Rio de Janeiro, Editora Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1995, p. 115.
[866] Idem, ibidem, pp. 119‑120.
[867] Idem, ibidem, p. 120.
[868] Idem, ibidem, p. 136.
[869] Essa mesma associação está presente na lista de patrocinadores: casas de moda (boutiques) e de decoração.
[870] O apresentador foi vestido por uma conhecida marca de roupa e os patrocinadores variaram entre as marcas de café, cerveja, roupas de marca e estabelecimentos de manutenção corporal.
[871] Vd. “Desfile na Praia da Luz” in Jornal de Notícias, 31/5/97.
[872] F. Jameson, op. cit., p. 136.
[873] Esta combinação é metaforicamente definida pelo crítico António Curvelo da seguinte forma: “Quando cuida das raízes sem prender as asas, o jazz continua vivo”, vd. “Bom jazz, má informação”, in Público, 22/2/98.
[874] Uma das colaboradoras do responsável confessou‑nos mesmo que os oito funcionários do B Flat não são muito bem remunerados, justificando o seu apego à casa por amor a uma causa: a divulgação do jazz no Norte de Portugal.
[875] Vd. Anne Cauquelin, La Ville et la Nuit, Paris, P.U.F., 1977, p. 10.
[876] Vd. idem, ibidem, p. 10.
[877] Cf. Capítulo I.
[878] Anne Cauquelin, op. cit., p. 35.
[879] Idem, ibidem, p. 43.
[880] Anne Cauquelin, ibidem, p. 118.
[881] Cf. A. Giddens, As Consequências da Modernidade, Oeiras, Celta Editora, 1992 e ainda Laura Bovone, “Os novos intermediários culturais. Considerações sobre a cultura pós‑moderna” in Carlos Fortuna (org.), Cidade, Cultura e Globalização, Oeiras, Celta Editora, 1997, em particular pp. 105‑111.
[882] Vd. François Ascher, Metapolis ‑ Acerca do Futuro da Cidade, Oeiras, Celta Editora, 1998, p. 80.
[883] Vd. A.Giddens, op. cit., p. 93.
[884] Vd. Georg Simmel, “A metrópole e a vida de espírito” in Carlos Fortuna (org.), Cidade, Cultura e Globalização, Oeiras, Celta Editora, 1998.
[885] Vd. François Ascher, op. cit., p. 79.
[886] Imagem utilizada por François Ascher propósito da “multiplicação dos objectos, das práticas e das referências” na metapolis, vd. op. cit., pp. 79‑80.
[887] Olivier Galland refere‑se mesmo às tentativas do sistema para convencer os que não obtêm sucesso de que “nada está perdido” e que continuam na competição (continuam a ter o estatuto cada vez mais ambíguo de pretendentes a uma credenciação), não havendo sanções definitivas. Desta forma, adoptam‑se nomenclaturas dissimuladas, “progressivas e reversíveis que tentam evitar os efeitos da exclusão”. Daí a proliferação de novas modalidades como a “flexibilidade e alargamento dos conteúdos”, a “progressividade das classificações”, as “unidades capitalizáveis”, etc., vd. “Un statut indéfini et indéfinissable” in Jeunes d'Aujourd' Hui, Paris, La Documentation Française, 1987, pp. 44‑45.
[888] Estas dimensões de autonomia são particularmente visíveis nas formas quotidianas (diferenciadas e condicionadas consoante os contextos sociais) de ocupação dos tempos livres; vd. José Machado Pais, Culturas Juvenis, Lisboa, Imprensa Nacional, 1994 e ainda Usos do Tempo e Espaços de Lazer, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, s/ data. Num outro estudo João Sedas Nunes conclui que “enquanto às idades baixas, à situação estudantil e ao estado civil solteiro corresponde globalmente (…) uma maior abertura dos usos dos tempos livres, com o aumento da idade, a passagem à situação trabalhadora e a neo‑constituição familiar, sobretudo quando a Igreja sela o engajamento, os invólucros dos ditos tempos parecem contrair‑se, quer em quantidade, quer em intensidade”, vd. “Práticas culturais” in AAVV, Jovens de Hoje e de Aqui, Loures, Câmara Municipal de Loures, 1996, p. 135.
[889] Vd. E. Gil Calvo, Los Depredadores Audiovisuales — Juventud Urbana y Cultura de Massas, Madrid, Editorial Tecnos, 1985, p. 16.
[890] Como refere ainda E. Gil Calvo, a juventude é uma “invenção” das sociedades pós‑industriais. De facto, nas sociedades tradicionais “através de qualquer ritual sacramental de transição acedia‑se directamente à categoria social de adulto (…) não existia a juventude como categoria social ou, se quisermos, a juventude apenas durava o que durava essa cerimónia de iniciação à responsabilidade adulta. Pelo contrário, na nossa sociedade plenamente industrializada, esse rito de iniciação, essa cerimónia de transição (…) pode durar décadas”, Idem, ibidem, p. 17.
[891] Vd. Mike Featherstone, Consumer Culture & Postmodernism, London, Sage Publications, 1996, p. 100.
[892] Sucedem‑se os estados “intermitentes” e híbridos muitas vezes como resistência e/ou adaptação a processos de desqualificação (é‑se estudante e trabalhador, perde‑se um emprego e regressa‑se à escola, tentando acumular um volume maior de qualificações, antes de se obterem vínculos contratuais estáveis atravessam‑se experiências de formação profissional, etc.). Como refere Galland, há uma “generalização e banalização dos estatutos provisórios”, vd. art. cit., p. 34.
[893] Crítica proferida por R. G. Hollands, vd. “As identidades juvenis e a cidade” in Carlos Fortuna (org.), Cidade, Cultura e Globalização, Oeiras, Celta Editora, 1998, p. 211.
[894] Idem, ibidem, p. 211.
[895] Nestas práticas incluímos as seguintes actividades: “não fazer nada” e “dormir a sesta”.
[896] Torna‑se imprescindível, a este respeito, o excerto de uma entrevista feita a Pierre Bourdieu publicado sob o título “La jeunesse n’est qu’un mot” in Questions de Sociologie, Paris, Éditions de Minuit, 1984. Aí, Bourdieu fala claramente da idade como “um dado biológico socialmente manipulado e manipulável”, e da definição dos limites etários como uma questão que se prende à transmissão do poder entre gerações.
[897] A expressão pertence a José Machado Pais (Vd. Culturas Juvenis..., op. cit.). Evoluímos neste aspecto face à nossa posição anterior em que reduzíamos o espaço dessa “tipicidade juvenil” ao campo da procura de identidade e de autonomia, processos constitutivos da adolescência e tomados na sua heterogeneidade. De facto, existirão modos especificamente juvenis de construção social da realidade, embora continuamente cruzados por elementos estruturais diversos, desde logo os meios sociais de pertença, vd. O nosso trabalho Tristes Escolas —Práticas Culturais Estudantis no Espaço Escolar Urbano, Porto, Edições Afrontamento, 1997, cap. I.
[898] E. Gil Calvo, op. cit., p. 19.
[899] Idem, ibidem.
[900] Vd. O. Donnat, Les Français Face à la Culture, Paris, Éditions La Découverte, 1994, p. 35.
[901] Idem, ibidem, p. 103.
[902] Vd. O. Donnat, op. cit., pp. 133‑134.
[903] Vd. Tristes Escolas — Práticas Culturais Estudantis no Espaço Escolar Urbano, Porto, Edições Afrontamento, 1997. De salientar, a este respeito, a representação, amplamente generalizada nos múltiplos grupos estudantis, de recusa do modelo de escola‑obrigação, com uma clara desvalorização dos tempos lectivos e dos mecanismos institucionais de consagração e controlo no campo escolar, em favor dos espaços‑tempos de sociabilidade intragrupal.
[904] Vd. José Madureira Pinto, “Notas sobre o sofrimento na sala de aulas e possíveis modos de o atenuar” in Território Educativo, nº 1, 1997.
[905] Vd. O. Donnat, op. cit., p. 141. O autor especifica um pouco mais a génese deste complexo fenómeno, ligando‑o à contracultura dos anos 60 que estabeleceu laços estreitos com as indústrias culturais, às profundas mutações tecnológicas que modificaram o próprio conceito de espectáculo, às novas condições de produção e difusão dos produtos culturais e a uma crescente penetração da lógica financeira e empresarial no campo artístico.
[906] Idem, ibidem, p. 145.
[907] Vd. Laura Bovone, “Os novos intermediários culturais. Considerações sobre a cultura pós‑moderna” in Carlos Fortuna (org.), Cidade, Cultura e Globalização, Oeiras, Celta Editora, 1998, p. 105. De acordo com a autora, “jornalistas e publicistas, produtores de televisão, operadores de turismo, directores de centros culturais e criadores de moda, arquitectos, galeristas” são alguns dos exemplos ocupacionais destas profissões.
[908] Inclui as seguintes actividades: ir a cafés, cervejarias e pastelarias; ir à missa ou a cerimónias religiosas; ir a discotecas; ir a bares; almoçar ou jantar fora sem ser por necessidade; jogar em máquinas electrónicas (casas de jogos); ir às compras (roupa, discos, livros, etc.).
[909] Observem‑se os quadros referentes à frequência de bares e discotecas (Anexo V/Quadros III e IV). Repare‑se como estas práticas estão positivamente associadas à juvenilidade. No entanto, não deixa de surpreender que, no caso das discotecas, a frequência seja significativamente menor. Aliás, apenas no grupo etário dos inquiridos com idade até aos 20 anos a opção “raramente/nunca” não é predominante. No grupo seguinte, 50.2% declaram raramente ou nunca ir a discotecas. Contraria‑se, assim, a imagem‑rótulo de uma juventude que estaria totalmente absorvida pelos “templos profanos” da cultura pós‑moderna. A frequência assídua de bares pode estar relacionada com o privilegiar de locais que reproduzam modelos de sociabilidade mais “sedentários” e não tão obsessivamente centrados na estética corporal.
[910] Featherstone defende uma espécie de “terceira via” na análise dos estilos de vida nas sociedades hodiernas: a sua crescente importância não deriva de serem produtos manipulados da cultura de massas, nem tão‑pouco expressões totalmente autónomas do espírito pós‑moderno, mas sim de reconfigurações no espaço social, que não significam o seu fim, vd. Consumer Culture…, op. cit., pp. 83‑111.
[911] Vd. Idalina Conde, “Cenários de práticas culturais em Portugal (1979‑1995) in Sociologia Problemas e Práticas, nº 23, 1996, p. 165.
[912] Inclui as seguintes actividades: escrever (poemas, contos, etc.); artes plásticas (pintar, desenhar, esculpir, etc.) e fazer fotografia com intuitos estéticos.
[913] A categoria “práticas associativas expressivas” engloba as seguintes actividades: ir a associações recreativas ou colectividades locais; jogar xadrez; jogar às cartas, damas, bilhar, etc.; fazer campismo e caravanismo.
[914] A categoria “práticas associativas criativas” engloba, por sua vez, as seguintes actividades: fazer teatro amador; dançar (dança contemporânea, ballet, jazz e folclore); tocar (num grupo musical, coro, rancho, etc.); cantar (num grupo musical, coro, rancho, etc.).
[915] Vd. H. Gil Calvo, op. cit., p. 22.
[916] Vd. Carlota Quintão e Paula Oliveira, A Participação Juvenil no Movimento Associativo em Matosinhos, Câmara Municipal de Matosinhos /Fundação Gomes Teixeira, 1997, policopiado
[917] Vd. Paulo Antunes Ferreira, Valores dos Jovens Portuguses nos Anos 80, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais/Instituto da Juventude, 1993.
[918] Vd. Ronald Inglehart, Modernization and Postmodernization — Cultural, Economic and Political Change in 43 Societies, Princeton, Princeton University Press, 1997, em especial pp. 67‑91 e pp. 132‑36. Muitas e variadas têm sido as críticas apontadas a Inglehart, desde questões metodológicas relacionadas com os modos de inquirição (que supostamente manipulariam resultados), até à objecção de fundo de que se trata de uma perspectiva evolucionista e unilinear da história, com implícitos laivos etnocêntricos. Outras críticas dirigem‑se ao excessivo determinismo patente em algumas das suas proposições centrais, como a que liga crescimento económico e ascensão dos valores pós‑materialistas (ao pretender enfatizar o papel dos sistemas simbólicos Inglehart acaba, paradoxalmente, por conceder a primazia ao económico) No entanto, em tempo de alguma “fragmentação” teórica, a utilização crítica de teorias de longo alcance revela‑se, contra a corrente, de renovado interesse. No presente caso existe ainda um factor adicional de valorização: o estudo comparativo de 43 sociedades, entre as quais a portuguesa.
[919] A moda é por ele entendida num sentido amplo, ou seja, enquanto “circulação geral das modas (…) estéticas, políticas, ideológicas, etc.”, instância de regulação e de controle social, vd. op. cit., p. 66.
[920] Idem, ibidem, p. 99.
[921] Idem, ibidem, p. 134.
[922] Cf. a este respeito Mike Featherstone, Consumer Culture and Postmodernism, London, Sage Publications, 1996, em especial o capítulo 7 “City cultures and postmodern lifestyles”, pp. 95‑111.
[923] Num trabalho levado a cabo por José Machado Pais (Usos do Tempo e Espaços de Lazer, Lisboa, Instituto da Juventude/Instituto de Ciências Sociais, s/ data, p. 59), 88.5% dos jovens inquiridos declararam ver diariamente ou quase televisão, o que corresponde, no presente trabalho, à categoria “frequentemente”. Na nossa amostra tal índice desce para 79.2% no caso dos jovens até aos 20 anos e 69.5% no que se refere aos que têm entre 21 e 30 anos.
[924] Vd. Francis Godard, “Les rapports entre générations: une approche historique” in AAVV, Jeunes D’Aujourd’Hui, op. cit., p. 12.
[925] Inglehart fala das “experiências formativas distintivas de determinadas gerações”, vd. op. cit., p. 158.
[926] Robert Elms citado por Mike Featherstone, vd. op. cit., p. 100.
[927] O próprio Inglehart, apesar da ambição de aplicação universal da sua teoria, acaba por reconhecer que os jovens protagonistas dos valores pós‑materialistas começaram por ser grupos restritos de estudantes universitários, vivendo num meio social distinto e fechado em relação aos jovens de outros meios sociais. A mesma concepção está implícita na sua hipótese de que o grau de adesão a esses valores depende estreitamente do nível educacional, ocupacional e económico dos agentes e, em particular, do nível de segurança vivido durante o seu período formativo (conceito de “segurança formativa”, vd. op. cit., pp. 138‑159).
[928] Vd. A. Giddens, Modernidade e Identidade Pessoal, Oeiras, Celta Editora, 1994, p. 191‑206.
[929] Idem, ibidem, p. 192.
[930] Elísio Estanque e José Manuel Mendes referem, aliás, que “nos países mais avançados a segregação sexual em relação às mulheres é muito maior” do que em Portugal onde as mulheres revelam estar numa situação de superioridade em segmentos fundamentais do mercado de trabalho, em particular “nos casos em que o factor qualificações (credenciais) assume maior importância”, vd. Classes e Desigualdades Sociais em Portugal, Porto, Edições Afrontamento, 1998, p. 207.
[931] Augusto Santos Silva e Helena Santos chegaram a conclusões semelhantes: “...o espaço exterior tende a ser mais masculino e juvenil. As associações entre passeio e convivência familiar sugerem indirectamente a atenção a um facto que outras observações confirmam: os movimentos femininos pelos espaços públicos ou reservados (...) quando não decorrem das deslocações de trabalho, estão, sobretudo entre adultas, ligadas a actividades das famílias e em família”, vd. Prática e Representação das Culturas: um Inquérito na Área Metropolitana do Porto, Porto, Centro Regional das Artes Tradicionais, 1995, p. 40.
[932] A. Giddens, Modernidade e Identidade Pessoal, ed. cit., p. 190.
[933] Inclui as seguintes práticas: frequentar festas de carácter popular; passear; fazer desporto; fazer jogging; fazer pequenas viagens; ir à pesca; ir à caça; ir à praia; passear em centros comerciais; ir a feiras.
[934] A. Santos Silva e Helena Santos concluíram no seu estudo que “não só os jovens e as mulheres são aqueles que menos aderem (por comparação com os adultos e os homens), enquanto sócios, às colectividades, como também são os que menos probabilidades estatísticas apresentam de serem, nelas, dirigentes” , vd. op. cit., p. 49.
[935] Vd. Capítulo IV.
[936] Vd. Capítulo X.
[937] Vd. A este respeito Justin O’ Connor e Derek Wynne, “Das margens para o centro. Produção e consumo de cultura em Manchester” in Carlos Fortuna (org.), op. cit., em especial pp. 200‑204.
[938] No caso do B Flat, o tratamento de um inquérito realizado pela direcção do clube de jazz a um total de 508 pessoas permitiu‑nos constatar a seguinte distribuição etária:
- menos de 15 anos: 0.4%
- dos 15 aos 24 anos: 27.2%
- dos 25 aos 34 anos: 40.2%
- dos 35 aos 60 anos: 32.3%
O inquérito às práticas culturais dos lisboetas revela que uma boa parte do público que aprecia jazz tem entre 21 e 44 anos, confirmando estes dados (vd. José Machado Pais (coord.) et al., Práticas Culturais dos Lisboetas, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, 1994, pp. 152‑154). Um estudo relativo aos Estados Unidos mostra resultados semelhantes: 2/3 do público tem menos de 45 anos, concentrado especialmente no grupo etário 25‑34 anos (vd. Scott De Veaux, Jazz in America: Who's listening?, Carson, Seven Locks Press, 1995, p. 3).
[939] Vd. M. Featherstone, op. cit., p. 44.
[940] Featherstone assinala a este respeito a “percepção do passado como um conglomerado de imagens, fragmentos e espectáculos”, ibidem, p. 98.
[941] Vd. Vladimir Jankélévitch, “Georg Simmel, philosophe de la vie” in G. Simmel, La tragédie de la Culture, Paris, Édtions Rivages, 1988, p. 55.
[942] Idem, ibidem, p. 92.
[943] Vd. Sihem Najar, “Comportement vestimentaire et identification au pluriel” in Société, nº 50, 1995, p. 404.
[944] Vd. Georg Simmel, “La mode” in La Tragédie de la Culture”, Paris, Éditions Rivages, 1988, p. 93.
[945] Vd. Pierre Bourdieu, “Remarques provisoires sur la perception sociale du corps” in Actes de La Recherche en Sciences Sociales, nº 14, 1977.
[946] Idem, ibidem, p. 95.
[947] Idem, ibidem, p. 98.
[948] Vd. G. Simmel, “La mode” in op. cit., p. 92.
[949] Vd. Gilles Lipovetsky, O Império do Efémero. A Moda e o seu Destino nas Sociedades Modernas, Lisboa, Publicações D. Quixote, 1989, p. 28.
[950] Vd. G. Simmel, “La mode” in op. cit., p. 102.
[951] Idem, ibidem.
[952] Idem, ibidem.
[953] Vd. Pierre Bourdieu, “Les trois états du capital culturel” in Actes de la Recherche en Sciences Sociales, nº 30, 1979, p. 4.
[954] Vd. José Luís Casanova, “Uma avaliação conceptual do habitus” in Sociologia — Problemas e Práticas, nº 18, 1995, p. 61.
[955] Vd. G. Simmel, “La mode” in op. cit., p. 98
[956] Idem, ibidem, p. 113.
[957] Vd. Anthony Giddens, “Time, space and regionalisation” in Derek Gregory e John Urry (eds.), Social Relations and Spacial Structures, London, MacMillan, 1985, p. 269.
[958] Devido à existência de uma enorme lista de convidados, o Rivoli abriu com uma estreia em duas noites. Claro que a primeira noite contou com um cerimonial ainda mais ritualizado, dada a presença de dignatários e representantes dos vários poderes, quer de dimensão local, quer nacional.
[959] Vd. Diana Crane, The Production of Culture. Media and the Urban Arts, Newbary Park, Sage, 1992, p. 5.
[960] Em baixo capital escolar consideramos todos os percursos escolares que, no máximo, completaram a escolaridade obrigatória (9º ano de escolaridade). Em médio capital escolar consideramos os inquiridos que têm mais do que a escolaridade obrigatória mas no máximo o 12º ano. Em alto capital escolar consideramos níveis de escolaridade correspondentes a um diploma de curso médio ou superior.
[961] No inquérito às práticas culturais dos lisboetas conclui‑se que “entre os géneros de música menos escutados se encontram — para além da música barroca — o jazz, os blues e a música rap”. Por outro lado, o público de jazz e de blues caracterizam‑se pela sua “elitização” (alto nível de escolaridade, perfil urbano, estratos médio superior e alto, vd. José Machado Pais (coord.) et al., Práticas Culturais dos Lisboetas, Lisboa, Instituto de Ciências sociais, 1994, p. 151.
Nos Estados Unidos da América, país de origem deste género musical, o perfil é idêntico: público altamente escolarizado (mais de 3/4 tem frequência ou diploma de ensino superior), qualificado e detentores de altos rendimentos, vd. Scott De Veaux, Jazz in America: Who's listening?, Carson, Seven Locks Press, 1995.
[962] Vd. José Machado Pais et al., op. cit., p. 151.
[963] Vd. Pierre Bourdieu, La Distinction. Critique Sociale du Jugement, Paris, Les Éditions de Minuit, 1979. No entanto, não podemos concordar com o autor francês quando enquadra o jazz nas “artes em via de legitimação”. Apesar das suas origens “plebeias”, o gosto pelo jazz está muito menos disseminado do que o gosto pela música clássica, o que corresponde, certamente, a um processo de enobrecimento cultural que o transforma numa prática fortemente “classificadora”, devido (e utilizamos uma expressão adoptada por Bourdieu para a “música nobre”) “à raridade das condições de aquisição das disposições correspondentes”, vd. op. cit., p. 17.
[964] Idem, ibidem, p. 429.
[965] Vd. Mike Featherstone, Consumer Culture & Postmodernism, ed. cit., em particular o capítulo 6 (“Lifestyle and consumer culture”).
[966] “Valores que eram controversos nos anos 60 tornaram‑se os valores da situação nos anos 90”, vd. R. Inglehart, Modernization and postmodernization, ed. cit., p. 142.
[967] Muitas das profissões incluídas nesta “nova pequena burguesia” indiciam essa ligação privilegiada à cultura e à informação: relações‑públicas, designers, jornalistas, publicitários, críticos, artistas, etc.
[968] Laura Bovone cita a este respeito Douglas e Isherwood : “É bem evidente a colocação central e a liderança dos intermediários culturais no «campo em que se trava a batalha da definição e da forma da cultura»” , vd. Laura Bovone in Carlos Fortuna (org.), op. cit., p. 113.
[969] Vd. Alan Warde, “Intermediação cultural e alteração do gosto” in Carlos Fortuna (org.), op. cit., em particular pp. 121‑124.
[970] No entanto, convém realçar que a declaração de uma prática regular de leitura, dado o carácter prestigiante associado a esta prática (e a vergonha cultural que “mancha” quem não lê) difere consideravelmente da prática efectiva; vd. a este respeito Eduardo de Freitas et al., Hábitos de Leitura. Um Inquérito à População Portuguesa, Lisboa, Publicações D. Quixote, 1998, pp. 257‑262.
[971] De acordo com os dados do inquérito nacional, 14.9% dos inquiridos declaram ler diariamente ou quase (o que corresponde à nossa categoria “frequentemente”, ou seja, a 40.8% dos respondentes); 13.2% afirmam ler pela menos uma vez por semana (o equivalente à nossa categoria “com alguma frequência”, que representa 43% das respostas) e 70.5% manifestam ler raramente ou nunca (16.2% na nossa amostra), vd. Eduardo de Freitas et al., op. cit., p. 258.
[972] Idem, ibidem, p. 271.
[973] Vd. Olivier Donnat, Les Français Face à la Culture. De l' Éxclusion à l'Écletisme, Paris, 1994, p. 275.
[974] Idem, ibidem, pp. 276‑277.
[975] Idem, ibidem, p. 280.
[976] Vd. Georg Simmel, “La mode” in La Tragédie de la Culture, ed. cit., p. 117. Simmel considera as modas pessoais como um caso limite da moda social.
[977] Bourdieu afirma, no entanto, que o conhecimento da novidade e o estar actualizado sobre as novas referências é um privilégio, precisamente, dos que, devido à sua íntima familiaridade com a “cultura nobre” podem “dar‑se ao luxo” de se afastar dos “universos mais escolares, mais clássicos, para se aventurarem em regiões menos legítimas, menos «arriscadas» da cultura dita «livre« que, não sendo ensinada pela escola (...) pode ter um alto rendimento simbólico e procurar um forte ganho distintivo”; vd. La Distinction, ed. cit., p. 68. Contudo, não partilhamos, para a nossa amostra, essa hipótese interpretativa. Não sendo independente do volume e composição do capital escolar, esta predisposição moderna dos praticantes culturais da Praia da Luz parece‑nos estar associada a um universo simbólico onde é preponderante o peso da condição juvenil.
[978] Vd. Pierre Bourdieu, La Distinction, ed. cit., p. 68.
[979] “O capital cultural incorporado das gerações anteriores funciona como uma espécie de avanço (no duplo sentido de vantagem inicial e de crédito), idem, ibidem, p. 77.
[980] Vd. Capítulo IX.
[981] Vd. Olivier Donnat, op. cit., p. 149.
[982] Cf. a este respeito as propostas por nós apresentadas em trabalho anterior no sentido de reformular o conceito bourdiano de campo escolar, nomeadamente quando referimos que “o amplo movimento de recusa da escola nega operacionalidade às antigas instâncias de legitimação, bem como ao seu instrumento privilegiado: o exame, a avaliação, o veredicto escolar. Este, nada mais tem de sagrado, banalizou‑se (..) Quem verdadeiramente conta, hoje em dia, nas nossas escolas, para definir um percurso legítimo são os grupos de amigos. O capital escolar — o tal capital específico, inerente a um efeito de campo é, antes de mais, um capital de sociabilidade”, vd. Tristes Escolas, ed. cit., p. 180.
[983] Pierre Bourdieu e Jean‑Claude Passeron afirmam a esse respeito que “a acção pedagógica escolar (...) reproduz a cultura dominante, contribuindo assim para reproduzir a estrutura das relações de poder, numa formação social onde o sistema de ensino dominante tende a assegurar o monopólio da violência simbólica legítima”, vd. A Reprodução. Elementos para uma Teoria Geral do Sistema de Ensino, Lisboa, Editorial Veja, s/ data, p. 25.
[984] Caracterizado, entre outros atributos, pela centralidade do paradigma cultural imagem‑som, por certas saídas nocturnas (jazz, rock, espectáculos de dança, cinema...) e por comportamentos anti‑ascéticos e mesmo hedonistas e individualistas (defesa da “arte de viver”), vd. op. cit., p. 342.
[985] Quando resultam do cruzamento entre um baixo capital escolar de origem e um médio capital escolar de ego.
[986] Vd. Elísio Estanque e José Manuel Mendes, op. cit., p. 209.
[987] Presente quando Bourdieu considera que “a disposição estética é (...) uma manifestação do sistema de disposições que produzem os condicionamentos sociais associados a uma classe particular de condições de existência”, vd. La Distinction, ed. cit., p. 59.
[988] Vd. Jean Viard, La Société d'Archipel, Le Château, Édtions de l'Aube, 1994, pp. 21‑22.
[989] Vd. Elísio Estanque e José Manuel Mendes, op. cit., em particular o capítulo I.
[990] Vd. Pierre Bourdieu, “La «jeunesse» n'est qu'un mot” in Questions de Sociologie, Paris, Les Éditions de Minuit, 1994, p. 148.
[991] Vd. “La Métamorphose des gouts” in op. cit., p. 170.
[992] Vd. Pierre Bourdieu, La Distinction, ed. cit., p. 158.
[993] Vd. Anthony Giddens, Modernidade e Identidade Pessoal, Oeiras, Celta Editora, 1994, pp. 72‑79.
[994] Idem, ibidem, p. 74.
[995] Vd. Peter L. Berger e Thomas Luckmann, A Construção Social da Realidade, Petrópolis, Editora Vozes, 1985, p. 107.
[996] Definidos por Giddens da seguinte forma: “Os estilos de vida são práticas rotinizadas, as rotinas incorporando‑se em hábitos de vestir, comer, modos de agir e meios favorecidos para o encontro com os outros”. Ou ainda: “Um estilo de vida pode ser definido como um conjunto mais ou menos integrado de práticas que um indivíduo adopta, não só porque essas práticas satisfazem necessidades utilitárias, mas porque dão forma material a uma narrativa particular de auto‑identidade”, in op. cit., p. 73.
[997] Vd. a este respeito David J. Lee e Bryan S. Turner (orgs.), Conflicts about class. Debating Inequality in Late Industrialism, London, Longman, 1996, em especial pp. 1‑20.
[998] Vd. capítulos VI e VII.
[999] Vd., por exemplo, Pierre Bourdieu, La Distinction, ed. cit., em particular pp. 409‑431 e ainda Mike Featherstone, Consumer Culture & Postmodernism, ed. cit., em particular cap. 6.
[1000] Vd. Anthony Giddens, The Class Structure of the Advanced Societies, London, Hutchinson, 1983, p. 107.
[1001] Idem, ibidem, p. 109. Giddens aproveita ainda para neste ponto criticar Weber. De acordo com o autor inglês, Weber fez coincidir erradamente o status (que resulta de uma avaliação) com os grupos de status (onde a existência dessa avaliação pode não existir ou estar meramente implícita).
[1002] Vd. João Sedas Nunes e Maria Paula Duarte, “Usos do tempo e gostos culturais” in José Machado Pais (coord.), Práticas Culturais dos Lisboetas, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, 1994, p. 311.
[1003] Idem, ibidem, p. 312.
[1004] Vd. Augusto Santos Silva e Helena Santos, Prática e Representação das Culturas: um Inquérito na Área Metropolitana do Porto, Porto, Centro Regional de Artes Tradicionais, 1995, p. 25.
[1005] Vd. Paulo Filipe Monteiro, “Os públicos dos teatros de Lisboa: primeiras hipóteses” in Análise Social, nº 129, 1994, p. 1237.
[1006] Vd. O. Donnat, op. cit., p. 368.
[1007] O que poderá relacionar‑se com o facto de estarmos aqui a tratar da “fotografia artística”, desligada dos seus usos banais, de forte cunho familiar e de celebração ritual, vd. Pierre Bourdieu et al., Un Art Moyen. Essai sur les Usages Sociaux de la Photographie, Paris, Les Éditions de Minuit, 1965.
[1008] Vd. Eduardo de Freitas et al., op. cit., p. 119. Os mesmos autores referem ainda a acção conjugada do capital escolar adquirido com “um vivenciado relacionamento primário de registo favorável no campo da leitura” (p. 123).
[1009] É justo considerar que Bourdieu apenas ao de leve é tocado por esta crítica, apesar da centralidade que o capital escolar ocupa na sua análise do simbólico. Com efeito, o autor francês não só apresenta uma noção multidimensional do capital global (distribuído por várias espécies de capital), como considera o próprio capital escolar enquanto uma forma particular, institucionalizada, de capital cultural. Por outro lado, a perspectiva relacional que Bourdieu impõe à sua análise leva‑o a fazer depender igualmente a génese das práticas às posições ocupadas no campo (“campo de forças” e “campo de lutas”), vd., por exemplo, Raisons Pratiques, Paris, Éditions du Seuil, 1994, cap. I e pp. 53‑56.
[1010] Vd. Idalina Conde, “Contextos, culturas, identidades” in José Manuel Leite Viegas e António Firmino da Costa (orgs.), Portugal, que Modernidade?, Oeiras, Celta Editora, 1998, p. 91.
[1011] Idem, ibidem, p. 92.
[1012] Expressão que encontramos em Idalina Conde, vd. “Cenários de práticas culturais em Portugal (1979‑1995)” in Sociologia — Problemas e Práticas, nº 23, 1996, p. 183.
[1013] Vd. Idalina Conde, “Contextos, culturas identidades” in op. cit., p. 96.
[1014] Vd. Pierre‑Michel Menger, “L'oreille spéculative. Consommation et perception de la musique contemporaine” in Revue Française de Sociologie, XXVII, 1986, pp. 445‑479.
[1015] Vd. Idalina Conde, “Contextos, culturas, identidades” in op. cit., p. 96. A autora refere‑se às conclusões de um estudo de públicos por si realizado para a Fundação de Serralves em 1994.
[1016] Habermas faz notar, aliás, que com a ascensão da esfera pública burguesa cai o princípio do livre acesso, passando este a ser condicionado por critérios ligados à propriedade e à formação cultural. Neste caso, já não se pode falar em rigor de uma esfera pública. No entanto, o autor faz notar que esta distinção tinha origem na esfera privada da sociedade civil burguesa, sendo construída de antemão. Sob os seus pressupostos de livre‑concorrência cada um teria teoricamente a oportunidade de conquistar os atributos de homem com acesso à esfera pública, vd. Jurgen Habermas, Mudança Estrutural da Esfera Pública, Rio de Janeiro, Edições Tempo Brasileiro, 1984, pp. 105‑109.
[1017] Idem, ibidem, p. 16.
[1018] Vd. Richard Sennett, The Fall of the Public Man, New York, Norton, 1992, p. 4.
[1019] Idem, ibidem, p. 8.
[1020] Sennet refere‑se numa outra obra a esta “desordem de carácter” (segundo os rótulos da psicanálise de cujos efeitos terapêuticos ele desconfia, por considerar que se trata de um mal estar de raízes culturais e civilizacionais) como “uma sensação de estar morto para o mundo”, uma “incapacidade de sentir” que leva a que o Outro não nos estimule. O mito de narciso tem uma ligação directa com esta situação: Narciso “inclina‑se à borda d'água indiferente à voz que lhe pede para retroceder; quer acercar‑se mais e mais da imagem de si mesmo reflectida na água; no momento desta união consigo mesmo, afoga‑se”. Por outras palavras, Narciso mostra‑se incapaz de distinguir entre o eu e o outro; vd. R. Sennett, Narcisismo y Cultura Moderna, Barcelona, Editorial Kairós, 1980, pp. 10‑13.
[1021] Vd. R. Sennett, The Fall of Public Man, ed. cit., p. 41.
[1022] Idem, ibidem, p. 10.
[1023] Vd. J. Habermas, op. cit., p. 184.
[1024] Vd. Jean Viard, op. cit., p. 54.
[1025] Vd. François Ascher, Metapolis, ed. cit., pp. 92‑93.
[1026] Vd. Graham Allan, Friendship. Developing a Sociological Perspective, London, Harvester wheatsheaf, 1989, p. 138.
[1027] “O lar é um espaço de vida criado pelos seus habitantes para exprimir, de certa maneira, a sua individualidade e estilo pessoal”, vd. Idem, ibidem, p. 139.
[1028] Idem, ibidem, pp. 140‑142.
[1029] Vd. J. Habermas, op. cit., p. 61.
[1030] Vd. R. Sennett, op. cit., p. 15.
[1031] Vd. François Ascher, Metapolis, ed. cit., p. 89. O autor refere ainda o desconforto dos cientistas sociais perante os novos posicionamentos familiares, resultantes de uma flexibilização e fragilização dos laços conjugais (“meia‑irmã”, falso irmão, pseudo‑avó, quase esposo, etc.).
[1032] Vd. A. Giddens, As Consequências da Modernidade, Oeiras, Celta Editora, 1992, p. 14.
[1033] Vd. François Ascher, op. cit., p. 99.
[1034] Vd. J. Habermas, op. cit., p. 193.
[1035] Idem, ibidem, p. 191.
[1036] Idem, ibidem, p. 188.
[1037] Idem, ibidem, p. 194.
[1038] Idem, ibidem, p. 202.
[1039] Vd. José Madureira Pinto, Intervenção no painel “Mudam‑se os campos, mudam‑se as cidades” in Sociologia. Revista da Faculdade de Letras, Vol. II, 1992, p. 191.
[1040] Crítica formulada por John B. Thompson e retomada por Jim McGuigan in Culture and the Public Sphere, London, Routledge, 1996, p. 27. Thompson assinala ainda um conjunto de quatro grandes críticas à teoria de Habermas sobre a esfera pública: negligência do papel dos movimentos populares constituídos através de uma “esfera pública plebeia” (Habermas concentra‑se na versão burguesa da esfera pública); não assinalar da masculinidade da esfera pública burguesa, baseada numa total exclusão das mulheres; subvalorização da força criativa da produção e recepção culturais de raiz popular, bem como das potencialidades comunicacionais dos novos media; carácter vago das suas propostas de renovação da teoria crítica.
[1041] Vd. Jean Viard, La Société d'Archipel, Le Château, Éditions de l'Aube, 1994, p. 14.
[1042] Idem, ibidem, p. 20.
[1043] Vd. A. Giddens, As Consequências da Modernidade, ed. cit., p. 16.
[1044] Conceito de Lewis Mumford e que Jean Viard define como “soma dos territórios‑arquipélago das pessoas em relação directa com a cidade”, vd. J. Viard, op. cit., p. 37.
[1045] Vd. Pio Ricci Bitti e Bruna Zani, A Comunicação como Processo Social, Lisboa, Editorial Estampa, 1993, em particular pp. 19‑55.
[1046] Idem, ibidem, p. 27.
[1047] Vd. Paul DiMaggio, “Classification in art” in American Sociological Review, vol. 52, 1987, p. 440. Por cultura popular, no contexto da produção teórica americana, deve entender‑se cultura de massas.
[1048] Vd. Jim McGuigan, op. cit., p. 28.
[1049] Vd. Paul DiMaggio, art.cit., p. 442.
[1050] Idem, ibidem, p. 443.
[1051] Vd. Claire Bidart, L'Amitié. Un Lien Social, Paris, Éditions La Découverte, 1997, em especial pp. 183‑189 e Félix Requena Santos, Amigos y Redes Sociales. Elementos para una Sociología de la Amistad, Madrid, Siglo XXI de España Editores, 1994, em particular pp. 42‑46. O conceito de espaço pessoal da autoria de Deem é definido por Requena Santos como estando “contido dentro dos limites definidos pela oportunidade de que dispõe um indivíduo para desenvolver aspectos da sua vida pessoal na forma que quer e pode escolher”, vd. op. cit., p. 25.
[1052] Vd. de Claire Bidart, para além da obra citada, o artigo “Sociabilités: quelques variables” in Revue Française de Sociologie, nº 29, 1988.
[1053] Vd. François Héran, “La sociabilité, une pratique culturelle” in Économie et Statistique, nº 216, 1988.
[1054] Vd. Claire Bidart, op. cit., pp. 193‑197.
[1055] Vd. Félix Requena Santos, op. cit., pp. 11‑16.
[1056] Vd. Claire Bidart, op. cit., p. 7.
[1057] Claire Bidart define o círculo social como sendo simultaneamente “um conjunto de indivíduos e um sistema de regras, de códigos e de símbolos” que funcionam como meios ou recursos de acção, vd. op. cit. 54.
[1058] Vd. Graham Allan, Friendship. Developing a Sociological Perspective, Hertfordshire, Harvester Wheatsheaf, 1989, pp. 1‑17.
[1059] Vd. François Héran, art. cit., p. 18.
[1060] Vd. Félix Requena Santos, op. cit., p. 15
[1061] Vd. Graham Allan, op. cit., p. 20.
[1062] Vd. Claude S. Fischer, “Toward a subcultural theory of urbanism” in Mark Baldassare (ed.), Cities and Urban Living, New York, Columbia University Press, 1983, pp. 84‑114.
[1063] Vd. Paul DiMaggio, art. cit., p. 447.
[1064] Vd. Claude. S. Fischer, art. cit., p. 94.
[1065] O conceito de homofilia (“homophilie”) é utilizado por Claire Bidart para salientar a “tendência a preferir o semelhante em contactos que não os conjugais”, em relação aos quais se utiliza o termo vizinho de homogamia. “A homofilia pode‑se assim definir como a tendência para as amizades se formarem entre indivíduos que se assemelham sobre um aspecto preciso”, que pode ser a classe social, a geração, a etnia, o credo, etc., vd. C. Bidart, op. cit., p. 42.
[1066] Vd. Graham Allan, op. cit., pp. 142‑147.
[1067] Vd. Jan C. C. Rupp, “Les classes populaires dans un espace social à deux dimensions” in Actes de la Recherche en Sciences Sociales, nº 109, 1995, p. 97.
[1068] Vd. François Héran, art. cit., p. 14.
[1069] Vd. Félix R. Santos, op. cit., pp. 44‑46.
[1070] Estes aspectos são desenvolvidos por Ward H. Goodnough no seu artigo “Multiculturalism as the normal human experience” in Elizabeth M. E. e William L. P. (eds.), Applied Anthropology in America, New York, Columbia University Press, 1978.
[1071] Vd. por exemplo Claire Bidart, op. cit., em especial o capítulo “Qui se ressemble s'assemble?”, pp. 41‑51.
[1072] Vd. François Ascher, op. cit., p. 91.
[1073] Vd. Elísio Estanque e José Manuel Mendes, Classes e Desigualdades Sociais em Portugal. Um Estudo Comparativo, Porto, Edições Afrontamento, 1998, p. 128.
[1074] Vd. Graham Allan, op. cit., p. 23.
[1075] Vd. Claire Bidart, op. cit., p. 202.
[1076] Vd. François Héran, art. cit., p. 15.
[1077] Vd. Graham Allan, op. cit., p. 137.
[1078] Vd. Claire Bidart, op. cit., p. 247.
[1079] Vd. Pierre Bourdieu, La Distinction, ed. cit., p. 409.
[1080] Idem, ibidem, p. 418.
[1081] Idem, ibidem, p. 415.
[1082] Idem, ibidem, pp. 348‑362.
[1083] Idem, ibidem, p. 356.
[1084] Crescimento económico associado à racionalidade técnico‑científica e domínio da tecnoestrutura; produção em massa padronizada; autoridade identificável; centralidade do Estado‑Nação; mercados estáveis; etc., cf. David Harvey, Condição Pós‑Moderna, São Paulo, 1992, pp. 121‑134
[1085] Vd. Pierre Bourdieu, La Distinction, ed. cit., p. 358.
[1086] Cf. Quadro LII.
[1087] Vd. por exemplo Mike Featherstone, op. cit., em particular capítulo 6 e Laura Bovone, “Os Novos intermediários culturais. Considerações sobre a cultura pós‑moderna” in Carlos Fortuna (org.), op. cit., em especial pp. 111‑118.
[1088] Vd. David Harvey, op. cit., pp. 304 e 305.
[1089] Vd. Erving Goffman, A Apresentação do Eu na Vida de Todos os Dias, Lisboa, Relógio d 'Água, 1993, p. 15.
[1090] Goffman refere três vários tipos de atitudes possíveis: “por vezes o indivíduo agirá de modo inteiramente calculado (...) Por vezes o indivíduo continuará a calcular os seus actos mas permanecendo relativamente inconsciente de o estar a fazer. Por vezes expressar‑se‑á intencional e conscientemente de um modo determinado, mas fazendo‑o sobretudo porque a tradição do seu grupo ou categoria social exigem esse tipo de expressão (...) Por vezes as tradições ligadas ao papel de um indivíduo levá‑lo‑ão a causar uma impressão perfeitamente deliberada de um tipo particular e, apesar disso, ele pode não estar nem consciente nem inconscientemente decidido a causar o tipo de impressão correspondente”, Idem, ibidem, p. 17.
[1091] Vd. Serge Collet in AAVV, Théâtre Public. Le Rôle du Spectateur, nº 55, 1984, p. 13.
[1092] Os conceitos em itálico são da autoria de Goffman, vd. op. cit., p. 21 e p. 27.
[1093] Vd. Pierre Bourdieu, “Le sens pratique” in Actes de La Recherche en Sciences Sociales, nº 1, 1976, p. 43.
[1094] Idem, ibidem.
[1095] Idem, ibidem, p. 60.
[1096] Designação de Paul Connerton comentada por Miguel Vale de Almeida Vd. “Antropologia do corpo e da incorporação” in Miguel Vale de Almeida (org.), Corpo Presente, Oeiras, Celta Editora, 1996, p. 15.
[1097] Idem, ibidem, p. 16.
[1098] Vd. Jorge Vala, “Representações sociais e percepções intergrupais” in Análise Social, nº 140, 1997, p. 11.
[1099] Vd. Cláudia Marisa Silva de Oliveira, A Vida em Silêncios Comunicantes. Análise Sociológica da Criação e da Recepção de um Espectáculo Teatral, Porto, Faculdade de Letras, 1997, p. 298.
[1100] Vd. Robert Francès, La Perception, Paris, Presses Universitaires de France, 1992, p. 117.
[1101] Registo de diário de campo.
[1102] Vd. Pierre‑Michel Menger, “L'oreille spéculative. Consommation et perception de la musique contemporaine” in Revue Française de Sociologie, XXVII, 1986, pp. 473‑475.
[1103] Vd. Robert Francès, op. cit., pp. 117‑118.
[1104] Vd. Cláudia Marisa de Oliveira, op. cit., pp. 193‑194.
[1105] Cf., a propósito dos rituais e da sua eficácia simbólica, Jean Maisonneuve, Les Rituels, Paris, Presses Universitaires de France, 1988.
[1106] Conceito proposto, na linha teórica de Giddens, por William A. Corsaro, “Discussion, debate, and friendship processes: peer discourse in U.S. and Italian nursery schools” in Sociology of Education, vol. 67, 1994, p. 2.
[1107] Vd. Anthony Giddens, As Consequências da Modernidade, Oeiras, Celta Editora, 1992, p. 94: “As relações são laços baseados na confiança, uma confiança que não é pré‑determinada mas construída, e em que a construção envolvida significa um processo mútuo de auto‑desvendamento”.
[1108] Vd. Richard Sennett, The Fall of Public Man, New York, Norton, 1992, pp. 33‑38.
[1109] Vd. Serge Collet in AAVV, op. cit., p. 13.
[1110] Vd. Anne‑Marie Gourdon, “Le public de théâtre et sa perception” in AAVV, op. cit., p. 9.
[1111] Registamos uma conversa entre vários homens, na casa dos 50 anos, que conversavam animadamente sobre o festival de jazz do Rivoli. Um deles era unanimemente reconhecido pelos outros como “o especialista”. Não só tinha comprado bilhetes para todos os espectáculos, como possuía vasta informação sobre o programa, que lhes ia fornecendo.
[1112] Vd. Anne‑Marie Gourdon, art. cit., p. 9.
[1113] No B Flat registamos, entre outros, este excerto de conversa, entre um homem que aparentava ter cerca de 30 anos e uma rapariga mais nova: “Em Nova York havia uma discoteca muito estranha...de homossexuais... estava lá um tipo vestido de cabedal, com um chicote e começou a olhar para o meu amigo. Ele entrou em pânico! Eu, por precaução, andava sempre encostado à parede. Aquilo estava cheio, era uma loucura. Lá as pessoas são super‑radicais!”. De igual modo, captámos na Praia da Luz conversas sobre destinos de viagens mais ou menos exóticos, como Manaus ou Singapura: “Em Singapura, mesmo no aeroporto, tu não vês uma migalha no chão”. De certa forma, esta exteriorização de “cosmopolitismo” pode ser enquadrada em estratégias de distinção social.
[1114] Vd. Nathalie Heinich, “Du jugement de goût à la perception esthetique” in Idalina Conde (coord.), Percepção Estética e Públicos da Cultura, Lisboa, Acarte/Fundação Calouste Gulbenkian, 1992, pp. 16‑17.
[1115] Não sendo impossível fazer a síntese. François Aubral fala, por exemplo, da “comoção estética” como fruição activa, capaz de “tocar” no criador virtual que existe em cada agente, vd. AAVV, op. cit., p. 31.
[1116] Vd. Prefácio de Jean Starobinski à obra de Hans Robert Jauss, Pour une Esthétique de la Réception, Paris, Gallimard, 1978, p. 13.
[1117] Hans Robert Jauss, op. cit., p. 53.
[1118] Idem, ibidem.
[1119] Idem, ibidem.
[1120] Esta última expressão é da nossa autoria. Jauss nunca fala na “verdadeira arte”, mas não anda longe, ao referir‑se às qualidades do que é artístico, como a “mudança de horizonte”.
[1121] Vd. Nathalie Heinich, art. cit., p. 11.
[1122] Esta categoria resulta da agregação das seguintes respostas: “boa música/bom espectáculo” (Praia da Luz); “boa qualidade da música”, “desilusão pelo espectáculo” (B Flat) e “gostar de ouvir música tocada ao vivo”, “boa qualidade do som”, “lembranças da cultura alemã”, “o realismo do cinema português”, “os textos contundentes e provocatórios” (Rivoli). Por seu lado, a categoria “ideias/impressões associadas a uma apropriação pessoal do espectáculo” foi construída com base nos ítems “monotonia”, “ruído”, “ambiente invulgar” (Praia da Luz), “comunicação”, “monotonia”, “harmonia/calma/bem‑estar/prazer”, “alegria/ritmo/animação”, “interrupção da rotina e das preocupações” (B Flat) e ainda “Paz/bem‑estar/relaxamento”, “energia/alegria/simpatia”, “emoção”, “ajuda a viver”, “revolta face à sociedade”, “escuridão/morte”, “caos”, “moderno/criativo/variado/original”, “depressão/mundo cruel” (Rivoli).
[1123] Vd. Jorge Vala, art. cit., p. 10.
[1124] Vd. Read Bain citado por Jacques Leenhardt, “Recepção da obra de arte” in Mikel Dufrenne (org.), A estética e as Ciências da Arte, Amadora, Bertrand, 1982, p. 73.
[1125] Idem, ibidem.
[1126] Vd. Russell W. Belk, “La consommation symbolique d'art et de culture” in AAVV, Économie et Culture, Paris, La Documentation Française, 1987, p. 136.
[1127] “A mesma obra de arte pode provocar múltiplas respostas num mesmo indivíduo”, vd. Idem, ibidem.
[1128] Vd. Yves Evrard, “Les déterminants des consommations culturelles” in AAVV, Économie et Culture, ed. cit.
[1129] Vd. Pierre Bourdieu, Sobre a Televisão, Oeiras, Celta Editora, 1997, p. 10.
[1130] Idem, ibidem.
[1131] Idem, ibidem, p. 15.
[1132] Vd. Robert Francès, op. cit., p. 122.
[1133] Idem, ibidem, p. 124.
[1134] Vd. Diana Crane, The Production of Culture. Media and the Urban Arts, Newbary Park, Sage, 1992.
[1135] Vd. a este respeito Mike Featherstone, Consumer Culture and Postmodernism, London, Sage Publications, 1996.
[1136] Vd. Diana Crane The Production of Culture. Media and the Urban Arts, Newbary Park, Sage Publications, 1992, p. 112.
[1137] Cf. a este respeito a obra de Mike Featherstone, Undoing Culture. Globalization, Postmodernism and Identity, London, Sage Publications, 1995, em especial capítulo 4.
[1138] Vd. Jim McGuigan, Culture and the Public Sphere, London, Routledge, 1996, p. 102.
[1139] Vd. José Bragança de Miranda, "Modernidade, espaço público e conflito de nomeações" in Revista de Comunicação e Linguagens, nº 2, 1985, pp. 16‑17.
[1140] Vd. Jurgen Habermas, "A nova opacidade: a crise do estado‑providência e o esgotamento das energias utópicas" in Revista de Comunicação e Linguagens, nº 2, 1985, p. 116.
[1141] Idem, ibidem, p. 128.
[1142] Vd. Adriano Duarte Rodrigues, "O público e o privado" in Revista de Comunicação e Linguagens, nº 2, 1985, p. 14.
[1143] Citado por Jim McGuigan, Culture and the Public Sphere, London, Routledge, 1996, p. 103.
[1144] Mike Featherstone é um dos mais argutos teóricos do pós‑modernismo. Na sua obra poderemos encontrar um desenvolvimento adequado destas tendências, bem como o adoptar de uma posição singular que se distancia da vulgata pós‑moderna, vd. Consumer Culture and Postmodernism, London, Sage Publications, 1996 e ainda Undoing Culture, London, Sage Publications, 1995. Para uma síntese crítica, vd. David Harvey, Condição Pós‑Moderna, São Paulo, Edições Loyola, 1992.
[1145] Vd. Anthony Giddens, As Consequências da Modernidade, Oeiras, Celta Editora, 1992, p. 116.
[1146] Cf. a este respeito, do mesmo autor, Modernidade e Identidade Pessoal, Oeiras, Celta Editora, 1994.
[1147] Vd. "Entrevista com Jurgen Habermas: a dialéctica da racionalização" in Revista de Comunicação e Linguagens, nº 2, 1985, p. 162.
[1148] Idem, ibidem, p. 163.
[1149] Vd. Richard Sennett, The Fall of Public Man, New York, Norton, 1992.
[1150] Vd. Christopher Lasch, "Consumo, narcisismo e cultura de massas" in Revista de Comunicação e Linguagens, nº 2, 1985, p. 134.
[1151] Idem, ibidem, p. 138.
[1152] Vd. David Harvey, op. cit., p. 308.
[1153] Vd. David Harvey, op. cit., p. 319.