A CIDADE E A CULTURA

UM ESTUDO SOBRE PRÁTICAS CULTURAIS URBANAS

 

João Teixeira Lopes, Universidade do Porto

 

Dissertação de Doutoramento em Sociologia [1]

Porto, Novembro de 1998

 

À memória de minha Avó, Eufrásia Pedro Teixeira Lopes,

sereno exemplo de dignidade

 

"The times they are a-changin"

Bob Dylan

 

"Eu não gosto do bom gosto

Eu não gosto do bom senso

Eu não gosto dos bons modos

Não gosto

 

Eu aguento até rigores

Eu não tenho pena dos traídos

Eu hospedo infratores e banidos

Eu respeito conveniências

Eu não ligo pra conchavos

Eu suporto aparências

Eu não gosto de maus tratos

...

Eu aguento até os modernos

E seus segundos cadernos

Eu aguento até os caretas

E suas verdades perfeitas

 

O que eu não gosto é do bom gosto

...

Adriana Calcanhoto, Senhas

 

 

 

INTRODUÇÃO

FUGA E PARTITURA

OU UMA METÁFORA PARA UMA DISSERTAÇÃO

 

“I should imagine that this kind of writing might make many and perhaps most of the readers of La Distinction and of this book feel uncomfortable or angry. He is talking about us or, at least, people like us.”

Jim McGuigan, Culture and the Public Sphere

 

Este é um trabalho de natureza científica. Obedece a cânones e a protocolos de regras mais ou menos rígidos. Mas encontra-se vulnerável a uma certa margem de imprevisto. Se, inicialmente, o nosso objecto consistia na análise dos públicos urbanos, das suas práticas e dos modos de recepção, em cenários de interacção diferenciados, cedo nos apercebemos do carácter restrito de tal intenção. De facto, subjacente a esta delimitação, encontra-se um conceito fundamental: o trabalho de mediação exercido pela esfera simbólica no decorrer dos processos de mudança social. Mais do que mero interface ou zona de fronteira, falamos, afinal, de uma mediação dialéctica, capaz de transformar os campos que coloca em interacção, ao mesmo tempo que a si mesma se modifica[2]. Aliás, a esfera simbólica remete-nos para um jogo de espelhos entre uma face visível e uma outra recôndita – a evocação de algo ausente. Tornar esse ausente presente é uma das motivações da análise sociológica do simbólico. Se é verdade que a ordem simbólica é um veículo de expressão das sociedades, um conjunto de representações que os agentes sociais elaboram a propósito de si mesmos, da sua interrelação e do mundo em que habitam, então essa esfera transporta consigo os processos de construção de sentido. Mas não se trata de um sentido puramente abstracto, formal ou categorial. Existe uma correspondência, não automática, não semelhante à reprodução em duplicata, face ao real e às práticas sociais. Desta forma, estudar o simbólico e a complexa cadeia do sentido, reenviar-nos-á, simultaneamente, para o homem concreto e real, condicionado pelas suas condições materiais de existência e para o sujeito autónomo, reflexivo, inventivo e imaginativo que, aproveitando brechas, campos de possíveis ou mesmo subvertendo e alargando estreitas margens de manobra, constrói quotidianamente a sociedade e o próprio real, afastando-se do modelo do “sonâmbulo social”, dependente e encarcerado pelas configurações sociais onde se move.

O itinerário teórico que delineamos no capítulo I (com seguimento, no capítulo II, em termos de teorias de médio alcance que fazem o debate contemporâneo), viagem pelo estudo do simbólico com direito a paragens para esclarecimento e acréscimo de visibilidade, tendo por ponto de chegada (e simultaneamente eterno ponto de partida...) a descoberta da complexidade e as teorias que com ela lidam (damos apenas quatro significativos exemplos que têm o mérito de recuperar, superando-o, praticamente todo o património teórico acumulado ao longo do percurso), leva-nos a não encalhar nos dilemas “anterioridade do sujeito versus anterioridade do social”, “conhecimento versus acção”, “sujeito versus objecto”, “actividade versus reactividade, etc.[3].

Em suma, se é verdade que uma sociologia da cultura e do simbólico deixaria de ser sociologia se aceitasse de antemão a autonomia total da cultura e do simbólico (enquanto estruturas de sentido auto-suficientes cuja compreensão seria necessariamente interna[4]), não é menos verdade que seriam tudo menos culturais e simbólicos, os fenómenos estritamente isomórficos da base societal e dela totalmente prisioneiros. Esta concepção encontra-se magnificamente ilustrada pela metáfora do homem como “músico de jazz”, proposta por certas correntes da psicologia social: capaz de criar “uma verdadeira fuga e improvisação, que tem uma beleza e harmonia próprias”, a acção do sujeito não está todavia “desligada do tema proposto pelo seu encontro com o ambiente, mas que não reflecte, como se seguisse uma partitura”[5]. Corrigiríamos: “nem sempre reflecte”. Por vezes, quando a partitura é rígida e não permite experimentações, a melodia segue-a de muito perto. No entanto, mesmo nessas situações, dois intérpretes distintos construiriam duas “leituras” diferentes dessa mesma partitura (é o que tentamos defender quando falamos no trabalho dissimulado de produção patente na recepção cultural e nos vários usos que se dão à cultura, como de resto se encontra patente nos capítulos III e XII). Melodia e partitura, texto e contexto, caminham lado a lado. Um requer o outro. Parafraseando Giddens, diríamos que não são dualismos, mas dualidades.

Admitem-se, no entanto, situações de rápida mutação social, em que as partituras são parcialmente esquecidas, realçando-se o carácter aberto, plurívoco, ambivalente e aparentemente indeterminado das interpretações sociais. Segundo a leitura dos dados que constam das contextualizações e enquadramentos que fazemos nos capítulos V, VI e VII, estamos na crista de uma dessas vagas de mudança. No entanto, quem aprendeu a partitura jamais a esquecerá e, por formas tantas vezes inusitadas e surpreendentes, a improvisação revela-se, afinal, contida dentro de certos parâmetros. A força da partitura e a irrupção da fuga e da improvisação, bem como o jogo que entre elas se estabelece, encontram-se expostos no capítulo XI que deve ser lido em conjunto com boa parte da reflexão conclusiva (termo um tanto ou quanto absurdo para terminar uma dissertação, em especial quando ela nos inquieta mais do que nos reconforta em certezas ou verdades inolvidáveis), designadamente ao propor-se a existência de um “continuum chamado (pós)modernidade” (capítulo XIII) e a localização (em termos de tempo, espaço e estrutura social) dos movimentos de mudança social.

Um dos exemplos porventura mais desenvolvidos prende-se com as representações sociais da noite. Como se terá ocasião de constatar, a partir da segunda parte do capítulo X, os discursos sobre a noite são multivocais, salientando ora os constrangimentos que impedem uma intensificação das saídas nocturnas (em boa parte associados aos recursos de que os agentes dispõem), ora as possibilidades de afirmação de identidade, mútuo desvendamento e autenticidade.

Convém explicitar, no entanto, de que práticas ou, seguindo o fluir da metáfora, de que música nos ocupamos. Chamar-lhes urbanas não nos parece ser um delito grave, mesmo estando conscientes da crescente substituição das velhas dicotomias que cortam em dois o território por metáforas de redes e fluxos, próprias de um mosaico de situações. Afinal, a música anónima de um saxofone que se escuta numa esquina de duas ruas cosmopolitas será sempre diferente da flauta pastoril...

Ao longo de toda esta dissertação, mas em particular no capítulo IV, tentaremos reflectir sobre a recomposição do espaço urbano e sobre as suas consequências ao nível da esfera pública e das relações que desenvolve com o domínio privado, das políticas culturais, da imagem de cidade e das práticas sociais que nela se desenrolam. Este processo está igualmente longe de ser unívoco, existindo contradições várias e incontornáveis, em especial quando o discurso da “recuperação e enobrecimento urbano” esquece as transformações do espaço público e a emergência de uma “sociedade dual”.

 Ocupar-nos-emos, igualmente, embora de forma breve, com a história da cidade onde se desenrola e tece o enredo desta dissertação (capítulo VIII). Numa época em que a globalização é um lugar comum, mas em que se reavivam, por oposição, localismos e paroquialismos vários, nada como a temporalidade para traçar linhas de continuidade e ruptura, identificar persistências estruturais, dar o devido valor a conjunturas ou episódios esporádicos. Os capítulos V, VI, VII e VIII, no seu conjunto, fornecem as coordenadas espácio-temporais desta dissertação, a partitura dentro da qual certas interpretações se tornam mais plausíveis do que outras.

Foi dentro deste espírito de equilíbrio tenso, de procura de sínteses e complementaridades, sem forçar ao desaparecimento artificial de movimentos de justaposição e/ou conflitualidade entre tendências contraditórias, que organizamos a nossa pesquisa. Os caminhos metodológicos (capítulo IX) traduzem esse mesmo espírito de não recusar à partida a conjugação daquilo que surge como incontornável aporia. Assim, ao accionarmos a “imaginação metodológica”, usufruímos da combinação de abordagens qualitativas e quantitativas, intensivas e extensivas, “duras” e “moles”, única forma, afinal, de respeitar a especificidade de cada dimensão do objecto de estudo. Umas requerem aproximações interpretativas, minuciosas, “internas”; outras exigem enquadramentos estruturais e institucionais. Umas e outras não são independentes, tão-pouco se bastam a si mesmas. Possuem um carácter relacional, característica fundadora da complexidade do objecto de estudo.

Nada disto é novo e constitui já uma saudável rotina do discurso sociológico. Mesmo a investigação empírica, um passo aquém todavia, fornece cada vez mais exemplos destas fecundas imbricações.

Reivindicamos, ainda assim, um pouco de originalidade. Não acreditamos que a produção científica em ciências sociais se limite, como alguns defendem, a um exercício de intertextualidade. Os discursos científicos sobre o social são distintos dos textos literários, bebendo no racionalismo aplicado de Bachelard a fonte dessa especificidade.

A nossa abordagem das práticas culturais pretende actualizar criticamente as teorias legitimistas do campo cultural patentes na obra de Bourdieu (claramente desactualizada face às transformações que se vêm verificando quer na produção cultural, quer no consumo, desde os anos 80), com a ajuda de recentes reflexões sobre os novos mundos da cultura e o estudo da recepção, ofício que requer um praticante cultural e não um mero consumidor. A pluralidade das culturas urbanas, a sua variação consoante os cenários de interacção (razão que nos leva a insistir em três estudos de caso), a emergência de novos padrões de gosto e a sua ligação quer a significativas alterações da estrutura social portuguesa (e portuense), quer à centralidade expressiva das redes de sociabilidade, impelem-nos a um questionar de relações anteriormente estabelecidas em universos sociais mais estáticos, menos sujeitos à circulação da novidade e mais cristalinos quanto à correspondência entre práticas e classes sociais. A harmonia desse espaço social ordenado em nítidas hierarquias, e fundado em arbitrários dissimulados, constituiu um desafio poderoso a uma sociologia da cultura de intuitos críticos e desmistificadores. No entanto, a emergência de novas lógicas sociais, tornando mais opaca a ligação entre interpretação e partitura, para manter a metáfora, envolve-nos no compromisso de manter elevada a imaginação sociológica.

Hoje, coloca-se amiúde a questão do “valor” da cultura, ou do que falamos quando falamos de cultura. Terá validade a iconoclasta afirmação do niilista russo Pisarev, de que “um par de botas equivale a Shahespeare”? A partir do urinol Fonte de Duchamp e das sopas Campbell de Warhol, esta questão torna-se evidente no campo artístico. Mas ela é uma invariante da história desse campo: o que deve, num dado momento e numa sociedade determinada, ser considerado como Arte? Da mesma maneira, a questão reaparece no domínio das práticas culturais, com o discurso catastrofista do nivelamento cultural, ou com a aura optimista da “ideologia pluralista”. Baudrillard refere-se a este propósito à “mercadoria absoluta”; mais mercadoria do que a própria mercadoria, fundada no “êxtase do valor”: triunfo da equivalência, indiferença perante a questão do valor, maximização de todos os estilos. Em suma, se tudo é arte, a arte morre. Por um raciocínio paralelo, se tudo é cultura (“anything-goes culture”), a cultura desaparece, nada restando senão as suas carpideiras (os “apocalípticos” de Eco), ou os seus bacantes festivos (os “integrados”).

Não cremos que a cultura tenha morrido. Caso contrário, de nada serviria este trabalho, a não ser como elegia de um passado que se revisita com nostalgia. De qualquer modo, sobre essa polémica não adiantaremos muito mais. Guardamos intactos os nossos juízos de valor. É um debate que não comandamos, que não queremos comandar embora possamos porventura esclarecê-lo, situando os pontos em discussão. Antes de mais, explicitando que a questão do valor nos remete para os quadros de referência, os discursos e as práticas dos agentes. Precisando em seguida um pouco melhor, ao acrescentarmos que esses esquemas de análise, essas representações e essas acções são pontos de vista em relação (Bourdieu, teoria do campo). Finalizando a incompleta intervenção, com a consideração de que constituem o objecto por excelência da sociologia da cultura. Por outras palavras, as condições sociais em que surgem as questões do valor são, antes de mais, uma questão de pesquisa empírica.

Renunciamos a um ponto de vista soberano. Não renunciamos, no entanto, (e mantemos ainda a metáfora...), a analisar com a mesma minúcia e empenho analítico, a relação aparentemente mundana e trivial que os sujeitos mantêm com uma canção pop da moda, ou as formas subtis de recepção do que outrora se chamava a música com maiúscula.

 

CAPÍTULO I

ITINERÁRIO TEÓRICO EM TORNO DA PRODUÇÃO DOS FENÓMENOS SIMBÓLICOS

 

          No estudo da relação entre os fenómenos culturais e a estrutura social, têm os primeiros sido vítimas de um erro teórico fundamental: ora são considerados como uma entidade autónoma e desligada dos enraizamentos societais, ora são reduzidos a um mero epifenómeno de outras instâncias com “verdadeiro” poder explicativo, como se fosse possível hierarquizar os diferentes campos da actividade humana em instâncias estanques e incomunicáveis. Estas duas concepções funcionam, de facto, como irmãos gémeos, uma sendo o espelho antinómico da outra, mas em ambos os casos dissolvendo‑se o que seria a especificidade da ordem simbólica.

          Como Clifford Geertz refere, tentando explicar um atraso relativo das componentes culturais, no estudo das relações entre a estrutura social e a ordem cultural, é “mais difícil lidar cientificamente com as ideias do que com as relações económicas, políticas e sociais”[6]. Duplamente difícil (e encontrando‑se, por isso, numa situação duplamente periférica) é a análise das formas culturais anódinas e quotidianas, já que estas se movem, por definição, no terreno do implícito, do não sistemático, do não‑dito, do não discursivo.

          Para este efeito, terá contribuído uma deficiente (porque não totalmente sistemática) e conflitual abordagem do simbólico por parte dos “clássicos” fundadores da sociologia, a quem sempre regressamos quando se trata de delinear um qualquer itinerário teórico.

          No entanto, grande parte do que hoje se escreve a respeito dos clássicos resulta, muitas vezes, de abordagens descontextualizadoras do sentido da sua obra, ou então, aspecto mais grave, de leituras em segunda ou terceira mão, o que, tendo aparecido como resultado de uma bricolagem teórica, nos aconselha a um prudente regresso ao original.

          A sociologia jamais abandonou, salvo raras excepções, os seus grandes mestres. Aliás, muita da conflitualidade teórica interna encontra‑se já em incubação nas obras de cada um deles, assumindo mesmo, como no caso de Max Weber, a obsessão de um diálogo constante e implícito com Karl Marx.

          Este “ir beber à fonte” não acalenta a esperança de “descobrir” o que ainda não foi descoberto. Trata‑se, apenas, de fazer regressar a conflitualidade sobre os fenómenos simbólicos, não ao seu ponto de partida, tarefa que seria inglória, mas aos pensadores que mais directamente se ligam à moderna teoria social, mesmo que esta não reivindique explicitamente a sua herança.

 

          1. Ponto de partida: a trilogia dos fundadores.

          1.1. Karl Marx e o materialismo histórico

 

          Ao falar‑se de Marx e do materialismo histórico, ocorre‑nos sempre a estereotipada ligação entre a infraestrutura, o conjunto das relações sociais de produção, e o seu reflexo legitimador, a superestrutura, onde se enquadram as formulações políticas, jurídicas, ideológicas, religiosas; as ideias, se preferirmos, ou a cultura em sentido lato.

          Para esta visão simplificadora, muito contribuiu, por omissão, o próprio autor, apesar do esforço posterior de Engels para esclarecer e “suavizar” o aparelho conceptual marxista.

          A análise do “movimento histórico das relações de produção” e o combate às teses idealistas constituem o motor da produção teórica marxiana. De facto, o paralelismo quase isomórfico que se estabelece entre a produção material e a produção intelectual, resulta, precisamente, da sua concepção de praxis e de mudança social enquanto efeito das contradições e conflitos entre as forças produtivas e as relações sociais de produção.

          Karl Marx recusa a absolutização dos conteúdos intelectuais e culturais, combatendo todas as abstracções da razão pura desligadas das relações humanas reais e concretas:

          “As relações sociais estão intimamente ligadas às forças produtivas. Adquirindo novas forças produtivas, os homens modificam o seu modo de produção, e modificando o seu modo de produção, a sua maneira de ganhar a vida, eles modificam todas as suas relações sociais (...) Os mesmos homens que estabelecem as relações sociais de acordo com a sua produtividade material, produzem também os princípios, as ideias, as categorias, de acordo com as suas relações sociais. Assim, estas ideias, estas categorias, são também tão pouco eternas quanto as relações que elas exprimem. Elas são produtos históricos e transitórios”[7].

          Em A Ideologia Alemã, Marx e Engels são extremamente claros na crítica aos jovens hegelianos, denunciando tudo o que neles contribui para a autonomização ilusória das representações, ideias e conceitos, esquecendo, deliberadamente ou não, a ligação existente entre essas formas mentais e a realidade histórica (o “meio material”): “Nenhum destes filósofos se lembrou de perguntar qual seria a relação entre a filosofia alemã e a realidade alemã, a relação entre a sua crítica e o seu próprio meio material”[8]. Para estes autores, a produção mental depende, inequivocamente, das relações sociais que os indivíduos mantêm no quadro de uma determinada actividade produtiva. Esta é a realidade, ou seja, a forma “como actuam partindo de bases, condições e limites materiais determinados e independentes da sua vontade”[9]. Torna‑se assim explícito que as categorias mentais não são mais do que a “linguagem da vida real”, invertendo‑se, por conseguinte, o nexo causal defendido pelos idealistas alemães: são os homens reais, isto é, os indivíduos inseridos num determinado modo de produção quem produz as ideias e não o contrário: “Contrariamente à filosofia alemã, que desce do céu para a terra, aqui parte‑se da terra para atingir o céu”[10]. Por outras palavras, “não é a consciência que determina a vida, mas sim a vida que determina a consciência”[11]. Nada poderia ser dito de forma tão precisa, eliminando, de uma só vez, a possibilidade de existência autónoma das religiões, da moral, da metafísica e mesmo do Estado. A ideologia tende a surgir, então, como mistificação, “falsa consciência”, espelho inverso da realidade, negação da verdade das condições materiais de existência. Na mesma linha, a ideologia dominante é a expressão da posição das classes dominantes, as quais, por possuírem os meios de produção material são também detentoras dos meios de produção intelectual, através dos quais apresentam os seus pensamentos e ideias particulares como sendo universais e únicos: “Os pensamentos dominantes são apenas a expressão ideal das relações materiais dominantes concebidas sob a forma de ideias”[12].

          No entanto, Marx e Engels complexificam o seu sistema teórico ao centrarem o essencial da sua proposta na actividade humana criadora. As ideias não são abstracções nem produtos da pura lógica, porque foram construídas na e pela acção humana historicamente situada. Tão‑pouco os homens aparecem desprovidos de consciência, como se fossem recipientes vazios. O que Marx pretende, segundo algumas interpretações, é, afinal, a consagração do princípio da determinação/construção social da actividade intelectual, o seu carácter específico e irredutivelmente humano[13]. Por isso, critica em Feuerbach o conceito de Homem, preferindo falar dos “homens de carne e osso” — “os homens históricos reais”, detentores de uma “consciência real, prática”, existente sob a forma de linguagem e intimamente dependente da actividade social.

          Marx pretende ser, antes de mais, o historiador de uma “história real, profana”, restituindo aos homens o seu papel de “autores e actores do seu próprio drama”[14], quando à sua época vingavam as descrições pormenorizadas sobre epopeias e feitos heróicos das grandes figuras e dinastias, e os filósofos reinavam no vazio das “grandes ideias”. A sua tese fundamental é, pois, a de que as circunstâncias históricas em que decorre a actividade humana a influenciam de forma irremediável, condicionando a percepção e a interpretação da realidade.

          Não se pretende reduzir aqui o marxismo a um humanismo bem intencionado. Mas não podemos deixar de criticar um outro reducionismo, esse muito mais frequente: o de equiparar o marxismo a um economicismo determinista que reduz tudo o resto a um pálido reflexo da base suprema da realidade.

          Engels, já o dissemos, apressou‑se a combater essa interpretação simplista do legado de Marx, acentuando a possibilidade de um “efeito de retorno” da superestrutura sobre a infraestrutura, introduzindo o célebre conceito da “determinação em última instância”[15]. Mas o próprio Marx (isoladamente ou em parceria com Engels) enfatizou, inúmeras vezes, o carácter activo da existência humana, tido como o principal traço distintivo da espécie. Não é de admirar, por isso, que Marx e Engels admitam a contínua modificação de “forças de produção, de capitais e de circunstâncias” através das sucessivas gerações: “(...) por consequência, é tão verdade serem as circunstâncias a fazerem os homens como a afirmação contrária”[16].

          Considerar que o contributo marxista se reduz a uma engrenagem teórica mecânica de explicação das sociedades é esquecer a pedra de toque do seu pensamento: a dialéctica, a recusa das noções abstractas e vazias, a constante referência à circunstância de o homem ser, simultaneamente, produto e produtor da sua história. Althusser realça em especial este ponto: apesar de se opor à dialéctica enganadora de Hegel, Marx deixa intacto o sentido da dialéctica em si, dela expurgando as marcas idealistas. Desta forma, é errado pensar‑se que a contradição é uma unidade simples. Existe, isso sim, uma acumulação de “circunstâncias” ou “contradições”, algumas de cariz “radicalmente heterogéneo” e actuando, por conseguinte, em sentidos opostos[17]. Impossível conceber um modelo economicista ou tecnologicista, já que tal seria equivalente ao “princípio espiritual eterno” presente na dialéctica hegeliana que Marx tão veementemente criticou. Assim, a dialéctica Capital/Trabalho não se apresenta como um esquema simples e unidireccional, sendo “sempre especificada pelas formas e as circunstâncias históricas concretas nas quais se exerce”[18], nomeadamente — e aqui Althusser mostra a sua preocupação com a importância das situações conjunturais — as configurações da Superestrutura (Estado, ideologia, religião, movimentos políticos organizados, etc.) e a situação histórica interna e externa (esta última cada vez mais importante em contextos de mundialização). Para este autor, sobredeterminação é o conceito que melhor exprime a complexidade da dialéctica marxista, recusando qualquer tipo de determinismo unidireccional e aproximando‑se, por conseguinte, de um modelo circular de influências recíprocas: “Em Marx a identidade tácita (fenómeno — essência — verdade...) do económico e do político desaparece em benefício de uma nova concepção da relação das instâncias determinantes no complexo estrutura‑superestrutura que constitui a essência de qualquer formação social (...) de uma parte a determinação em última instância pelo modo de produção (económico); de outra parte a autonomia relativa das superestruturas e a sua eficácia específica[19]. Não existe, em Marx, uma dialéctica económica em sentido puro. A sua análise reenvia‑nos, constantemente, para a complexidade das relações recíprocas entre estruturas sociais e formas de pensamento. A recusa dos princípios redutores é essencial na sua obra, bem como a crítica mordaz à economia política e à abstracção e desumanização patentes no seu conceito de homo oeconomicus, enquanto justificação ideológica de um particular modo de produção.

          Mas, apesar do pensamento marxiano ser ele próprio complexo e contraditório, em muito influenciado pelas circunstâncias históricas da sua época (que lhe exigiam uma retórica de mobilização rápida e eficaz das classes trabalhadoras), coaduna‑se o seu núcleo‑duro com esta “releitura”? Dito por outras palavras, ao ser desta forma interpretado, não encontraremos mais facilmente Althusser do que o próprio Marx? O debate vem já dos anos sessenta e seria descabido desenvolvê‑lo aqui.

         

          1.2. Émile Durkheim e a tendência para a reificação da sociedade

 

          Ao contrário do que uma visão superficial possa sugerir, existem algumas similitudes entre o pensamento de Durkheim e o pensamento marxiano, apesar do menosprezo por parte do primeiro quanto à constituição de uma sociedade dividida em classes, aspecto essencial para o materialismo histórico[20].

          De facto, tanto Durkheim como Marx recusam a ideia de que se possa encontrar no indivíduo, nas suas ideias ou na sua consciência, a chave explicativa da actividade social, procurando na sociedade e nas relações sociais os factores de explicação da conduta humana[21]. Ambos reiteram o princípio da não consciência e do primado das relações sociais. Como refere José Machado Pais, “Durkheim adopta o lema escolástico individuum est ineffabile, isto é, do que é individual não pode falar‑se”[22]. Aliás, os indivíduos são tidos como tendencialmente egoístas, o que requer uma coordenação que os transcenda e que parta de interesses comuns, assegurando o objectivo primordial de manutenção da coesão social.

          Nesta linha, Durkheim considera que as representações e as significações são socialmente construídas, colocando uma ênfase especial na sua partilha através dos processos de integração social e de formação de uma consciência colectiva. Desta forma, as ideias e os sentimentos são irredutíveis aos indivíduos, devendo ser considerados como produtos impessoais, isto é, socialmente construídos. A consciência colectiva, aliás, é por Durkheim considerada como um “composto”, superiormente formado acima das mentes individuais. Ao ter vida própria, jamais depende dos estados de consciência subjectivos, seguindo a evolução das suas próprias leis e assumindo um carácter universal. A consciência colectiva existe sempre, em qualquer estado societal. É célebre a tese de Durkheim sobre a divisão social do trabalho[23], de acordo com a qual a passagem de um tipo de solidariedade mecânica (baseada na submissão das consciências individuais a um “tipo psíquico comum de sociedade”) à solidariedade orgânica (assente na especialização das tarefas, na diferenciação dos papéis sociais e, por conseguinte, na complementaridade entre indivíduos mutuamente dependentes) não implica um enfraquecimento da coesão social, nem tão‑pouco o desaparecimento da consciência colectiva. Ambos os tipos de solidariedade respondem, pois, à mesma finalidade, ainda que por vias opostas: a reafirmação da ordem social e moral. Assim, se é verdadeira a constatação de um declínio da religião nas sociedades contemporâneas (fenómeno extremamente ligado ao enfraquecimento da solidariedade mecânica), não é menos verdade que outros “substitutos funcionais” se institucionalizarão[24]. A sociedade assumirá sempre, perante os indivíduos, um cunho sagrado. Aliás, segundo o autor, o “culto do indivíduo” em torno do qual giram as modernas sociedades, está intimamente ligado aos princípios morais da ética cristã, apesar do reconhecimento da existência provisória de um “hiato moral”, o que exige a refundação de rituais e símbolos.

          Desta forma, os factos sociais são exteriores ao indivíduo exercendo sobre ele um poder coercitivo. Exteriores porque anteriores, resultado de um permanente processo de aprendizagem e de interiorização de uma moral superior através de processos educativos. Para Durkheim, e como refere Giddens, “a análise funcional de um fenómeno social implica o estabelecimento de uma correspondência entre o social e as ideias colectivas”[25]. Assim, tal como em Marx, encontramos no autor francês uma clara afirmação da dependência das ideias, representações e fenómenos mentais face aos processos sociais que estão na sua génese: “Para compreender a maneira como a sociedade se representa a si própria e ao mundo que a rodeia, é a natureza da sociedade, e não a dos particulares, que devemos conceber. Os símbolos com que ela se pensa mudam de acordo com o que ela é”[26]. Todas as categorias do pensamento são construções sociais, sendo de alguma forma o resultado da morfologia institucional de uma dada sociedade. Desta forma, o autor rejeita as teses filosóficas que defendem o apriorismo dos conceitos e ideias. No entanto, este ponto não se afigura totalmente claro, uma vez que Durkheim, ao falar da exterioridade e do constrangimento que os fenómenos sociais (incluindo as ideias e as representações) exercem sobre o indivíduo, refere, como já mencionámos, que eles são‑lhe, ao mesmo tempo, anteriores, preexistindo‑lhe. Aliás, é precisamente por esse mesmo facto (a anterioridade) que podem ser considerados exteriores ao indivíduo. De qualquer forma, existe aqui a margem de ambiguidade suficiente para que se possa falar de um idealismo não desejado no pensamento durkheimiano – as ideias e as representações antes do indivíduo.

          Essa mesma ambiguidade persiste quando analisamos a correspondência entre os fenómenos culturais e os processos societais. Apesar de os primeiros estarem dependentes da evolução dos segundos, não podemos apressadamente afirmar a existência de um “materialismo mecânico” em Durkheim. É o próprio que afirma que “a consciência colectiva é (...) algo mais do que um mero epifenómeno da sua base morfológica, tal como a consciência individual é algo mais do que uma simples eflorescência do sistema nervoso”[27]. Além do mais, a sociedade está em permanente devir, resultando da interdependência de instituições e agrupamentos. Assim, e mesmo considerando uma tendência fixista da ordem social (já que todas as categorias são produto da sociedade, entendida como um Ser com identidade própria), Durkheim aceita a evolução social.

          A ambiguidade continua a existir na própria concepção de actor social. Apesar de os reduzir frequentemente a uma espécie de robots sem vontade própria nem intencionalidade, ocasiões existem em que as motivações pessoais dos actores adquirem um papel relevante. De qualquer forma, é clara em Durkheim a tentação de reificação e mitificação do “organismo social”, caindo, por isso mesmo, no que Augusto Santos Silva apelida de “posição espiritualista”[28], ao construir uma espécie de “metafísica da sociedade”, considerando esta como uma entidade ontologicamente superior ao indivíduo e irredutível à sua soma. O conceito de totalidade é, para este autor, a “categoria por excelência”, assumindo “indubitavelmente uma concepção holística e sistémica” e “situando‑se numa corrente de pensamento sociológico vulgarmente designada por estrutural‑funcional”[29]. Esta “crença” numa realidade superior leva Machado Pais a falar num sentimento de sagrado patente na teoria durkheimiana; um sagrado “que dá sentido à ordem do mundo” e que apenas os sociólogos, detentores de um habitus científico rigorosamente controlado poderão conhecer e explicar, descobrindo e formulando as leis do seu funcionamento[30]. Conhecimento que se torna, por isso, esotérico, distanciado do senso comum e assente “na consolidação de corpos doutrináveis”, no “culto prioritário de «cortes epistemológicos»”, em “formas elementares de religiosidade (dogmática)”[31].

          Ainda assim, o próprio Durkheim, alimentando uma vez mais equívocos e incertezas, num movimento que vai do radical sociologismo a posições consideravelmente mais moderadas, considera que o indivíduo tem um papel importante na génese das “maneiras colectivas de agir e de pensar”: “Pelo facto de as crenças e as práticas sociais nos chegarem do exterior, não quer dizer que as recebamos passivamente e sem as submetermos a modificações. Ao pensarmos as instituições colectivas, ao assimilá‑las, individualizamo‑las e incutimo‑lhes em maior ou menor grau o nosso cunho pessoal, é assim que, ao pensarmos o mundo sensível, cada um de nós lhe dá um colorido à sua maneira e que sujeitos diferentes se adaptam de um modo diferente a um mesmo meio físico. Eis porque cada um de nós cria, em certa medida, a sua moral, a sua religião, a sua técnica. Não há conformismo social que não comporte toda uma gama de matizes individuais. O que não impede que o campo das variações permitidas seja limitado”[32].

          Afinal, a liberdade individual está longe de ser aqui negada, aparecendo mesmo, noção que muitos autores irão mais tarde desenvolver, como um campo limitado de possíveis. Se esta nota de rodapé figurasse no corpo principal do texto, talvez Durkheim (e com Durkheim a própria abordagem sociológica) não fosse tão frequentemente acusado de um anti‑individualismo e de um sociologismo radicais.

          No entanto, há que contextualizar a produção teórica durkheimiana no jogo de forças dos subcampos académico e científico de início do século. A atitude “imperialista” de unificar os procedimentos de conhecimento do social é indissociável da necessidade de conferir legitimidade institucional à análise sociológica, convenientemente delimitada da psicologia, da filosofia social e do direito. Daí a explicitação do método, a definição dogmática de um caminho, a clarificação rigorosa de fronteiras “entre a natureza e a história; o racional e o irracional; o sagrado e o profano; o normal e o patológico; entre a ciência e a metafísica; entre sapiens e demens[33]; a obsessão da procura da ordem, coerência e regularidade do tecido social, sem margem para desvios subjectivistas ou tentações de ecletismo.

          Importa, ainda, referir uma outra limitação do modelo durkheimiano. Se, de facto, todas as representações colectivas (filosofia, religião e a própria ciência) e crenças tendem a ser funcionais, no sentido de obediência à integração na realidade social colectiva, então há que levar tal raciocínio até às suas últimas consequências. O que implica, nomeadamente, o reconhecimento dos “limites presentes na ciência, como forma parcial de conhecimento ligada a contextos sociais específicos”[34]. Por outras palavras, subsiste a ilusão de um conhecimento independente do sujeito que conhece, como se este, com o seu quadro de representações, valores e pressupostos, não interferisse no próprio processo de observação.

          Em suma, para o autor a cultura e as formas simbólicas em geral são indissociáveis da própria sociedade. Nas palavras de Franco Crespi, “quando Durkheim se refere a esta última, pensa, de facto, nas formas culturais (representações, normas, modelos de comportamento, etc.), que a constituem na sua objectividade relativamente independente”[35]. Concepção que, se por um lado exerceu uma notável influência em posteriores modelos teóricos de base não psicologista, contribuiu, por outro lado, para o esquecimento da força expressiva do agir social e da importância dos processos de interacção social e de reconhecimento do e pelo outro na construção de identidade[36].

 

          1.3. Max Weber e a produção de sentido

 

          Ao contrário de Karl Marx e de Émile Durkheim, encontramos em Max Weber uma clara subordinação do objecto face ao sujeito, bem como a afirmação da especificidade da conduta humana e da ordem cultural. Aliás, a análise da obra de Weber afigura‑se de uma importância acrescida se pensarmos que ela exerce, mais do que os outros autores referidos, uma importância decisiva na teoria social contemporânea.

          A grande revolução conceptual de Weber, tanto mais ousada quanto nela haveria a tentação de afirmação da análise sociológica, face, designadamente, à psicologia e à filosofia, encontra‑se desde logo na definição da própria disciplina: “uma ciência que pretende entender, através da interpretação, a acção social para assim a explicar causalmente no seu desenvolvimento e nos seus efeitos”[37]. Por acção entende‑se toda a conduta a que o sujeito confere um sentido subjectivo; por acção social, um comportamento cujo sentido se orienta pelo sentido da acção dos outros. Além do mais, apesar de privilegiar o tipo‑ideal da acção racional, Weber faz questão de não ignorar importantes territórios da análise sociológica, em especial aqueles que se situam no que Giddens chama de “consciência prática”, ao considerar que “os limites entre uma acção com sentido e um modo de conduta simplesmente reactivo (...) são inteiramente elásticos. Uma parte muito importante dos modos de conduta de interesse para a sociologia (...) faz‑se na fronteira entre ambos”[38].

          Com estas considerações, Weber recusa‑se a deixar de lado elementos tão importantes para a análise sociológica como a gestualidade, a expressão corporal, todos os comportamentos não verbais e, em suma, as aparentemente insignificantes condutas quotidianas.

A metodologia weberiana, em clara ruptura com a tradição positivista, opera através da interpretação, sendo esta considerada como a compreensão intelectual de uma “conexão de sentido”. E só o indivíduo tem competência para produzir uma acção significativa, sendo as estruturas (e restantes entidades colectivas, como o “Estado”, a “família” ou a “Igreja”) produto da “actuação social de singulares”. Por outro lado, se a compreensão visa a análise do sentido implicado numa acção, o objecto da sociologia é o mundo cultural numa acepção ampla, incluindo tanto os artefactos materiais, obras da actividade humana, como os comportamentos e as acções orientados para a prossecução de determinados fins, e até mesmo os rituais, os afectos e as modalidades “irracionais” da acção.

          Desta forma, opera‑se uma nítida ruptura face às ciências naturais. Como menciona Frank Parkin, “ao contrário das moléculas e dos planetas, as pessoas têm motivos para as suas acções. O seu comportamento é orientado por significados subjectivos. Mais ainda, os actores sociais têm as suas próprias ideias e explicações acerca da razão pela qual se comportam de determinado modo e essas ideias e essas explicações são uma parte indispensável de uma análise compreensiva das condutas”[39].

           Assim, ao considerar que o indivíduo e as suas acções devem constituir o objecto por excelência da sociologia (individualismo metodológico), Weber afirma‑se, por conseguinte, contra todas as tentativas de reificação da sociedade e da estrutura social: “acção como orientação significativamente compreensível da própria conduta só existe para nós como conduta de uma ou várias pessoas individuais”[40]. A oposição a Durkheim não poderia ser mais clara, na recusa da lógica unilateral do determinismo sociologista. Como refere Peter Hamilton, o pensamento weberiano caracteriza‑se por uma “falta de fé na possibilidade de alguma vez obter respostas irrevogáveis para as questões sociológicas”[41].

          As “ciências da cultura”, na quais se incluem tanto a sociologia como a história (e Weber sempre demonstrou um particular interesse pela sociologia histórica) devem preocupar‑se com a singularidade histórica, entendida como “meio de conhecimento da essência geral das experiências”[42]. O facto histórico consiste, afinal, na natureza particular de um determinado fenómeno, sendo heuristicamente ricas as pistas e as ilações que se podem retirar para outras situações ou individualidades históricas[43]. Esta ligação do individualismo metodológico com a análise histórica leva A. Teixeira Fernandes a considerar que “se é lícito falar em E. Durkheim de uma tendência para um reducionismo naturalista, será igualmente lícito falar de uma tendência em M. Weber para um reducionismo histórico”[44].

          Trata‑se, no fundo, de descobrir o que num dado meio social e numa dada época se reveste de uma natureza particular, singular ou típica em relação a outros meios sociais e a outras épocas.

          Ilustrando este raciocínio com a análise das cartas de Goethe à Sr.ª Stein, Weber considera, num primeiro momento, ser fundamental conhecer as condições gerais nas quais essas cartas foram escritas, bem como o “conjunto da vida cultural do mundo «envolvente»”[45] para, num segundo momento, interpretar a experiência individual dos valores e das normas dominantes actualizadas pelo criador dessas cartas.

          Assim, de uma assentada, Weber rejeita tanta as modalidades de análise sociológica que consideram o indivíduo de forma a‑histórica e descontextualizada, preocupando‑se sempre em inseri‑lo no conjunto da envolvente societal, como as versões que ignoram as vivências, as experiências e as emoções individuais. Frank Parkin faz notar, a esse respeito, a distinção e a complementaridade que Weber estabelece entre “a compreensão actual do sentido visado de um acto (actuelles Verstehen) e a “compreensão explicativa (erklarendes Verstehen)[46]. Enquanto que a primeira se pode ilustrar pela “capacidade que temos de compreender que alguém está irritado pela simples leitura da sua expressão facial”, mediante a intuição patente no acto observacional, a segunda requer a inclusão num contexto cultural mais vasto, “um quadro de conhecimento alargado”, dentro do qual se torna possível compreender o fenómeno social[47].

          Em síntese, a compreensão da acção humana preocupa‑se com os objectos culturais, isto é, orientados por valores e motivações (factor distintivo das “ciências da cultura” face às “ciências da natureza”), mas sempre enquadrados numa determinada individualidade histórica. Este método pretende, assim, captar a “constelação única de características que definem a originalidade de cada conduta ou instituição social, num certo momento histórico”[48]. Essa constelação, não o esqueçamos, encontra‑se sempre ligada a um universo pleno de sentido e subjectivamente vivido e elaborado. É essa característica típica e exclusivamente humana — a produção de sentido ‑, que nos leva a salientar a seguinte definição de cultura: “(...) segmento finito de entre a infinitude sem sentido do devir do mundo, segmento a que os seres humanos conferem sentido e significação (...) A pressuposição transcendental de toda a ciência cultural não repousa sobre a nossa opinião acerca do valor de uma certa cultura ou da «cultura» em geral, mas sim do facto de sermos seres culturais dotados da capacidade e da vontade de tomar uma atitude deliberada perante o mundo e de lhe atribuir significação”[49]. Deste modo, as ciências sociais – e a sociologia em particular – são formas de conhecimento duplamente interpretativo, ou, nas palavras de Parkin, uma “actividade de segundo nível”, já que “se reporta a teorias e concepções dos actores sociais e não aos comportamentos desses actores, em bruto, tal como são”[50]. Assim, os significados subjectivos da acção são, por si mesmos, ingredientes indispensáveis para a sua própria explicação, valendo como factos sociais. É a vez de Weber acentuar, como de resto faz recorrentemente, embora nem sempre de forma explícita, a sua distância face a Marx, designadamente à sua noção de ideologia como mistificação, ilusão ou falsa consciência. Mas a demarcação vale também em relação a Durkheim, em especial no que se refere à sua exigência de ruptura face ao senso comum[51].

          A análise complexifica‑se quando o autor se pretende demarcar da intenção nomotética da ciência experimental "positivista". De facto, Weber defende que qualquer operação científica está impregnada de juízos de valor e de “concepções do mundo”, ideais “que são tão sagrados para os outros como os nossos o são para nós”[52]. Daí, a afirmação muito clara da dependência da ciência face a “determinadas perspectivas especiais e parciais” que seleccionam as manifestações sociais que são objecto de investigação. Nas palavras do autor, “uma parte ínfima da realidade individual adquire novo aspecto de cada vez que é observada por acção do nosso interesse condicionado por tais ideias de valor”[53]. Essa parte da realidade é a que se encontra ligada, precisamente, ao quadro cultural de referência, aos interesses e às “atitudes significativas” do cientista. Por conseguinte, todo o trabalho científico parte de uma orientação subjectiva, a qual, por sua vez, está intimamente ligada ao “espírito” de uma determinada época histórica. Desta forma, Weber critica as leis amplas e abstractas que, no seu entender, são as mais vazias de conteúdo e as mais distanciadas da realidade. Pelo mesmo motivo, recusa todas as imputações causa/efeito de cariz unilateral, presente tanto no monismo sociologista de Durkheim, como no mecanicismo materialista de Karl Marx. Daí apontar para o carácter pluralista e probabilista da causalidade.

          Como alternativa, Weber propõe a construção de tipos‑ideais, enquanto conceitos genéticos que se afastam da realidade empírica para melhor captar a sua “significação cultural específica”, através da acentuação unilateral de certas características, a partir de um ou mais pontos de vista. No entanto, o procedimento deverá ser lógico e jamais normativo – segundo Weber, “existem ideais‑tipo tanto de bordéis como de religiões”[54]. Cada exercício de pesquisa deverá, partindo do tipo‑ideal construído, verificar o seu grau de adequação aos factos concretos. Desta forma, como a própria ciência, o conceito é sempre provisório. Contudo, como acentua Frank Parkin, é possível acentuar unilateralmente determinados critérios, obtendo‑se, no limite, tipos‑ideais totalmente diferentes apesar de se basearem no mesmo fenómeno. Assim, a “afirmação de que os tipos‑ideais nos dizem menos acerca da realidade social do que acerca dos preconceitos interiores é, no mínimo, defensável”[55].

          Uma outra questão, provavelmente a mais polémica na obra de Weber e transversal, aliás, à maior parte dos seus escritos, prende‑se com o lugar da cultura na determinação dos fenómenos sociais. É notório que Weber valoriza a dimensão cultural dos factos históricos, como acontece quando analisa a emergência do capitalismo, mas parece‑nos errado considerar essa componente como sendo exclusiva. Parkin diz mesmo que é injustificada a sua tão divulgada “reputação antimaterialista”[56].

          De facto, Weber é muito claro quando defende a pluralidade causal. O próprio conceito de individualidade histórica, anteriormente referido, aponta no mesmo sentido: “complexo de relações na realidade histórica, congregadas num todo conceptual sob o ponto de vista do seu significado cultural[57]. No entanto, ao analisar a génese do capitalismo, Weber coloca a ênfase no espírito do capitalismo, considerando‑o como a verdadeira origem da acumulação de capital; um capitalismo racional, baseado no raciocínio económico legitimado pela ética protestante do trabalho, fenómeno que se insere no movimento mais geral de alargamento da dominação racional e legal, indissociável da constatação, lúcida mas algo melancólica, do “desencantamento do mundo”, uma vez que o funcionamento do social se reduz à obediência de regras impessoais e não ao encanto mágico e carismático das sociedades mais antigas. Ainda assim, é de salientar, ao contrário do que afirmam algumas críticas vulgares, que Weber defende a complexidade e a multidimensionalidade dos fenómenos sociais, recusando as perspectivas unilaterais, sejam elas materialistas ou espiritualistas: “...com ambas se presta um mau serviço à verdade histórica, se forem consideradas como ponto de chegada e não de partida da investigação”[58]. Ponto de partida que, já o referimos, é sempre provisório (instituído numa dada singularidade histórica) e jamais uma verdade eterna.

         

         

          1.4. Breve Balanço.

 

          Da análise destes três autores—“uma espécie de trindade secular de sociólogos, deificada onde quer que se ensine sociologia”[59], constata‑se que muitas das críticas que lhes foram dirigidas carecem de fundamento. De facto, a sua obra é complexa e o seu pensamento vai além da habitual vulgata que muitas vezes se insiste em lhes atribuir. Aliás, a sua obra contém em si mesma elementos de superação de certos aspectos mais criticados: Marx insiste antes de mais no enraizamento social da actividade humana e luta contra os preconceitos do homem oeconomicus e as leis económicas universais; Durkheim admite a criatividade e a diferença individuais; Weber defende o cruzamento de várias lógicas com efeito causal.

          O principal problema reside nalguma imprecisão conceptual que os caracteriza, marcada por avanços e recuos, afirmações e rectificações. Por outro lado, o único autor a desenvolver uma teoria sistemática sobre a actividade cultural, conferindo‑lhe um grau assinalável de autonomia, é Max Weber. Ainda assim, e tal como os outros dois autores, a sua teoria, enquanto grande edifício conceptual, suscita um vasto leque de dificuldades de operacionalização e de conversão para uma linguagem propícia à pesquisa empírica.

          No entanto, as principais questões que levantam continuam a ser as grandes inquietações da análise sociológica: sujeito versus objecto, idealismo versus materialismo, finalismo versus mecanicismo, consenso versus conflito...

          Estudar criticamente as suas obras não é, por isso, um exercício de procura da arqueologia da escrita sociológica mas sim, pelo contrário, mergulhar plenamente na actualidade do debate sociológico, encontrando pontes de contacto com a contemporaneidade e procurando incentivo tanto na exemplaridade de certas análises, como nas formas e métodos ora complementares, ora conflituais de abordagem da realidade. Sem descurar o que, em tais propostas, existe de erróneo, contraditório, precipitado ou simplesmente desadequado. Nas palavras de Peter Hamilton: “A sociologia tem, pelo menos, a pretensão de ser uma ciência – e nenhuma ciência pode permitir‑se considerar o trabalho dos seus principais pensadores como inviolável e imune a críticas. Só explorando os erros dos seus antepassados uma ciência pode progredir”[60].

 

          2. Tendências actuais da sociologia no estudo da cultura.

          2.1. A análise da vida quotidiana: fenomenologia social, etnometodologia e interaccionismo simbólico.

 

          Uma das principais correntes actuais da sociologia, ramificada em várias escolas de pensamento, encontra a sua origem na análise compreensiva das sociedades, herdando os ensinamentos de Husserl (pela banda da fenomenologia), de Heidegger e Gadamer (pela banda da hermenêutica), de Dilthey, Rickert, Simmel e, principalmente, de Weber. A actividade humana entendida como acção consciente, dotada de sentido e subjectivamente orientada, é o grande traço de união entre a fenomenologia social, a etnometodologia e o interaccionismo simbólico. Desta forma, a realidade social é encarada como o resultado da actividade dos sujeitos, enquanto construção social que resulta da sua contínua produção do mundo, imbuída de intencionalidade comunicativa, base das relações intersubjectivas. Segundo Franco Crespi, estas teorias proporcionam um melhor conhecimento da génese da cultura e da sua dinâmica intrínseca.

 

          No que se refere à fenomenologia social, impõe‑se uma referência à obra de Alfred Schutz, enquanto busca pioneira dos fundamentos da vida quotidiana e da razão prática. Para Schutz, “o mundo da vida quotidiana é a região da realidade na qual o homem se empenha e que pode modificar quando nela opera”[61]. Considerando que a realidade se encontra dividida em províncias ou regiões finitas de sentido (a ciência, o sonho, a arte, a vida quotidiana, etc.), Schutz preocupa‑se especialmente com o que apelida de realidade primeira: o mundo da vida quotidiana, universo no qual agimos e em relação ao qual adoptamos uma atitude “natural” de confiança. Universo aproblemático até demonstração em contrário (“until further notice”), é um mundo fundamentalmente igual para mim e para os outros, e que permite, por isso, a compreensão mútua, o contacto intersubjectivo e a troca de posições e de perspectivas através de uma série de realidades dadas como adquiridas. Mundo comum, interpretado, apreendido e construído de acordo com um “stock” prévio de experiências e vivências, mas impondo limites à actuação dos indivíduos, já que as suas acções, apesar de subjectivamente orientadas, criam objectos que exercem constrangimentos à livre acção dos outros e vice‑versa. O stock de conhecimento, funciona como guião de referência para a acção prática, isto é, pré‑reflexiva, através da qual damos um sentido à realidade envolvente: “O mundo da vida, compreendido na sua totalidade como um mundo natural e social, é a arena, bem como a entidade, que fixa os limites da minha e da nossa acção recíproca”[62].

          De facto, as significações consideradas como adquiridas e partilhadas pelos vários sujeitos no mundo da vida quotidiana impedem uma atitude, que seria insustentável, de permanente questionamento de tudo o que nos rodeia. Os outros aparecem como “corpos dotados de consciência, homens «como eu»”[63] e a realidade apenas se torna problemática quando surge algum acontecimento que não encaixa no meu esquema (“stock”) de referência. Nós sabemos o que o outro faz e porque o faz, já que existe uma reciprocidade de perspectivas que nos permite prever e antecipar a sua acção. A consciência reflexiva actua sempre a posteriori, quando penso nas acções em que estive envolvido e surge a necessidade de as tornar inteligíveis.

          A forma que possuímos para aceder ao comportamento e à motivação dos outros liga‑se, indissociavelmente, às suas performances corporais. É então que todo um conjunto de condutas, rituais e linguagens, inclusivamente não‑verbais, passam a ser considerados, não só como objectos legítimos da análise sociológica, mas também como sinais de orientação nas rotinas quotidianas. É à volta desse mundo da vida, assente no corpo[64], que gira toda a teoria de Schutz, negligenciando o fascínio de muitos pensadores pelas magníficas construções do conhecimento “culto” ou erudito, afinal uma “província finita de realidade”. Schutz e a fenomenologia social ocupam‑se de tudo o que seja conhecimento socialmente produzido e partilhado, centrando a sua atenção nos “pormenores” supostamente insignificantes e anódinos da vida de todos os dias. Nesta linha, há uma clara aproximação aos esquemas cognitivos e mentais do senso comum, às realidades tidas como adquiridas (taken‑for‑granted), ao pensamento que não se pensa. Para estes autores, ao contrário dos racionalistas, não há qualquer necessidade de romper com o senso comum para iniciar um processo de construção científica; pelo contrário, o senso comum é o objecto por excelência da análise sociológica e esta deve‑se adequar aos seus esquemas de referência. Em termos fenomenológicos, não é relevante que as interpretações e construções do senso comum sejam erróneas e mistificadoras; o que interessa é o seu papel na percepção e edificação da realidade quotidiana, a realidade primeira e tida como evidente e ordenada, ainda que assim o não seja. Mesmo as experiências que transcendem esta realidade primeira (a experiência científica, estética, religiosa, etc.) acabam por ser apropriadas de acordo com a linguagem da vida “vulgar”. Tal como no teatro, quando desce o pano, assim a consciência regressa à realidade da vida quotidiana, transformando as outras experiências em intervalos mais ou menos curtos: “A realidade dominante envolve‑as por todos os lados (...) e a consciência sempre retorna à realidade dominante como se voltasse de uma excursão”[65]. Durante o decorrer de um dia, viajamos por várias províncias finitas de significado, experimentando “choques” que resultam do confronto de sentidos ou “estilos cognitivos”[66] diferentes (sonhar, acordar, estar activo, ler um livro ou ouvir música, etc.). Como refere Giddens, apesar de ocorrerem com frequência, estes “choques” fazem parte das rotinas dos agentes, já que estes estão habituados a transitar, de forma habitualmente serena, entre diferentes tipos de linguagem[67].

          No mundo da vida quotidiana, também ela uma província finita de sentido, a actividade, o estar‑se activo e em vigília é a principal característica do estilo cognitivo. Desta forma, a acção humana empenhada traduz‑se por actos performativos (“acts of performing”) que transformam a realidade. As minhas performances permitem‑me aceder ao mundo da vida, alterando‑o e apresentando‑o aos outros com o poder de uma facticidade externa e objectiva, que limita tanto as suas acções como as deles limitam as minhas. De facto, o comportamento intersubjectivo decifra‑se através de determinadas manifestações exteriores que funcionam como signos e sistemas de signos que objectivam, através da comunicação, significados inicialmente subjectivos. Estes, da parte de quem age, traduzem‑se por esquemas expressivos que permitem ao interlocutor e/ou ao observador, accionar os seus esquemas interpretativos, baseados em codificações de experiências anteriores. Desta forma, reduz‑se a complexidade da realidade social e permite‑se, apesar da intrínseca indeterminação do agir humano, uma certa previsibilidade recíproca dos comportamentos[68].

          A cultura, nesta perspectiva, não é apenas constituída pelas obras que transcendem o “aqui e agora” da realidade quotidiana. As grandes obras da experiência estética, com os seus imponentes nomes e tradições são apenas uma “quasi‑realidade”, uma “província finita de sentido”, entre muitas outras. Não existe, pois, nenhuma justificação para lhe conferirmos uma superioridade ontológica. A cultura não é concebida apenas em termos de objectos ou artefactos, ela é uma “cultura‑acção”[69], eminentemente relacional e intersubjectiva, constantemente actualizada e instantaneizada nas nossas actuações quotidianas. Assim, e em síntese, a abordagem fenomenológica assenta, não tanto na expressão de um mundo interior, mas, antes de mais, no carácter intencional da acção, mediado pela linguagem enquanto “canal da actividade social prática diária”[70]. Os actos comunicativos e a constante produção de significado constituem, por isso, o fazer quotidiano da sociedade, entendida como “uma realização engenhosa dos actores”[71].

 

          A etnometodologia, neologismo criado por Harold Garfinkel[72], preocupa‑se, por seu lado, com os implícitos subjacentes à acção quotidiana, partindo do princípio, igualmente presente na fenomenologia social, de que os agentes sociais apreendem e constroem a realidade tendo em vista objectivos essencialmente práticos: “Utilizo o termo «etnometodologia» para me referir à investigação das propriedades racionais das expressões de indicalidade (indexicality) e outras acções práticas”[73].           Utilizando situações quasi‑experimentais, Garfinkel consegue trazer ao de cima os significados implícitos da acção prática, significados de natureza pré‑reflexiva e não exprimíveis discursivamente. Agindo sempre na fronteira do normal e do desviante, este autor tem como objectivo resgatar os tais significados taken‑for‑granted que os actores utilizam nas rotinas diárias; significados que, apesar de surgirem como “naturais” (e por isso não explícitos), provam a centralidade da componente cultural da natureza humana, moldada por um poderoso, lento e permanente processo de socialização e de adequação às normas e padrões dominantes; socialização que consiste, não tanto na sujeição às normas, mas na sua interpretação — interpretação que, por sua vez, confere um sentido ao mundo da vida. Ora, através dos processos constitutivos dessas interpretações, o sociólogo consegue aceder aos métodos socialmente contextualizados de construção da realidade. Para isso, provoca transgressões à situação estabelecida e observa a reacção ao imprevisto por parte dos actores sociais quando sentem como “estranhos” os quadros mais habituais. Desta forma, ao discutirem‑se as regras usualmente mais pacíficas, compreende‑se o carácter de permanente negociação a que estão submetidas.

          A melhor prova da centralidade das convenções (uma convenção, por natureza, é uma marca cultural) reside no facto de as pessoas perderem a orientação cognitiva quando as aparentemente insignificantes regras do dia‑a‑dia são questionadas ou violadas. De facto, forma‑se uma sensação desconcertante quando alter não corresponde ao comportamento esperado por ego. Por momentos, e antes mesma do ruído ser assimilado e porventura compreendido, é como se um universo inteiro de regras e convenções subjacentes à mais anódina interacção desmoronasse, e com ele arrastasse os actores sociais envolvidos. A situação resvala sempre para um contexto de anomia quando não existe uma correspondência entre o acontecimento real e o acontecimento esperado: “o acontecimento é anómico quando não tem um sentido nos termos das regras do jogo (...) o delinquente é posto fora do jogo: o que lhe é censurado não é ter infringido as regras, mas ter‑se comportado de um modo tal que as regras comummente aceites não permitem interpretar os acontecimentos surgidos, e regular a sua conduta de acordo com essa interpretação”[74]. De facto, são essas regras ou convenções que organizam as situações de interacção, tornando‑as congruentes com as expectativas recíprocas que estão na base da previsibilidade do comportamento humano.

          Nestas alturas, quando a ordem convencional é subvertida, o senso comum trai‑se, revelando os pressupostos raramente pensados sob os quais repousa a sua actividade. O senso comum, aliás, pode ser definido como o pensamento em acção nas rotinas diárias; um pensamento que raramente reflecte nos seus alicerces mais profundos porque está em situação de permanente performance.

          Uma vez mais, a análise científica não opera pela definição de um sistema de relações objectivas que enquadram a actividade humana; pelo contrário, a metodologia científica deve partir da compreensão empática, a partir do interior (“from within”). Desta forma, aceita‑se como metodologicamente possível a identificação empática entre observador e observado. As técnicas de observação são, por isso, utilizadas em situação de exclusividade, de forma a poder captar tanto a linguagem verbal, como a não‑verbal, tanto a palavra como o gesto, tanto o discurso como o corpo. Aliás, o “observador social deve, de vez em quando, fazer por usar uma linguagem que seja coerente com a dos sujeitos observados, evitando sobrepor à realidade específica analisada categorias abstractas, elaboradas independentemente do contexto social que se pretende estudar”[75]. Assim, respeita‑se o princípio da indicalidade, que impede generalizações abusivas, já que todas as explicações são contigentes e devem ser interpretadas de acordo com o contexto específico em que foram emitidas[76].

          As estruturas são aqui reduzidas aos processos de atribuição de sentido por parte dos actores sociais, enquanto mero produto das suas interacções e da sua percepção e interpretação da vida social: “fenómenos estruturais como o rendimento, a distribuição pelas profissões, a organização familiar, as classes sociais e as propriedades estatísticas da linguagem, são produtos que emergem de uma grande quantidade de comunicações, percepções, juízos e outras «tarefas acomodativas» pelas quais as pessoas concertadamente encontram a partir do interior, os meios sociais com os quais a sociedade as confronta, mantém, restaura e altera as estruturas sociais que são os produtos amalgamados do curso temporalmente prolongado das acções dirigidas para esses meios sociais”[77].

          De facto, só o agir pode ser considerado como relativamente autónomo (ele depende também dos contextos em que se exerce) e é nele, ou melhor, nas suas interpretações, que assenta a ordem social que, como já referimos, é instável e sujeita a subversões constantes, o que nos afasta de todo e qualquer modelo estático das relações entre cultura e estrutura social.

 

          Finalmente, e para completar este breve olhar sobre as correntes que se situam do lado da produção ritualizada e quotidiana da sociedade e da cultura, importa referir o papel do interaccionismo simbólico e, em particular, de Erving Goffman.

          Estudando a interacção social como representação, Goffman suscitou sobre si dúvidas acerca da legitimidade científica da sua obra, dúvidas essas que devem ser compreendidas no âmbito das lutas pela consagração no interior do campo científico e do sub‑campo da sociologia académica americana. Utilizando um vocabulário pleno de analogias dramatúrgicas, não se coibindo de recorrer à “pequena história” e às suas fontes, ilustrando os seus conceitos com anedotas ou excertos de romances, Goffman não poderia ter deixado de suscitar reacções de repulsa e de desconfiança. No entanto, ele é o primeiro a afirmar o carácter integrado da sua pesquisa, demonstrando mesmo a convicção de que constitui uma nova perspectiva de conjunto sobre a vida social, “um quadro de referência que poderá ser aplicado a qualquer configuração social concreta”[78].

          O cerne da sua análise situa‑se no estudo dos papéis sociais, enquanto quadros no interior dos quais se exprimem e se individualizam as personalidades individuais dos actores: “Considerarei o modo como o indivíduo em situações de trabalho habituais se apresenta a si próprio e à sua actividade perante os outros, as maneiras como orienta e controla a impressão que os outros formam dele, as diferentes coisas que poderá ou não fazer enquanto desempenha perante os outros o seu papel”[79].

          Existem três entidades fundamentais no estudo do tipo‑ideal da interacção social: os dois actores (ou personagens...) em presença e ainda a audiência ou público. Cada actor tem como tarefa a gestão da sua apresentação pública, cabendo à audiência o papel de sancionar ou consagrar essa representação. Como refere Nicolas Herpin, “o Eu só se substancializa pela mediação do público. Os actores de teatro, por melhor que saibam os seus papéis e por mais vezes que os tenham representado com sucesso têm sempre medo; o que não é mais do que reconhecer obscuramente o peso decisivo de cada público na substancialização do papel apresentado”[80]. A projecção de uma dada impressão, e a interpretação dessa impressão, constituem dois momentos fundamentais no processo de interacção. O actor, mesmo em situação de silêncio, não deixa de transmitir uma impressão: “Os actores podem deixar de se expressar, mas não podem impedir‑se de exprimir alguma coisa”[81]. Existe aqui, de forma muito clara, uma ênfase nos processos de comunicação e na mediação exercida pela linguagem. A impressão adquire um determinado significado, o que a remete para o seu carácter eminentemente simbólico. Já H. Mead referia o poder constitutivo da ordem simbólica, através do quadro de referências contido na objectivação de significados patente no conceito de outro generalizado, face ao qual os indivíduos formam as suas identidades e incorporam os seus papéis[82].

          No entanto, a interpretação da impressão transmitida não depende apenas da representação. Existem, igualmente, o que Goffman chama de “portadores” ou “indícios” de informação, como por exemplo a relação que se pode estabelecer entre a aparência e o estatuto sócio‑económico do actor ou entre determinados comportamentos e os rótulos (labels) ou estereótipos associados ao papel em representação (pense‑se, designadamente, no conjunto de rótulos que se associam a um determinado papel desde que ele é representado por uma mulher). Assim, é natural que exista uma selecção por parte dos actores antes de escolherem os seus papéis, de acordo com a valoração positiva ou negativa que fazem dos rótulos que lhes estão intimamente associados.

          Desta forma, Goffman admite ir mais longe do que os fenomenólogos e os etnometodólogos, ao considerar a pertinência da interferência de certos factores exteriores à situação de interacção; factores vincadamente estruturais e, por isso, de índole macrossociológica. Aliás, o autor preocupa‑se com as regras que estão na base da definição da situação de interacção, de maneira a que seja possível prever reciprocamente o agir dos intervenientes, mantendo a ordem social[83]. De igual modo, rejeita a utilização de dimensões psicológicas e/ou existenciais, atribuindo um grande relevo à comunicação exercida em consonância com a cena social.

          Esta mesma tendência verifica‑se quando considera a importância dos factores contextuais nas situações de interacção. É conhecido o seu modelo de análise baseado na consideração da oposição entre a fachada (ou região frontal) e os bastidores (ou região de traseiras). A linguagem, as condutas, as performances verbais, variam acentuadamente de uma região para a outra, o que nos leva necessariamente à análise (ainda que tal não seja explicitamente referido por Goffman) da sua configuração estrutural e da importância do espaço na vida social[84].

          Aliás, a célebre afirmação de Goffman, de que o “Eu é um efeito dramático” remete‑nos, precisamente, para a constatação de que a representação não se identifica necessariamente com o ego. Para uma correcta análise da situação de interacção, devemos considerar o contexto em que esta ocorre: a região, o papel e a constituição do público, os indícios transmitidos, etc. João Arriscado Nunes defende mesmo que Goffman considera a articulação entre a ordem social e a ordem da interacção através de um “«vínculo fraco» (loose coupling) entre as duas ordens, estabelecido através de processos de transformação dos elementos próprios da ordem estrutural em elementos característicos da ordem da interacção”[85]. Pode‑se ainda acrescentar que as próprias variações nas situações de interacção remetem inevitavelmente para a presença de mecanismos institucionais. No entanto, ao procurar essa articulação, Goffman respeita o princípio de que ela “deve ser procurada nos elementos invocados nos próprios episódios de interacção, sem recorrer a uma mudança de procedimentos de análise ou a uma mudança na escala de análise”[86]. Desta forma, é nas próprias situações microssociológicas que devemos procurar as variáveis explicativas das práticas sociais, considerando‑as como sistemas sociais auto‑suficientes[87].

 

          Assim, existe um acordo fundamental entre o interaccionismo simbólico e as análises fenomenológicas e etnometodológicas: o objecto de estudo é o homem na sua vida quotidiana e no incessante trabalho de produção simbólica e cultural. A realidade social não é predeterminada do exterior; ela é sempre o resultado da percepção, interpretação e avaliação dos actores[88]. Do mesmo modo, a comunicação exerce um papel mediador fundamental, enquanto veículo de significados com a força de símbolos, sem com isso retirar ao sujeito o seu papel activo, designadamente nas interpretações que fornece. Se, por um lado, o actor social está imbuído das regras e convenções dominantes numa dada sociedade (a cultura é o seu “ambiente”), por outro lado ele não cessa de produzir novos horizontes de vida, alterando o quadro de referências de que é portador. Aliás, ao colocarem a sua ênfase na génese e funcionamento da cultura, as motivações subjectivas da acção acabam por ser realçadas face às suas determinações objectivas.

 

          2.2. A sociedade como totalidade: funcionalismo, estruturalismo e

pós‑estruturalismo.

 

          Nos antípodas das correntes anteriormente mencionadas, situam‑se os paradigmas que encaram a sociedade e os sistemas simbólicos como totalidades. Esta análise holística, de cariz objectivista, isto é, baseada na ruptura face aos saberes e condutas quotidianas dos actores, assenta num campo semântico onde pontificam conceitos como o de função, estrutura ou sistema. O seu principal objectivo é a procura das regularidades, padrões institucionais ou “invariantes” que pautam o fluxo das relações sociais, recusando uma continuidade entre os dados “sensíveis” das experiências vividas e a lógica da explicação científica.

          Mesmo quando se referem aos actores, como acontece com Parsons, tais perspectivas acabam por privilegiar a situação, sendo esta constituída por um conjunto de “valores, normas e regras definido a nível supra‑individual”[89]. Os actores interiorizam, mais ou menos passivamente e através de processos de institucionalização, um conjunto de modelos e padrões simbólicos que lhes são exteriores e os condicionam. Em vez da análise dos indivíduos em termos da sua livre acção social, isenta de determinações, Parsons defende a obediência a “conjuntos específicos de valores, codificados e institucionalizados em papéis sociais”[90], ou, como refere Madureira Pinto, a “um redutor determinismo idealista”[91] que tudo limita aos valores dominantes numa dada sociedade, inclusivamente a própria divisão do trabalho e o sistema de estratificação social. Desta forma, o funcionalismo apaga o sujeito enquanto agente activo, limitando‑lhe o campo de acção ao espartilho pré‑definido de um determinado leque de papéis sociais, em obediência à reprodução do sistema social. Esquecendo, como refere Giddens, “o carácter negociado das normas enquanto abertas a «interpretações» conflituais e divergentes”[92], fenómeno extremamente ligado a uma desigual repartição do poder no seio dos sistemas sociais. Preocupando‑se, exclusivamente, com a “integração dos valores comuns”.

          Esta concepção de cultura e de sociedade tem óbvios efeitos ideológicos. Se entre o indivíduo e as normas, valores e regras dominantes existe uma continuidade e não uma ruptura, a tendência dos sistemas sociais será para a evolução homeostásica. Os conflitos e os mecanismos de negociação nos processos de interacção que as correntes subjectivistas anteriormente referidas postulavam são aqui negados pelo próprio peso das sanções que se exercem sobre os comportamentos desviantes.

          A noção de uma totalidade integrada, harmoniosa e coerente que precede o estudo das partes é essencial para a compreensão do funcionalismo. De facto, o sistema, enquanto todo composto por partes interdependentes, de forma a que uma modificação numa delas acarreta modificações nas restantes e no próprio todo, evita a entropia e tende para a integração. Tal como um organismo, os sistemas sociais asseguram a sua perpetuação pela satisfação das necessidades que lhe são inerentes, acentuando‑se, por isso, o seu carácter sincrónico. Mesmo quando existem disfunções, o sistema assegura a sua unidade através da substituição do elemento que “funciona mal” por um outro que lhe é equivalente[93].

          Nesta perspectiva, a produção da cultura deve ser procurada no todo social, em íntima relação com os restantes sistemas ou subsistemas, e nunca como entidade autónoma ou enquanto produto do sentido que os indivíduos subjectivamente atribuem à sua acção. A “função” da cultura, mesmo quando é considerada como um sistema relativamente autónomo (Parsons), esgota‑se na orientação normativa do agir individual, controlando‑o e uniformizando‑o.

 

          O estruturalismo, enquanto análise holística, assegura uma continuidade face aos pressupostos do funcionalismo. Contudo, reconhece preferencialmente a totalidade como uma entidade em relação e, muitas vezes, em conflito — mais do que as posições dos elementos constituintes da sociedade, importa definir as suas relações e as leis que as regulam. Além disso, liga‑se indissociavelmente à linguística, em particular a de raiz saussuriana.

          Giddens considera fundamental para a compreensão das limitações do estruturalismo, a explicitação da concepção saussuriana de língua (langue) e fala (parole). Enquanto forma estrutural, enquanto sistema, a primeira, estática, deve ser separada dos seus múltiplos usos ou desempenhos, aquilo que constitui o “lado executivo da linguagem”. A língua, aliás, é definida como “sistema de signos cujo único traço essencial é a união dos significados e das imagens acústicas”[94]. Desta forma, e como Giddens refere, a linguagem aparece como um sistema abstracto e idealizado, fortemente desligado dos seus contextos, aplicações ou usos concretos. Assim, a linguagem desenvolve‑se num jogo de diferenças internas, divorciada das suas instantaneizações. O significado deriva, apenas, das diferenças estabelecidas entre essa palavra e as demais. Consequentemente, as palavras não significam os seus objectos (tese do carácter arbitrário do signo): a linguagem é forma e não substância. Qualquer elemento para ser compreendido deve, por isso, ser enquadrado no interior do sistema, despossuído que se encontra de autonomia ou existência enquanto entidade singular[95].

          Desta forma, a concepção de estrutura remete para um conjunto de posições em permanente relação, derivando o “lugar” de cada posição desse jogo ininterrupto. Assim, os sítios, lugares ou posições possuem um estatuto ontologicamente superior ao dos sujeitos que os ocupam. É por ocupar um dado lugar, e não pelas suas idiossincrasias, que um determinado sujeito pensa, imagina ou sonha de uma forma particular: “Em suma, os sítios num espaço puramente estrutural são primeiros em relação às coisas e aos seres reais que os vêm ocupar e também em relação aos papéis e aos acontecimentos sempre um pouco imaginários que necessariamente surgem quando eles são ocupados”[96]. Por outro lado, esta abordagem topológica e relacional considera os sujeitos como estando numa fila para ocupar diferentes lugares na estrutura, moldando a sua personalidade e o seu habitus de acordo com as características intrínsecas de cada um desses lugares. Desta forma, e porque se trata de uma cadeia ou fila de posições em permanente relação (e mutação), o sujeito ocupa sempre o lugar do morto, o espaço que no momento seguinte será de outro. Assim, o sentido é sempre o efeito de uma posição. O anti‑humanismo do estruturalismo não consiste tanto na eliminação do sujeito, mas sim na sua transformação em sujeito nómada, circulante e encarnando de forma impessoal as propriedades associadas aos lugares ou posições. Desta forma, a acção é tida como uma dimensão secundária, bem como o carácter histórico da experiência social.

          O programa teórico do pós‑estruturalismo, por seu lado, pode ser ilustrado com a referência à tese da descentração do sujeito.

          De acordo com esta perspectiva, nega‑se uma vez mais a possibilidade de acesso à consciência humana através dos actos ou objectos culturais. Derrida, por exemplo, defende a autonomia do texto, enquanto Foucault, ao analisar o momento histórico da emergência da figura do autor, fala na sua morte anunciada, e lança a questão «o que importa quem fala?»:”(...) a escrita está agora ligada ao sacrifício da própria vida; apagamento voluntário que não tem de ser representado nos livros, já que se cumpre na própria existência do escritor. A obra que tinha o dever de conferir a imortalidade passou a ter o direito de matar, de ser a assassina do seu autor”[97]. O texto, afinal, segue o seu próprio curso, sujeitando‑se às múltiplas interpretações e reconstruções dos seus leitores, desvanecendo‑se, por isso, a figura do autor. Como objecto cultural que é, o texto ultrapassa os contextos de co‑presença (o “aqui e agora” da interacção) e implica uma distância que acaba por favorecer o papel do receptor/consumidor. Desta forma, os objectos culturais não permitem, por si sós, aceder à intencionalidade da acção humana que os gerou.

 

          2.3. Breve balanço e reencaminhamento em direcção à complexidade.

 

          Que balanço pode ser feito da comparação entre estes dois pólos da produção teórica sociológica e que traduzem profundas aporias (sujeito versus objecto, mecanicismo versus finalismo, etc.)?

          Por um lado, impõe‑se destacar algumas limitações fundamentais das análises compreensivas de cariz fenomenológico. Podemos referir a principal dessas limitações como sendo uma colossal ingenuidade perante todos os constrangimentos que precedem a acção individual. De facto, ao pretender constituir‑se como uma sociologia da vida quotidiana, naquilo que ela possui de recorrente e rotineiro, mas também de equívoco e de imprevisto, as perspectivas fenomenológica e hermenêutica[98] esquecem que as possibilidades dessa acção só serão visíveis quando se procurarem as regularidades que objectivamente enquadram o devir social. Os agentes não sabem tudo sobre a sua vida, embora o que saibam seja de primordial importância para a análise sociológica. Não pode esta, no entanto, arvorar‑se como razão dogmática e omnisciente.

          Assim, é na perspectiva de um racionalismo relacional (procura do sistema de relações objectivas que enquadram os fenómenos sociais) que poderemos detectar o conjunto da situação (a cena total, para utilizar a linguagem do interaccionismo). A finitude, incompletude e assimetria dos pontos de vista subjectivos, alertam‑nos para as limitações das correntes fenomenológicas e interpretativas, designadamente na falta de ligação às dimensões estruturais da vida social: as pertenças classistas, as hierarquias sociais, a distribuição assimétrica de recursos, competências e poderes são frequentemente ignorados ou remetidos ao estatuto de variáveis dependentes (produto da interacção, da interpretação subjectiva ou da atribuição de sentido).

          Não é a participação empática que leva à identificação entre observador e observado. É uma veleidade descabida e desmentida empiricamente, a pretensão de resgatar a totalidade do olhar nativo. A finitude dos pontos de vista particulares e a sua relativa incongruência exigem do olhar sociológico que, por mais que se aproxime dos terrenos do fluir social, mantenha a distância suficiente para uma perspectiva mais vasta que lhe permita compreender o conjunto de relações que estruturam uma determinada situação. O olhar sociológico move‑se na permanente dialéctica entre a aproximação e o distanciamento. Não se proclame, por isso, a adequação da análise científica ao discurso do senso comum, ou dos lay sociologists: são abordagens comunicantes (não há, entre elas, um descontinuismo radical) mas irremediavelmente distintas. Além do mais, se o cerne da interacção consiste no transmitir de uma impressão, tantas vezes apreendida de forma ambígua e equívoca[99], mesmo quando os actores possuem um conhecimento competente da situação, como postular a adequação aos esquemas cognitivos do senso comum? O conhecimento prático, por definição, não se pensa a si próprio[100], sendo constituído por um conjunto de princípios geradores dos desempenhos quotidianos. Como pretender, na hipótese de nos colocarmos na pele do observado, reflectir sobre o irreflectível[101]?

          Aliás, se como defende Adriano Duarte Rodrigues, a relação entre os actores e a experiência quotidiana “se apresenta como uma «douta ignorância», dando a ver mais do que aquilo que sabem efectivamente dizer e explicar”[102], importa construir os mecanismos conceptuais que permitam detectar essa décalage.

          Do mesmo modo, o interaccionismo simbólico, apesar de considerar as regras e convenções que estruturam as situações de interacção social, defende que a subjectividade é um produto dessas mesmas situações, esquecendo‑se de tudo o que não está presente no “palco”, bem como do carácter altamente assimétrico de distribuição das “máscaras” que permitem a cada indivíduo um conjunto limitado de “representações”.

          Ainda assim, estas correntes desempenharam um importante papel na recentragem da investigação sociológica na direcção da vida quotidiana e dos seus ínfimos pormenores e rituais. O homem “vulgar” ganhou dignidade epistemológica, bem como o seu discurso, as suas posturas corporais, os seus pequenos gestos, as suas múltiplas formas de comunicar e, de alguma forma, de reproduzir e construir a realidade envolvente. A “espontaneidade” das condutas sociais quotidianas aparece‑nos, à luz destas correntes, como um esforçado trabalho de adequação ao mundo intersubjectivo; trabalho tanto mais eficaz quanto aparece imbuído de “naturalidade”. De facto, os “esquemas tipificadores” do senso comum, os quadros de referência dos actores, bem como todo o seu “stock” de conhecimentos, que permitem tratar como taken‑for‑granted um vasto conjunto de significados, resultam de um acumular de experiências diversas (através da própria estrutura de papéis sociais) e de um aplicar desse “stock” na decifração de novas situações.

          Por outro lado, como refere Adriano Duarte Rodrigues, a abordagem fenomenológica chama‑nos a atenção para os múltiplos mundos (Schutz chama‑lhes “províncias finitas de sentido”) em que decorrem os processos interactivos e para os diferentes pontos de vista implicados; multiplicidade essa correlativa da complexidade e variedade de papéis sociais que os indivíduos vão ostentando. Aliás, este realçar da coexistência de mundos díspares e por vezes incongruentes e conflituais, lembrando‑nos o conceito de heterotopia proposto por Foucault, alerta‑nos para a relevância de uma série de elementos que estão ausentes da situação de interacção e que os agentes constantemente evocam (a determinação institucional dos papéis sociais, por exemplo).

          No entanto, uma vez mais, a elucidação dos mecanismos mais profundos que marcam esta multiplicidade de mundos da experiência (sistemas de estratificação social, distribuição do poder, antagonismos sociais, etc.) fica muito aquém do desejado, como se todos os actores tivessem a mesma possibilidade de seleccionar os papéis que desejam.

          Ainda assim, não podemos correr o risco de reduzir as propostas compreensivas a versões mais ou menos sofisticadas do individualismo metodológico. Como refere Karin Knorr‑Cetina[103], as propostas das correntes micro‑sociológicas, além de constituirem um desafio para os paradigmas estabelecidos (frequentemente acomodados à pretensa fidedignidade dos métodos quantitativos “duros”), surgem, essencialmente, como uma reacção ao modelo normativo da ordem social, questionando os mecanismos de incorporação da ordem dominante através do processo de socialização. A “viragem cognitiva” que estas correntes representam, levam os analistas a considerar os processos dinâmicos e frequentemente conflituais de definição, interpretação, construção e negociação da ordem estabelecida nas situações interaccionais. Assim, estas teorias da interacção social in situ, apesar do inventário de críticas que lhes podem ser dirigidas, não se reduzem às versões simplistas do subjectivismo. O seu objecto não é o indivíduo, mas sim o cruzamento e reciprocidade de intencionalidades e perspectivas nas situações interaccionais. Como refere Giddens, “compreender o que se faz apenas é possível através do conhecimento, ou seja, ser capaz de descrever aquilo que os outros fazem e vice‑versa”[104]. No entanto, ao pecarem, como já foi referido, pela falta de referência aos mecanismos institucionais que transcendem a interacção, acabam por validar a ideia de que a situação contém em si todos os elementos necessários à sua explicação.

          No que diz respeito às propostas estruturalistas e pós‑estruturalistas, registamos como principal limitação o seu exagerado formalismo. De facto, e retomando uma vez mais o exemplo da linguagem, não se compreende como pode a língua ser desligada dos seus usos concretos e da capacidade criativa dos agentes na sua adaptação mais ou menos versátil a diferentes situações. Nesta linha, e como refere Giddens[105], a exagerada preocupação com o significante, com a forma, faz esquecer as realidades a que ele se pode referir: “Conhecer uma linguagem significa certamente conhecer regras sintácticas mas, igualmente importante, conhecer uma linguagem significa adquirir uma variedade de instrumentos metodológicos envolvidos tanto na produção das próprias expressões como na constituição e reconstituição da vida social nos contextos quotidianos da actividade social”[106]. Por outras palavras, ao remeter o funcionamento da linguagem para as suas diferenças internas, os estruturalistas perdem a dimensão essencial dos usos sociais da mesma. Como Giddens uma vez mais refere, o que confere precisão à linguagem “vulgar” é o seu “uso em contexto”, enquanto parte integrante das estratégias dos actores na estruturação da sua vida quotidiana. Desta forma, a análise estrutural levanta sérios problemas metodológicos ao nível da construção dos “dados” científicos, uma vez que os processos de recolha e tratamento da informação devem ser analisados como resultado de mecanismos de negociação patentes nas situações interaccionais, elas próprias socialmente condicionadas[107].

          Por outro lado, é sabido que a análise estrutural tende, muitas vezes, na procura de invariantes que determinam o fluir social, a uma análise sincrónica e, por isso, não histórica, postulando a existência de universais que nunca se alteram (atente‑se nas propostas teóricas de Lévi‑Strauss, por exemplo).

          No entanto, enquanto instrumento metodológico, a análise estrutural oferece um quadro de inteligibilidade que, ao não se reduzir à consciência dos actores, evita muitos erros próprios de uma confiança cega nos discursos e práticas do senso comum. A procura da significação objectiva dos factos sócio‑culturais, na sua irredutibilidade à intenção humana, é um dos seus princípios fundamentais .

          Impõe‑se, por conseguinte, retirar algumas ilações destes combates epistemológicos. Uma delas, porventura a mais importante, liga‑se ao que José Madureira Pinto, no seguimento de Edgar Morin, apelida de “avanço em direcção à complexidade”[108]. Em vez de insistirmos no “paradigma da simplificação”, porque não aceitar controladamente alguma heterodoxia (de resto já plenamente assumida pelo mainstream da análise sociológica) e integrar, de forma tensa e dialéctica, algumas das perspectivas claramente complementares das diferentes correntes aqui apresentadas?

 

          2.4. Algumas teorias de “síntese”[109].

 

          A teoria social tem‑se vindo a debater, desde há largas dezenas de anos, com persistentes aporias que têm inibido avanços substantivos em áreas estratégicas da produção intelectual, resultantes, em grande parte, da luta que se desenrola no campo científico pela posse dos critérios de legitimação que seleccionam e credenciam um corpo disponível de teorias.

          Por outro lado, a falta de “audácia científica”[110] tem frequentemente como resultado o “marcar passo” teórico, isto é, a discussão recorrente em torno de pares epistemológicos (considerada por Bachelard como um poderoso obstáculo ao progresso científico).

          As propostas que em seguida se apresentam constituem, na nossa opinião, momentos representativos de significativos avanços substantivos ou “saltos” dialécticos na produção teórica sobre a constituição da cultura, da sociedade e da relação que estabelecem entre si.

          Talvez por essa mesma razão assumam a arquitectura própria das “grandes teorias”, visões de conjunto sobre a génese e o papel do social. Por isso, requerem o complemento de outras propostas teóricas que possibilitem um acesso mais directo à linguagem da pesquisa empírica, “desafiando” o seu potencial de estímulo a investigações concretas.

 

          2.4.1. Clifford Geertz e a concepção semiótica de cultura.

 

          Ao defender um conceito semiótico de cultura, Clifford Geertz aproxima‑se inevitavelmente de Max Weber, designadamente na procura das conexões de sentido e na rejeição das pretensões nomotéticas das ciências sociais: “Acreditando como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa à procura do significado”[111]. Todavia, Geertz é suficientemente claro ao defender, por um lado, a estruturação da significação e, por outro, a sua determinação social. Aliás, um pouco à semelhança de Paul Ricouer, Geertz considera as práticas sociais, eminentemente simbólicas, como textos, e o papel do etnógrafo semelhante ao do crítico literário. De facto, a sua tarefa é a de “tentar ler (no sentido de «construir uma leitura de») um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários tendenciosos”[112].

          Desta forma, Geertz acentua, simultaneamente, o carácter activo dos sujeitos na produção dos significados e o papel não menos activo do investigador no deciframento desses significados, o que exige, naturalmente, um trabalho de ruptura/construção de um objecto científico por oposição ao objecto real do senso comum. De facto, compete ao investigador seleccionar as estruturas de significação, interpretá‑las, descobrir a sua base social e a sua validade.

          Assim, ao contrário das correntes hermenêuticas, Geertz defende o carácter construído dos “dados” e a análise cultural como sendo duplamente interpretativa; afinal, analisamos através das nossas construções outras construções, forjadas no permanente fluir das práticas sociais. A análise cultural consiste, por isso, num conjunto de explicações de explicações. As explicações de segundo grau, construções do analista, seleccionam e dão coerência às explicações que os agentes fornecem sobre as suas próprias condutas.

          Desta forma, postula‑se igualmente uma dupla negação: a cultura não deve ser nem hipervalorizada/reificada (“...imaginar que a cultura é uma realidade «superorgânica», autocontida, com forças e propósitos em si mesma”) atribuindo‑se‑lhe um poder causal autónomo, nem reduzida/simplificada (“alegar que ela consiste no padrão bruto de acontecimentos comportamentais”[113]).

          Depois da dupla negação, uma nova perspectiva: a da cultura como narrativa ou contexto de inteligibilidade, “fabricação” ou “ficção” que resulta do trabalho de interpretação do que vai sendo transmitido nas e pelas práticas sociais. Desta forma, o trabalho do investigador assemelha‑se ao de alguém que ouve histórias, recontando‑as de acordo com as suas grelhas e instrumentos conceptuais. A cultura como narrativa distancia‑se, assim, das abordagens estruturalistas e sistémicas, já que rejeita a ideia do estudo da cultura como sendo a análise dos seus elementos constituintes e das relações internas entre eles. Do mesmo modo, postula‑se a demarcação face às correntes hermenêuticas que proclamam a necessidade da adequação/identificação/redução do discurso científico ao discurso dos actores sociais. A angústia da análise interpretativa da cultura reside, precisamente, na consciência de que nunca se tem acesso à “verdade” dos discursos:”(...) apenas se tem acesso àquela pequena parte dele que os nossos informantes nos podem levar a compreender”[114]. No entanto, possui uma qualidade insubstituível: a de salvar, pelo trabalho da escrita, aquilo que vai sendo dito e que, apesar de incompleto e parcial, traduz, afinal, a parcela de conhecimento possível.

          Por outro lado, se “as acções sociais são comentários a respeito de mais do que elas mesmas”[115], impõe‑se que o investigador se situe no espírito do que Geertz apelida de “interpretação densa da cultura”. De facto, a sua análise é microscópica (não microssociológica), o que equivale a um estudo minucioso, extensivo e em profundidade das unidades de análise seleccionadas. Todos os factos, todos os discursos, todos os indícios devem ser interpretados e relacionados entre si. No entanto, esta análise microscópica deve ser entendida essencialmente como uma análise contextual. Como Geertz refere, o etnógrafo não estuda aldeias mas sim nas aldeias, diferença substancial que nos leva à pedra de toque da análise cultural: a interpretação da especificidade de uma situação ou configuração complexa[116]. Não se trata, por isso, de “generalizar através dos casos” mas sim de “generalizar dentro deles”[117].

 

          2.4.2. Peter Berger e Thomas Luckmann — a construção social da realidade.

 

          Partindo embora das premissas da fenomenologia social, em especial da obra de Schutz (com o qual Thomas Luckmann colaborou), a abordagem destes autores complementa, pela sua complexidade, a obra do autor alemão. De facto, reivindicando as heranças mais diversas, conseguem superar algumas das deficiências das perspectivas fenomenológicas, em particular as limitadas referências aos constrangimentos institucionais.

          Assim, se é verdade que toda a realidade é socialmente construída, através das redes de relações intersubjectivas[118], não é menos verdade que os fenómenos que resultam desse conhecimento adquirem existência real e exterior aos agentes, condicionando‑os. Por outras palavras, aquilo que os homens conhecem subjectivamente como realidade exerce sobre eles efeitos objectivos que não devem nem podem ser negligenciados. Desta forma, Berger e Luckmann conciliam as perspectivas hermenêuticas de raiz weberiana e as correntes mais “duras” de origem durkheimiana. Nas suas próprias palavras, “é precisamente o duplo carácter da sociedade em termos de facticidade objectiva e significado subjectivo que torna a realidade «sui generis»[119].

          Adoptando a perspectiva de Schutz sobre os esquemas tipificadores do senso comum, que asseguram ordenação, coerência e estabilidade à vida quotidiana, os nossos autores não se cansam de sublinhar que o seu objecto é o homem comum e o seu conhecimento pragmático. Considerando, tal como Schutz, que a realidade da vida quotidiana é a “realidade predominante” ou a “realidade por excelência”, Berger e Luckmann sublinham, todavia, o carácter preexistente desse mundo que se oferece às consciências individuais como um “mundo de coisas” com a sua indesmentível facticidade. Enquanto realidade objectivada, o universo da vida quotidiana impõe‑se como anterior e exterior aos indivíduos. É a linguagem, autêntico instrumento da cultura colectiva, que possibilita a permanente objectivação da expressividade humana, permitindo que todos os indícios e sintomas da intencionalidade do outro nos sejam acessíveis de forma “maciça e irresistível”.

          É óbvio que existe alguma ingenuidade em supor que o outro nos é inteiramente acessível através dos processos intersubjectivos. De facto, os constrangimentos fundados em sistemas de relações objectivas que contextualizam a acção/interacção social escapam largamente à consciência individual.

          No entanto, ao falarem de toda a armazenagem de conhecimentos e experiências que preexistem a existência individual e são permanentemente transmitidos às gerações vindouras, Berger e Luckmann transcendem em muito a realidade do “aqui e agora” fenomenológico. O próprio “stock social do conhecimento”, conceito herdado de Schtuz, para além de propiciar a localização dos indivíduos numa determina sociedade, incorpora igualmente a consciência dos seus limites. A liberdade e a criatividade são, desta forma, probabilidades num campo de possíveis.

          As instituições[120], aliás, são “experimentadas como existindo por cima e além dos indivíduos”, possuindo “realidade própria”[121], corporizada nos indivíduos através do processo de socialização e promovendo a obediência a determinadas tipificações (representadas pelos papéis) que favorecem um dado estado de coisas, ou, se preferirmos, a reprodução social. No entanto, e como forma de fugir à reificação da ordem social (como acontece com Durkheim) Berger e Luckmann admitem uma circularidade: as instituições exercem poderosos constrangimentos sobre os agentes, mas, por outro lado, “o mundo institucional é a actividade humana objectivada”[122]. Por outras palavras, existe uma permanente tensão entre a tendência para obedecer à ordem institucionalmente estabelecida e a contra‑tendência para lhe desobedecer, relativizar e criticar, assumindo desvios.

          Esta perspectiva contém, assim o pensamos, ricas potencialidades heurísticas, na medida em que, ao mesmo tempo que se apoia na minúcia das observações fenomenológicas, dando igualmente conta do lado subjectivo do mundo social, não esquece os constrangimentos sociais, sem no entanto os considerar como uma entidade alienada da actividade humana e com um estatuto ontológico superior ou à parte[123].

          Em síntese, a proposta teórica destes autores consiste na explicitação de três momentos fundamentais[124]:

          ‑ um primeiro momento de exteriorização através da linguagem, de um conjunto de significados subjectivos produzidos nos processos intersubjectivos;

          ‑ um segundo momento de objectivação desses significados em tipificações que conduzem a instituições[125];

          ‑ um terceiro momento de interiorização desse mundo institucional, designadamente através do processo de socialização.

          Corolário: “A sociedade é um produto humano. A sociedade é uma realidade objectiva. O homem é um produto social”[126].

         

          2.4.3. Pierre Bourdieu e o conhecimento prático do mundo.

 

          Em Pierre Bourdieu, encontramos um pensamento de síntese que supera as velhas aporias sujeito versus objecto ou, se preferirmos, subjectivismo versus objectivismo (ou ainda finalismo versus mecanicismo, espontaneidade versus constrangimento, liberdade versus necessidade, escolha versus obrigação, etc.), enquanto expressão de essências que ignoram o fundamental de uma teoria global sobre a produção da sociedade e das práticas sociais.

          A sua proposta assenta numa dupla leitura da realidade social: por um lado, enquanto “objectividade de primeira ordem”, ligada à desigual distribuição/apropriação de recursos/lucros materiais e simbólicos; por outro lado, enquanto “objectividade de segundo grau”, isto é, englobando os princípios que estão na base da génese das estruturas sociais e que fazem do corpo história incorporada, matriz de percepção, avaliação e acção[127].

          Desta forma, Bourdieu transforma os antagonismos em momentos, aproveitando as contribuições de correntes opostas e eliminando os seus vícios[128]: o seu conceito de habitus remete‑nos para as homologias existentes entre as estruturas mentais e as estruturas sociais, eliminando a antinomia entre a análise da subjectividade e a análise dos constrangimentos estruturais objectivos. Assim, defende uma filosofia da acção de tipo disposicional, enquanto estudo das relações inerentes às “potencialidades inscritas no corpo dos agentes e nas estruturas das situações onde eles agem”[129], delimitando um pensamento relacional que se opõe às leituras “substancialistas” da realidade.

          Para explicitar esta posição, Bourdieu confere especial importância ao estudo da competência prática dos agentes sociais, esse pensamento que se caracteriza por uma “intenção sem intencionalidade” e que se funda na “«actividade real como tal», isto é, na relação prática com o mundo, nesta visão quase‑corporal que não supõe nenhuma representação nem do corpo, nem do mundo e menos ainda da sua relação”[130].

          Este pensamento que não se pensa a si próprio não pode, no entanto, ser concebido como puro conhecimento. O conhecimento prático deve ser encarado como um conjunto de operações práticas, condicionadas, em última análise, pelas condições materiais de existência e que, sendo o seu produto, produzem‑nas também. As práticas sociais são, neste sentido, simultaneamente estruturadas e estruturantes, reprodutoras e transformadoras, objecto de constrangimento e fonte de espontaneidade. Desligado da representação explícita ou do conhecimento discursivo, este conhecimento prático, próprio de uma concepção de um estruturalismo genético, assegura, como já foi referido, a correspondência entre as categorias cognitivas/mentais, e as condições de existência objectivas/materiais de uma forma não mecânica.

          A sua principal vantagem heurística reside, precisamente, na afirmação de uma visão não idealista sobre as sociedades, sem cair num mecanicismo de contornos reducionistas. O habitus, de facto, não é uma noção a‑histórica ou uma essência. Ele é sempre produto histórico de uma situação, actualizado de acordo com o campo[131] em que actua e instância de mediação entre as ditas condições objectivas de existência e a competência simbólica ou representacional.

          Desta forma, um determinado espaço de posições (definido, como já vimos, por uma desigual distribuição de recursos ou capitais), condiciona a matriz de percepção e de avaliação (disposições) que originam um conjunto de tomadas de posições, homólogas às condições materiais de existência de que são simultaneamente produto e produtor. Os gostos culturais, por exemplo, resultam, em última análise, da divisão objectiva das classes (sociais, étnicas, de género, etc.).

          Assim, nem o agente é um autómato passivo e comandado pela estrutura social, nem tão‑pouco age ao acaso ou ao sabor da sua livre criatividade. Os sistemas simbólicos, por conseguinte, devem ser encarados como “produtos sociais que produzem o mundo”[132]: sendo mais do que o reflexo das estruturas sociais, contribuem decisivamente para as construir.

          De facto, Bourdieu não se esquece de referir que a reprodução se coaduna sempre com a produção/construção/invenção da sociedade. O habitus distingue‑se do hábito por ser uma noção genética, histórica e não inata. O conhecimento prático do mundo, que o tem o corpo socializado como o seu principal suporte, concilia o interior dos agentes sociais, a sua biografia individual, com os factos objectivos e exteriores[133]. Enquanto conjunto de disposições encarnadas nos agentes, o habitus é uma grelha de orientação no mundo, uma espécie de mapa cognitivo que vive o presente e avalia o futuro de acordo com uma origem e uma trajectória que formam um capital de experiências. Assim, ao contrário do hábito, o habitus não é mecânico, automático e repetitivo, sendo, pelo contrário, “algo de profundamente gerador (...) que tende a reproduzir a lógica dos condicionamentos mas fazendo‑os sofrer uma transformação”[134]. Ao caracterizar este conceito pelo enfrentar criativo de novas situações de forma “relativamente imprevisível, de uma maneira tal que não podemos passar simples e mecanicamente das condições de produção ao conhecimento do produto”[135], Bourdieu retira parcialmente razão às críticas que o acusam de fundar uma racionalidade dogmática e uma “circularidade trágica”[136], acentuando o carácter inventivo e relativamente autónomo do conceito de habitus, enquanto história tornada corpo e corpo tornado história. Se o habitus é feito para o lugar (ou posto), ele contribui também para fazer o lugar, tanto mais quanto houver uma distância considerável entre as condições sociais que produziram o agente e as exigências sociais inscritas nesse lugar. Assim, existem espaços (limitados) de invenção e de liberdade, aproveitando décalages e zonas de incerteza[137].

          Em síntese, o conhecimento, que a si mesmo se desconhece, não resulta de uma acção estratégica e explicitamente pensada; ele é o produto e o gerador de certas condições sociais que levam as acções a serem congruentes com determinados interesses que não são, todavia, o resultado de uma escolha racional e deliberada. Assim, se não podemos compreender as taxinomias práticas sem regressarmos às condições sociais da sua produção, não é menos verdade que não vamos encontrar nas práticas o seu reflexo fiel, ou não fosse o conhecimento prático um mecanismo de “douta ignorância”[138].

          E como os agentes sociais estão envolvidos num jogo – e apesar desse jogo se processar em vários tabuleiros (ou campos) com as suas regras específicas ‑, apenas a crença no seu desenrolar (illusio) justifica a existência social. “O motor – a que se chama por vezes motivação – não está nem no fim material ou simbólico da acção, como pretende o finalismo ingénuo, nem nos constrangimentos do campo, como pretende a visão mecanicista. É a relação entre o habitus e o campo que faz com que o habitus contribua para determinar o que o determina”[139]. O sentido ou investimento no jogo, condição essencial da sua reprodução e transformação, revela‑nos, afinal, a centralidade do simbólico enquanto conjunto de estratégias, muitas vezes inconscientes, que permitem ao sujeito “sair da indiferença e afirmar‑se como agente activo, envolvido no jogo, ocupado, habitante do mundo habitado pelo mundo, projectado para finalidades e dotado, objectivamente, portanto, subjectivamente, duma missão social”[140]. Libertando o homem do seu destino (“Consagrado à morte (...) o homem é um ser sem razão de ser”[141]), as lutas simbólicas no interior de um campo, envoltas na crença no funcionamento do próprio campo, alcançam o seu objectivo crucial: legitimar uma posição e uma existência, justificar uma origem e um trajecto, iluminar um futuro e o(s) seu(s) projecto(s).

 

          2.4.4. Anthony Giddens e a teoria da estruturação.

 

          Anthony Giddens é, a par de Bourdieu, um dos autores que não renuncia, em tempos de um agudo relativismo, a construir visões sistemáticas e globais sobre as sociedades contemporâneas, apesar de recusar qualquer esquema teleológico ou de evolução unilinear.

          Fortemente influenciado por um contexto teórico onde se degladiam as perspectivas dominantes (funcionalista e estruturalista) e as novas correntes da etnometodologia (recuperando a tradição hermenêutica e fenomenológica), Giddens é bastante claro na afirmação de uma postura anti e pós‑positivista. A sua “teoria da estruturação” recupera o primado da análise da acção dos agentes, afirmando as significações subjectivas como uma parte integrante e essencial da realidade social. O seu projecto é estudar a “actividade social humana e a intersubjectividade”, através de uma “crítica positiva” (no sentido de construtiva) às sociologias interpretativas[142]. No entanto, critica simultaneamente a ingenuidade de certas abordagens hermenêuticas e fenomenológicas que esquecem a íntima imbricação entre a ordem da interacção quotidiana e a ordem institucional, entre a vida prática e os mecanismos de distribuição assimétrica do poder.

          De facto, pretendendo adequar historicamente a teoria social (estagnada por um “consenso ortodoxo”[143]) às crescentes solicitações dos novos movimentos sociais, Giddens, à semelhança de Bourdieu, repensa as tradições do pensamento sociológico de modo a torná‑las mais operativas e interventivas[144]. Para esse efeito, não se coíbe de articular aspectos das correntes estruturalistas e pós‑estruturalistas, com uma desconstrução crítica do marxismo[145] e as novas pistas da etnometodologia.

          A sua perspectiva, no entanto, não se resume a um ecletismo mais ou menos assumido. Giddens pretende sem dúvida ir mais longe, através de um longo e árduo trabalho de conceptualização com vista à formulação de uma metateoria capaz de servir de antídoto à dispersão teórica existente.

          Assim, a teoria da estruturação, para além de conciliar as teorias da acção e as da estrutura[146], supera o dualismo da estrutura por uma dualidade em que as estruturas e as acções se constituem mutuamente: “(...) as regras e os recursos utilizados na produção e reprodução da acção social são ao mesmo tempo os meios da reprodução sistémica”[147]. Desta forma, evita‑se tanto uma reificação das estruturas enquanto entidades estáticas, como a descontextualização das práticas sociais e do agenciamento[148]. O problema das perspectivas interpretativas consiste em serem fracas na estrutura[149], enquanto que as abordagens holísticas são decididamente fracas na acção[150].

          O objecto da teoria da estruturação é, então, a produção e reprodução das práticas sociais no espaço‑tempo, práticas que, sendo recorrentes e reflexivas, permitem, paralelamente, a contínua reprodução dos sistemas sociais. As estruturas, aliás, existem apenas numa ordem virtual, através das suas instantaneizações práticas: “Dizer que a estrutura é uma ordem virtual de relações transformadoras, significa que os sistemas sociais, enquanto práticas sociais reproduzidas, não possuem «estruturas», mas antes propriedades estruturantes”[151].

          A teoria da estruturação refere‑se, assim, a dois eixos fundamentais: a importância da consciência prática (practical consciousness) como fonte de conhecimento e de orientação na vida quotidiana e o carácter espácio‑temporalmente situado da acção humana.

          Começando pela consciência prática, importa, antes de mais, situá‑la entre o pensamento inconsciente e o pensamento discursivo, fornecendo o quadro de inteligibilidade necessário à vida quotidiana – um conjunto de esquemas interpretativos que conferem sentido à realidade. Neste e noutros aspectos, Giddens aproxima‑se claramente da fenomenologia e da etnometodologia, designadamente quando estas correntes defendem que o mundo da realidade quotidiana constitui a realidade primeira ou predominante. É através desta consciência que os agentes sabem como prosseguir (“how to go on”), através de um conjunto de regras tácitas e de significados taken‑for‑granted. O agente é, por conseguinte, capaz de recriar pela sua acção as estruturas sociais que actuam na e pela sua prática. Giddens não lhe nega, por isso, a intencionalidade, apesar de considerar que a motivação da acção é, em grande parte, inconsciente, ao mesmo tempo que refere a possibilidade de existirem consequências não pretendidas da acção que se transformam, necessariamente, em consequências desconhecidas da acção. O autor é ainda mais claro na aproximação às correntes interpretativas quando faz a apologia do conceito de agente, enquanto dotado de competências que o diferenciam do mero sujeito. Aquele, é capaz de reflectir estrategicamente sobre as suas condutas, mesmo as mais rotineiras – “os hábitos mais rigorosos ou as normas sociais mais inabaláveis envolvem uma atenção reflexiva, contínua e pormenorizada”[152]; “A produção da sociedade (...) é sempre e em toda a parte uma realização engenhosa dos seus membros”[153]. Sendo auto‑reflexivos, animados por motivos e razões, os agentes contribuem, juntamente com as estruturas (conjunto de práticas sociais codificadas) para a organização dos sistemas. Desta forma, os agentes são verdadeiros teóricos sociais, o que justifica a necessidade de uma hermenêutica dupla já que, não só as ciências sociais são “contaminadas” pela acção dos agentes (eles próprios portadores reflexivos de conceitos), como as descobertas dessas ciências acabam por ser assimiladas e integradas na realidade social, modificando‑a, o que configura uma espécie de “conhecimento mútuo”, partilhado tanto pelos cientistas como pelos teóricos leigos. O cientista social não pode ignorar, por isso, que os resultados do seu conhecimento vão ser apropriados pelo senso comum e “nas componentes familiares das actividades práticas”[154]. O que não nos deve fazer esquecer que, entre conhecimento científico e conhecimento do senso comum, existem igualmente especificidades e oposições diversas. No entanto, Giddens revela, a nosso ver, um exagerado optimismo sobre as potencialidades deste “diálogo” ou “conhecimento recíproco”, ao afirmar que ele permite aos cientistas sociais “saberem o que o agente ou agentes sabem e aplicam na constituição das suas actividades”[155]. Não é o mesmo autor que defende o peso do contexto (não redutível às situações de interacção), os níveis inconscientes da acção social e o desconhecimento de algumas das suas componentes por parte dos agentes (“A produção ou constituição da sociedade é uma realização elaborada dos seus membros, mas uma realização que não acontece sob condições totalmente pretendidas ou compreendidas por eles”[156])? Giddens é bastante claro ao referir que a motivação da acção raras vezes é explícita, permanecendo em níveis habitualmente inacessíveis ao agente: “inquirir sobre os motivos de alguém para agir de uma certa forma é procurar elementos no seu comportamento de que ele pode não estar consciente”[157]. Além do mais, existem situações “problemáticas”, que colocam em causa o conhecimento mútuo que orienta os agentes, retirando‑lhes a habitual segurança ontológica.

          Na crítica às correntes estruturalistas e pós‑estruturalistas, Giddens, influenciado, entre outros, por Wittgenstein e Garfinkel, desenvolve a importância da linguagem enquanto elemento de constituição da vida social quotidiana e das significações práticas. Aliás, a linguagem não implica necessariamente um discurso verbalizado, já que muitas das acções quotidianas não são nem programadas, nem expressas discursivamente[158], apesar de representarem uma cognoscibilidade que é simultaneamente produto e condição de funcionamento dos sistemas sociais. De facto, a utilização da linguagem implica a compreensão intersubjectiva das “pistas contextuais”. Sendo um conjunto de regras abstractas, a sua utilização está longe de ser mecânica. Tal é demonstrado, uma vez mais, pela criatividade e a competência dos agentes na constituição das sociedades através dos encontros e da produção/reprodução contínua das práticas sociais. No entanto, o entendimento do outro nem sempre é fácil ou mesmo possível. Existe, também, a possibilidade e a “vontade de enganar, baralhar, desapontar, ser mal interpretado”[159]. De novo, a incompletude do agente: a comunicação, a linguagem, é “qualquer coisa que é feita, realizada pelo locutor, mas sem conhecimento perfeito de como o faz”[160]. Além do mais, como já referimos, existem domínios onde o “conhecimento mútuo” não é eficaz. Na ausência de consenso, os agentes têm que “demonstrar” o seu conhecimento da situação e lutar para impor os seus significados. O que implica, necessariamente – e aqui Giddens distancia‑se das abordagens interpretativas mais ingénuas –, uma atenção especial à capacidade diferencial de mobilização de recursos, isto é, à distribuição assimétrica ou “diferencial” do poder, geradora de dominação. As relações de interdependência são, simultaneamente, relações de exercício de poder. Por isso mesmo, as situações de interacção dependem de uma determinada ordem moral, tida como legítima.

          No que diz respeito ao carácter situado da acção humana, o autor britânico acentua o papel dos cenários (settings) de interacção, considerando‑os como elementos integrantes do stock de conhecimento mútuo através do qual os agentes constróem o sentido do que os outros e eles próprios fazem. Esses cenários ligam a acção humana a um determinado contexto, permitindo os encontros de indivíduos no espaço‑tempo e a produção do sentido[161]. Nas palavras de Giddens, “os cenários de acção e interacção, distribuídos ao longo do espaço‑tempo e reproduzidos no «tempo reversível» do quotidiano, são parte integrante da forma estruturada que tanto a vida social como a linguagem possuem”[162]. Ora, é precisamente por esse tempo reversível, repetitivo e rotineiro se estender tanto à curta duração do quotidiano como à longa duração do tempo institucional, que as práticas sociais estão impregnadas dos condicionamentos estruturais, dos quais são simultaneamente produto e produtor.

          No entanto, apesar dos constrangimentos derivados do carácter situado da acção humana[163], os cenários de interacção funcionam também como possibilitadores de um conjunto de estratégias que libertam a acção humana da dependência face ao contexto (context freedom). As estruturas funcionam, simultaneamente, como entrave e possibilidade da acção humana, sendo impossível, por conseguinte, dissociá‑las. Não faz sentido, assim, separar a estrutura das práticas, a estática da dinâmica, a reprodução da constituição permanente das sociedades. As regras e os produtos culturais, sendo rotinas (mecanismos automaticamente accionados), representam, simultaneamente, uma resposta actualizada e criativa, muitas vezes proporcionada por acontecimentos imprevistos.

          Em suma, em A. Giddens, à semelhança de P. Bourdieu, temos uma teoria de síntese[164] sobre a génese e o funcionamento do social, superando velhas e inoperantes aporias e mantendo um intenso enfoque na historicidade dos sistemas sociais, em busca dos mecanismos de validade universal através dos quais se estruturam as sociedades. Negam, por isso, os processos lineares de pensamento, assentes na busca de um factor determinante da realidade social. Em ambos os autores existe, também, a preocupação de analisar o saber prático dos actores sociais, responsável pelas suas acções, condutas, posturas e linguagens quotidianas.

          No entanto, o autor britânico acentua mais a intencionalidade e a cognoscibilidade dos agentes, considerando mesmo que as componentes de significação devem ser tidas em linha de conta na estruturação dos processos sociais.

          Bourdieu, por seu lado, preocupa‑se com o jogo relacional entre o habitus e o campo, princípio supremo de visão e de divisão que estrutura diferentemente as categorias de percepção da realidade. Da mesma forma, acentua as correspondências existentes na trilogia posições/disposições/tomada de posições; correspondências que estão na base da construção do espaço social, no qual actuam dois grandes princípios de diferenciação: o capital económico e o capital cultural que, com o seu peso relativo, contribuem para o volume total de capital possuído por um agente e que está na base do seu campo de possíveis...

          Em Giddens, pelo contrário, salienta‑se a ênfase no carácter dinâmico da estrutura e no facto desta não poder ser considerada como exterior ao indivíduo[165]. A estrutura não é “impessoal”, nem pode ser “coisificada”. Neste sentido, Giddens é mais declaradamente antipositivista e antidurkheimiano, facto a que não serão alheias as influências da etnometodologia e das sociologias interpretativas em geral.

          Finalmente, se, em Bourdieu, podemos colocar em dúvida a real autonomia (relativa) da dimensão simbólica, o mesmo não se passa com Giddens, onde sobressai de forma nítida um modelo de circularidade. Com efeito, para o autor francês, o simbólico, apesar de omnipresente nos processos sociais (enquanto propriedade inscrita nos sujeitos) acaba por se subordinar à lógica das estruturas objectivas. Em Giddens, por seu lado, a interdependência entre estrutura e acção, produção e reprodução, elimina qualquer relação de subordinação, ainda que mitigada, fomentando as lógicas de reciprocidade.

         

 

          3. Novo ponto de partida em direcção a uma análise pluriperspectivada[166] dos fenómenos culturais.

 

          Duvidar‑se‑á, com alguma pertinência, da utilidade de um inventário teórico relativamente longo sobre o stock de teorias disponíveis, em especial quando essas teorias cobrem os principais eixos em torno dos quais se articula a produção teórica em sociologia.

          Argumentar‑se‑á, igualmente, que seria mais frutuoso entrar directamente na discussão de teorias de médio alcance sobre dimensões específicas do nosso objecto de estudo.

          No entanto, os corpos teóricos aqui discutidos podem com toda a relevância ser utilizados como esquemas de interpretação dos fenómenos simbólico‑culturais. Estes, de facto, situam‑se no centro da própria teoria social, fornecendo ramificações para as mais variadas pesquisas empíricas. As ciências sociais são, no seguimento da classificação proposta por Weber, ciências da cultura; ciências duplamente interpretativas que analisam representações da realidade social. Neste sentido, toda a produção teórica lida permanentemente com fenómenos culturais.

          Por outro lado, muitas destas propostas possuem ainda uma qualidade epistemológica fundamental, a de articularem diferentes níveis interpretativos, designadamente o metateórico, o teórico e o empírico. Desta forma, não só possibilitam uma reflexão abstracta sobre as próprias condições da reflexão teórica, como relacionam conceitos e modelos com aplicabilidade no estudo de problemas concretos.

          Passaremos agora a salientar as principais contribuições deste porventura exaustivo inventário teórico para a construção de um modelo de análise impulsionador da presente pesquisa. Fazemo‑lo partindo dos critérios do que noutra ocasião apelidamos de heterodoxia controlada[167], ou seja, de uma recusa dos consensos dominantes que procuram o conforto epistemológico num dos pólos dicotómicos das velhas aporias. Ao ser controlada, tal heterodoxia não procura, em nome de um espírito de originalidade a todo o custo, subverter os cânones habituais da validação científica, muitas vezes em retóricas de duvidosa legitimidade; tão‑só pretende rasgar novos caminhos de pesquisa, partindo do terreno onde as teorias unilaterais ficaram.

          Assim, ao nível metateórico, sublinhamos, antes de mais, a necessidade de abrir vasos comunicantes entre várias propostas teóricas, ainda que de orientações distintas. Esta procura de interpenetração de perspectivas complementares, mais do que um mero ecletismo, é devedora da atitude relacional anteriormente definida, e que consiste em procurar em cada posição teórica unilateral espaços de comunicação com outras propostas.

          Simultaneamente, defende‑se uma predominância epistemológica das teorias de conjunto ou “grandes teorias”, capazes, pelo seu alto nível de abstracção, de superar e integrar uma acentuada dispersão e relativismo que impedem a sistematicidade e coerência dos processos de investigação.

          Ao nível teórico, seleccionamos importantes contribuições das teorias anteriormente expostas, designadamente:

          ‑ o conceito marxista de praxis, enquanto pressuposto de que os agentes sociais são os construtores do seu devir social e da sua própria história, enriquecido com as importantes contribuições de Bourdieu e Giddens sobre o conhecimento e a consciência prática;

          ‑ a consequente rejeição de visões essencialistas ou universais dos fenómenos sócio‑culturais, na defesa de abordagens “parciais e situadas”[168];

          ‑ a recusa, igualmente, de qualquer forma de determinismo, optando, antes, pela interacção das diversas instâncias da realidade (recusando, por conseguinte, a hierarquização do real em camadas)[169];

          ‑ a necessidade de conjugarmos perspectivas sociologistas com abordagens compreensivas, respeitando o poder de facticidade externa dos fenómenos sociais, mas rejeitando um papel de autómatos passivos aos agentes sociais. Da mesma maneira, não podemos considerar a estrutura social como sendo algo de meramente exterior aos indivíduos, já que existe uma continuidade entre os fenómenos institucionais e as práticas sociais, articulação que é necessário explicitar de um ponto de vista analítico, mesmo para as situações concretas mais anódinas e aparentemente triviais ou desligadas de um significado sociológico;

          ‑ desta forma, parece fazer todo o sentido uma recente inflexão no curso dominante da teoria social na direcção de uma dignificação da cognoscibilidade dos agentes sociais, nomeadamente através dos pressupostos de que qualquer actor, mesmo nas situações mais desfavoráveis, dispõe de um espaço táctico e de algum poder, por mais escasso ou inconsequente que seja;

          ‑ a consideração, complementar da anterior, de que a margem de manobra ou de liberdade dos agentes sociais, apesar de real e efectiva, deve ser analisada como um espaço finito de possibilidades, sendo que a ocorrência de determinadas acções acontece com um grau mais elevado de probabilidade do que outras;

          ‑ a concepção de que os fenómenos simbólico‑culturais, na sua autonomia e especificidade relativas, aparecem como elementos de charneira e de mediação entre as estruturas sociais e as práticas sociais, constituindo, por isso, um terreno de análise especialmente vocacionado para as intersecções, as interacções e as perspectivas de síntese, recusando as “teorias do reflexo” segundo as quais a ordem cultural seria um mero espelho da dimensão social[170];

          ‑ uma particular atenção analítica aos factores que melhor exteriorizam a (relativa) autonomia da ordem cultural na multidimensionalidade do espaço social, designadamente a construção simbólica, as múltiplas linguagens e formas expressivas (com especial destaque para a hexis corporal), os rituais e todas as formas de representação e de ideação.

          Desta forma, apesar de mantermos uma perspectiva materialista e não essencialista sobre os fenómenos sócio‑culturais, pensamos enriquecer os processos de pesquisa com um “descer ao quotidiano”, um “ver ao perto” as múltiplas formas de construção social da realidade, incluindo os processos mentais e cognitivos de formação das identidades.

 

 

CAPÍTULO II

O LUGAR DOS PÚBLICOS

 

            Falar e reflectir sobre os públicos das culturas urbanas leva‑nos, antes de mais, a questionar as relações entre a oferta e a procura cultural, ou, se preferirmos, entre a produção e o consumo/recepção. De facto, estudos exclusivamente centrados no pólo da recepção cultural tendem a ignorar a influência da estrutura da oferta de bens e serviços no recrutamento de públicos e de audiências e na construção social dos gostos. Como refere Maria de Lourdes Lima dos Santos, “a criação tem de ser entendida como um processo que visa produzir não só as obras, mas também a sua própria recepção, através da produção e difusão de determinadas categorias de percepção”[171].

            No entanto, uma análise apenas preocupada com a produção de bens e serviços culturais, ignoraria todo o trabalho de reinterpretação/reconstrução exercido pelos públicos na sua apropriação. Se é verdade que a desmontagem dos produtos culturais depende, em grande parte, dos códigos utilizados na sua fabricação, impondo, por isso, limites ao trabalho de recepção, não é menos verdade que a constituição dos públicos e a sua matriz de gostos influenciam fortemente o campo de possíveis da produção cultural. Howard Becker refere mesmo que uma das formas de criar novas modalidades organizativas e géneros culturais inéditos, passa pela constituição de novos públicos[172]. Da mesma forma, a difusão de novidades nos art worlds[173] encontra fortes limitações em clivagens sociais de base classista, sexual, etária, regional ou étnica.

            Como Paul DiMaggio menciona, os estudos centrados unicamente na dimensão do consumo, tendem a considerar a divisão de géneros artísticos contidos nos inquéritos por questionário como “divisões naturais” efectuadas pelo senso comum. Por outro lado, as análises que apenas se preocupam com a produção concebem os indivíduos como agentes passivos e obrigados a escolher entre o leque de alternativas que os produtores oferecem[174].

            Assim, importa, no mesmo esforço analítico, estudar não só o que os públicos fazem aos produtos culturais, como também os públicos que estes fazem.

            Desta forma, o estudo dos públicos da cultura remete‑nos, decisivamente, para a multiplicidade dos mundos da cultura, enquanto espaços organizados e socialmente estruturados de produção, expressão e fruição culturais. Analisar as formas culturais através das quais se exprime a contemporaneidade não é indissociável, por conseguinte, da distribuição desigual dos indíviduos na estrutura social, nem tão‑pouco das reconfigurações mais ou menos bruscas que atravessam as modernas sociedades.

 

            2.1. De um modelo estático e hierarquizado dos níveis de cultura a um modelo dinâmico e plural.

 

            A persistente divisão das formas de expressão cultural em “pequena” e “grande” tradição rompe com um longo período de uma relativa indiferenciação dos públicos da cultura, em que nobreza e plebe, maugrado as pesadas desigualdades sociais, conviviam num espaço mais ou menos conspícuo. A centralização e a especialização do poder exigiram práticas e posturas sóbrias e austeras, em nada consentâneas com uma grande proximidade física entre os “eleitos” e o povo.

            Este modelo, fortemente hierarquizado, assentava numa concepção essencialista e etnocêntrica de cultura, opondo os “homens cultos” ou “cultivados” à massa bárbara e ignorante.

            A imposição arbitrária de um determinado padrão de cultura, apresentando como universais um conjunto de representações que, de facto, são o património restrito de certas franjas sociais, encontra na inculcação pedagógica o seu principal instrumento:

            “(a educação é vista) como símbolo de refinamento, de maneiras e de comportamentos que devem permitir a distinção face ao «vulgar»”[175].

            A grande massa das camadas populares (inicialmente confinada à “cultura popular” ou “folk culture” e mais tarde, com o advento das sociedades industrializadas, à “cultura de massas”) era vista segundo um padrão de negatividade: constituíam‑na os não‑cultos, os não‑instruídos, os não‑cultivados. A sua percepção era sempre feita a partir de um ponto de vista soberano e não‑autóctone: a única forma de existência das culturas “menores” era a partir da construção que dela faziam os intelectuais das camadas dominantes: a “folclorização” e “etnologização” destas formas de expressão cultural consistia numa forma de aniquilamento do seu potencial criador, domesticando indivíduos que, antes de serem tidos como laboriosos, eram considerados perigosos. Folclorizar ou etnologizar as culturas populares significava projectá‑las para um passado de contornos bucólicos e ruralizantes, longe do bulício e dos conflitos da indústria e das grandes cidades[176], reservando‑lhes a sossegada “aura” da pré‑modernidade.

            Com a passagem do artesão ao artista “profissional” criam‑se as condições necessárias para a constituição de campos culturais autónomos, formados por hierarquias e instâncias de legitimação próprias. O artista medieval, também ele, muitas vezes, em íntimo contacto com as mais distintas camadas sociais (pense‑se, por exemplo, nos jograis) é substituído pelo intelectual de corte, geralmente associado ao surgimento, em meados do século XVI, das academias, lugar privilegiado do amplo movimento de secularização da cultura e de formação de uma elite civil[177].

            Com o alargamento (ainda que incipiente) dos públicos, no século XIX, assiste‑se a um amplo movimento de heroicização do autor, doravante tido como figura carismática, singular e altamente dotada, vivendo num universo à parte e fugindo, muitas vezes, às regras e imposições sociais que regulam a vida do comum dos mortais.

            É no século XX, no entanto, que ganha contornos mais definidos a oposição que aqui vai suscitar o nosso interesse: cultura de elite/alta cultura/cultura cultivada versus cultura de massas/baixa cultura/cultura comum.

            São múltiplos os factores que contribuíram para a génese desta dicotomia: aparecimento da figura do artista e constituição de campos culturais autónomos com a consequente distanciação entre o autor e o receptor; desenvolvimento industrial e da produção em série (fordismo); aumento generalizado do nível de vida, em especial nas camadas populares, processo paralelo ao aprofundamento do Estado‑Providência; conquista, por parte destas, de uma fracção significativa de tempo livre; alargamento e diversificação dos públicos; surgimento das indústrias culturais e mercadorização da cultura.

            A nível da própria análise sociológica criam‑se compartimentações sub‑disciplinares: “...separação entre uma Sociologia da Cultura, uma Sociologia da Vida Quotidiana e uma Sociologia da Comunicação. Reserva‑se, em regra, a primeira para o estudo das obras, da produção cultural nobre, no domínio do saber constituído; dedica‑se a segunda ao estudo das práticas culturais no domínio da experiência existencial (...); privilegia‑se na terceira o estudo das manifestações da chamada «cultura de massas»”[178].

            Muitas foram as críticas dirigidas à massificação e mercantilização da cultura, antecipando sessenta anos um debate que se prolongou até aos nossos dias. Não deixa ser curioso  verificar que essas críticas cobriam toda a diversidade do espectro ideológico. As mais interessantes, todavia, partem da esquerda mais ou menos influenciada pela tradição marxista enquanto principal fonte da chamada Teoria Crítica.

            Adorno e Horkheimer utilizam, possivelmente pela primeira vez[179], a expressão “indústria cultural”, considerando‑a mais apropriado do que o conceito de “cultura de massas”, já que este sugere que a cultura nasce espontaneamente das massas, proposição que categoricamente rejeitam. Por outro lado, apesar de muitos dos processos de produção não serem estritamente industriais, o conceito justifica‑se pelo seu cariz de estandardização e ainda pela racionalização das técnicas de distribuição.

            Estes autores apontam o dedo ao carácter ideológico da produção cultural (nas mãos de poderosos monopolistas), supostamente orientada para as necessidades das pessoas, mas realmente empenhada em distanciar os criadores e os consumidores, eliminando todas as resistências que estes últimos possam desenvolver contra um poder cada vez mais centralizado. De que forma? Através do controle das consciências individuais, submetidas a uma estandardização e uniformização intensas. Afinal, os detalhes diferenciadores dos produtos das indústrias culturais são mutuamente substituíveis (“interchangeable”). A especificidade humana desaparece e as pessoas comportam‑se de acordo com os modelos servidos pelas indústrias culturais. Adorno afirma, em artigo mais recente, que as massas não constituem o sujeito, antes se apresentam como o objecto da indústria cultural; não são a sua medida mas sim a sua ideologia[180].

            Walter Benjamin, por seu lado, desenvolve uma original tese sobre a “decadência da aura” protagonizada pelas indústrias culturais enquanto ameaça à singularidade e à unicidade da obra de arte. Ao destruírem a lonjura, característica essencial da autenticidade, as obras da cultura de massas, porque baseadas na reprodução, não conseguem restituir o aqui e agora da obra de arte: “Poderia caracterizar‑se a técnica da reprodução dizendo que liberta o objecto reproduzido do domínio da tradição. Ao multiplicar o reproduzido, coloca no lugar de ocorrência única a ocorrência em massa”[181].

            É perceptível, nestas palavras de Walter Benjamin, um curioso paradoxo: apesar de pretender, como claramente afirma no prólogo da sua reflexão sobre a reprodutibilidade técnica da obra de arte, contribuir para “a formulação de exigências revolucionárias em política de arte”[182], torna‑se patente uma tonalidade nostálgica e tradicionalista (e por isso conservadora) no seu pensamento, mas que funcionava como reacção a um certo modernismo ligado aos fascismos emergentes que, nos anos 30, utilizavam a técnica como um dos seus principais recursos ideológicos, fundando‑se mesmo uma espécie de estética belicista, forma última, segundo Benjamin, da consumação da “arte pela arte”. Apesar de aceitar que existem possibilidades revolucionárias tanto no cinema como na fotografia, Benjamin considera‑os, antes de mais, como instrumentos políticos, ainda que actuando de forma oculta. Mesmo considerando que, através do cinema, se aumenta o significado social da arte, na medida em que une crítica e diversão (ao contrário da contemplação e do recolhimento exigidos pela obra única), “a exploração capitalista do filme (...) incita a participação das massas através de concepções ilusórias e especulações ambíguas”[183]. O público do cinema “é um examinador, mas distraído”[184]. O capitalismo, aliado ao fascismo, permite que as massas tenham a ilusão da participação, embora se reforce o status quo, nomeadamente a estrutura das relações de propriedade.

            Numa linha diferente, Herbert Marcuse contesta a sociedade “ultra‑repressiva”, baseada no princípio da realidade e do “socialmente útil”, o “sistema de actividades inumanas, mecânicas e rotineiras” em que o “o homem é avaliado de acordo com a sua capacidade de realizar, aumentar e melhorar as coisas socialmente úteis”[185]. Contra a produtividade como fim em si mesmo, contra “a definição do nível de vida em termos de automóveis, televisões, aviões e tractores”[186], Marcuse defende a reconciliação entre o princípio do prazer e o princípio da realidade, entre a sensualidade e a razão, unindo psicanálise e filosofia crítica num intento emancipador. A arte, neste contexto, aparece como a concretização da “grande recusa”, isto é, instrumento de combate à relegação dos intuitos transformadores para o terreno inacessível da utopia. Pelo contrário, o lazer é objecto de uma apropriação passiva, fornecendo o relaxamento que permite a recuperação de energias para o trabalho alienado. As massas, essas, são manipuladas pelas indústrias do entretenimento: “Não se pode deixar o indivíduo sozinho, entregue a si próprio”[187].

            Habermas, por seu lado, defende o reino do espaço público contra a cultura de massas. Para este autor, a esfera pública é “um reino da liberdade e da continuidade. Só à luz da esfera pública é que aquilo que é consegue aparecer, tudo se torna visível a todos”[188]. Habermas retoma a distinção de Wright Mills entre público e massa. O primeiro caracteriza‑se pela comunicação e pela reciprocidade, bem como pela autonomia face à autoridade[189]. A massa, pelo contrário, é essencialmente receptiva e dependente face aos meios de comunicação e à autoridade[190].

            Em suma, a crítica à cultura de massas passa, inevitavelmente, pela constatação da existência de um homem médio, normalizado e em perfeita continuidade com os seus semelhantes: “A indústria da cultura de massas reifica o homem num «anthropos» universal, medíocre e médio, passivo e voyeur, criado pelo seu próprio mercado”[191]. Por outras palavras, assistir‑se‑ia, supostamente, à dissolução das clivagens classistas, regionais, sexuais, étnicas, etc., pela força de um consumo nivelador, baseado no mínimo denominador comum de gostos e atitudes.

            O essencial das críticas sobre a cultura de massas assenta, todavia, num contexto histórico e numa ideologia específicos. Como refere Paul DiMaggio, essas posições formam uma espécie de síntese entre as “preocupações liberais sobre a cidadania na era pós‑fascista, com as noções marxistas da alienação e um desprezo elitista pela cultura popular”[192].

            Umberto Eco vai mais longe e critica os preconceitos aristocráticos de certos homens de cultura, exigindo‑lhes uma “atitude de pesquisa construtiva”[193], capaz de superar o preconceito elitista que muitos sustentam e que se prende, implícita ou explicitamente, com uma profunda desconfiança face ao homem comum e ao seu processo de mobilidade sócio‑cultural. Mais concretamente, o autor italiano deplora o uso de “categorias‑fétiche”, de conotação negativa, como “homem de massas”. Mas Eco refere‑se igualmente em termos críticos aos comentadores que, ingenuamente, acreditam sem reservas na função emancipadora da cultura de massas. Enquanto que uns, os “apocalípticos” se excluem da multidão, outros, os “integrados”, “desenvolvem um discurso simplista dentro do sistema, sem qualquer perspectiva crítica, frequentemente ligados aos interesses dos produtores”[194]. Eco subverte os termos em que a questão geralmente é colocada (“é bom ou mau que a cultura de massas exista?”), propondo uma outra forma de interrogação: sabendo‑se que numa sociedade industrial é impossível eliminar a comunicação de massas (patente de forma igualmente explícita no discurso político), “que acção cultural será possível para que estes meios de massas possam veicular valores culturais?”[195]. Para que tal acção se concretize, é fundamental distinguir entre os “produtores de objectos de consumo cultural” e os “produtores culturais” (se bem que, na nossa opinião, o sincretismo destas posições seja hoje evidente...), bem como analisar, crítica mas construtivamente, a natureza específica da relação comunicativa de massas[196], propondo que esta se exerça ao nível dos cidadãos, através de uma relação dialéctica em que produtores e fruidores interpretam mutuamente as suas necessidades e aspirações.

            No entanto, o carácter expansionista da cultura de massas e a mercantilização, não só dos domínios da vida comum e quotidiana, como, em maior ou menor grau, da própria alta cultura, impõem uma nova perspectiva sobre esta questão.

            Por outro lado, como refere Maria de Lourdes Lima dos Santos e ao contrário do que pensava Walter Benjamin, reprodutibilidade e raridade não são dois pólos extremos. A primeira não elimina a segunda, muito pelo contrário, já que estimula a irrupção da diferença, numa tentativa de alargar mercados, conquistando e surpreendendo novos públicos, ainda que, muitas vezes, à custa da pequena, quase infinitesimal diferença[197]: “Não deixa de ser curioso que o capitalismo desenvolvido para se manter e reproduzir tenha de obrigar o status quo a constantes mudanças”[198].

            Desta forma, intensifica‑se a interacção entre o simbólico e o económico, ou, se preferirmos, entre a arte e o dinheiro, ou ainda entre o “espírito” e a mercadoria. Os objectos culturais interiorizam um estatuto económico, modificando, por seu lado, o próprio estatuto de mercadoria, já que lhe acrescenta “um suplemento de valor”[199]. Num dos pólos, o da cultura erudita, verifica‑se a invasão do capital público e privado, entrando em decadência os princípios da estética pura kantiana. Multiplicam‑se as ocasiões de divulgação e de comercialização da arte e as próprias carreiras artísticas necessitam de fortes investimentos ao nível do capital económico e social, desenvolvendo‑se a ideia do mecenato público e privado, como que a mostrar a possibilidade de convertibilidade do capital simbólico em capital económico. Assim, esbate‑se a figura mítica do criador singular, desenvolvendo‑se uma complexa rede de mediadores (auxiliares, críticos, divulgadores, comerciantes, financiadores, executantes, fornecedores, coleccionadores, etc.) e o trabalho colectivo. A ideologia carismática do génio artístico não resiste à aproximação crescente entre o trabalho artístico e outras formas de produção.

            Neste sentido, Becker introduz o já famoso conceito de Art World como forma de dar conta das transformações organizacionais no mundo da arte: “os mundos da arte (Art Worlds) consistem em todas as pessoas cujas actividades são necessárias para a produção de trabalhos característicos que esse mundo e talvez outros definem como arte”[200]. O artista, nesta perspectiva, apesar de ser essencial para o processo de reconhecimento da arte (pelo próprio “milagre da assinatura”, na expressão de Bourdieu) não é mais do que um elemento numa cadeia de participantes. Desta forma, quebra‑se analiticamente o misticismo do isolamento dos mundos da arte, integrando‑os no tecido social como mais uma actividade colectivamente organizada. Se aparece, todavia, o nome do artista como traço mais visível da consagração da obra de arte, é porque essa característica se torna numa das condições de sucesso da sua colocação no mercado. A própria assinatura, expoente máximo do dom artístico, é tida como rentável e comercializável[201].

            Em sentido contrário, o simbólico invade igualmente o quotidiano. Doravante, os mais vulgares e utilitários objectos revestem‑se também eles de uma apropriação simbólica (“culturalização do consumo”), num processo paralelo ao da estetização difusa do quotidiano, igualmente apelidado de inflação do estético.

            Importa, ainda, referir o fenómeno de diversificação e de alargamento dos públicos como outro factor de dissolução do modelo hierarquizado dos níveis de cultura. Não só os públicos mais restritos vêem o seu monopólio ameaçado com a divulgação em série das obras culturais, como as camadas mais favorecidas em termos de capital cultural e escolar revelam tendências ecléticas de consumo cultural, não deixando de abarcar, na sua fruição, as obras da cultura de massas. Além do mais, existe uma associação entre a segmentação e diversificação dos géneros artísticos e a hierarquização social. As próprias indústrias culturais atendem a esta questão, diversificando os seus produtos, substituindo o “pronto‑a‑vestir” pelo “feito‑à‑medida” e preocupando‑se com as audiências parcelares. Aliás, a especialização dos mass media (em especial jornais, revistas e estações de rádio) é um indicador dessa tendência.

            Diana Crane elabora a este propósito um modelo tripolar de conceptualização das actividades culturais constituído pelo core domain, o peripheral domain e o urban core[202]. O primeiro baseia‑se nas indústrias culturais de nível nacional e internacional que trabalham para uma audiência vasta e heterogénea, oferecendo uma produção relativamente padronizada (televisão, indústria cinematográfica, jornais de grande tiragem). O segundo, apesar de se situar igualmente num nível territorial nacional, divulga os seus produtos para subgrupos caracterizados por diferentes idades e estilos de vida (estações de rádio, editores de livros e de revistas, companhias discográficas, outros jornais). Finalmente, o urban core ou urban culture dirige‑se a audiências locais em contexto urbano (rádios locais, concertos, festivais, exposições, teatro, performances, etc.), tendo em conta os diferentes meios sociais.

            Esta classificação contraria o modelo hierarquizado e dicotómico dos níveis de cultura. De facto, um determinado género cultural não tem, necessariamente, de confinar‑se exclusivamente a um destes domínios. Diana Crane adianta o exemplo da ópera. Apesar da maior parte das suas manifestações estar associada ao “urban core”, designadamente a grupos sociais com elevado capital cultural, existe a possibilidade de determinadas versões mais populares serem apropriadas pelo core domain. Outro exemplo é o do rock. Sendo uma género muitíssimo aproveitado pelas indústrias culturais nacionais e internacionais engloba, todavia, subgéneros, como por exemplo certas versões do punk rock, que actuam declaradamente como vanguardas provocadoras. Além do mais, existe uma relação dialéctica entre o core domain e as esferas periférica e local. Enquanto que ao nível do primeiro se assiste a uma dominação simbólica por parte de uma elite restrita (os fabricantes de visões do mundo), nos últimos verifica‑se uma contínua subdivisão dos géneros culturais, processo paralelo a uma acentuada diversidade de modos e estilos de vida. Desta forma, a produção do risco e da novidade acontecem mais frequentemente nos domínios periférico e local, já que no core domain a principal preocupação é a produção da segurança e a sincronização (nem sempre conseguida[203]) entre os programas apresentados e as audiências.

            Eco, numa análise do valor das obras culturais, defende que os níveis de cultura não implicam, necessariamente, graus distintos de complexidade. Desta forma, passar da “alta cultura” para a “cultura de massas” (uma sinfonia de Beethoven tocada na rádio, por exemplo; ou, em sentido contrário, uma banda desenhada apreciada por um público restrito), não acarreta uma desqualificação de valor: “Existem produtos que, nascidos num certo nível, revelam‑se consumíveis a um nível diferente, sem que esse facto comporte um juízo de complexidade ou de valor”[204].

            Do mesmo modo, ao defender a paridade dos vários níveis de cultura, Eco salienta a viabilidade de um jogo de influências e passagens recíprocas, que permite, a obras de vanguarda, mediante um sistema de “mediações” e “traduções”, por vezes com intervalos de décadas, atingir públicos cada vez mais vastos, sem perda de valor estético.

            Paulo Filipe Monteiro sublinha a actualidade dos processos de reciclagem que, através de uma descontextualização dos primeiros significados, permite uma recontextualização (novas conotações), operando uma mudança de horizonte receptivo. Uma das ilustrações mais marcantes encontra‑se na performatização das vanguardas artísticas ao nível das culturas populares, o que as aproxima, de algum modo, das expressões da “alta cultura”. Como resultado, é dada a possibilidade de nos confrontarmos com uma “multiplicidade de belos”, advindos quer de culturas diferentes, quer de distintos níveis de cultura[205].

            Em suma, o que aqui se defende é uma alteração da conceptualização dos diferentes níveis de cultura. Em vez de adoptar um modelo hierarquizado, admite-se a coexistência plural das manifestações culturais; em vez de uma concepção que favorece a “pureza” das diferentes formas de cultura, introduz‑se a sua “contaminação”, imbricação e reciclagem; em vez da unidimensionalidade, o “trânsito mútuo”; em vez, enfim, de um modelo etnocêntrico de defesa de consumos elitistas, salienta‑se a diversificação das escolhas e dos gostos culturais.

 

            2.2. Diferentes olhares sobre o lugar dos públicos e os gostos culturais.

            2.2.1 A lógica das homologias.

           

            Uma das perspectivas mais discutidas sobre a relação entre a esfera da produção cultural e a esfera do consumo é, sem dúvida, a abordagem das homologias defendida por Pierre Bourdieu. Ao querer fundar uma economia dos fenómenos simbólicos, este autor pretende, antes de mais, combater concepções de cultura que oscilam entre “um economicismo redutor e um idealismo ou espiritualismo”[206]. Esta pretensão de elaborar uma economia dos bens simbólicos choca, evidentemente, com as narrativas autolegitimadoras do campo cultural, na medida em que este se apresenta como o reino da negação do económico, do desinteresse absoluto ou da “arte pura”. Desta forma, Bourdieu considera como pré‑requisito fundamental de uma sociologia da cultura e da arte, romper com a concepção do artista como criador, espécie de ideologia carismática que considera a produção simbólica como o produto encantado de um “milagre social”: “acto puro onde não há outra determinação que a da intenção propriamente estética”[207]. Apesar de o campo cultural aproveitar a sua autonomia relativa e a sua pouca institucionalização para impor a sua visão do mundo[208], Bourdieu utiliza intencionalmente o conceito de produtor como forma de analisar a especificidade do trabalho de produção cultural num campo relativamente autónomo[209], com as suas leis de funcionamento, a sua estrutura de posições, o seu capital específico, as suas agências de consagração, enfim, as suas regras do jogo.

            Nesta procura da génese dos fenómenos simbólicos, Bourdieu questiona as condições que os tornam necessários, procurando descortinar os interesses e enjeux que se engendram no campo cultural[210].

            Ao analisar a estrutura interna do campo cultural enquanto “estrutura das relações objectivas entre as posições ocupadas por indivíduos ou grupos colocados em situação de concorrência pela legitimidade”[211], Bourdieu ocupa‑se de duas espécies de homologia.

            A primeira diz respeito à dialéctica entre posições e disposições. As primeiras definem‑se relacionalmente, tendo em conta um certo estado das lutas internas (lutas pela definição legítima da estrutura do campo[212]). Assim, encontram como que “naturalmente” o seu habitus ou sistema de disposições, que funcionam como produto e produtor das primeiras, já que, sendo por elas condicionado, inclusivamente nas trajectórias possíveis, exercem sobre elas um poder efectivo de actualização. Por seu lado, as tomadas de posição encontram‑se numa posição homóloga às diferentes posições ocupadas no campo e aos interesses que estas representam. Desta forma, a história do campo encontra o seu princípio gerador na relação permanente entre estas duas estruturas: “a estrutura das relações objectivas entre as posições no campo de produção (e entre os produtores que as ocupam) e a estrutura das relações objectivas entre as tomadas de posição”[213].

            No entanto, não se pense que o estado das lutas internas no campo, responsável pela sua evolução histórica, depende apenas do que no seu interior se vai passando. Importa, para compreender a génese da produção cultural na sua globalidade, ter em conta um segundo conjunto de homologias, desta feita entre a oferta e a procura das obras culturais.

            A teoria dos campos é multidimensional e o que se processa no campo cultural não é independente do estado das relações objectivas entre posições e disposições nos outros campos, em especial no campo do poder.

            Desta forma, o capital cultural incorporado (capital “pessoal”, conjunto de disposições incorporadas através de um trabalho de inculcação/assimilação que deve o seu volume a uma transmissão hereditária fortemente dissimulada) encontra uma correspondência no capital cultural objectivado (capital cultural transmissível na sua materialidade, mas que necessita, para a sua apropriação, de um volume homólogo de capital cultural incorporado)[214]. Assim, os gostos encontram as suas obras e viceversa, mesmo que isso não resulte (e não resulta, na maior parte das vezes) de um cálculo estrategicamente calculado.

            Podemos, pois, afirmar que a produção resulta do duplo encontro de duas lógicas distintas. No interior do campo, entre as disposições dos produtores (mais ou menos ajustadas às posições) e as tomadas de posição. No domínio do espaço social, entre o campo dos autores e o campo dos consumidores, ou, se preferirmos, entre o conjunto das obras culturais que constitui a oferta e a matriz socialmente condicionada dos gostos, que constitui a procura:

            “Na ordem do consumo, as práticas e os consumos culturais observáveis num dado momento, são o produto do encontro entre duas histórias, a história do campo de produção, que tem as suas próprias leis de mudança, e a história do espaço social no seu conjunto, que determina os gostos por intermédio das propriedades inscritas numa posição (...) e através dos condicionamentos sociais associados a condições materiais de existência particulares e a uma posição particular na estrutura social”[215].

            Desta forma, o encontro entre um público e uma obra cultural não é produto de um milagre social, mas sim da lógica certeira de uma dupla homologia. Em última análise, esse encontro é fruto da correspondência entre o gosto do produtor cultural, objectivado na obra, e o gosto do consumidor[216], entre as divisões internas do campo cultural e do subcampo artístico (das quais resultam os diferentes géneros) e a diferenciação dos públicos e consumidores. Reside aqui, aliás, o carácter desmistificador da ciência das obras culturais que Bourdieu protagoniza.

            No entanto, muitas são as críticas a esta abordagem teórica. Desde logo, as que apontam para um efeito “essencialista” na pretensão objectivista da sua sociologia, fundada numa razão que se coloca acima da experiência e que não reconhece legitimidade aos diferentes “mundos” das vivências quotidianas[217].

            De facto, tudo se processa como se de um mundo extremamente ordenado se tratasse, funcionando as homologias como uma estrutura omnipresente de regulação social. Afinal, o próprio conflito, traduzido nas lutas internas do campo, não é o motor da sua história, por mais paradoxal que pareça. De facto, existe uma perspectiva de uma integração funcional da ordem social através de graus distintos de correspondência estrutural. O conflito representa, antes de mais, uma crença (illusio) no jogo, uma aceitação dos seus pressupostos e dos seus resultados, contribuindo de forma decisiva para a sua reprodução.

            Esta questão liga‑se indissociavelmente, por outro lado, às críticas que são feitas ao carácter estático do conceito de habitus e à circularidade tautológica das propostas teóricas do seu autor. Como refere José Luís Casanova, existe uma minimização de “questões igualmente relevantes que têm a ver com a permanente premência da socialização, com a incorporação do novo, e com a adaptabilidade, adesão e protagonismo dos agentes sociais relativamente à mudança”[218]. Certeau, a este respeito, salienta a impossibilidade de aplicação do conceito, mais dinâmico, de “estratégia”, na teoria geral de Bourdieu. De facto, se as práticas constituem sempre uma resposta às conjunturas, não existem propriamente “estratégias”, já que não se verifica uma escolha entre várias possibilidades. Por isso mesmo, acrescenta, as “estratégias” situam‑se ao nível inconsciente, prefigurando uma espécie de “douta ignorância”: “A inconsciência do grupo estudado era o preço a pagar (...) pela sua coerência”[219]. Assim, pela génese das práticas, Bourdieu explica a sua adequação à estrutura. No entanto, prossegue Certeau, a única possibilidade de mudança social situa‑se ao nível das estruturas e não do que é interiorizado (habitus): “(o que se adquire) não tem movimento próprio. É o lugar de inscrição das estruturas. O mármore onde se grava a sua história”[220]. Daí o imobilismo da teoria e o cariz “místico” e “dogmático” do conceito de habitus. Este, é o instrumento adequado para explicar a reprodução social através das práticas, favorecendo uma concepção passiva e “nocturna” do actor social.

            No entanto, importa reconhecer as constantes rectificações que Bourdieu vai introduzindo na sua matriz teórica. Antes de mais, a sua referência à autonomia relativa do campo, questão que nos leva a considerar a sua história como uma “expressão refractada” e não automática do que no exterior do campo se vai passando.

            Por outro lado, o habitus não pode ser encarado de forma mecânica, já que exerce sempre uma acção transformadora e de actualização do sistema de disposições inscrito numa dada posição social. Como o autor francês refere, existe uma constante dialéctica entre o lugar, a posição, e o habitus[221]. Este, tanto pode aceitar passivamente o seu lugar num dado campo, como pode pretender transformá‑lo. No campo cultural, Bourdieu adianta que a margem de liberdade e de inovação é tanto maior, quanto maior for a distância entre as condições sociais de produção do produtor e as exigências sociais inscritas no seu lugar no campo.

            De qualquer forma, as acusações de determinismo, se bem que parcialmente justificadas pela tautológica rede de homologias, devem ser suavizadas, em nossa opinião, através de um entendimento rigoroso dos conceitos que Bourdieu amiúde utiliza. A compreensão do habitus enquanto conceito mediador entre as condições materiais de existência e as práticas sociais propriamente ditas, é da maior importância. O sistema de disposições não é apenas estruturado; de facto, ele funciona também de forma estruturante. Produto da história, encontra‑se aberto à mudança. Como refere José Luís Casanova, o habitus é durável mas não imutável[222]. Não podemos tão pouco afirmar que o campo cultural é um mero reflexo da estrutura social, já que as tomadas de posição não correspondem, necessariamente, à estrutura das posições. De facto, a tomada de posição depende do espaço de possíveis disponível, dentro do qual se admite um conjunto mais ou menos fechado de alternativas, o que permite o preenchimento de zonas de incerteza e de “lacunas estruturais”[223].

            No entanto, pensamos ser legítima a crítica que aponta para a existência de uma prioridade do social sobre o simbólico na teoria geral dos campos[224]. De facto, Bourdieu atraiçoa a autonomia que confere ao campo cultural quando vê nas suas lutas internas uma tentativa de maximização de um capital simbólico que servirá como instrumento de poder no campo social. As formas culturais caracterizam‑se, assim, por estarem subordinadas à ordem social, diluindo‑se, por conseguinte, a especificidade do simbólico. Por outras palavras, as lutas simbólicas acabam sempre por exprimir lutas entre as classes sociais, ou no interior de uma mesma classe social.

            Em síntese, Bourdieu desvaloriza o estatuto criativo dos públicos da cultura, na medida em que existe uma “harmonia preestabelecida” entre uma zona de gosto e determinadas produções culturais, para além de se preocupar primordialmente com a desmistificação da figura singular do “artista”.

            Actuando os produtores e consumidores culturais de acordo com o seu posicionamento na estrutura social, procuramos nesta, em última instância, a explicação das suas práticas. Contudo, como reagir em situações de quebra das homologias? O que dizer de consumos culturais marcadamente ecléticos, abrangendo largas camadas da estrutura social? Como explicar que, dentro de uma mesma classe social, coexistam gostos e consumos díspares? Como reconhecer, em formas culturais híbridas e resultantes de um movimento de “importação‑exportação” ou de reciclagem mútua entre vários níveis de cultura, o produto de uma homologia entre o espaço da produção cultural e o campo social? Como entender processos flutuantes e reversíveis de formação de gostos? Não será a teoria de Bourdieu um espelho da situação francesa dos anos 60 e 70 (data da recolha do material empírico), inadequado, por consequência, a fenómenos mais recentes de uma certa “desinstitucionalização”, “efervescência” e circulação de públicos, associados a um movimento amplo mas difuso de estetização do quotidiano[225]? Não será de admitir, para além da esfera da cultura “legítima”, uma pluralidade social de formas de expressão?

            Questões que alertam, sem dúvida, para a necessidade de não cairmos na tentação de que a teoria de Bourdieu tudo explica, suscitando, por conseguinte, a procura de novas abordagens.

 

            2.2.2. Perspectivas complementares e/ou alternativas.—a questão pós‑moderna.

 

            Situações existem, ao contrário do estabelecido no paradigma de Bourdieu, em que produção e consumo, oferta e procura, se encontram desarticuladas. Não faltam exemplos, no quadro das políticas culturais dos países ocidentais, em que a noção de serviço público pressupõe uma forte intervenção do Estado pelo lado da oferta, em especial nas áreas estruturalmente deficitárias. Pierre‑Michel Menger estudou o caso da música contemporânea em França constatando que, apesar do seu crescente esoterismo (ruptura com a tradição tonal, ênfase na experimentação e na pesquisa, procura permanente de novas linguagens, ausência de um “código” inteligível, etc.), traduzido por um público restrito e por uma total impossibilidade de autofinanciamento, o fechamento desse subcampo não só se manteve inalterado como se acentuou. Para além de um forte capital simbólico dos artistas e do seu público (sobreseleccionado), tal situação, de grande autarcia e autonomia, apenas se pode explicar tendo em conta a forte protecção pública que cria uma espécie de “mercado assistido da inovação musical”. De facto, este atraso do consumo face à oferta só é compreensível no interior de um paradigma que legitima uma “espiral de autonomia estética e a autarcia sócio‑económica da criação erudita”[226]. No entanto, apesar de uma forte presença de auto‑consumo (grande parte do público é constituído por produtores artísticos e profissionais dos mercados culturais), constata‑se uma assinalável heterogeneidade de comportamentos perceptivos que vão desde os mais competentes aos mais ingénuos (caracterizados pela sua “virgindade perceptiva”), dos mais familiarizados com os códigos da música contemporânea, aos que se interessam, antes de tudo o resto, pela sofisticação técnica (com recurso à informática) da nova criação erudita[227]. Enquanto que os mais competentes se caracterizam pelo proselitismo, ascetismo, boa‑vontade cultural e voluntarismo, os consumidores “profanos” são frequentadores errantes. Se alguns subgrupos revelam uma familiarização laboriosa com este tipo de criação musical, outros tendem a valorizar conceitos tão ambíguos como a “paixão” e a “felicidade da comunicação imediata”[228]. A idade é também uma variável diferenciadora: os mais novos constituem uma audiência efémera e equívoca, afastada do pólo intelectual e artístico e favorável ao sincretismo cultural. A partir dos 35 anos, pelo contrário, recrutam‑se os públicos assíduos, os que acumulam experiências perceptivas e se revelam capazes de uma atitude de investimento ascético. Mas, mesmo dentro dos melómanos verificam‑se oposições significativas. D um lado, a vaga dos auditores familiarizados com a música contemporânea e que apreciam a inovação e tudo o que com ela se relaciona (criatividade, anti‑conformismo, um certo sentimento de humor e espontaneidade). Para estes, “filhos” do espírito do Maio de 68, a recusa da imitação entronca com a suprema valorização da singularidade autoral, no que ela representa de liberdade, imaginação e superação da obrigatoriedade de submissão a códigos comuns (a partitura pré‑existente). Do outro lado, uma audiência perplexa perante o seu sentimento de incompetência decifratória e que avalia as obras pela sua falta de legibilidade e de clareza, se não mesmo pela sua “agressividade auditiva”. Como refere Manger, a “máquina homológica” desarticula‑se perante a “paralisia que afecta o julgamento estético e as capacidades de discriminação estilística: à extrema singularização dos modelos e das técnicas de composição, dos tratamentos e das combinações de materiais, responde a falta abundantemente comprovada de poderes de categorização, de deciframento e de avaliação das obras”[229].

            Em suma, desaparece a ideia de homogeneidade de um público hiperseleccionado, fundamento essencial do conceito de homologia. Afinal, a audiência é fragmentada por diferentes atitudes perceptivas, revelando, parte dela, características de uma “recepção impura” (falta de inteligibilidade) que se julgaria (segundo Bourdieu) estar reservada aos grupos menos cultivados. Poder‑se‑á tentar limitar o alcance desta perspectiva por esta representar um caso extremamente singular. Mas é incontornável a constatação de que fornece um excelente contra‑exemplo, dada a aparente uniformidade sócio‑cultural do público. De qualquer forma, convém não esquecer a especificidade de cada domínio, género e subcampo artístico. Eventualmente o modelo de Bourdieu encontra maior correspondência para o estado do subcampo literário numa determinada época histórica.

            Atente‑se, agora, no caso da leitura e da classificação das obras em géneros. Patrick Parmentier critica a dedução apriorística feita a partir de propriedades supostamente intrínsecas aos géneros e que permitem, num subsequente exercício de categorização social, explicar a composição social dos públicos que consomem determinado género, atribuindo‑lhes certos estereótipos de experiência estética[230]. Da mesma forma, é erróneo classificar as obras partindo do seu grau de legitimidade social aferido pelo nível social do público que a consome. Se é certo que a Sociologia da Cultura determina, muitas vezes, “a hierarquia dos diferentes níveis culturais a partir da hierarquia social dos públicos modais das obras”[231], nada lhe permite aferir sobre a qualidade estética das obras, tão‑pouco sobre o seu “nível de dificuldade”. A composição social dos públicos, segundo Parmentier, estabelece uma ligação com o estatuto social das obras mas não com o seu conteúdo estético ou cognitivo. Daí a crítica à homologia nível cultural da obra/nível cultural do público: “Se a tautologia «o nível da obra é o nível do seu público» nos parece de uma sensata crueza sociológica, a sua aplicação leva a um círculo vicioso na exploração de qualquer inquérito, colocando em relação as classes de obras e as classes de públicos”[232]. Os limites do raciocínio homológico são aliás evidenciados por duas constatações empíricas, já anteriormente apontadas por Umberto Eco: o mesmo sujeito consome produtos de níveis culturais diferentes e determinados produtos (“socialmente equívocos”) são consumidos por grupos diferentes (atente‑se no caso da banda desenhada). Através da sua investigação Parmentier conclui pela existência de gostos culturais que, no domínio da leitura, transcendem as divisões em géneros[233]. Da mesma forma, certas associações de géneros, representativas de gostos de um sexo, geração ou classe, cruzam os diferentes níveis de legitimidade sócio‑cultural.

            Se estes dois autores, Menger e Parmentier, criticam e tentam desconstruir, empiricamente, o paradigma bourdiano, Diana Crane, autora americana, apresenta uma concepção da relação entre cultura e sociedade que se pode mesmo considerar inversa à do sociólogo de La Distinction. De acordo com Crane, há que criticar no autor francês o facto de apenas considerar a existência de uma cultura legítima e legitimadora: a alta cultura, apanágio de elites muito restritas. Para Diane Crane, torna‑se hoje difícil estabelecer uma homologia nítida entre as escolhas culturais e as pertenças classistas. De facto, socorrendo‑se de Bell, Crane salienta a crescente incongruência entre os gostos e a esfera ocupacional/profissional nas modernas sociedades. Além disso, dentro das várias classes sociais existem importantes clivagens consoante o sexo, a etnia, a região e mesmo a religião, fenómenos que resultam do crescente multiculturalismo das sociedades ocidentais e que passaram despercebidos a Bourdieu.

            Por outro lado, a própria oferta cultural torna‑se cada vez mais eclética, já que existe uma crescente necessidade por parte das organizações culturais de elite (orquestras, museus, galerias, etc.) de alargarem os seus públicos para obterem maiores financiamentos. Também a este aspecto (modificações organizacionais nos sectores culturais) Bourdieu não prestou grande atenção analítica.

            Crane não rejeita os enraizamentos sociais das práticas culturais. No entanto, salienta uma modificação societal da maior importância: a mudança da classe social para os estilos de vida como base da estratificação social[234]. Desta forma, pretende dar conta dos crescentes cruzamentos e miscegenações culturais das sociedades contemporâneas. Ao mesmo tempo, defende uma disjunção entre os valores das instituições políticas e económicas e a constelação normativa das instituições culturais. De acordo com esta autora, os processos de formação das identidades ligam‑se cada vez mais ao simbólico e ao estético: “os objectos materiais adquirem uma maior importância como marcadores subtis de identificação com códigos simbólicos”[235] ganhando proeminência face ao status social per se. Este aspecto, no entanto, não nos parece ser particularmente inovador, se pensarmos em toda a teoria da distinção social e do capital simbólico desenvolvida até à exaustão por Bourdieu.

            Em síntese, o cerne da proposta de Diana Crane pode ser explicitado através da seguinte proposição, negadora, no seu essencial, da importância do habitus de classe: os membros de uma mesma classe social exibem gostos e práticas culturais muito diversas. É esta a principal ideia que permite explicar a hiperfragmentação das sociedades pós‑modernas. Estas seriam, supostamente, o cenário de uma disjunção entre a economia e a cultura, ou entre a produção e o consumo.

            Segundo os arautos do advento da pós‑modernidade, estaremos perante o fim das “metanarrativas de legitimação”[236], da ideia de projecto e da finalidade da história; perante o descalabro das “ambições ecuménicas” e das “expectativas universais”[237], onde apenas é possível a integração através do consumo, um novo tipo de consumo, tolerante e não classificável em termos de diferenças de classe. Segundo Jean Baudrillard vivemos no apogeu da equivalência dos gostos e dos estilos: “(...) vivemos no êxtase do valor, quer dizer, no ponto em que todos os valores estéticos (os estilos, as maneiras, a abstracção ou a figuração, o néo ou o rétro, etc.) são simultânea e potencialmente maximais, onde todos podem, de um só golpe, por efeito especial, figurar no hit parade sem que seja possível compará‑los ou ressuscitar qualquer julgamento de valor”[238]. Rodeados por “objectos‑fétiche”, viveríamos no tempo da dissolução das barreiras, das hierarquias, das distinções, da equivalência geral de todos os usos e discursos, do desenfreado ecletismo: “O ecletismo é o grau zero da cultura geral contemporânea: ouve‑se reggae, vê‑se Western, come‑se MacDonald ao meio‑dia e cozinha local à noite, usa‑se perfume parisiense em Tóquio e roupa «rétro» em Hong‑Kong, o conhecimento é matéria para concursos televisivos”[239]. Há mesmo quem defenda o nivelamento estilístico da imagem pessoal e da moda, o seu desligamento das fronteiras classistas e a sua irreversível personalização, num processo em que cada um organiza a sua apresentação como quer, sem atender a qualquer marcador de classe[240].

            No entanto, somos constantemente interpelados pelas novas questões sociais[241]. O desvincular dos comportamentos, gostos e condutas da ordem sócio‑económica aparece contrariado pelos mais diversos inquéritos sobre lazer e tempos livres, em que as profissões manuais não qualificadas se encontram excluídas de quase todas as práticas culturais, reforçando‑se mutuamente a exclusão cultural e a exclusão sócio‑económica. As suas formas mais agudas afectam, precisamente, todos aqueles que se encontram em situação de vulnerabilidade, isto é, nas malhas da flexibilização e precarização do trabalho. Se é verdade que este deixa de funcionar, para muitos, como o instrumento de integração social, é ainda por relação ao trabalho, mesmo pela negativa, que os indivíduos se posicionam. Como refere Robert Castel[242], a degradação da relação salarial e dos seus mecanismos de suporte social estão na origem de um individualismo negativo que atomiza os actores em indivíduos socialmente inúteis. O espírito da pós‑modernidade apenas pode ser apanágio de uma parte limitada da população ocidental e da humanidade.

            Além do mais, como demonstram Christian Lalive d'Epinay e outros[243], o consumo nas sociedades industriais avançadas é indissociável da ordem da produção, apesar de ambos manterem a sua autonomia. Para sustentar um processo de contínuo aumento da produtividade, as modernas sociedades trocam o trabalho pelo salário, parte do qual regressa ao sistema produtivo sob a forma de consumo. Desta forma, a destruição de bens, de dinheiro e de energias, é uma condição indispensável para o contínuo aumento da produtividade. Para multiplicar, impõe‑se destruir, ou seja, consumir[244]. O declínio do ascetismo burguês e da apologia do trabalho, e a sua substituição pelo materialismo hedonista (fun morality) não são fenómenos independentes das novas exigências económicas. A ordem cultural, não sendo uma duplicata da ordem da produção, não deixa de manter com ela importantes interacções, nomeadamente na hierarquização dos consumidores e nos novos mecanismos de desigualdade social, ligados, não tanto ao controle dos meios de produção, mas muito mais ao monopólio da gestão da tecnologia e ciência, da inovação, da comunicação e da informação.

           

            Uma outra proposta de contornos inovadores sobre a articulação entre a oferta e a procura cultural é da autoria de Paul DiMaggio. Este autor parte do conceito de género[245] para considerar que os sistemas de classificação artísticos (“artistic classification systems”‑ ACS) são o resultado de duas lógicas complementares: a da produção e distribuição dos bens culturais e a da estrutura de gostos de uma dada população.

            A complexificação da sua proposta é patente nas quatro dimensões que caracterizam um ACS: o grau de diferenciação da arte em géneros institucionalmente delimitados; o grau de hierarquização desses géneros; o grau de universalidade dos sistemas de classificação e, finalmente, o grau de ritualização das fronteiras entre os diversos géneros.

            A este respeito, DiMaggio desenvolve um número considerável de hipóteses que partem, todavia, de um pressuposto fundamental - a equivalência estrutural entre produtos culturais e públicos: o género “consiste naqueles conjuntos de trabalhos que desenvolvem relações similares com o mesmo conjunto de pessoas”[246]. Por outras palavras, a divisão da arte em géneros é simultaneamente produto e condição do agrupamento de gostos, o que impossibilita, necessariamente, que estudemos isoladamente os padrões de consumo e os padrões de produção.

            Neste ponto parece existir uma similitude assinalável com a proposta de Bourdieu: afinal, ambos defendem uma forte ligação entre a ordem da produção e a ordem do consumo/recepção. No entanto, as semelhanças ficam‑se por aqui. De facto, DiMaggio não reconhece isomorfismos entre a estrutura social e os padrões de gosto ou de consumo cultural. Para este autor, as significações e bens culturais não funcionam como rentabilização de lucros materiais e/ou simbólicos, nem tão‑pouco para reproduzir a estrutura de poder dominante. O ponto fulcral da sua proposta consiste em analisar a esfera cultural como um sistema relacional de comunicação interactiva e de mobilização colectiva; conjunto de “formas através das quais as pessoas utilizam a cultura para estabelecerem contactos entre si”[247]. A arte enquanto fonte de sociabilidade reside na concepção dos interesses culturais como “interesses comuns de conversa sociável”[248]. Desta forma, é mais importante estudar o consumo invisível da cultura, os seus usos sociais, do que os objectos ou artefactos culturais materialmente apreensíveis. A cultura, ao ser tema de conversa, aproxima ou afasta as pessoas, forma círculos de sociabilidade mais ou menos restritos, estimula a constituição de mercados matrimoniais, favorece ou dificulta projectos de mobilidade social.

            Assim, o gosto pela alta cultura, por exemplo, facilita as relações entre pessoas com um elevado estatuto social, o que poderá servir os intentos de quem se encontra numa trajectória de mobilidade ascendente. DiMaggio refere estudos que demonstram que os estudantes americanos familiarizados com os rituais da alta cultura se encontram associados a elevados níveis de sucesso escolar, ao estabelecimento de conversas sobre o seu destino profissional com adultos bem posicionados no mercado de trabalho, e ainda a um estatuto promissor do futuro cônjuge.

            Pelo contrário, a fruição da cultura popular tem um carácter acentuadamente lúdico e convivial (a audição da música popular relaciona‑se, por exemplo, com o hábito de visitar amigos) e não tanto um uso “puramente social”.

            Estudos sobre práticas culturais efectuados em França corroboram esta hipótese, na medida em que os actores inseridos em trajectórias de mobilidade social ascendente demonstram uma nítida preferência pelos “programas culturais”, ao contrário dos sujeitos em situação de “mobilidade social bloqueada”, que optam pelos programas de entretenimento[249].

            Na sociedade americana, os ACS estão a tornar‑se mais diferenciados (a autoridade cultural encontra‑se menos concentrada), menos hierarquizados, menos universais (e por isso mais ecléticos) e menos ritualizados, esbatendo‑se as fronteiras entre a alta cultura e as demais formas expressivas. Tal resulta, precisamente, da maior complexidade do sistema de papéis sociais e das redes sociais, da maior interacção intergrupal e ainda do acesso mais generalizado aos patamares superiores do ensino, o que sem dúvida conduz a um enfraquecimento do valor de raridade a que se associa o capital cultural. Assiste‑se, assim, a uma crescente incongruência entre as várias dimensões do estatuto social, o que possibilita uma “descolagem” face aos grupos de pertença e uma maior identificação com os grupos de referência (também em franca multiplicação), enquanto suporte de trajectórias de mobilidade social ascendente.

            Baseado nestes pressupostos, DiMaggio elabora uma série de críticas às teorias que defendem a existência de relações de homologia entre os gostos e a estrutura social:

            ‑ a participação e o interesse pela alta cultura não requerem, necessariamente, um elevado conhecimento da mesma;

            ‑ o gosto e a participação nas manifestações culturais dependem muito mais do prestígio do género cultural (situado na alta cultura ou na cultura popular[250]) do que do suporte utilizado (literatura, teatro, audiovisual, etc.), o que leva a questionar a indissociabilidade, reiterada com particular ênfase por Bourdieu, entre um determinado gosto e um processo mais ou menos demorado de formação/inculcação;

            ‑ o gosto não é necessariamente produto de uma transmissão familiar, já que os recursos culturais podem ser adquiridos tendo em vista a construção de redes de relacionamento exógenas ao meio de residência, de forma a servir aspirações de mobilidade social ascendente (tal como acontece, segundo DiMaggio, com certas camadas de trabalhadores qualificados, ou ainda com grupos cujo prestígio ocupacional é mais elevado do que o capital escolar);

            ‑ finalmente, a constatação de que as camadas com elevado capital social mantêm um consumo ultra-abrangente, em quase todos os géneros e produtos culturais, de forma a solidificar a manutenção de redes sociais alargadas e diversificadas, o que possibilita a formação de vastos repertórios de gosto.

            No entanto, pensamos que esta última tese, apesar de funcionar como crítica às rígidas homologias bourdianas confere em parte razão ao autor francês, já que um maior leque de escolhas se encontra associado a situações de classe com um alto volume de capitais, enquanto que as camadas populares concentram as suas actividades culturais quase exclusivamente no televisionamento (precisamente — e aqui a explicação é de DiMaggio — porque a sua rede de relacionamento social é limitada e os investimentos na cultura estão longe de ser compensatórios), possuindo, objectiva ou subjectivamente, um menor espaço de opções.

            O contributo porventura mais decisivo de DiMaggio reside, pois, na elucidação das principais tendências de recomposição da sociedade americana. De facto, torna‑se hoje em dia impensável continuar a falar de um processo estável e contínuo de socialização, baseado na incorporação de novas experiências a partir de uma matriz (ou habitus) inicial, com poucas alterações do seu estado primeiro. Em vez de um modelo de estrutura social baseado em classes e grupos sociais claramente delimitados, assiste‑se hoje à comunicação entre redes sociais difusas, marcadas por um certa incongruência dos múltiplos estatutos sociais que vão marcando as nossas trajectórias e onde as “ocasiões de conversa” surgem como fonte privilegiada de formação das identidades. Assim, verifica‑se um uso cada vez mais selectivo e pragmático das referências culturais de acordo com os contextos de interacção: “Um pai que seja operário qualificado, casado com uma mulher “colarinho branco” deve saber de desportos e de música rock no trabalho; discutir política e comida natural com os amigos da sua mulher e instigar uma admiração por Brahms e Picasso na sua filha ou filho[251]. A multiplicidade de referências sociais, ligadas a uma diversificação de contactos e de círculos de convivialidade, alerta‑nos para uma certa prudência na utilização dos conceitos consagrados da sociologia, em particular o de habitus e de capital. Paulo Filipe Monteiro, referindo Luhmann, salienta mesmo que “as identidades estão (...) mais associadas aos lugares do que às pessoas”[252], ou, dito de outra forma, aos repertórios associados à diversificada rede de papéis sociais por onde o agente circula.

            De facto, e no que toca às classes mais desfavorecidas, não podemos deixar de pensar nos processos de mobilidade social e profissional, ligados à explosão do terciário urbano e ao incremento significativo das taxas de escolaridade, com a consequente redução do valor de raridade do capital cultural.

            Jan Rupp alerta‑nos precisamente para a necessidade de não pensarmos nas classes populares como meros protagonistas da interiorização de um habitus definido pela negativa e por oposição aos cânones da cultura legítima. Desta forma, sugere a utilização do conceito de investimento para pensarmos nas estratégias de mobilidade diferenciadoras de uma fracção que aposta decisivamente nos usos culturais, face a uma outra que concentra as suas energias no standing e na acumulação de sinais exteriores de um (relativo) bem‑estar[253].

            Em síntese, parece‑nos que as valiosas observações de DiMaggio se coadunam com as propostas de enriquecimento do conceito de habitus da autoria de José Luís Casanova. Com efeito, importa aproveitar as potencialidades deste conceito, para, através de uma série de reformulações parciais, o adaptarmos às modificações na estrutura social das sociedades contemporâneas.

            As propostas de DiMaggio devem, com certeza, ser relativizadas aquando da sua transposição para outras realidades que não a americana, o mesmo acontecendo com Bourdieu a partir do contexto francês. De qualquer forma, parece‑nos ser da maior importância a sua abordagem sobre os usos sociais da cultura em sociedades cujos sistemas de papéis se caracterizam pela incongruência, diversidade e complexidade.

            Dentro desta linha, José Luís Casanova apresenta algumas das principais modificações societais que tendem a relativizar o trabalho pedagógico primário de constituição do habitus: a pluralidade (e acrescentaríamos a reversibilidade e a flexibilidade) dos actuais modelos familiares; a crescente expansão da escolaridade e do ensino superior; o adiamento da entrada na vida adulta (e acrescentaríamos a multiplicação de estatutos juvenis provisórios, híbridos, instáveis e precários); o aumento em flecha de situações de sub‑emprego, emprego clandestino e desemprego (ligados à compressão e segmentação do mercado de trabalho); a crescente exposição aos mass media; a acentuada mobilidade profissional e residencial; a banalização dos contactos interculturais e interétnicos e ainda a multiplicação de contextos de sociabilidade e de situações de interacção interclassistas[254].

            Não se trata, parece‑nos claro, de defender uma perspectiva de fim das hierarquias e diferenciações sociais, nem tão‑pouco de recusar os seus efeitos na determinação social dos gostos. Aliás, estudos recentes sobre as práticas culturais dos franceses, apesar de apontarem, igualmente, para a extensão das redes de sociabilidade como um indicador de vitalidade e protagonismo cultural[255], demonstram, claramente, que essas redes são apanágio de uma minoria (parisienses, altamente qualificados, jovens e celibatários) constituindo, por isso, laços extremamente selectivos.

            De qualquer forma, pensamos ser importante adequar a teoria às novas e profundas modificações das sociedades de “capitalismo desorganizado”, para utilizar uma expressão de Lash e Urry[256], onde o espaço social se fragmenta, as desigualdades atingem formas inéditas, alargando‑se a novos domínios, as rígidas homologias perdem operacionalidade e a imprevisibilidade crescente da acção social e dos seus efeitos não pretendidos obrigam a um constante repensar dos conceitos estabelecidos, enquadrando‑os numa perspectiva dinâmica e diacrónica.

 

            3. Transformações na esfera das identidades sociais.

 

            Aceitar as profundas e recentes transformações das sociedades contemporâneas não significa, como já foi referido, questionar o enraizamento social dos fenómenos culturais, atribuindo‑lhes uma total independência analítica, ou mesmo, como alguns pretendem, numa reviravolta vertiginosa, conferindo‑lhes uma espécie de hegemonia no encadeamento causal.

            A formação das identidades sociais não acontece no vazio social. Por isso mesmo, o seu estudo fornece‑nos os melhores indicadores sobre as mudanças societais mais significativas.

            As identidades sociais devem igualmente ser consideradas numa perspectiva processual e enquanto locus de conflito, negociação e construção social. Trata‑se, afinal, de salientar os mecanismos de reflexividade que conduzem a um ajustamento entre o plano pessoal e o plano social. Como refere Jorge Vala, “é no cruzamento da comparação e da categorização que o indivíduo se identifica, descobrindo‑se como único e simultaneamente como semelhante. É neste sentido que se tem mostrado que a dimensão social e a dimensão idiossincrática do eu, ou a identidade social e a identidade pessoal, não são dois pólos dum contínuo, mas duas dimensões que poderão ser representadas como ortogonais”[257].

            Diana Crane refere que os padrões de conduta vigentes nos remetem para “identidades multidimensionais, nas quais diferentes elementos se salientam consoante as situações”[258]. Ao contrário das sociedades pré‑modernas, em que as identidades se construíam ritualmente, facilitando ao indivíduo o sentido e a localização da sua acção, nas sociedades da “modernidade tardia” (segundo o conceito de Giddens[259]), “o novo self tem de ser explorado e construído como parte de um processo reflexivo de conexão entre o pessoal e a mudança social”[260]. Por outro lado, historicamente a dialéctica “Nós‑Eu” tem sistematicamente favorecido um dos pólos. As mais recentes dinâmicas culturais acentuam nitidamente a dimensão do “Eu”, ainda que o actor jamais possa ser considerado fora do seu contexto, isto é, fora de “redes estruturadas de relações sociais”, também elas, necessariamente, redes de comunicação e de distribuição de poder[261].

            Sendo a complexidade social um dado saliente das modernas sociedades, a construção das identidades torna‑se um processo problemático, tendo o indivíduo que escolher entre uma vasta panóplia de orientações normativas e padrões de conduta, escasseando os critérios de aplicação universal e estando em mutação as instâncias de autoridade. Não só se cruzam os tempos sociais[262], mas igualmente se apresentam fluídas as “âncoras” categoriais nas quais se baseia a construção social das identidades, tornando esse trabalho crescentemente incerto, provisório e problemático “com o crescimento da pluralidade dos contextos de interacção, com a pluralidade de papéis e posições sociais e com a transitoriedade das normas reguladoras dos contextos de interacção”[263]. Otávio Velho lembra‑nos, a este respeito, que o sujeito social “é capaz, também, de comportar uma plurivocidade, uma coexistência de identidades com graus diversos de compromisso”[264] o que implica, necessariamente, a aceitação das “«impurezas» dos sincretismos, hibridizações, crioulizações e multipertencimentos”[265].

            Parece‑nos que os mecanismos de formação de novos públicos, tendencialmente mais ecléticos, e de constituição de gostos e padrões de consumo, crescentemente flutuantes, também passam por estas considerações.

            Processo problemático, já o dissemos, num mundo onde se multiplicam os canais de difusão da informação, as fontes de identificação e os grupos de referência. Mas igualmente um processo inventivo, em que a identidade está em permanente construção, negociando os significados que dão sentido à existência quotidiana, questionando os papéis sociais e cristalizando, a seu modo, as transformações sociais globais.

            Não se trata, como refere DiMaggio na crítica a Bell, de defender a disjunção entre o social e o cultural. Trata‑se, isso sim, de descobrir as formas sempre renovadas da sua articulação.

CAPÍTULO III

OS PÚBLICOS EM ACÇÃO

OU O OFÍCIO DE RECEPTOR

 

            1. Análise da recepção cultural como prática social.

            Os argumentos que em seguida apresentamos dependem de um mesmo pressuposto: o agente social é dotado de uma cognoscibilidade e de uma margem de manobra que, apesar de diferentemente (de)limitadas, não podem ser negligenciadas, sob pena de apagarmos analiticamente dimensões fundamentais da construção das sociedades. Não se trata, por isso, como de resto ficou patente no capítulo I, de conceber os sujeitos sociais como reactores sonâmbulos e passivos face aos constrangimentos estruturais que lhes são impostos. A liberdade condicionada, enquadrada e contextualizada, actuando num campo de possíveis, noção que decerto não desagradaria a Bourdieu e a Giddens, remete‑nos para os mecanismos de criação/recriação da própria sociedade e da relação entre práticas estruturantes e práticas estruturadas. Neste sentido, retomamos as palavras de Augusto Santos Silva: “Em contextos que são sempre estruturantes — nas várias acepções do termo ‑, utilizando recursos de racionalidade e poder que são sempre limitados, envolvidos em rotinas práticas, os agentes são actores, mantêm uma relação activa face aos constrangimentos e às condições de acção. Só não o são, certamente, em situações excepcionais, de desapossamento, privação e sujeição absoluta, por isso mesmo objecto de particular explicação sociológica”[266].

            Desta forma, ao defendermos que a recepção cultural é, antes de mais, uma prática social, rejeitamos os estereótipos de inércia e passividade que comummente se lhe atribui. A mensagem cultural não encontra, na sua recepção, um deserto vazio de referências. Todos os grupos sociais actualizam e protagonizam uma história que, mesmo quando não lhes possibilita assumirem‑se como autores e actores do seu destino, desmente uma lógica de distribuição de poder do tipo soma‑zero. É nossa convicção, como de resto afirmámos noutras ocasiões[267], que as formas de manipulação e dominação simbólica encontram sempre, com maior ou menor sucesso, uma determinada resistência, ainda que inoperante ou ineficaz. Caso contrário, prestaríamos a enorme injustiça de considerar certos grupos como inexistentes no jogo social, de tão amorfos e resignados, reforçando, no plano teórico, a exclusão de que são vítimas na realidade.

            Por outro lado, e reiterando o que foi dito no capítulo anterior, não faz sentido pensarmos a recepção cultural como uma prática unilateral. As formas socialmente diferenciadas de apropriação dos produtos culturais devem ser permanentemente relacionadas com a estrutura da produção, designadamente no que se refere aos códigos culturais utilizados, bem como com os contextos de mediação institucional que separam autores e receptores. No entanto, apesar de existirem obras que, à partida, escolhem os seus públicos, jamais elas conseguiram fixar o seu sentido definitivo. O carácter incompleto, indeterminado e aberto das obras culturais é outro pressuposto fundamental da teoria da recepção. Como refere Umberto Eco, o valor do produto fruído é influenciado pelas diferenciações de atitude fruitiva[268], sendo do maior interesse analítico verificar em que grau essa atitude altera a natureza da obra e, simultaneamente, quais os “limites dentro dos quais uma obra é capaz de impor certos valores independentemente da atitude fruitiva com que a abordamos”[269]. De acordo com o autor de A Obra Aberta, a mensagem plurívoca caracteriza‑se pela sua multi‑interpretabilidade, proporcionando, em cada releitura, um acréscimo de informação. Este elogio da abertura referencial enquadra‑se numa defesa da desordem estética que, ao contrário da previsibilidade, é condição indispensável para a inovação. Esta — e aqui reside um contributo da maior importância — ultrapassa o dualismo forma/conteúdo. De facto, e como o próprio Umberto Eco refere, a arte é indissociável das suas estruturas formativas. Assim, para não reproduzir o status quo artístico é imprescindível inovar também no plano formal (daí a crítica à literatura realista). Como refere Peter Bondanella, estudioso da obra de Eco, “os autores de vanguarda das obras «abertas» (...) inovam no plano da forma artística, que é sempre, em última análise, o seu conteúdo”[270]. Na mesma linha, Paulo Filipe Monteiro[271], salienta o papel da forma como linguagem, capaz, por isso, de provocar os mesmos efeitos que o conteúdo (absurdo, repugnância, familiaridade...).

            Embora sendo verdade que nem sempre o trabalho de recepção altera significativamente o sentido da obra ou mensagem, não é menos verdade que não cabe apenas ao autor o estabelecimento da sua “verdade” definitiva. Aquilo que o autor representa é uma resposta a uma determinada pergunta, como refere Hans Robert Jauss[272]. Cabe aos receptores fornecer a sua resposta própria, ou actualizar a resposta inicial, através de múltiplos e sobrepostos exercícios de interpretação. A noção aparentemente unívoca de autor cede lugar à ambivalência da arte e às correntes da semiologia que entendem a obra como cooperação e não enquanto resultado de uma imposição unilateral de sentido.

            Uma história das práticas culturais exclusivamente centrada na figura do autor esqueceria todas as práticas e micro‑práticas anódinas e discretas, mas poderosas e eficazes nas fixações sucessivas do sentido da obra, tornando possível a sua sobrevivência, impregnando‑a de actualidade e concebendo como contemporâneos processos de criação com um longo passado. De certa forma, e como refere Foucault, a escrita representa o desvanecimento e mesmo a morte do autor[273]. Mas, mais importante ainda, esbate‑se a diferença, abissal e intransponível para os defensores da aura, da singularidade e do génio do criador, entre um discurso sobrelegitimado de autor, e as pequenas e efémeras narrativas do quotidiano.

            Ao negligenciar‑se o que, na vivência cultural, se processa ao nível dos usos e das apropriações, corre‑se o risco de permanecer na análise interna das obras ou nas superficiais determinações e descrições sociológicas dos consumos. De facto, mesmo sendo importante conhecer a frequência de determinadas práticas culturais, não podemos correr o risco de as considerar como unívocas. O mesmo índice de frequência (ou a sua ausência) pode comportar uma panóplia de atitudes diferentes, o que nos deve levar a superar a tendência para raciocinar meramente em termos de “abundância/indigência”[274], de forma a não cair no dilema do “consumo/não‑consumo” ou, se preferirmos, do “público/não‑público”. Por detrás de uma mesma prática de não‑consumo podem estar atitudes de desconhecimento, vergonha cultural ou, pura e simplesmente, decepção e consequente recusa face a uma determinada obra. De igual modo, os estudos sobre audiências têm demonstrado que o não‑público de um determinado domínio (as artes plásticas, por exemplo) não coincide, necessariamente, com o não público de outro (por hipótese a literatura). Da mesma forma, a frequência de uma mesma actividade cultural pode ter subjacentes distintos projectos e motivações: recuperar um “atraso cultural”, compensar um défice de “cultura geral”, manter‑se actualizado; descobrir novas obras; participar no “ambiente social” de fruição cultural; etc.

            Assim, a teoria da recepção coloca na ribalta o que habitualmente se processa nos bastidores dos processos culturais. Ao público é conferido um papel essencial: o de aceitar, criticar e/ou rejeitar a obra que se lhe apresenta, mas também o de produzir uma nova obra, que resulta da sua interpretação e criatividade. Como Jauss refere, existe uma cadeia de recepções sucessivas que destróem a ideia da intemporalidade da obra, vista, na miopia objectivista, como um «monumento» sagrado. Esta, não pode existir separadamente do receptor, já que contém em si uma “estrutura de apelo”: “A vida da obra literária na história é inconcebível sem a participação activa daqueles a quem se destina. É a sua intervenção que faz entrar a obra na continuidade mutável da experiência (...) em que o horizonte não cessa de mudar, em que se opera uma permanente passagem da recepção passiva à recepção activa, da simples leitura à compreensão crítica, da norma estética à sua superação por uma nova produção”[275]. Assim, deixa de fazer sentido continuar a raciocinar em função de aporias como passado/presente ou sentido original/sentido recebido.

            Ao considerar que a obra apenas atinge a sua singularidade através de um conjunto de comparações, Jauss fornece um conceito fundamental para a teoria da recepção: o horizonte de expectativa[276]. Com este conceito, para além de se escapar a um obstáculo psicologista, pretende‑se traduzir o facto de que a recepção contemporânea de uma dada obra acciona um conjunto de comparações com as obras anteriores[277], com a evolução do género em que se enquadra e ainda com a experiência de vida do receptor, através do confronto entre a linguagem artística e a linguagem prática e quotidiana. Desta forma, uma nova obra não constitui uma novidade absoluta, já que funciona como evocação de uma história, criando, por isso, uma expectativa que pode ou não ser confirmada pelo trabalho de recepção.

            Além do mais, ao ter como essencial o horizonte de expectativa fundado na experiência de vida do receptor, Jauss valoriza as suas vivências, experiências e histórias de vida, dignificando‑o. A poética da recepção reside na sua capacidade de abrir “os mundos do texto”.

            Aqui ancora, afinal, a função social da arte, ao intervir no horizonte de expectativa da vida quotidiana, orientando e influenciando os comportamentos sociais. Jauss é aliás muito claro ao rejeitar para a experiência artística o estatuto de mero reflexo ou imitação da ordem social, obstáculo que segundo ele está presente quer na teoria marxista, quer na teoria formalista.

            De facto, os marxistas negam a especificidade da obra artística, ao considerarem apenas a função social da arte na sua ligação à base material das sociedades. No entanto, existe uma descoincidência entre os modos de produção e os fenómenos artísticos, o que indica desiguais ritmos de produção para o plano material e o plano artístico. Desta forma, desmente‑se o “substancialismo do económico”, o monismo da evolução social e a pretensão de encontrar uma perfeita homologia entre os fenómenos económicos e os fenómenos artísticos.

            Por seu lado, os formalistas, ao proclamarem a especificidade da linguagem artística tendem a fazer abstracção de todo o seu enquadramento histórico, negligenciando os factores extra‑artísticos.

            O posicionamento de Jauss é bastante explícito. Trata‑se de compreender a relação entre arte e história, sem negar à primeira a sua especificidade e sem a confinar a “uma pura e simples função de reflexo”[278]. Nem a obra de arte é uma mimesis da estrutura sócio‑económica, nem o receptor reproduz sem alteração a obra inicial. Num contexto histórico diferente, agindo de acordo com um horizonte de expectativa que muito deve à sua trajectória pessoal e social, diferentes questões vão sendo dadas à pergunta com que inicialmente o autor se debateu e à qual forneceu uma resposta primeira. A história literária (e a história dos fenómenos artísticos) consiste, afinal, como refere Jean Starobinski[279], numa troca de questões e de perguntas (método dialógico) que vão sucessivamente recriando a obra inicial, ou, se preferirmos, a primeira concretização da inquietação primordial do artista.

            Vários são os estudos empíricos que demonstram a importância do papel do receptor no estabelecimento do sentido provisório da obra. Andrea Press[280] refere a este propósito os trabalhos de Radway e de Long, ambos no domínio da literatura. O primeiro destes autores refere a importância dos factores contextuais, em particular o ambiente sócio‑histórico em que se desenrola o trabalho de recepção. É o caso da leitura de romances por parte das mulheres que vivem numa sociedade patriarcal. Neste contexto, a leitura, ofício recatado por excelência, simboliza um espaço de alguma independência e de resistência aos significados culturalmente dominantes. Long, por seu lado, refere‑se à recepção cultural como um objecto de conflito entre as indústrias culturais, os críticos e os consumidores. Enquanto que as produções culturais apontam para uma realidade fragmentária, típica de sociedades “pós‑modernas”, os leitores insistem em identificarem‑se com as personagens, acreditando na sua verosimilhança e escapando aos critérios de classificação e de apreciação dos críticos. Apesar dos constrangimentos exercidos pelas instâncias de difusão e de consagração das obras culturais, os receptores apresentam‑se como agentes críticos dispostos a entrar no conflito da atribuição de sentido.

            Um outro autor referido por Andrea Press, Lichterman, introduz o conceito de Thin Culture (cultura “ligeira”, “superficial”) para se referir aos manuais de auto‑suporte (“como emagrecer”, “como encontrar o grande amor”, etc.). Apesar de, à partida, parecer inevitável a manipulação dos leitores, o certo é que persiste uma relação ambivalente com estes produtos. Por um lado, os leitores julgam de forma séria alguns dos conselhos. Por outro lado, têm a consciência de que são um género menor elaborado para um consumo de massas. Além do mais, existe um forte sincretismo na apreciação e apropriação das mensagens. Os leitores misturam com os ensinamentos dos livros, conteúdos adquiridos noutras ocasiões (de índole religiosa, feminista, etc.), o que confere algum sentido ao conceito de horizonte de expectativa anteriormente avançado.

            Maria de Lourdes Lima dos Santos, por seu lado, refere o papel dos receptores face à publicidade, tradicionalmente considerada pelos críticos da cultura de massas como a esfera por excelência da alienação, considerando que estes “não deixam de denunciar a falsificação das condições de vida quotidiana que aquela opera, não deixam de exprimir a sua saturação com as redundâncias e repetições, não deixam de reafirmar o seu aborrecimento com a manipulação de que são alvo”[281].

            Se entretanto pensarmos na crescente diversificação e complexidade dos papéis sociais e nas teses de Paul DiMaggio[282] sobre a incongruência relativa entre as esferas social, cultural e económica, mais facilmente compreenderemos os subtis processos de negociação de sentido e de resistências localizadas aos significados culturalmente dominantes. Haverá uma crescente tendência, a acreditar nessas teses, para uma complexificação do próprio horizonte de expectativa, ligado à diversidade de repertórios, o que não só indica processos de recepção tendencialmente sinergéticos e permeáveis a múltiplas combinações de referências, como um esbarramento do sentimento de unidade e coerência dos mapas culturais.

            No entanto, o paradigma da recepção cultural não tem sido isento de críticas. Eco, que há pouco mencionámos, considera que o centramento no receptor acaba por ser redutor na medida em que esquece a intenção do autor e, por vezes, do próprio texto. Com efeito, a compreensão do “autor empírico” pode ser, em certas ocasiões (especialmente no caso do autor estar vivo), um instrumento útil de eliminação de sobreinterpretações (interpretações “inverosímeis, improváveis ou até impossíveis”) que, em casos limite, se podem tornar “paranóides”[283]. A recusa de interpretações arbitrárias (tão visíveis na deriva de algum ensaísmo «pós‑moderno») exige um determinado controlo por parte da “comunidade interpretativa”: “tentei demonstrar que a noção de semiose ilimitada não desemboca na conclusão de que a interpretação não tem critérios. Dizer que a interpretação (como aspecto fundamental da semiose) é potencialmente ilimitada não significa que a interpretação não tenha objecto e que corra à imagem de um rio apenas por sua própria conta. Dizer que um texto não tem potencialmente fim não significa que todo e qualquer acto de interpretação possa ter um final feliz”[284]. Caso contrário, insiste, “como maliciosamente sugeriu Todorov (...), um texto é simplesmente um piquenique para o qual o autor leva as palavras e os leitores levam o sentido”[285]. Daí a proposta para que se considerem, em interacção, três tipos de intencionalidade: a do autor, a do leitor e a do texto (“o texto está aí e produz os seus próprios efeitos”[286]), sem esquecer o “tesouro social” em que estão envoltos[287]. Na mesma linha, Fernando Cascais, ao comentar Jauss, reforça a ideia da interacção presente na tríade autor/obra/público enquanto diálogo permanente, jogo de perguntas e respostas entre a produção e a recepção. No pólo oposto, Richard Rorty, na defesa do seu pragmatismo, contesta a ideia de haver um propósito no texto, destituído que é de natureza: “Não há pedaço de conhecimento que nos diga seja o que for sobre a natureza dos textos ou sobre a natureza da leitura. Porque nem uma coisa nem outra têm natureza”[288]. Existe, simplesmente, um uso das matérias textuais em função dos estímulos e interesses circunstanciais dos receptores: “A leitura de textos é uma questão de os lermos à luz de outros textos, pessoas, obsessões, fragmentos de informação, ou seja o que for de que dispusermos, para vermos o que acontece a seguir. O que acontece pode ser algo tão insólito e idiossincrático que não vale a pena preocuparmo‑nos com isso”[289]. Mas o mais paradoxal é que Rorty preocupa‑se com isso, a ponto de nos propor uma taxinomia dicotómica a propósito dos tipos de leitura: uma oposição entre as leituras metódicas e as leituras inspiradas. As primeiras, para utilizarmos uma linguagem cara a Jauss, em nada modificam o horizonte de expectativa do receptor, quedando‑se pelo teoricismo e por uma ausência de “apetite de poesia” (nota‑se aqui o anti‑intelectualismo feroz de Rorty). As segundas, pelo contrário, arrebatam o receptor, redefinindo mesmo “as suas prioridades e propósitos”[290].

            Outros autores criticam em Jauss uma certa inclinação positivista, já que a procura de objectivação do horizonte de expectativa acaba por exigir uma posição neutra a partir da qual se opera essa objectivação. Desta forma, verifica‑se uma suspensão da posição histórica do observador que tende a determinar de forma etnocêntrica o conceito de horizonte de expectativa. Assim, se é verdade que, na actualidade, a valorização da novidade surge como valor dominante (impondo‑se, por isso, uma distância entre a obra e o horizonte de expectativa do receptor[291]) nem sempre tal aconteceu. Holub considera que a ânsia do novo ancora no contexto histórico contemporâneo em que a revolucionarização da produção (própria das economias de mercado desenvolvidas) arrasta a subversão permanente das formas. Além do mais, ao encontrar o sentido último da obra no receptor, Jauss acaba por conferir‑lhe uma “arbitrariedade interpretativa”[292], crítica que retoma a apreensão de U. Eco. Ao lidar com um modelo de receptor abstracto, fora do tempo e do espaço, desterritorializado e inserido numa situação de “idealidade comunicativa”, Jauss, apesar de preocupado em ligar recepção cultural e história, acaba por negar aos comunicantes o papel de “actores históricos que incarnam de um lado o pólo do poder e do actual, do outro lado o pólo da discussão crítica e do potencial”[293]. De facto, perante a mesma obra, dois receptores diferentes, mesmo que possuam um horizonte de expectativa semelhante, são capazes de fornecer respostas distintas, contraditórias e até mesmo conflituais. Jauss, no entanto, pretende lidar com um receptor‑modelo, crítico e implicado, capaz de colocar em causa o seu universo simbólico mediante o confronto com a novidade inquietante da obra.

            Outros autores ainda, como Derrida ou Bakthine, condenam à impossibilidade qualquer tentativa de fixar um sentido que escapa ao próprio texto. De acordo com o primeiro, defensor do paradigma da intertextualidade, não existe “hors‑texte”; o que se verifica é o cruzamento de vários textos de proveniências e temporalidades distintas. Para o último, o sentido não é topologizável, já que percorre toda a cadeia significante, tornando‑a opaca. O sentido ocorre, a obra acontece e, muitas, vezes, de tão incomunicante (Adorno levou ao extremo esta posição, ao afirmar que “a arte só é íntegra quando não entra no jogo da comunicação”[294]) fecha‑se à análise. Claro que, se levarmos em conta esta perspectiva, naufragamos na tentativa de estudar a recepção cultural e artística como objecto sociológico. Encerrar a produção de sentido no interior das obras é um considerável recuo face à possibilidade, aberta por Jauss, de estudar os seus usos e modos de apropriação, mesmo sabendo que constituem apenas uma face da moeda. Não negamos, contudo, a liberdade do criador, nem pretendemos sujeitá‑lo à pressão de um público sociologicamente predeterminado. Concordamos parcialmente com Eduardo Prado Coelho quando afirma que “a cultura, no sentido de criação artística e literária, não pode ter como obrigação dirigir‑se a interlocutores explícitos. A cultura dirigi‑se sempre a uma espécie de destinatário longínquo, a um Outro (...) A socialização cultural e a formação pessoal fazem‑se, cada vez mais, tanto no ensino como na indústria cultural, onde se criam instrumentos de acesso a essa cultura. Não é ao filósofo, não é ao poeta, que cabe fazer uma linguagem mais próxima, eles fazem a linguagem que lhes é possível dentro do rigor do seu projecto e esse rigor é intocável”[295]. Compreende‑se a posição de Prado Coelho quando tende a proliferar uma cultura de audiências, submetida à pressão do lucro e à lógica do maior número. Não faltam, inclusivamente, exemplos de políticas culturais públicas que utilizam como critério fundamental de valorização das obras a quantidade de público atingido. Mas será possível condenar um criador quando este, conscientemente, pretende entrar em diálogo com um público, virtual ou concreto? Voltaremos a esta questão mais adiante.

            Impõe‑se, ainda, uma breve reflexão sobre os processos comunicativos. De facto, a recepção ou descodificação das mensagens está longe de ser uma operação isenta de complexidade. Para além da percepção da mensagem, através de mecanismos de reconhecimento de “grupos de sons organizados pelo emissor”[296], existe um processo de atribuição de sentido, que implica “selecção, organização e interpretação dos sinais fornecidos”[297]. Este fenómeno, apesar de se verificar através dos mecanismos da consciência prática, salienta o carácter activo e construtivo da recepção. Esta categoriza e rotula os sinais recebidos, classificando‑os. Os fenómenos da atenção e da desatenção selectiva são disso um exemplo.

            Por outro lado, é incorrecto pensar‑se que este processo depende apenas das características individuais do receptor. Com efeito, se é verdade que duas pessoas interpretam diferentemente a mesma mensagem, não é de supor que tal derive apenas de aspectos meramente psicológicos. Os processos de atribuição são, indubitavelmente, de cariz sócio‑cultural. Os quadros de referência dos agentes (algo de semelhante ao conceito de horizonte de expectativa) funcionam como filtros descodificadores. Se nem todos os sinais registados sensorialmente são objecto de uma atribuição de sentido tal deve‑se, entre outros factores, ao posicionamento social do agente, aos seus cálculos, às suas estratégias, ao seu jogo de interesses, aos seus posicionamentos nas várias instituições ou campos, etc.

            Da mesma forma, a decifração da mensagem não pode ser desligada das situações de interacção social. Nestas, ego actua como um ser em relação, fornecendo constantemente sinais da sua descodificação, frequentemente de índole não‑verbal, de forma a orientar a prestação de alter. No entanto, a perspectiva do outro não é independente dos seus atributos sociais (classe, sexo, etnia, idade...). A recepção de uma mensagem implica uma avaliação das características sociais do emissor, bem como do próprio contexto em que aquela se processa. O receptor usa estrategicamente as suas capacidades decifratórias. Os próprios processos da atenção/desatenção selectiva podem ser relacionados com o uso do poder: poder de não querer entender, de resistir à intenção do outro, de não ouvir ou de ouvir de mais, de escolher os significados mais conformes com uma determinada posição social[298], etc. Os usos da linguagem não são, por isso, axiologicamente neutros: “A linguagem, enquanto tal, reflecte mais ou menos claramente a estrutura sociopolítica de poder numa dada sociedade e toma inevitavelmente um ponto de vista, isto é: toma posição”[299]. A recriação da mensagem, enquanto trabalho de reestruturação levado a cabo tanto pelo emissor (que não pode ser considerado um mero retransmissor passivo), como pelo receptor, constituem recursos que, apesar de desigualmente transmitidos pelo espaço social e sancionados por instâncias de consagração dos significados legítimos (e da respectiva estruturação da realidade), formam um espaço de autonomia mínimo que todos os agentes possuem. A capacidade de tirar partido comunicacional de uma situação de interacção, os usos quotidianos da linguagem, a sua reformulação de acordo com os contextos, a não utilização intencional de certas palavras ou a insistente referência de outras, o poder de criação de novos vocábulos, constituem possibilidades mínimas de actualização/construção da ordem social; muitas vezes as únicas. Negá‑lo, implicaria reduzir a linguagem a uma utilização descolorida, monótona e monolítica.

            Finalmente, importa considerar a importância dos mecanismos micro‑sociológicos na actividade receptiva. De facto, as interacções intra e intergrupais constituem factores de estímulo que conduzem igualmente a uma certa selectividade ou orientação no deciframento da mensagem cultural. O falar‑se sobre um determinado acontecimento, por exemplo à saída de um cinema ou de um teatro, propicia uma reconfiguração da atitude em relação a esse evento, já que esta não é imutável, estando sujeita aos mecanismos de influência que constantemente a rectificam. De referir que estes fenómenos atingem uma dimensão de maior notoriedade quando existe uma distribuição desigual de autoridade e de competência entre os membros do grupo ou “comunidade interpretativa”. É o caso frequentemente referido dos críticos e de todos aqueles que se assumem e são reconhecidos como especialistas em determinado género cultural.

 

            2. A resistência cultural e as classes populares.

            Referimos anteriormente a necessidade de não analisarmos as práticas culturais apenas por referência aos critérios da cultura sobrelegitimada, procedimento que confinaria as restantes formas de expressão em autênticos territórios residuais definidos pelo critério da negatividade. Tal é o pressuposto das velhas concepções de que a cultura popular, por definição, é a cultura dos não‑instruídos, dos não‑cultivados, etc.

            Augusto Santos Silva defende a pertinência do conceito de cultura popular como “o que, para cada grupo e para cada momento histórico, se configura como cultura popular”[300]. Desta forma, recusam‑se visões essencialistas e reconhece‑se a existência de racionalidades, símbolos e modos de expressão específicos que requerem uma análise tão sofisticada quanto a da cultura erudita e sobrelegitimada: “a «cultura do pobre» não é necessariamente uma cultura pobre” e a “análise cultural que define como objecto as condutas populares não é menos exigente — e, decerto, menos dignado que a história da filosofia ou a sociologia do romance”[301].

            Na mesma linha, Michel de Certeau não só toma como objecto de análise as práticas silenciosas e invisíveis dos desprivilegiados (“a maioria silenciosa”), como os elege à categoria de heróis (ou anti‑heróis) anónimos. A sua crítica ao colonialismo contemporâneo, dominação das explicações sobre as condutas humanas por uma “cultura de mestres, de professores e de letrados”[302], leva‑o a enfatizar, porventura prescindindo de uma visão relacional, as artes do fraco, aquele que se crê ser inerte, mas que surpreende pela agilidade e rapidez de movimentos.

            Certeau chega mesmo a considerar que as práticas culturais dos dominados são uma forma camuflada de expressão e de produção cultural, operando uma distinção entre a “produção racionalizada, expansionista e centralizada, ruidosa e espectacular” e a produção insinuante, traduzida por “maneiras de fazer” ou “artes” de utilização dos produtos da ordem hegemónica, próprias de um “pensamento que não se pensa”[303] mas que aproveita em seu favor os espaços‑tempos não controlados pelas instâncias do poder. Ao contrário dos dominantes, cuja margem de manobra permite a formulação de “estratégias”[304], os dominados, senhores de um não‑lugar, utilizam as tácticas, domínio do tempo, para criarem “ocasiões” que resultam de um aproveitamento em seu favor dos estreitos espaços deixados livres pela ordem hegemónica. A “arte do fraco” reside, assim, numa habilidade que consiste em combinar diversos elementos de um espaço estranho, reapropriando‑os à sua medida. O trabalho receptivo, traduz‑se pela arte de manipular o manipulador, utilizando em seu favor o que é imposto. O “praticante” define‑se, por isso, mais pela acção, do que pelo discurso, mais pela fala, do que pela língua, mais pelos usos, do que pelos capitais. A ausência de poder, a ausência de um lugar de onde se fala, não impede a actuação circunstancial e casuística, “ocasião” ou golpe de asa, movimento do fraco. Não é de admirar, por isso, que Certeau critique a circularidade e a imobilidade das propostas de Bourdieu, a utilização do conceito de habitus como um “fetiche” e um “dogma”, bem como o encarceramento das práticas na matriz do inconsciente.

            Resta saber, no entanto, quais as reais possibilidades de transformação da ordem social pelas “tácticas”. De facto, ao surgirem como instrumentos dos fracos, aqueles que não têm nem lugar nem poder (e é curioso verificar que também Certeau resvala para uma abordagem das culturas populares pela negativa...), serão as tácticas suficientes para a mudança das “regras do jogo”, um jogo que não os reconhece como jogadores? Não estaremos em presença de uma mera gestão do quotidiano, uma arte da sobrevivência sem consequências na distribuição do poder? Por outro lado, e na medida em que a arte do fraco é um conjunto de actos (de ler, de falar, de fazer) não transponíveis para a condição de “obra” e, por isso, efémeros, não morrerá o seu efeito no mesmo instante da sua comunicação?

            Questões que só a pesquisa empírica poderá elucidar.

            Todavia, permanece de inigualável importância para a análise das práticas culturais contemporâneas, o elogio da pluralidade de uma cultura multiforme proferido por Certeau, ao mesmo tempo que mantém toda a actualidade e pertinência a sua crítica às camisas de força teóricas que pretendem unificar o que é múltiplo e que na multiplicidade encontra a sua força.

 

            3. Diferentes tipos de recepção cultural e o papel da animação sócio‑cultural.

            Ao partirmos da hipótese de que existem diferentes níveis de recepção cultural, queremos de algum modo contribuir para a desmistificação de uma certa “ilusão da homogeneidade” que, por vezes, lhe está subjacente.

            Não só o volume e a estrutura dos diferentes capitais condicionam, através da ocupação que se ocupa num determinado campo, a percepção e a apropriação dos produtos culturais, como o próprio contexto histórico e cultural mais lato, ou ainda o contexto propriamente físico do acto receptivo exercem constrangimentos não negligenciáveis.

            Os interesses em jogo numa determinada situação social, bem como o espaço de possíveis disponível, influenciam decisivamente

o carácter mais ou menos activo e elaborado da recepção. Por outras palavras, defendemos, ao contrário de Certeau, que nem todo o acto receptivo conduz necessariamente a um trabalho de produção, ainda que secundária e dissimulada.

            Se, nalguns casos, o trabalho reinterpretativo do agente social funciona como elo de ligação a práticas culturais de cariz expressivo e participativo, noutros funciona a apatia e o grau zero do agir comunicacional. Nestas situações, mesmo partindo do pressuposto de que houve uma apropriação reinterpretativa da obra ou mensagem cultural, tal não se revela suficiente para uma afirmação autónoma no jogo social. O mesmo se passa quando a abissal descoincidência de códigos entre produtores e receptores provoca nestes últimos sentimentos de vergonha e retracção cultural.

            Um dos aspectos decisivos é, sem dúvida, a capacidade de explicitação e de consciencialização dos interesses em conflito e das respectivas posições. Públicos atomizados, sem uma nítida consciência dos recursos e constrangimentos estruturais e conjunturais existentes, dificilmente utilizam a recepção cultural para criar “ocasiões” e fazer reverter em seu favor as mensagens em questão. De facto, a proposta teórica de Certeau peca, também ela, pela seu elevado grau de generalização e pela sua incapacidade em descortinar situações diversas entre as camadas desfavorecidas[305]. Por outras palavras, nem todos os fracos possuem o privilégio de fazer da sua fraqueza uma arte. Idalina Conde escreveu, a esse respeito, um relevante artigo sobre os (des)encontros entre artistas e “público leigo” nas bienais de Vila Nova de Cerveira[306]. Marcadas pela arte de vanguarda, num ambiente inicial onde tudo era permitido aos artistas[307] (dada a implícita legitimação inerente à necessidade de inventar uma imagem de cultura associada à localidade), o “descer à rua” e o contacto com a população não iniciada nos códigos artísticos mais recentes, originou uma série de equívocos e ambivalências. Desde logo, porque a obra de vanguarda, usufruindo da autonomia do campo artístico, desliga‑se da representação do quotidiano (naturalismo, realismo) para se afirmar enquanto signo polémico, insólito, descontextualizado, formalmente depurado, ilegível, incomunicante no limite. Daqui resultam desencontros vários, assentes na impossibilidade de descodificação devido à ausência de incorporação, por parte dos receptores “leigos”, de uma competência ou de um conjunto de códigos. No entanto, tal fenómeno desdobra‑se por uma variedade de reacções, que vão desde o iconoclasmo não assumido (destruição anónima de instalações artísticas), até à vergonha cultural, passando pela “auto‑exclusão assumida”[308], a reverência face aos artistas, a indiferença, a incomodidade ou a revolta.

            Um outro factor que contribui para a diversidade dos estados receptivos é a própria estrutura da oferta cultural. De facto, e como refere Diana Crane[309], a percepção que os media têm a propósito das suas audiências, influencia decisivamente a construção das mensagens e as características dos produtos a transmitir. Apesar de difundirem uma grande variedade de visões do mundo e de ideologias, algumas das quais inconsistentes e mutuamente contraditórias, de modo a agradar a todos, existe a tendência para a transmissão de mensagens estereotipadas para as grandes e heterogéneas audiências. Pelo contrário, no que se refere às audiências minoritárias e mais homogéneas é já possível fazer passar mensagens e produtos de cariz esotérico e heterodoxo, visto que essas subculturas funcionam como uma espécie de “comunidades interpretativas”.

            Trata‑se, uma vez mais, da questão da familiarização com determinadas códigos, através das várias formas que o capital cultural pode assumir[310]. Os próprios mecanismos de percepção indicam que a aprendizagem precoce e a familiarização com certos estímulos favorecem o reconhecimento de imagens e de objectos, tido pelos agentes como natural, mas sendo de facto fruto de um longo e paulatino processo de aquisição[311]. Tal é o caso de um contacto precoce com manifestações de capital objectivado, convertível a prazo em capital incorporado e capital institucionalizado.

            Hans Robert Jauss parece esquecer‑se deste factor de primordial importância. Ao avançar com a noção de “desvio estético” como a “distância entre o horizonte de expectativa preexistente e a nova obra, cuja recepção pode provocar uma «mudança de horizonte»[312], Jauss estabelece uma distinção entre a “verdadeira” arte e a “arte culinária”. Só a primeira opera uma “mudança de horizonte” e faz surgir novas experiências estéticas. A segunda, pelo contrário, corresponde inteiramente ao horizonte de expectativa de um público, confirmando as expectativas e satisfazendo aspirações já familiarizadas com os seus códigos, assumindo, por isso, o carácter de “simples divertimento”: “(...) preenche perfeitamente a expectativa suscitada pelas orientações do gosto dominante, satisfaz o desejo de ver o belo reproduzido sob formas familiares, confirma a sensibilidade nos seus hábitos, sanciona os desejos do público, serve‑lhe o «sensacional» sob a forma de experiências estranhas à vida quotidiana, convenientemente preparadas ou então levanta problemas morais — mas apenas para os «resolver» no sentido mais edificante, como tantas outras questões cuja resposta é previamente conhecida”[313]. Desta forma, o sucesso de uma obra não pode ser aferido de critérios aparentemente objectivos, como o sucesso comercial ou o bom acolhimento pela crítica, necessitando de ser enquadrada numa determinada duração temporal, de forma a testar o carácter duradouro dos seus efeitos.

            Com esta distinção, Jauss retoma a antinomia entre o modelo reconfortante/conformado da cultura de massas e o modelo inquietante da «verdadeira arte»[314]. Maria de Lourdes Lima dos Santos critica esta polaridade e refere uma vez mais a tendência para a “diversificação da oferta cultural e a permeabilidade entre os diferentes sectores culturais”[315]. Na mesma linha, Eco retoma a defesa da “paridade em dignidade” dos vários níveis culturais[316]. Trata‑se, como refere Eco, de uma “acção político‑social que permita não só ao habitual fruidor de Pound recorrer ao romance policial, mas também ao habitual fruidor de romance policial dispor de uma fruição cultural mais complexa”[317].

            De facto, para lá do carácter implicitamente elitista das suas propostas, Jauss esquece, já o dissemos, que uma recepção competente é indissociável de um público minimamente familiarizado com os conteúdos e formas das mensagens em questão, implicando, para os não iniciados, um árduo trabalho de aprendizagem e interiorização de códigos estranhos[318]. Em Jauss, aliás, não se vislumbram preocupações sobre o alargamento dos públicos. A arte “inquietante” apenas capta uma minoria de convertidos a priori.

            Além do mais, este autor parece fazer uma apologia das obras fora do espaço e do tempo, ou, pelo menos, deste espaço e deste tempo, dilatando o prazo do juízo final da obra, no que facilmente pode ser interpretado como uma tentativa de legitimação de todos aqueles artistas, geralmente associados a movimentos de vanguarda, que não encontram, nem nada fazem para encontrar o seu público (uma opção legítima), ganhando a posteridade num tempo vindouro, em que uma audiência convenientemente preparada faz, a título póstumo, o elogio do autor.

            De facto, a complexidade da mensagem cultural é também importante condicionador da recepção. Jacques Leenhardt define‑a como a distância que a obra apresenta face a um código comum, constituído “a partir da realidade quotidiana da linguagem ou da figuração”[319]. Quanto maior for a distância em relação às normas e modos de vida quotidianos (como expressivamente aconteceu a partir da ruptura modernista), maior o esforço intelectual de abstracção que os públicos têm de fazer. Por outro lado, quanto mais essa distância diminui, mais aumenta a fruição receptiva de tipo imediato, espontâneo e emocional[320]. Wolfgang Welsch refere mesmo a existência de duas dimensões no domínio do sensível, esfera por definição do estético: a dimensão cognitiva, ligada à percepção e a dimensão emocional, ligada à sensação enquanto avaliação do material captado pelo sentidos “numa escala entre o desejo e a aversão”[321]. Esta última é o domínio por excelência do gosto e, por isso mesmo, condicionada sócio‑culturalmente.

            Pierre Bourdieu distingue igualmente entre “duas formas extremas e opostas do prazer estético, separadas por todas as gradações intermediárias”[322]: a fruição e o deleite. A primeira, liga‑se a uma percepção sensorial que aplica a um sistema de códigos desconhecido os esquemas de interpretação tidos como familiares. É uma percepção não instruída e de tipo imediato e emocional. A segunda, é apanágio dos instruídos e de todos aqueles que apropriam adequadamente as obras culturais. Uma vez mais se constata o reflexo legitimista, fortemente criticado por Anne‑Marie Gourdon, quando se opõe à ideia de uma hierarquização da percepção por níveis[323]. Esta, longe de implicar uma medida (“Parece‑nos difícil medir a diversidade imaginativa dos espectadores”[324]) interpela‑nos para a ligação aos universos simbólicos dos grupos sociais.

            De qualquer forma, depreende‑se que as diferenças sociais, longe de serem despiciendas, estabelecem, como refere Robert Francès, “variações de desenvolvimento perceptivo que dizem respeito quer a aquisições cognitivas, quer ao exercício de aptidões perceptivas”[325].

            A persistência destas dicotomias associa‑se, muitas vezes, ao falhanço de certas iniciativas da animação sócio‑cultural que pretendem impor a “boa maneira” de receber e interpretar as obras, sujeitando a experiência estética a “choques culturais” que apenas contribuem para aumentar ainda mais o sentimento de frustração de certas camadas sociais[326].

            Assim, estratégias de intervenção cultural direccionadas para o alargamento dos públicos não podem deixar de jogar, simultaneamente, com estes dois níveis da recepção cultural, sendo que, muitas vezes, resultará mais profícuo começar pelos estratos sensíveis e espontâneos da percepção, ligados preferencialmente a uma sensualidade difusa e não tanto à construção do gosto, operação que requer uma matriz avaliativa forjada pelos processos de socialização.

            Nathalie Heinich refere‑se mesmo à necessidade de ultrapassarmos um certo logocentrismo patente nos estudos sobre percepção estética[327]. De facto, ao considerarmos os actos e as palavras resultantes do contacto com o estético, privilegiamos os indicadores mais visíveis através dos quais se exprimem os gostos: as opiniões e as atitudes. No entanto, ao leigo interessa mais a sensação do que as manifestações discursivas, mais a emoção do que a racionalidade formal que reconstitui o sentido explícito da obra.

            Anne Ubersfeld constata a existência de um indizível, algo “de secreto pelo qual cada um dos espectadores escapa aos determinismos do seu grupo social”[328]. No entanto, também este raciocínio não é isento de equívocos. De facto, importa reiterar o princípio de que a própria “sensibilidade”, subjacente a uma “percepção espontânea” (que, na realidade, nunca é imaculada ou isenta de pressupostos), pode ser formada e adquirida, sem ter necessariamente de se sujeitar a arbitrários culturais que, muitas vezes, e de forma dissimulada, um certo conceito de animação sócio‑cultural impõe. Afirmar o contrário consistiria numa apologia do dom daqueles poucos, bafejados pela sorte que, como que por magia, atingem o nirvana do prazer estético.

            José Madureira Pinto, apesar de não renunciar à objectivação das práticas de “recepção/fruição/recriação” estética, descobrindo regularidades que as remetem para objecto de estudo sociológico, não rejeita, em jeito de confissão, que “a suspensão dos instrumentos de objectivação possa ser condição de salvaguarda das margens de prazer que, apesar de tudo, sempre vão percorrendo a experiência prática do mundo”[329]. Outra forma de dizer que nem tudo, felizmente, cabe no campo de análise sociológica. Não há ciências totais.

            Podemos afirmar, em síntese, que os efeitos das iniciativas de animação sócio‑cultural estão longe de ser unívocos, gerando, muitas vezes, consequências imprevistas e perversas. É que, quando se considera o “choque cultural” como o processo de emancipação por excelência de públicos desprovidos de um contacto regular e familiar com certas formas de expressão cultural, corre‑se o risco de aumentar ainda mais as velhas distâncias e fronteiras. Somente os processos de aprendizagem/familiarização, relativamente paulatinos mas capazes de subverter lógicas de fatalismo social, permitem ver mais e melhor, devendo respeitar, no entanto, as idiossincrasias e singularidades sociais e pessoais, isto é, a liberdade interpretativa dos públicos.

             Por outro lado, impõe‑se, simultaneamente, como anteriormente referimos, defender a autonomia da arte e dos seus códigos estéticos, mesmo os mais complexos. Todavia, se não podemos exigir aos criadores que as suas obras desçam à rua, de igual maneira resulta contraproducente obrigar os públicos a um “choque cultural” de efeitos imprevisíveis.

             Da mesma forma, não nos surge como defensável a ideia de uma inocência do criador quanto ao seu público potencial. Não concordamos, por isso, com Eduardo Prado Coelho quando afirma que o “que caracteriza qualquer obra de arte é desejar ter um destinatário que não sabe qual é —  é essa a sua dimensão utópica (...) um poema, uma sinfonia, um quadro, um filme, um romance, que se dirigem a um público determinado e calculado à partida não são nem um poema, nem uma sinfonia, nem um quadro, nem um filme, nem um romance (...) São, quando muito, salchichas em forma de poema, de sinfonia, de quadro, de romance”[330]. Presumir esta ingenuidade primitiva por parte dos criadores equivale a ignorar a sua existência como actores sociais, enquadrados num campo, portadores de um know‑how sobre o social e relativamente conscientes sobre o grau de distância da sua linguagem face a um certo mínimo denominador comum. Os próprios trabalhos das ciências sociais, e em particular da sociologia, sobre práticas culturais, os seus níveis e hierarquias, bem como sobre as atitudes receptivas dos públicos fornecem um feed back que permite um acréscimo de reflexividade e de objectivação sobre essas questões. Qualquer obra, pela sua estrutura linguística e semiótica, abre e fecha possibilidades de recepção. O criador habita neste mundo e sabe‑o. Sem que tal implique uma submissão a critérios comerciais ou ao cálculo cínico de rentabilidade das suas obras.

            Não nos parece, igualmente, que certas obras, apenas por fazerem da interacção com um público predefinido a sua pedra de toque, devam ser rapidamente relegadas ao estatuto de não‑arte. Pedagogia, intervenção, comprometimento sócio‑político não são a antítese da arte, a menos que dela se tenha uma definição essencialista, essa sim, limitadora, embora a contrario da margem de liberdade do criador.

            Finalmente, importa denunciar uma frequente concepção escolar de animação cultural. De facto, o alargamento do acesso às obras não se faz, exclusivamente (embora também passe por aí), pela mera aprendizagem de um conjunto de regras e cânones, elucidativos da maneira “correcta” de as ler. Exige-se, como salienta Adriano Duarte Rodrigues, a integração dessa aprendizagem numa “totalidade de sentido”. Assim, uma “recepção competente” é aquela que permite (e retenha‑se a similitude com o pensamento e a semântica de Jauss) um alargamento do “horizonte do mundo onde a obra se situa”, isto é, “ao cabo de uma aplicação rigorosa das formas e de uma exercitação fiel das regras (o receptor) acaba por adquirir uma tal familiaridade com o seu mundo próprio que sabe tirar partido das suas margens e jogar assim adequadamente com as excepções (...) É por isso que a experiência é fundadora de evidências, abole a estranheza perante a obra original, naturalizando‑a”[331]. No entanto, convém não o esquecer, esta “naturalização”, este “jogo livre”, pode funcionar como uma amnésia da génese e do processo de familiarização com a cultura, uma denegação do social, para utilizarmos uma expressão cara a Bourdieu, tantas vezes apresentada carismaticamente como dom ou vocação e sobriamente atenta aos indícios de uma familiarização plebeia que se trai no excessivo apego às convenções.

            De qualquer forma, este apelo à experiência como síntese de um “sentido global” (ao contrário da experimentação, tida como analítica, conjunto de “processos de aplicação das formas e das regras”[332]) constitui um potencial de dignificação do percurso sócio‑histórico do receptor, enquanto legitimação do seu habitus e do seu horizonte de expectativa. Sem deixar de promover o alargamento do conceito de “mundo” enquanto “horizonte de existência”, realidade intersubjectiva, “conjunto de referências abertas por toda a espécie de texto”[333]. Enfim, um dos possíveis e fecundos caminhos da animação sócio‑cultural.

 

            4. Os contextos da recepção.

            Nunca é de mais insistir na importância dos contextos físicos em que decorre a situação de recepção. O teatro fornece‑nos a esse respeito excelentes exemplos. De facto, é consideravelmente diferente assistir a um espectáculo teatral na grandiosidade de uma sala à italiana, numa garagem reconvertida ou ainda, como mais recentemente se pratica, num espaço transformável de acordo com as características do espectáculo[334]. Factores como este influenciam o grau de ritualidade com que se frequenta um espectáculo, as modalidades de apresentação individual e a relação actor/espectador e espectador/espectador.

            Com efeito, um actor social oriundo das camadas populares sentir‑se‑á muito mais desinibido quando um espectáculo se aproxima das características da festa, num espaço que pode ser considerado como o prolongamento da casa ou da rua e onde não se exigem posturas rígidas e estilizadas. Pelo contrário, poderá sucumbir perante o peso de um grande edifício de espectáculos, habitualmente frequentado pela elite local, em clara ruptura com o espaço público da urbe e particularmente exigente quanto aos critérios de desempenho corporal tidos como legítimos. No entanto, o efeito simbólico de certos lugares da cultura, a sua moldura institucional, como refere Idalina Conde[335], exercem um efeito de atracção que se exerce para além dos mais familiarizados com os espaços cultivados, chamando aqueles que se pautam mais “pela lógica do reconhecimento do que pela do conhecimento”[336].

            Do mesmo modo, uma grande distância entre os bastidores de um espectáculo e as fachadas (para utilizarmos uma linguagem cara a Goffman) propiciará um certo efeito de mistificação do acto criador, aumentando, por conseguinte, a distância face ao público.

            Não pretendemos, que isso fique claro, atribuir às estruturas espaciais um poder causal per se. Do mesmo modo, os determinismos estritamente sociais, no seu sentido mais lato, revelam‑se incapazes de abordar a multidimensionalidade e a complexidade das actividades humanas localizadas em determinados segmentos de espaço‑tempo. Como tivemos ocasião de realçar, no âmbito de uma investigação sobre práticas culturais estudantis em contexto urbano[337], o peso específico de cada componente deve ser analisado mediante uma investigação empírica sobre fenómenos concretos, única forma, afinal, de compreender a especificidade dos quadros espaciais. A grande virtuosidade heurística da análise dos contextos físicos em que ocorre a actividade receptiva prende‑se com o argumento de Giddens de que os cenários de interacção se ligam de forma intensa aos factores mais institucionalizados e sedimentados da ordem social. Esta actualiza‑se nas interacções recorrentes e quotidianas que apenas podem ser reconstituídas por referência a um dado contexto. Cultura e comunicação ligam‑se, indissociavelmente, através das “rotinas reflexivas da monitoragem prática”[338] que, longe de se processarem in vacuo, implicam uma cena ou cenário e um conjunto de participantes motivados por um objectivo[339]. Assim, tanto os estilos comunicativos como os significados requerem uma integração no contexto em que se produzem e difundem: “o contexto determina a escolha de uma dada palavra precisando‑lhe o sentido, isto é, a direcção que o interlocutor tem de seguir para compreender — e, portanto «atrai» um dos significados, optando por aquele que mais corresponde às exigências do momento”[340].

            Desta forma, talvez se compreenda e precise melhor a proposta de Certeau. Com efeito, a arte do fraco consiste numa habilidosa utilização dos contextos ou das situações interaccionais — uma pragmática. Estas fornecem‑lhe um território momentâneo que compensa a falta de um lugar próprio de onde se fala. A apropriação espácio‑temporal do contexto da comunicação apela a uma série de recursos que estão longe de se confinar ao contexto verbal ou linguístico. De facto, a gestão dos contactos e das performances/posturas corporais, da gestualidade, da distância interpessoal e da orientação[341] possibilitam apreensões e usos alternativos da ordem social.

            Os cenógrafos entendem adequadamente a importância dos contextos físicos quando utilizam a disposição espacial não como constrangimento, mas como apelo à participação no espectáculo: “todo o encenador, e Eisenstein compreendeu‑o bem, coloca em cena o espectador”[342].

            No entanto, mesmo estes recursos são limitados. As possibilidades de (re)estruturação da realidade social, das suas distâncias e hierarquias, através dos processos interactivos, encontram fortes barreiras na distribuição, prévia à situação de interacção, de papéis e de expectativas socialmente distribuídos. A estrutura social manifesta‑se, precisamente, nas mais ínfimas características dos encontros sociais: as posturas, as distâncias, a ordem por que se fala, a capacidade de interromper, os temas da conversação, o próprio volume de emissão verbal exteriorizam pesadas hierarquias. A situação de interacção social não é, por conseguinte, um mundo à parte.

            A recepção cultural, em suma, faz‑se sempre — nunca é de mais dizê‑lo — a partir de um tempo e de um lugar no mundo social.

 

            5. O estético no quotidiano e a dupla função da moda.

            Finalmente, uma análise à recepção cultural ficaria incompleta sem uma referência às suas traduções multiformes nos espaços‑tempos quotidianos.

            Com efeito, assiste‑se hoje a um amplo movimento de inflação e banalização do estético, caracterizado por uma extensão do simbólico a vastas áreas de onde se encontrava arredado[343]. De facto, a oposição entre a «arte» e a «vida» tem vindo a esbater‑se, em particular na esfera que muitos consideram o reino da alienação por excelência: o consumo. Como refere Maria de Lourdes Lima dos Santos, “assim como podemos identificar alguma afinidade com as vanguardas na actual sobrevalorização da função hedonista da cultura e no alargamento das fronteiras do estético, também podemos reencontrar um sucedâneo do projecto do dandismo (fazer da vida uma obra de arte) na actual importância conferida à apresentação de si”[344].

            Estas tendências aproximam o artista do comum dos mortais, retirando‑lhe aura e prestígio. Arnold Hauser refere claramente que o “artista serve‑se da linguagem dos outros, e não só até ter encontrado a sua; também utiliza, mais tarde, um modo de falar da linguagem comum”[345]. Desta forma, a arte aproxima‑se da sociedade, não fazendo sentido conferir‑lhe um estatuto ontologicamente superior ao da vida: “O próprio artista, por mais consciente que esteja do seu modo de criar, quase não consegue dizer com justeza, onde e quando encontrou um certo motivo, se adaptou a uma vivência, que nunca experimentou directamente, onde e quando arranjou um sinal, uma imagem ou uma palavra, que, na sementeira, se tornou num fruto tão inesperado”[346]. Não é de admirar, por isso, que também a arte reivindique para si o efémero[347], ao mesmo tempo que combina elementos das mais variadas proveniências. Na aparente ausência de um centro, multiplicam‑se os fenómenos de “impureza artística” (“reciclagem cultural”, “hibridização”, “crioulização”, etc.). De igual forma, as características dos objectos artísticos (universalidade e perenidade) cedem lugar a uma estetização muito mais difusa e ligada à experiência sensorial e corporal. A realização individual e o ideal de autonomia do sujeito consubstanciam‑se, no plano estético, na performatização da experiência quotidiana e na “conversão da linguagem em dispositivo corporal”[348]. Mas haverá algo de substantivamente novo nesta metamorfose do corpo em discurso e do discurso em corpo? Os antropólogos tenderão, provavelmente, a responder pela negativa. Mas talvez nunca, como hoje, o corpo se tenha assumido como objecto excitante e excitável, locus fundamental do consumo, centro simbólico de uma experiência que se quer descentrada.

            Wolfgang Welsch vislumbra duas vertentes distintas mas interligadas neste “boom” do estético: uma superficial e outra de cariz mais profundo. A primeira, já o referimos, encontra‑se presente no desejo de conferir um carácter artístico ao quotidiano. Por outro lado, ao conceber‑se a vida como uma contínua sucessão de experiências, favorece‑se uma nova constelação de valores assente no desejo e no entretenimento. A segunda vertente liga‑se ao modo de produção actualmente dominante[349]. De facto, as novas tecnologias assentam numa concepção virtual da realidade, ou, se preferirmos numa “desrealização do real”. Desta forma, este torna‑se manipulável e, como substância plástica, sujeita‑se a um sem número de manipulações e modelações. Além do mais, quando o estético ou a embalagem se tornam mais importantes do que o produto (veja‑se a publicidade) inverte‑se a relação entre hardware e software, adquirindo este uma importância decisiva. O estético “já não é o veículo mas sim a essência”[350].

             Entendida neste sentido amplo, a experiência estética alerta‑nos para o carácter plurifacetado da recepção cultural. De facto, esta nunca depende apenas de factores intrínsecos à obra, nem de respostas meramente estéticas, num entendimento restrito[351]. Outro tipo de respostas, de cariz extrínseco (económico, moral, social, etc.) podem estar presentes e orientar os comportamentos e atitudes. A função distintiva de certos consumos que requerem um elevado nível de competências e que dependem da aprendizagem de rígidas convenções sociais foi particularmente analisada por Bourdieu, mas está longe de constituir o único exemplo. Certos consumos, mesmo quando mascarados de intenções estéticas, orientam‑se pelo valor instrumental/utilitário (nomeadamente económico) de determinados produtos culturais. Mas até as respostas estéticas podem adquirir diferentes contornos, conforme são de índole artística (fortemente influenciadas por um saber especializado, o da História da Arte e baseadas na aquisição de códigos culturais) ou de dominante afectiva, emocional e/ou existencial, com implicações na própria representação de si. Estudiosos como Yves Evrard ou DiMaggio insistem na tendência actual de relativo menosprezo da experiência estética no seu sentido mais restrito, eminentemente artístico[352]. De acordo com o primeiro autor, verifica‑se um declínio da importância do conceito de legitimidade cultural (consubstanciado no privilegiar exclusivo de uma função simbólica extrínseca dos consumos culturais, traduzida pelos mecanismos distintivos e baseado no exercitar de competências) em favor de um hedonismo individualista[353]. DiMaggio, por seu lado, e como já tivemos ocasião de referir, salienta o papel que os produtos culturais ocupam na organização das sociabilidades e viceversa.

            A moda, no âmbito deste conjunto de reflexões, fornece‑nos um magnífico exemplo da reconstrução incessante de modelos a partir da reciclagem de tipos anteriores, num movimento perpétuo de descontextualização e recontextualização de significados culturais, numa aproximação à intertextualidade, recurso frequente do praticante cultural anónimo mas também do próprio artista. No falhanço de outras fontes de integração social, alimentada pela ausência de possibilidades de criatividade em outras áreas do quotidiano, a moda torna‑se forma viva, domínio da plasticidade que se move no limbo da imitação e da novidade. Recebendo os estímulos das indústrias culturais, num duplo movimento de imitação e diferenciação/distinção, o praticante cultural reinventa a imagem de si, num movimento que sugere um trabalho activo e criativo na recepção/selecção de referências. Como refere Simmel, a moda cumpre uma dupla função: “indica uma generalidade que reduz o comportamento de cada um a um puro e simples exemplo. Dito isto, ela satisfaz também a necessidade de distinção, a tendência à diferenciação, à variedade, à demarcação”[354].

            Sem esquecer que “as modas são sempre modas de classe”, Simmel aponta para a acentuação do presente e da mudança que a moda acarreta, dissolvendo muitas vezes o passado para o apresentar com nova cara. Esta criação fugaz e tipicamente quotidiana, favorece tanto a coesão social como a personalização, tanto a obediência a rígidos cânones e determinações sociais como a desmodelização do social[355]. Mas, mais importante ainda, chama‑nos de novo a atenção para um dos objectos preferenciais das correntes da fenomenologia social, etnometodologia e interaccionismo simbólico: o corpo. Este aparece revestido de uma intensa carga comunicativa, suporte de símbolos e rituais e base constantemente recriada a partir da qual exteriorizamos não só um conjunto de disposições duráveis e homólogas a um certo estado de condições sociais de existência (e por isso as modas reproduzem hierarquias e desigualdades), mas também o desejo de autonomia individual e de marcar com criatividade os passos e os caminhos do quotidiano. Se, como refere Machado Pais, “nem tudo gira em torno de «determinações»[356], existe a possibilidade de “comportamentos intersticiais” através dos quais se exprime a novidade, a alternativa e mesmo a dissensão.

            No entanto, se tudo é estético, nada é estético, e o encantamento do quotidiano arrisca‑se a ser rapidamente absorvido pela sua banalização e pelo movimento da mera mudança pela mudança. Neste caso, bem pode o extraordinário regredir para o ordinário.

CAPÍTULO IV

A CULTURA N(D)A CIDADE

 

            "A cidade em que vivemos é a cidade que mais se ignora"

                        Agustina Bessa‑Luís , O Manto

                                  

            1. A cidade e os comportamentos humanos: diferentes perspectivas.

 

            Falar de cidade implica abordar um dos conceitos mais equívocos e ambivalentes da análise sociológica. No entanto, o discurso da cidade e a cidade como discurso são temas aos quais é impossível escapar quando se fala de públicos e práticas culturais.

            Antes de tudo, porque mais de 40% da população europeia vive em cidades, percentagem que se eleva a 70% para o caso dos Estados Unidos. O peso relativo da população que vive em cidades aumentou 40 vezes desde o início da revolução industrial[357]. Em Portugal, a realidade é um pouco diferente, já que se multiplicam as situações intermédias e os cruzamentos entre o rural e o urbano. Ainda assim, e segundo proposta de Francisco Cordovil, se considerarmos a freguesia como unidade de análise (e não o concelho, como faz o INE) temos como resultado que 45% da população portuguesa vive em zonas urbanas[358].

            Esta realidade torna‑se ainda mais esmagadora se pensarmos na concentração da oferta cultural nas grandes cidades. Desde sempre, como refere Marcel Roncayolo, “civilidade e civilização, urbanidade e urbano são palavras próximas e aparentadas”[359]. É a cidade que lança as modas e as legitima. Mas é também na cidade que fervilham os conflitos, as tensões e as contradições, as múltiplas lógicas de (des)construção e apropriação do espaço. Por isso, alguns autores apresentam a imagem do “mosaico cultural” para a caracterizar enquanto local de “justaposição de estratos e funções diferenciadas, conotadas com específicas formas de viver o quotidiano, nas matizes das suas crenças, ideologias, valores, costumes e representações sociais”[360].

            Os traços distintivos do que constitui a urbe, a definição de um campo semântico no qual a urbanidade, a qualidade do urbano, se delimita, não escapam a essas contradições[361].

            Marcel Roncayolo situa as imagens da cidade entre dois pólos opostos: por um lado, as referências aos aspectos positivos da urbanização[362] (a mobilidade, a proximidade das fontes de informação e das novas tecnologias, a escolarização, o nível de vida, etc.); por outro, os traços negros de uma patologia urbana (insegurança, violência, solidão, etc.).

            Enquadram‑se, neste último caso, as análises pessimistas, com raízes nas perspectivas teóricas de Durkheim, Park[363], e à qual Louis Wirth prestou porventura a versão mais conhecida.

            De acordo com este autor[364], a urbanidade não é um traço exclusivo das cidades. Por isso, em vez de se preocupar com uma delimitação física (sempre arbitrária) do urbano, Wirth centrou a sua análise no urbanismo como modo de vida.

            Para este autor, a cidade pode ser definida como um agrupamento vasto, denso e permanente de indivíduos socialmente heterogéneos. Desta forma, o seu modelo, por muitos classificado como ecológico, assenta no estudo dos efeitos sobre os comportamentos humanos de três dimensões essenciais: a dimensão, a densidade e a heterogeneidade.

            No que diz respeito à dimensão, Wirth salienta a diferenciação que se opera entre os indivíduos, espacialmente segregados e envoltos num ambiente em que o anonimato e a inevitável substituição da entreajuda rural pela competição geram relações “impessoais”, “superficiais”, “transitórias”, “segmentárias” e “utilitárias”. Ao emancipar‑se das instâncias pré‑industriais de controlo social e afectivo, o indivíduo perde em espontaneidade e em sentido de participação.

            A densidade, pelo seu lado, transforma a cidade num mosaico de “mundos sociais descontínuos” que jamais se interpenetram. Desta forma, aumenta a competição pelo espaço, o que origina sentimentos de solidão, tensão nervosa e um conjunto de frustrações pessoais.

            A heterogeneidade, finalmente, assenta num complexo sistema de papéis sociais que dividem a personalidade do indivíduo em vários segmentos, aumentando o sentimento de esquizofrenia. O indivíduo é, doravante, um insignificante ponto na vasta massa, despersonalizando‑se e estandardizando‑se as trocas sociais.

            Vários estudos posteriores, na área da etnopsiquiatria e da psicologia social salientaram os efeitos negativos resultantes da distanciação face à natureza e da dissolução das bucólicas comunidades de base rural. A teoria da sobrecarga, influenciada pelo princípio simmeliano de que a cidade aumenta a estimulação nervosa, estuda os mecanismos de habituação e insensibilização que, como reacção à sobrecarga, geram sentimentos de apatia e de indiferença.

            Vale a pena, aliás, determo‑nos sobre a abordagem de Simmel, em particular a que se encontra condensada no seu já célebre artigo sobre a vida metropolitana[365]. No essencial, este autor realça a intensificação das redes de relações sociais em actividade nas grandes cidades, por contraste com as pequenas localidades e a vida rural. Mas não o faz com uma intenção valorativa. Dificilmente, aliás, a sua análise pode caber no rótulo optimista/pessimista[366]. Habituado à análise micro‑social, Simmel realça os principais traços constitutivos da civilização urbana contemporânea: a proliferação do cálculo racional (com a consequente “exclusão dos traços e impulsos humanos, instintivos e irracionais que, deixados a si próprios, determinam a forma de vida de modo soberano”[367]), a permanente procura de previsibilidade (uma forma de ordenar o caos potencial da vida urbana), o pragmatismo e a indiferença face aos aspectos pessoais. Em suma, dimensões da vida de espírito que se encontram em íntima relação com o domínio da “economia monetária” e a sua peculiar característica de encontrar correspondência quantitativa para os traços mais individuais: “O dinheiro põe em destaque aquilo que é comum, ou seja, o valor de troca, e reduz a um nível puramente quantitativo tudo quanto é qualitativo e individual. Todas as relações emocionais entre as pessoas assentam na sua individualidade, enquanto as relações de tipo racional as convertem em números, isto é, tratam‑nas como se fossem elementos que, embora indiferentes em si, no entanto, se revelam de interesse quando vistas em termos objectivos”[368]. Para se defender, precisamente, da sobrecarga de estímulos que a vida urbana acarreta, o indivíduo adopta uma “atitude blasé”, fruto da sua inerente incapacidade de reagir constantemente a novas solicitações. Em que consiste esta atitude? De acordo com Simmel, ela traduz‑se em indiferença perante as diferenças, em distanciamento e reserva; por vezes mesmo em antipatia.

            Não se julgue, no entanto, que Simmel adopta uma postura crítica face a este retrato nítido de uma cristalina desumanização[369]. Pelo contrário, a sua atitude revela compreensão: “Se aos incessantes contactos públicos das pessoas nas grandes cidades correspondessem as mesmas reacções interiores dos contactos que têm lugar na pequena localidade, onde cada um conhece e tem uma relação activa com quase todas as pessoas que encontra, estaríamos completamente atomizados e cairíamos numa condição mental deplorável”[370]. Aliás, apesar de ser um “puro reflexo subjectivo da completa monetarização da economia”[371] (estabelecendo uma conexão entre características psíquicas e sociais), esta atitude propicia ao habitante da metrópole uma margem de liberdade e de autonomia jamais alcançadas, escapando às formas tradicionais de controlo social, mesmo quando esses atributos o fazem sentir‑se profundamente só no meio das multidões. A esta possibilidade de libertação, tão presente no ideário romântico do século XIX, deve‑se o recrudescimento dos particularismos e das expressões individualistas, na ânsia de distinção[372] breve mas intensa, em encontros pouco frequentes e duradouros: “Para muitas pessoas, a estratégia de captação da atenção de outrem continua a ser a única forma de preservar alguma auto‑estima e de salvaguardar o seu sentido de lugar”[373].

            De alguma forma, a atitude flâneur de Baudelaire encontra correspondência no quadro psíquico traçado por Simmel: a ambiguidade perante a cidade, o sentimento de angústia, distanciamento e alienação, por vezes, mesmo, um profundo tédio[374].

            No entanto, esta perspectiva de contornos pessimistas sobre o urbano sofreu, ao longo de décadas, um conjunto de diversas críticas.

            Desde logo os teóricos “optimistas”, como Gans, Lewis, Young ou Willmott, multiplicaram os estudos empíricos que provam a persistência dos laços interpessoais e dos grupos primários, mesmo nas zonas mais densamente povoadas das grandes urbes. Criticando o simplismo do determinismo ecológico que serve de base às teorias anteriormente explicitadas, demonstrou‑se que entre o rural e o urbano não existe uma radical antinomia, mas sim um continuum. Além do mais, as diferenças que existem entre as populações rurais e as populações não rurais, não dependem tanto do contexto ecológico, mas sim das variáveis sociológicas mais clássicas: sexo, idade e ciclo de vida, classe social, etnia... Há ainda a acrescentar que largos segmentos da população urbana mantêm no seu habitat características dos modos de vida rurais. Basta pensar na organização autocrata de certos bairros, onde a visibilidade social é elevada e associada a relações de vizinhança intensas.

            Luís Soczka fala num “conglomerado complexo de variáveis” e numa “multideterminação”[375] das (des)regulações que ocorrem em contexto urbano. De facto, não é possível estabelecer uma relação directa entre a densidade populacional e factores como a participação na cidade, o crime, o suicídio, a esquizofrenia, etc. Soczka salienta, por isso, a importância das mediações cognitivas e emocionais, intimamente ligadas aos contextos sócio‑culturais[376] em que os agentes se movimentam.

            A mesma tese é defendida por Jean Remy e Liliane Voyé. Estes autores criticam o reducionismo das abordagens ecológicas. De facto, a mesma forma espacial pode ter consequências diferentes sobre as interacções sociais, de acordo com a estrutura social em causa e os modelos culturais vigentes[377]. Estes autores chegam mesmo a falar dos efeitos ideológicos das teses ecológicas. Ao deslocarem o “lugar da explicação”, reforçando a lógica de uma relação unívoca entre o espaço e os comportamentos humanos na cidade, ficam na sombra todos os problemas económicos, sociais e políticos que fragmentam e segregam a vida urbana.

            Em suma, defende‑se que uma mesma estrutura espacial pode ter efeitos diferentes, consoante o posicionamento social dos actores e os seus mapas culturais. Não se rejeita, ainda assim, que o espaço possui a sua autonomia. De facto, estes autores salientam, por um lado, os efeitos das estruturas espaciais no campo de possíveis dos actores, organizando os seus tempos quotidianos e, por outro, nas suas representações e atitudes, que se tornam ingredientes fundamentais para a prática e para a acção sociais. Está bem presente, no entanto, a recusa da “ideia segundo a qual um modo de composição espacial, descrito no plano da sua materialidade, estaria ligado a um tipo único de interdependência entre funções ou de modo de vida”[378].

            Uma outra perspectiva, que inverte a abordagem sobre os efeitos do modelo ecológico proposta pela Escola de Chicago, é‑nos fornecida por Claude Fischer[379]. De acordo com este autor, a concentração populacional urbana, longe de favorecer os efeitos salientados pelos teóricos mais pessimistas (enfraquecimento dos laços interpessoais e dos grupos primários, quebra das relações de interdependência e dos consensos normativos, etc.), contribui para a formação de pequenos grupos animados por uma determinada subcultura. Segundo Fischer, este “mosaico” de mundos sociais, também analisado pela Escola de Chicago, tanto pode proporcionar efeitos positivos como efeitos negativos para a ordem social global. Tudo depende do “conjunto de crenças, valores, normas e costumes”[380] associados às diferentes subculturas.

            Fischer parte de várias hipóteses. Destacaremos em seguida as que consideramos essenciais para a nossa análise.

            Primeira hipótese: Quanto mais urbanizado for um local, maior será a sua variedade subcultural. A concentração populacional favorece a fragmentação em função de variáveis como a classe social, a idade e as categorias ocupacionais. Esta variedade é tanto maior quanto se associa à divisão social do trabalho e à especialização dos papéis sociais. Uma vez mais, encontramos abordagens que se coadunam com as propostas de Paul DiMaggio explicitadas no capítulo II.

            Segunda hipótese: Quanto mais urbanizado for um local, maior será a intensidade das suas subculturas. Por intensidade entende‑se, precisamente, o contrário da anomia e da desregulação sociais defendidas, como já vimos, por autores como Durkheim e Wirth. Fischer fala, inclusivamente, de um aumento da coesão grupal, forjado pela comparação e competição entre as várias subculturas.

            Terceira hipótese: Quanto mais urbanizado for um local, mais numerosas serão as fontes de difusão e maior será a difusão dentro de uma subcultura. Por difusão entende‑se a “adopção pelos membros de uma subcultura das crenças e comportamentos de outra”[381]. Desta forma, melhor se compreende a análise que em outros capítulos fizemos sobre o esbatimento de fronteiras entre diferentes níveis de cultura, bem como sobre o enfraquecimento das ritualizações que exprimem essas divisões, aumentando a tendência para as “mestiçagens culturais” e para o ecletismo de práticas e de gostos.

            Quarta hipótese: Quanto mais urbanizado for um local, maiores serão os índices de não‑convencionalidade. De certa forma, Fischer pretende realçar o papel das cidades enquanto realidades multiculturais produtoras de inovação. A intensificação das subculturas resulta, precisamente, do aumento das densidades populacionais. Desta forma, o autor não rejeita as determinações ecológicas, mas analisa outros efeitos de sentido contrário aos de Wirth. Por outro lado, esta diferenciação impede os monopólios e a imposição de arbitrários culturais. Aumenta a diferenciação cultural, mas diminuem as hierarquias. Além disso, os padrões de comportamento não convencionais (que tanto podem estar presentes nas subculturas artísticas como nas criminosas — uma vez mais a ambivalência da cidade...) alimentam‑se da penetração de elementos periféricos das outras subculturas no seu domínio central (“central core”) e viceversa.

            Em síntese, a utilização deste modelo ecológico realça o carácter regulado e integrado da vida social, num contexto em que proliferam os mecanismos de troca, negociação e compromisso entre as várias subculturas que fervilham na cidade contemporânea.

 

            2. A cidade e a apropriação do espaço.

 

            Colocarmo‑nos na perspectiva daqueles que apropriam e utilizam o espaço implica aceitarmos, uma vez mais, o pressuposto de que os agentes, apesar de actuarem num campo restrito de possíveis, actualizam estratégias, cálculos e interesses no decorrer da acção social.

            Deste modo, não podemos considerar que a lógica de apropriação do espaço urbano seja um mero espelho da lógica da produção. Aliás, muitos dos conflitos urbanos resultam, precisamente, do desfasamento e da incompatibilidade que entre si estas lógicas manifestam.

            Michel de Certeau presta uma atenção muito especial aos “utilizadores” do espaço. Contra os espaços racionalizados e burocratizados, Certeau opõe as práticas “microbianas, singulares e plurais” que se “insinuam” na cidade, escapando aos mecanismos de controlo e constituindo “regulações quotidianas e criações subreptícias”[382] que constituem uma espécie de cidade “poética”, “transumante” e “metafórica”. Tal como a palavra está para a língua, também a marcha está para a cidade, assumindo‑se como “espaço de enunciação”. A “retórica da marcha” actualiza os recursos e possibilidades que o espaço oferece, bem como as suas interdições. Constitui, por isso, um processo capaz de criar “ocasiões” de contestação e de afirmação face à ordem hegemónica, superando os seus limites e constrangimentos. Através dos mecanismos de apropriação do espaço geram‑se estilos[383] e usos[384], combinando‑se numa determinada “maneira de fazer”. Susan Sontag, num prefácio a escritos autobiográficos de Walter Benjamin realça a “arte de se perder” na cidade; cidade onde “o espaço é largo, repleto de possibilidades, posições, intersecções, passagens, curvas, voltas em “U”, becos sem saída e ruas de sentido único”[385].

            O que caracteriza, segundo Rémy e Voyé as sociedades urbanizadas, é, precisamente, uma nova forma de apropriação do espaço, muito mais marcada pela mobilidade e pelos projectos individuais. A comunicação à distância, traço característico da compressão do espaço‑tempo, atenua, sem as eliminar, as ligações das bases morfológicas às suas funções sociais. Desta forma, os projectos de pessoas e grupos tendem a distanciar‑se de uma base espacial concreta, desvitalizando‑se os espaços públicos. Neste sentido, Pierre Pellegrino afirma mesmo que existe uma dissociação entre o conceito de cidade e a urbanidade, já que os relações sociais processam‑se em contextos cada vez mais burocratizados e policiados. Desta forma, o espaço colectivo deixa de ser um espaço público, não oferecendo uma exterioridade distintiva face ao espaço doméstico, elemento fundamental para o encontro com o Outro: o espaço público é gradualmente substituído por entidades privadas “que, no seu interior, não gerem de forma alguma as relações sociais como a formação social global que assegurava a cada um o livre acesso ao espaço público”[386]. As sociabilidades de base residencial tendem, igualmente, ao enfraquecimento. Um tipo de vizinhança difusa (“Diffuse Neighborhood”), caracterizada por uma fraca participação na vida local e por uma débil ligação à comunidade envolvente ou um tipo de vizinhança (“Stepping‑stone Neighborhood”) onde a interacção com os elementos da área de residência é meramente formal (havendo maior identificação com entidades exteriores ao local de residência) tornam‑se dominantes[387].

            Um outro aspecto da maior importância é o que se prende com a descontinuidade do espaço urbano contemporâneo. De facto, se grupos e “comunidades interpretativas” reagem de forma diferente aos efeitos das estruturas espaciais, vivenciando‑o e representando‑o de maneira distinta, tal deve‑se, precisamente, ao acentuar da autonomia face à base morfológica da cidade.

            Desta forma, multiplicam‑se os projectos pessoais, intimamente ligados à intensidade subcultural referida por Fischer, enfraquecendo‑se os projectos colectivos e os domínios públicos[388]. A competição pela igualdade, em termos de recursos, espaços e equipamentos, leva à “rejeição de tudo quanto é visto como entrave ou simplesmente risco de entrave à liberdade de escolha e de comportamento pessoal”[389]. Assim, também as “solidariedades globais” de outrora se vêem substituídas por “solidariedades parciais”, baseadas não na classe social, mas em papéis sociais específicos e actividades muito particulares. Além do mais, a ilusão de autonomia que a vida extra‑profissional confere, sendo porventura funcional para travar “as reivindicações no plano profissional”[390], tende a integrar as pessoas através do consumo, desimplicando‑os na construção de projectos colectivos e estimulando a actividade económica[391]. Pelo contrário, em situações não‑urbanizadas os vários sistemas articulavam‑se pela proximidade espacial e pelo predomínio da relação interpessoal, das relações de vizinhança e do controlo ecológico de base local.

            O cosmopolitismo dominante, aliás, tem uma carga ambivalente: tanto pode significar um certo centramento no indivíduo e na afirmação da sua liberdade, inserido em redes de sociabilidade extremamente móveis e difusas, como um isolamento anómico por ruptura dos laços sociais básicos. Neste último sentido, fala‑se da “funcionalização” do espaço público e da proliferação dos lugares não socializados: “as praças e ruas das cidades transformaram‑se em lugares de passagem percorridos por «multidões solitárias». São espaços que se desvitalizaram, deslizando progressivamente da categoria de público para a neutralidade do não‑privado, através de um enfraquecimento da categoria especificadora — colectivo — que conferia sociabilidade à relação”[392]. O espaço semiprivado, por seu lado, surge como um contraponto ao esvaziamento da esfera pública (centros comerciais, discotecas, restaurantes...), mas enquanto espaço de fraca especificidade local, imbuído de uma lógica de “desterritorialização universalista[393].

            Nestas condições, a cidade torna‑se palco de uma explosão de máscaras onde se dissociam as esferas psicológicas, afectivas e sociais, num jogo de opacidade nada propício às capacidades emancipadoras da “retórica pedestre”.

 

            3. Redução semântica versus explosão do simbólico.

 

            Pode falar‑se de um processo de redução ou empobrecimento semânticos quando a cidade perde legibilidade. Por legibilidade considera‑se a característica que certas cidades possuem e que as identifica a “uma estrutura física viva e integral, capaz de produzir uma imagem clara”[394]. Segundo Kevin Lynch, a imagem que fazemos de uma cidade tem uma importância decisiva no estabelecimento de trocas e laços pessoais, solidificando ou não as vivências e as práticas quotidianas. Qualquer pessoa, por isso, participa num processo de permanente construção dos espaços urbanos: “Os elementos móveis de uma cidade, especialmente as pessoas e as suas actividades, são tão importantes como as suas partes físicas e imóveis. Não somos apenas observadores deste espectáculo, mas sim uma parte activa dele, participando com os outros num mesmo palco”[395]. Se a imagem de uma cidade é clara e coerente, então a vivência urbana tenderá a ser mais intensa. Os principais pontos de referência constituirão autênticas marcas simbólicas que funcionarão como estímulo à interacção. Nesse caso, a imagem da cidade resultará da conjugação de uma percepção imediata com toda uma evocação de longa experiência do passado[396], funcionando como estímulo ao “praticante cultural” de Certeau, aquele que, nas suas deambulações, se alimenta da riqueza simbólica da cidade, interpretando‑a e actualizando‑a de forma sempre renovada[397].

            Pelo contrário, uma cidade de difícil legibilidade proporcionará fragmentação, desorientação, desorganização e isolamento. As suas marcas serão dispersas e incongruentes, e o seu significado caótico e confuso. A coesão social será mais fraca e aumentará a desregulação social. Tal acontece quando o urbanismo assume a forma de um discurso altamente especializado e orientado para clientelas distintas, o quando proliferam os processos de segregação e de exclusão. A esse respeito, refere A. Teixeira Fernandes que a “estratificação social tende, de facto, a apropriar o espaço de forma descontínua, como descontínua é a estrutura de classes. O distanciamento é particularmente acentuado quando se dá a segregação social. Neste caso, a diferenciação e o afastamento são extremados e os contactos interditos, sobretudo quando este interdito traz a marca da estigmatização”[398].

            Por outro lado, Lynch refere‑se claramente à importância da acção do observador na constituição do objecto observado. Mais ainda, este autor defende a pluralidade e a multiplicação de formas perceptivas, o que nos leva a pensar no espaço urbano como um texto polissémico, aberto a várias leituras e interpretações. Desta forma, uma cidade cujo tecido social se apresenta descontínuo e heterogéneo resultará numa babel de imagens, altamente particulares e referenciáveis a comunidades interpretativas distintas. Neste caso, o espaço público desertifica‑se e torna‑se terra de ninguém.  

            Uma cidade de imagem distinta e familiar, características fundamentais da legibilidade, proporcionará, pelo contrário, a multiplicação de espaços públicos e semi‑públicos de encontros aleatórios, “a propósito dos quais não se pode dizer de antemão nem quem se vai encontrar, nem o que será importante nos encontros realizados”[399].

            A cidade possui, à partida, um importante manancial simbólico. Toda a intensa imagística associada à cidade e à urbanidade transformam‑na num campo semântico, impregnado de significações e rituais[400]. A cidade vivida é também uma cidade imaginada, com os seus espaços de culto, os seus altares e, inversamente, os seus interditos. Desta forma, torna‑se um elemento central na definição das identidades sociais.

            A cidade de hoje é cada vez mais ilegível, num movimento que alguns interpretam positivamente como a “explosão” de uma estética da diversidade. Neste contexto, as próprias identidades tendem a ser, segundo Carlos Fortuna, “transitórias”, “plurais” e “autoreflexivas”. Constantemente “feitas e refeitas ao sabor das mudanças sociais e das novidades culturais”[401], fruto da destruição criativa, representam o fim da segurança ontológica e correspondem a uma sociedade fluída e plasticizada. Desta forma, o espaço urbano molda e deixa‑se moldar de acordo com os desejos individuais e torna‑se uma cidade “suave”, nas palavras de Jonathan Raban: “Decida quem você é, e a cidade mais uma vez vai assumir uma forma fixa ao seu redor. Decida o que ela é e a sua própria identidade será revelada”[402]. A urbe seria, assim, um manancial de heterotopias, espelho de várias imagens em que alternada e/ou simultaneamente nos revemos, realidade errante, flutuante e labiríntica, tal como as identidades que constantemente (re)cria.

            Estas teses assentam numa das bases primordiais do pós‑modernismo: eliminadas as metanarrativas, extintas as fontes de legitimação, fragmentada em miríades de posições a antiga sociedade estratificada, não é na classe social (nem nas variáveis clássicas como o sexo ou as filiações ideológicas) que encontraremos o fio condutor do enredo. A cidade surge como um palco onde os estilos se confrontam e onde viver passa a ser uma arte.

            Esta nova concepção de cidade não é, no entanto, independente de importantes transformações societais, entre as quais se destacam os fenómenos de desindustrialização, contra‑urbanização e terciarização das cidades, acompanhados por uma compressão no espaço‑tempo que liberta as pessoas dos controles ecológicos locais, favorecendo interacções à distância e deslocalizadas.

             Ao mesmo tempo, fragmenta‑se a integração das várias esferas da actividade social, gerando‑se o sentimento pós‑moderno de esquizofrenia. Como refere David Harvey, “a confiança na associação entre juízos científicos e morais ruiu, a estética triunfou sobre a ética como foco primário de preocupação intelectual e social, as imagens dominaram as narrativas, a efemeridade e a fragmentação assumiram precedência sobre verdades eternas e sobre a política unificada e as explicações deixaram o âmbito dos fundamentos materiais e político‑económicos e passaram para a consideração de práticas políticas e culturais autónomas”[403].

            Assinalando o triunfo da estética sobre o espaço, a cidade pós‑industrial construi‑se a partir de um processo de gentrificação[404], de “filtragem social” de certas zonas da cidade, outrora degradadas e socialmente desqualificadas e doravante recuperadas para uma nova classe média em ascensão social[405].

            Não se trata, no entanto, de um mero processo de reabilitação urbanística. O seu impacto e as suas causas são mais vastos e traduzem uma reestruturação global do espaço urbano, extremamente ligado a uma terciarização fulgurante, a uma desindustrialização igualmente acentuada e a uma forte privatização dos consumos. Os seus protagonistas, possuidores, em geral, de um alto nível de escolaridade e de um perfil técnico‑científico de profissional liberal, de gestor ou quadro superior, inserem‑se em pequenas famílias nucleares marcadas pela elevada participação feminina no mercado de trabalho qualificado e por novas atitudes face às várias dimensões da conjugalidade (adiamento do casamento e da idade média de procriação, aumento dos casais sem filhos ou com apenas um descendente, etc.)[406].

            Baseada no consumo, a cidade pós‑industrial assinala também o ciclo da cidade‑mercadoria, dirigida para sectores específicos do mercado, que aliam poder económico e capital escolar na procura de poder simbólico, através de sinais exteriores de distinção. A estética associada ao processo de gentrificação ilustra bem a dimensão classista do fenómeno, tanto na reapropriação do passado, através da recuperação de uma certa arquitectura (essencial para afastar qualquer afinidade com origens mais modestas[407] e impor uma legitimação histórica, suportada pela conquista simbólica do tempo), como na estilização do quotidiano, patente no tipo de saídas culturais e nos objectos ostentados (distanciados face ao seu carácter utilitário e com um forte valor de signo) metamorfoseados em fétiches ou marcadores simbólicos. Trata‑se, como refere Michael Jager, de uma “ofensiva cultural dramática”[408] capaz de fundar novas distâncias sociais de legitimação do lugar, ainda ambíguo, dos jovens gentrificadores[409].

            Assim, vários autores defendem que o terreno das lutas sociais urbanas deslocou‑se do domínio da produção para as esferas da cultura, da estética e do consumo. Os estilos de vida tornam‑se, então, não apenas indicador de pertença classista, mas igualmente meio privilegiado de constituição das próprias classes sociais.

            Estetização e mercado, eis o grande paradoxo da cidade pós‑industrial e pós‑moderna.

            Antes de mais, porque os efeitos da acentuada “redução semântica” dos espaços pretendiam‑se anulados através da imagem de uma cidade‑espectáculo, baseada na colagem de estilos diferentes e na teatralidade tornada possível pelo confronto de uma multiplicidade de papéis sociais. Contra o movimento funcionalista moderno, baseado na fórmula “um espaço, uma função”[410], defende‑se o ecletismo e a ficção, enquanto “sentido de alguma coisa de um mundo de fantasia, da «viagem» ilusória que nos tire da realidade corrente e nos leve à imaginação pura”[411]. Mas, também aqui, uma vez mais, é o mercado que comanda as operações. Os processos de gentrificação das grandes cidades do mundo ocidental, associam‑se, indissociavelmente, à imagem dos “jovens urbanos profissionais” (yuppies). O urbanismo pós‑moderno, ao guiar‑se, aparentemente, pela “estética pura”, esqueceu a ética e o poder económico diferencial dos grupos urbanos, gerando exclusão e desqualificação, ao mesmo tempo que edificava com grandeza e espectáculo. Mas, mesmo essa tentativa de restituir uma imagem positiva às grandes cidades, assemelhou‑se a um amplo movimento de marketing urbano. Este esforço de autopromoção não consegue esconder, por isso, o facto de se dirigir essencialmente para uma certa “massa crítica”, os quadros médios e superiores do terciário, classes profissionais em ascensão e com uma grande apetência pelos espaços urbanos requalificados. Enquanto espectáculo, a nova animação urbana não resistiu à tentação de produzir grandes “acontecimentos”, virados para os mass media e apologéticos da cultura‑consumo[412]: “A cultura torna‑se, assim, consumível directa ou indirectamente por quase todos. Ela é, de qualquer forma, encenação e participa, por isso do espectáculo colectivo”[413].

            Preocupada mais com a encenação do que com as pessoas, tais políticas encontram‑se profundamente relacionadas com os efeitos sociais do chamado “capitalismo vodu” ou “capitalismo fictício”, ligado à política da imagem e à imagem da política: aumento da desigualdade social, da suburbanização descontrolada, crescimento do desemprego e da precaridade do emprego, crise do Estado‑providência, etc.

            O “direito à cidade” tornou‑se apanágio de uma minoria em ascensão: “(...) para os jovens e os ricos, para os educados e privilegiados, as coisas não podiam ter sido melhores. O mundo dos imóveis, das finanças e dos serviços cresceu, bem como a «massa cultural» dedicada à produção de imagens, de conhecimentos e de formas estéticas e culturais”[414]. David Harvey chama a todo este processo o “aparato ilusório” do capitalismo, que sempre o acompanha, seja qual for a direcção que toma.

            Desta forma, o grau de “pós‑modernidade” varia consideravelmente consoante os grupos sociais em questão. Do ponto de vista da renovação urbana, significou para alguns uma “explosão do simbólico”, das suas imagens e fontes de sentido. Para muitos outros, no entanto, acarretou uma “redução semântica” dos espaços urbanos, uma desapropriação de vastas zonas socialmente vedadas, um acréscimo, enfim, da sua situação de exclusão. As classes trabalhadoras, em particular, ameaçadas habitualmente na esfera da produção, são também agora atacadas na esfera da reprodução, minando as bases da sua própria sobrevivência enquanto classe.

            Por outro lado — e este é um segundo paradoxo ‑, a legibilidade das cidades diminuiu à medida que aumenta o seu carácter de “espectáculo”[415], de consumo e de resposta a solicitações de clientelas específicas. Fragmentando‑se (apesar de, muitas vezes, o próprio movimento pós‑moderno cair em receitas e em situações em que a “diferença” é apenas ilusória — veja‑se o caso dos shopping centers...), sujeitando‑se às leis do mercado, repelindo a cidade “exterior” através de pequenos mundos que funcionam como óculos de Sol (quem vê não é visto)[416] dilui‑se o sentimento de familiaridade e cria‑se a ideia de uma certa desorientação.

            A imagem de cidade deixa de ser global e limita‑se a certos pontos fulcrais e singulares[417], de carácter monumental e que servem como referências ou marcos na memória: Paris é a cidade da torre Eiffel, Londres é a cidade do Big Ben e por aí fora. Assim, a adesão colectiva a um projecto de cidade perde, paulatinamente, o seu sentido e as poderosas “culturas de gosto” impõem o seu domínio na apropriação e produção do espaço. Esta tendência encontra‑se bem presente, segundo Rémy e Voyé, na dispersão que as indústrias de lazer actualmente apresentam, aparecendo como o contraponto de uma vida colectiva forte e marcando decisivamente o domínio do signo sobre o símbolo, isto é, da distinção social sobre a interacção afectiva.

 

            4. Intervenção cultural no espaço urbano.

 

            Um estudo recente de análise das políticas culturais de seis cidades do Norte de Portugal e das complexas relações entre oferta e procura que aí se verificam, fornece alguma base de sustentação para a hipótese de emergência de um processo de gentrificação[418].

            Com efeito, do lado da procura, constata‑se um aumento significativo dos grupos sociais mais escolarizados, em particular nas profissões liberais, quadros técnicos e científicos e pessoal de enquadramento; crescimento indissociável da relativa pujança de um terciário minimamente qualificado.

            Em paralelo, do lado da oferta, encontram‑se vários ingredientes próprios de uma “cultura de consumo”, de cariz lúdico e convivial: “A música, o espectáculo, a dança, a diversão nocturna, a moda, os adereços, as «tribos» e grupos de pares, tudo isso tende a configurar um modelo de conduta, afirmação de identidades pessoais e grupais, encenação pública e apropriação/transformação do espaço urbano”[419]. No entanto, os mesmos autores chegam a uma conclusão de grande interesse. Não existe uma relação directa entre qualificação social (assegurada pelos movimentos de recomposição sócio‑económica de que já falámos) e qualificação cultural. Por outras palavras, os novos públicos urbanos, apesar de escolarizados não são necessariamente cultivados, no sentido de familiarizados com as manifestações da “cultura erudita”: “a procura mais consistente, na paisagem urbana portuguesa, nem sequer é constituída por elites económico‑sociais no sentido mais estrito da palavra (...) mas sim por fracções das classes médias, muito devedoras do paradigma escolar”[420]. Quais são, então, as características destes novos públicos? Ecletismo e polivalência em detrimento da especialização artística, juvenilidade, valorização das sociabilidades, do lazer e da apresentação de si. Em suma, um público atento à oferta cultural, com um alto nível de participação, mas que “tem ainda muito por onde elevar esse (...) nível”[421]. Impõe‑se, então, a questão: o que fazer em termos de políticas culturais locais?

            Augusto Santos Silva, num outro artigo sobre o mesmo estudo, constata a existência, por parte dos autarcas, de diferentes estratégias no que respeita à animação cultural.

            Enquanto que a maioria dos eleitos locais exprime uma atitude instrumental face ao desenvolvimento de novas políticas culturais, outros dividem‑se entre critérios “comerciais” e de “qualidade”, sem os procurar compatibilizar. Daqui resulta que, apesar da inegável diversificação da oferta cultural existente, pouco se tem feito “no plano de uma leitura mais sociopolítica das raízes e do significado das novas sociabilidades e expressões urbanas, na sua articulação com os desafios e as oportunidades de evitar a degradação das condições e dos modos de vida nas cidades de hoje e melhorar, nelas, o grau e as formas de coesão social”[422]. Por outro lado, mantém‑se ainda viva uma relação com o tecido social organizado (designadamente as associações) marcada por relações de pressão mútua reguladas pela lógica do subsídio.

            Perguntamo‑nos, então, quais poderão ser os principais eixos estruturais de uma política de intervenção cultural que se distinga da “cultura espectáculo” do pós‑modernismo, mas também das visões fechadas e arcaicas da actividade cultural endógena.

            José Madureira Pinto avança com algumas propostas.

            Em primeiro lugar, e considerando que não há produção do novo sem referência a um passado acumulado, impõe‑se “criar e/ou salvaguardar infraestruturas básicas especializadas e promover estímulos duráveis à criação e criatividade culturais em todos os espaços sociais e sob todas as formas em que elas podem desenvolver‑se”[423]. Assim, para além das suas responsabilidades no campo do arquivo e do património[424], uma política cultural de sentido decisivamente democratizante deve diversificar a sua oferta, sem deslegitimar, a priori, quaisquer formas de expressão cultural. Para tal, dever‑se‑á apoiar com especial ênfase tanto as associações como as escolas. Através das primeiras, atingimos públicos habitualmente oriundos das classes populares; mediante as segundas, conferimos um especial estímulo ao alargamento e à formação de novos públicos. Nestas duas frentes combater‑se‑á a desvitalização do espaço público e a crescente tendência para o retraimento na esfera doméstica, com a consequente diminuição da intensidade e da densidade das redes e cenários de interacção.

            Em segundo lugar, propõe‑se “propiciar a segmentos populacionais vastos, sobretudo das camadas populares, o contacto com as formas culturais mais exigentes”[425].

            Pretende‑se, desta forma, contrariar todas as teses fatalistas que consideram impossível o acesso de certas camadas desprovidas de capital cultural e escolar às formas mais exigentes, legitimadas e legitimantes de expressão cultural. Não pode aceitar‑se, como defende Ignacio Quintana, “o princípio de que a cultura «superior» corresponde às élites, enquanto que o resto pode contentar‑se com uma cultura mediana”[426].

            Partindo das teses de Bourdieu, Madureira Pinto considera, num outro artigo[427], ser “possível alargar e complexificar o âmbito das disposições estéticas incorporadas nos habitus”[428]. Esta opinião, apesar de assumida com moderação (o autor assinala, logo de seguida, as limitações da “margem de reconversão”) coincide largamente com o que defendemos, com vigor, no capítulo anterior, a propósito das potencialidades de uma intervenção junto da esfera da recepção cultural.

            No entanto, coloca‑se aqui uma delicada questão. Se é verdade que o subcampo artístico resiste, com constante fechamento, às tentativas de democratização das condições de acesso, tornar‑se‑á possível, no entanto, prescindir do apoio dos próprios produtores culturais? Parece‑nos que não. Será sem dúvida pela sua mão que muitos dos “segredos” da produção artística se poderão desvendar e, por isso mesmo, dessacralizar.

            Nada impede, ainda assim, que se tentem outras iniciativas, uma das quais poderá consistir na diversificação da oferta cultural. Não se trata, como refere Augusto Santos Silva, de construir um “hipermercado de iniciativas”[429], mas sim de impedir a unificação do que é múltiplo e plural. Também neste aspecto, algum ecletismo cuidadosamente preparado poderá favorecer o cruzamento e o enriquecimento mútuo de códigos oriundos de diferentes campos. O mesmo se poderá dizer da “contaminação” de géneros, estilos e níveis de cultura, proporcionada pela subversão de antigas distâncias, em especial as que advêm da revitalização da convivialidade urbana. Sem esquecer, no entanto (e este é o terceiro princípio proposto por J. Madureira Pinto), que as culturas dominadas terão sempre maiores dificuldades de superação dos estigmas da “cultura do pobre”[430]. Desta forma, justifica‑se um intervencionismo activo, nomeadamente no que se refere ao associativismo, sem que tal signifique, como refere A. Santos Silva, cair no “jogo entre a lealdade e o subsídio”[431]. Para tal, impõe‑se que a hierarquizante distinção entre “artes maiores” e “artes menores” não constitua uma realidade insuperável[432].

            Alguns autores sustentam que estas intervenções apenas serão bem sucedidas se estiver preenchido um certo número de condições. Uma delas, porventura a mais importante, é a de envolver os vários actores implicados. Defende‑se uma intervenção global que signifique uma verdadeira política de cidade e não se limite à produção de grandes acontecimentos mediáticos ou de uma imagem para consumo externo. Por outro lado, esse implicar dos vários actores territorialmente activos reveste‑se ainda de maior importância em situações de conflito e de tensão sociais. Nessas ocasiões, mais do que a possibilidade de comunicação e/ou negociação de jogos e interesses distintos, importa, como refere Gaudin, desenvolver um “jogo local” de concertações em rede, capaz de gerar dinâmicas contratuais de desenvolvimento urbano. Os actores territorialmente activos “vêem‑se assim convidados a passar da posição clássica de consulta ou de contestação a uma atitude de implicação‑negociação na própria elaboração e acompanhamento dos projectos”[433]. As questões culturais — os processos de comunicação são, por excelência, uma questão cultural — surgem no centro das políticas de desenvolvimento. Não é por acaso que, numa época em que se acentuam as tendências globalizantes, surge com particular incidência o problema da salvaguarda e da transmissão da cultura e identidade nacionais e regionais.

            Por outro lado, a insistência em políticas e programas culturais de alargamento e formação dos públicos em muito contribuirá para que as funções de distanciação crítica face à cultura de massas assumam um particular significado. Não podemos esquecer, de facto, que o campo das indústrias culturais (também apelidadas de «indústrias do conhecimento» ou da «informação») poderá significar, dentro em breve, 25% do volume total de novos empregos, falando‑se, por isso, da rápida emergência de um novo sector económico — o quaternário[434]. No entanto, existem pontos sensíveis na relação entre o alargamento das indústrias culturais e os processos de democratização cultural. Se é verdade, por um lado, que certos sectores artístico‑culturais serão privilegiados por se dirigirem a vastas audiências, não serão, pelo contrário prejudicados os sectores menos direccionados para o mercado? Não irá a “indústria” devorar o “cultural”? Que garantias se colocam para o desenvolvimento e a viabilidade da arte experimental, inovadora ou de orientação vanguardista? Facilitar‑se‑á uma “ditadura de gosto” da “maioria silenciosa”? Que efeitos na qualidade dos produtos culturais?

            É que a cultura na e para a cidade nem sempre significa cultura de cidade. Esta última só é possível quando se enriquecem os modos de vida quotidianos e os canais de comunicação. Mais do que um efeito de marketing, trata‑se de um esforço de cidadania.

CAPÍTULO V

POLÍTICAS E PRÁTICAS CULTURAIS EM PORTUGAL:

PONTO DE SITUAÇÃO E GRANDES TENDÊNCIAS

           

            “Uma das consequências mais dramáticas da carência cultural é, de resto, a inconsciência de si própria que ela gera nas suas primeiras e principais vítimas (...) O que é verdade é que não se pode sentir a falta do que não se conhece.”

Rui Vieira Nery, “A esquerda democrática e o princípio do serviço público cultural”[435]

 

 

            1. Uma visão de conjunto.

 

            Foi apenas a partir de finais dos anos oitenta que se iniciaram os estudos sistemáticos sobre as práticas culturais dos portugueses[436], quer através de pesquisas académicas, quer pela produção de estatísticas especializadas.

            Na década de 90 prosseguiram os estudos de tipo extensivo, embora centrados numa determinada região[437], direccionados para faixas etárias específicas[438] ou para actividades bem delimitadas[439].

            Contudo, e na tentativa de superar algumas das lacunas das abordagens extensivas, começam a aparecer, embora recentemente, pesquisas intensivas, baseadas no estudo de casos e preocupadas com os usos e vivências da cultura nos espaços‑tempos quotidianos, delineando, muitas vezes, estratégias de cariz etnográfico[440].

            Procuraremos, em seguida, dar conta dos principais resultados desse conjunto de pesquisas, procurando compará‑las com análises similares sobre a realidade francesa. Até há bem pouco tempo deparavamos com a inexistência de estudos publicados sobre as tendências gerais das práticas culturais dos portugueses, bem como de análises contendo uma avaliação sistemática das políticas culturais e abarcando períodos temporais significativos (pelo menos uma década). Dois artigos recentes de Idalina Conde vieram, no entanto, colmatar em boa parte esta lacuna[441].

 

            1.1. A domesticidade e a sedentarização cultural.

           

            As práticas culturais dos portugueses encontram‑se centradas, segundo os mais diversos estudos, nos tempos livres doméstico‑receptivos[442], especialmente marcados por índices elevadíssimos de televisionamento. De acordo com o estudo já referido sobre as práticas culturais dos lisboetas, 97.8% dos inquiridos desenvolvem regularmente práticas domésticas de cariz receptivo. Segundo o mesmo trabalho, 90.3% vêem televisão regular ou ocasionalmente, sendo quase residual o peso relativo daqueles para quem essa prática é rara ou nula (9.3%)[443].

            Partindo dos dados de Jorge Gaspar para a área metropolitana do Porto, 89.2% dos inquiridos consomem pelo menos uma hora de televisão por dia[444]. Augusto Santos Silva e Helena Santos encontram valores semelhantes: 91% dos inquiridos vêem regularmente televisão. Se associarmos a recepção de programas radiofónicos, esgotamos, praticamente “os canais de acesso ao campo da informação e da cultura”[445]. Ou seja, o tempo livre ainda disponível torna‑se residual, em especial para as mulheres, os menos jovens e os que são oriundos das camadas mais desfavorecidas[446].

            Pelo contrário, as práticas habitualmente classificadas como indicadores de uma cultura de saídas apresentam valores reduzidos. Em Lisboa, somente 31% dos inquiridos sai para almoçar ou jantar fora, ir a discotecas e bares. Apenas os tempos livres de sociabilidade local, como ir à missa, frequentar cafés e cervejarias, etc., assumem valores elevados. O mesmo se passa na área metropolitana do Porto: segundo o estudo de Jorge Gaspar, 64.8% dos inquiridos vão ao café pelo menos uma vez por semana, enquanto que a ida a discotecas pelo menos uma vez por mês não representa mais de 10.3%.

            No entanto, e como refere João Sedas Nunes, os tempos livres de sociabilidade local apresentam‑se, a maior parte das vezes, “como uma extensão física das redes constituídas pelo fórum doméstico, na rua e no bairro (espaços públicos que, no entanto, através dos agentes específicos que os apropriam, são «controlados» pela «unidade doméstica»)”[447]. Ainda assim, outros autores salientam a intensidade dos vínculos conviviais nestes espaços‑tempos de sociabilidade local, como é o caso do café. De acordo, por exemplo, com Virgílio Borges Pereira, os cafés devem ser analisados como espaços semi‑públicos, emergindo como forma de combater o isolamento elitista da “cultura de salão” e onde se expressam laços de sociabilidade informal próprios dos cenários de co‑presença[448]. Para além de desempenhar uma função utilitária, o café surge como lugar convivial, o que complica a interpretação dos números relativos à sua frequência[449].

            Por outro lado, se atentarmos no quadro I, referente a um panorama geral da situação cultural portuguesa durante uma década (com os valores respeitantes a dois anos limite — 1985 e 1995) verifica‑se uma quebra de 24.5% na utilização de recintos para espectáculos públicos, sendo que quase 50% se concentram em Lisboa e Vale do Tejo. O mesmo se passa em relação ao número de editores e livreiros existentes em Portugal continental (‑33.1%). Situação igualmente negativa é a que se verifica ao nível das sessões de cinema (‑21.2%), com consequências ainda mais assinaláveis no que respeita à quebra do número de espectadores (‑61%), representando em valores absolutos menos 11.587.000 espectadores).

            No entanto, como também se constata no quadro I, existem algumas evoluções positivas a assinalar. Desde logo, no acréscimo de outras sessões de espectáculos públicos que não o cinema (+28%)[450]. Mas, mais significativo ainda, pelo aumento substancial do número de visitantes de museus (mais 3.489.097 no período 1985/95, ou seja, +67.4%). Outro acréscimo, extremamente relevante prende‑se com o número de bibliotecas. De facto, estas mais do que triplicam na década em análise (mais 1080, ou seja, +202.2%).


QUADRO I — ESPECTÁCULOS PÚBLICOS: DADOS GERAIS (1985 E 1995)

 

 

 

 

MUSEUS

 

 

VISITANTES MUSEUS (1000)

 

 

EDITORES E LIVREIROS

 

 

RECINTOS

 

 

 

 

1985

 

1995

 

1985

 

1995

 

1985

 

1995

 

1985

 

1995

 

PORTUGAL

 

 

229

 

341

 

5.177

 

8.666

 

721

 

482

 

425

 

321

 

 

TAXA VARIAÇÃO 1985/95

 

 

 

+ 48.9%

 

 

+67.4%

 

 

‑33.1%

 

 

‑ 24.5%

 

 

 

(Continuação)

 

 

 

Nº. SESSÕES CINEMA

 

 

ESPECTADORES CINEMA (1000)

 

 

Nº. SESSÕES OUTRAS MODALIDADES

 

 

Nº. ESPECTADORES OUTRAS MODALIDADES (1000)

 

 

 

BIBLIOTECAS

 

 

 

1985

 

1995

 

1985

 

1995

 

1985

 

1995

 

1985

 

1995

 

1985

 

1995

 

PORTUGAL

 

 

185.092

 

145.846

 

18.984

 

7.397

 

3.750

 

4.799

 

808

 

953

 

534

 

1614

 

 

TAXA VARIAÇÃO 1985/95

 

 

 

‑ 21.2%

 

 

‑ 61%

 

 

+ 28%

 

 

+ 17.9%

 

 

+ 202.2%

FONTE: INE, Estatísticas da Cultura, Desporto e Recreio, 1985 e 1995


            Todavia, se atentarmos no quadro II, verifica‑se que, para o total dos espectáculos públicos, a queda é brutal: de 19.8 milhões de espectadores em 1985 para pouco mais de 8.3 milhões em 1995. Ainda assim, tal queda explica‑se pelo acentuado decréscimo verificado no cinema, o qual, como se pode observar, quase faz o pleno dos espectáculos públicos.

            Da mesma forma, o teatro também perde espectadores, apesar de um aumento significativo no número de sessões, o que, traduzindo embora um aumento da oferta nesta área, ao qual não será alheio um acréscimo dos meios disponíveis, se mostra insuficiente para uma evolução positiva da procura. Quanto aos outros sectores, apesar de se registarem aumentos expressivos em termos relativos (concertos, bailados, variedades), partem de valores tão reduzidos que não chegam a superar a forte escassez de espectadores.

            Em síntese, pode‑se afirmar que os espectáculos públicos, associados à um certo tipo da chamada “cultura de saídas”, sofrem durante a década 1985‑1995, um recuo considerável, em especial se atentarmos no número de espectadores. Os portugueses, por isso, passam muito mais tempo em casa. António Barreto é de opinião de que este padrão de intensa exposição aos media “é inalterável e não reagiu significativamente à subida real das taxas de alfabetização e da frequência das escolas”[451]. Ainda segundo este autor, e ao contrário do que aconteceu na evolução das práticas culturais dos restantes países europeus, “quando os portugueses chegaram     um estádio de desenvolvimento que deixaria supor uma superior propensão para a procura de informação escrita, já a televisão satisfazia tais necessidades”[452].


 

QUADRO II — ESPECTÁCULOS PÚBLICOS: RECINTOS, SECÇÕES E ESPECTADORES POR MODALIDADES (1985 E 1995)

 

 

 

 

RECINTOS

 

 

SECÇÕES

 

ESPECTADORES (1000)

 

 

1985

 

1995

 

1985

 

1995

 

1985

 

1995

 

CINEMA

 

379

 

241

 

185.092

 

145.846

 

18.984

 

7.397

 

TEATRO

 

37

 

40

 

1.916

 

3.512

 

486

 

339

 

ÓPERA

 

3

 

8

 

56

 

62

 

36

 

35

 

CONCERTOS

 

4

 

37

 

81

 

386

 

13

 

249

 

BAILADOS

 

8

 

19

 

152

 

214

 

64

 

82

 

MISTA (VARIEDADES)

 

11

 

13

 

388

 

392

 

9

 

65

 

CIRCO

 

1

 

1

 

2

 

 

 

 

TOURADAS

 

20

 

27

 

72

 

98

 

192

 

152

 

OUTRAS MODALIDADES

 

5

 

12

 

83

 

104

 

8

 

31

 

                        FONTE: INE, Estatísticas da Cultura, Desporto e Recreio (1985 e 1985)


 

            Não somos, no entanto, apologistas das análises que falam de catástrofe quando se menciona o efeito dos mass media na (des)estruturação das redes de sociabilidade e das competências cívicas e culturais dos agentes sociais. Acreditamos, como já tivemos ocasião de o afirmar, nas capacidades selectivas e reinterpretativas da recepção cultural, bem como nos mecanismos cognitivos de mediação dos agentes sociais que impedem o efeito “estímulo/reflexo” e nos distanciam do modelo do “sonambulismo social” dos alegres robots.

            Contudo, não deixa de ser inquietante verificar o peso esmagador dos tempos domésticos receptivos, precisamente porque quase esgotam o leque disponível de práticas culturais[453]. Por outras palavras, a possibilidade de confrontar informações e estímulos culturais verificar‑se‑á, esmagadoramente, no interior do que Olivier Donnat apelida de economia mediático‑publicitária[454], com as suas formas particulares de apresentação, representação e construção de visões do mundo. Apesar das tendências crescentes para a diversificação e especialização dos mass media, permitindo encontrar a novidade e a singularidade onde apenas se esperava estandardização e uniformização, não podemos deixar de reflectir sobre os seus efeitos nos universos culturais[455] dos portugueses. De acordo com este autor, a televisão apresenta‑se “de certa maneira como o sistema de consagração da nossa época”[456] ou como um “sistema concorrente de distinção”[457]. Ao contrário dos universos culturais legitimados da cultura cultivada, onde ainda é significativo o peso dos mecanismos clássicos da distinção (baseados na crença da autonomia do campo artístico e na tríade artistas, mediadores culturais — em especial os críticos — e instituições culturais ‑em particular a escola), a consagração funciona, agora, de forma extremamente rápida, “accionando relações inéditas entre a arte, a economia e a tecnologia”. Se, outrora, as características do “artista maldito” (ascese, sofrimento, isolamento) asseguravam, dentro do subcampo artístico, um alto capital simbólico, hoje tudo se joga na espectacularização. Contudo, como faz notar Olivier Donnat, se actualmente contam “as trajectórias fulgurantes e o reconhecimento imediato”[458], existe, contudo, um domínio onde as duas lógicas de consagração encontram um terreno comum: a ênfase no existencial, no carácter excepcional de certas trajectórias e o sentido da provocação. Desta forma, a economia mediático‑publicitária acaba também por invadir os círculos restritos da cultura cultivada e “a grande maioria dos artistas procuram hoje a estratégia ideal que permite acumular o máximo de capital mediático, sem perder a consideração do seu meio”[459].

            Muitos autores questionam a ilusão de democratização patente no êxito retumbante da explosão mediático‑publicitária. Para estudiosos como Habermas, a exposição à massificação não só está isenta de intenções críticas e inovadoras, como provoca “efeitos regressivos”, não havendo qualquer correspondência entre a lógica da quantidade e a da qualidade. Por outras palavras, fica “comprometida, assim, a correspondência entre maior público e maior «esfera» pública no sentido intersubjectivo, habermasiano do termo”[460].

            Outros autores, no entanto, salientam a persistência de um potencial crítico e criativo na cultura mediático‑publicitária. Maria de Lourdes Lima dos Santos refere, a esse respeito, todos os jogos de cumplicidade que animam a relação emissor/receptor. Esta autora salienta os processos de intertextualidade, colagem e descontextualização das produções existentes, baseados num “piscar de olhos” ao receptor e que possibilitam efeitos ousados de divulgação, permitindo “que quem não pertence a um determinado campo possa aperceber‑se do modo como os especialistas do respectivo campo elaboram as suas produções”[461].

            Seria interessante, nesta discussão, conhecer os poucos que não se integram nem se reconhecem na cultura mediático‑publicitária. Segundo o estudo sobre as práticas culturais dos lisboetas, essa pequena minoria constitui uma espécie de “excluídos de luxo”. De facto, ela é constituída por indivíduos pertencentes a um estrato médio superior, estudantes ou trabalhadores com formação superior. No pólo oposto encontram‑se os “grandes consumidores”, constituídos por idosos, reformados e desempregados, não possuindo nenhum diploma e pertencentes a um estrato social baixo. Desta forma, ao ser uma actividade rara e quase residual, não ver ou ver pouco televisão torna‑se uma prática distintiva de grande valor simbólico.

            Uma outra questão fundamental prende‑se com os usos da televisão. De facto, existem diferenças assinaláveis entre um espectador que programa selectiva e cuidadosamente o seu televisionamento e um outro que tudo consome indistintamente.

            De acordo com Donnat, vivemos na segunda era do audiovisual. Enquanto que a primeira representou uma difusão massiva de equipamentos, alargando a quase todos os lares a posse de um aparelho de TV, a segunda liga‑se a uma individualização das práticas audiovisuais, bem como ao seu carácter interactivo: multiplicação dos canais, telecomando e vídeo.

            Qual é, neste aspecto, a situação portuguesa? O inquérito coordenado por Jorge Gaspar e relativo às práticas culturais na área metropolitana do Porto mostra que a posse de um aparelho de TV se alargava, então, a cerca de 95% da população inquirida. Quanto à posse de vídeo, não ultrapassava os 4%. Contudo, este trabalho data de 1986. Em 1987, e para o total da população portuguesa, a posse de televisão quedava‑se pelos 82.8%. Em 1995, tal número subia para 96.4%[462], apenas ultrapassado pela posse de fogão. A diferença mais abissal, no entanto, diz respeito ao usufruto do vídeo: em 1995 atingia já 45.2% da população[463], enquanto que 9.3% da população tinha instalada antena parabólica[464] e 7.8% possuía uma câmara de vídeo[465].

            Tais dados apontariam para uma utilização cada vez mais selectiva, individualizada e interactiva no domínio do audiovisual. Contudo, no estudo sobre as práticas culturais dos lisboetas verifica‑se “que cerca de 85% da população, pelo menos algumas vezes ou mesmo frequentemente, desconhece o que irá ver quando liga o televisor”[466]. De qualquer forma, alguma informação indicia atitudes menos passivas: 49.3% da população lisboeta tem por hábito mudar de canal (zapping) e 83.8% dos inquiridos, pelo menos algumas vezes e mesmo frequentemente, comenta a programação televisiva nos seus círculos conviviais. Assim, seguindo uma expressão de Idalina Conde, verifica‑se uma certa “funcionalidade lateral da TV – em contraste com o centramento nas emissões e a fidelização da procura que o conceito de telespectador em princípio subentende”[467].

            Por outro lado, se é verdade que existe uma clara degradação dos conteúdos culturais dos programas televisivos[468], não podemos deixar de referir o entusiasmo com que alguns recebem as novas tecnologias da comunicação que vão, paulatinamente, substituindo os modelos do “audiovisual clássico”[469]. O multimédia, por exemplo, reabilita o texto e requer uma participação activa por parte do utilizador, enquanto que a Internet cria novas redes de sociabilidade.

            Finalmente, uma última nota leva‑nos a realçar que, apesar da clara colonização dos tempos livres pela televisão, o espaço doméstico permite outro tipo de práticas, designadamente as de cariz amador (por exemplo, utilizando como suportes equipamentos de vídeo ou de fotografia) e as de tipo intelectivo, para seguir a categoria em que Idalina Conde integra as práticas de leitura.

 

            1.2. O peso do capital escolar.

 

            Os números são claros: o acesso aos bens e aos circuitos da cultura cultivada depende, em larga medida, da existência de um capital escolar elevado. Não só a intensidade das práticas se liga à posse de um alto grau de escolaridade, como tal se verifica em quase todas as actividades culturais: cinema, leitura, música, teatro, saídas nocturnas, etc.

            No que diz respeito às práticas mais generalizadas e massificadas, o peso do capital escolar é decisivo na demarcação de géneros e usos. Por exemplo, o caso da utilização do zapping na televisão é tanto mais utilizado quanto mais elevado é o grau de instrução dos inquiridos[470]. Nas práticas de leitura, a poesia e o ensaio adquirem contornos de distinção.

            Assim, temos três tipos de fracturas: a primeira diz respeito à intensidade das práticas culturais (os mais instruídos ouvem mais rádio, lêem mais jornais diários e semanários, vão mais ao cinema e aos concertos, lêem mais romances e poesia, etc.); a segunda refere‑se à raridade das práticas mais enobrecidas (frequência de museus e galerias, gosto pela música clássica, pelo jazz e pelo teatro “independente”, leitura, práticas de criação cultural, etc.) fortemente ligadas a um alto capital escolar; a terceira diz respeito à demarcação entre géneros e tipos de produtos (preferência pelos filmes de crítica social nos meios mais escolarizados, pelos programas televisivos de informação e cultura, pelos livros científicos, de poesia ou de ensaio, etc.). As actividades que menores clivagens exercem e onde a distinção se faz a contrario, isto é, pela negativa, são o televisionamento, em que os não espectadores, como já referimos, possuem maiores habilitações literárias, e a leitura de jornais desportivos.

            Por outro lado, os analfabetos (literais e periliterais), os reformados, os idosos, os camponeses e as domésticas constituem um pólo sistematicamente excluído e retraído, mesmo no que se refere às actividades mais massificadas, confinado a um número reduzido de práticas culturais e aos géneros mais “populares”.

            Como referem Santos Silva e Helena Santos, o capital escolar funciona principalmente como “revelador”, isto é, “revelador de diferenças e desigualdades sociais, de que constitui, ao mesmo tempo, produto e factor de reprodução, reforço (e, não esqueçamos, alguma alteração)”[471]. Por outro lado, possibilita análises mais finas, propiciando demarcações dentro da mesma fracção de classe (revelando a sua heterogeneidade), como por exemplo acontece na pequena burguesia de execução, em que certos sectores ligados ao trabalho braçal se aproximam claramente das “classes populares”, enquanto que outros, dentro do sector terciário, se aproximam das “classes médias urbanas”[472]. Ou como se constata, igualmente, dentro da própria burguesia escolarizada, segmentada por “«pericialidades» eruditas suficientemente restritivas para retraírem a elite do(s) público(s) artístico(s) no interior do(s) público(s) cultivado(s)” o que implica “desajustamentos perceptivos” e “diferentes graus de fechamento nas suas diferentes culturas (artísticas)”[473].

            Desta forma, é preciso não esquecer que determinados consumos da cultura erudita são também minoritários mesmo entre os mais escolarizados (exemplos elucidativos são a leitura de poesia, a ida ao teatro e a concertos, a visita a museus, as práticas criativas, etc.). Assim, a escolarização, apesar de necessária, não é condição suficiente para o acesso aos bens e práticas mais discriminativos, mesmo no interior dos grupos sociais elevados em termos de status sócio‑económico e capital escolar. Mesmo tendo em conta que a distância face a algumas práticas certamente diminuiu com a expansão/massificação do sistema de ensino (veja‑se o caso da música clássica, segundo o inquérito às práticas culturais dos lisboetas[474]), noutros casos tal distância aumentou ou manteve‑se inalterável. É mesmo de salientar que certas práticas massificadas em outros países (como a ida ao cinema) apresentam‑se, no contexto português e em termos de acesso, bastante próximos da cultura cultivada[475]. Desta forma, parece fazer sentido insistir‑se, como faz Idalina Conde, numa dissociação entre o capital escolar e o capital cultural, ou entre uma cultura simplesmente letrada e uma cultura cultivada (eventualmente por efeito de uma certa desqualificação das credenciais escolares, arrastada pela “inflação dos diplomas”)[476].

             Por outro lado, verifica‑se um certo ecletismo nos grupos sociais mais favorecidos, já que são os maiores praticantes de certos géneros ou estilos fortemente associados à cultura de massas. Tal como refere O. Donnat, os mais actualizados dos actualizados (“Les plus branchés des branchés”) acumulam vários tipos de consumo, caracterizando‑se tanto pelo seu conhecimento dos valores e nomes “clássicos” associados à cultura escolar, como pelo seu interesse pelo renovação dos stocks culturais através de um perfil mais “moderno”: “eles são os mais modernos porque se interessam por todas as expressões da vida cultural: dispondo das referências mais diversificadas, julgam sem dogmatismo e manifestam nos seus gostos uma concepção aberta de cultura”[477].

 

            Como interpretar este conjunto desconcertante de informações?

            Antes de mais, assumindo a necessidade de denunciar todos os discursos ultra‑optimistas que defendem o fim das distinções sociais classistas e a sua substituição por meras demarcações estéticas nos estilos de vida. De facto, como refere uma vez mais Donnat: “Inquérito após inquérito (...) os resultados provam que os comportamentos culturais continuam fortemente correlacionados com as posições e as trajectórias sociais, e em particular com o capital cultural”[478]. Por outro lado, existem indicadores de que nem tudo se passa de acordo com os esquemas bourdianos das homologias: os resultados disponíveis de vários inquéritos aos públicos do teatro demonstram que a maior parte dos inquiridos “não ia ao teatro em criança, nem os seus pais tinham o hábito de ir ao teatro”[479]. Os níveis de escolaridade dos progenitores são, aliás, globalmente inferiores aos dos inquiridos, beneficiários de uma mais recente expansão do sistema de ensino. Ao nível da sociedade portuguesa verifica‑se que, em 1992, 79.5% da população activa não possuía mais do que o 3º ciclo do ensino básico[480]. Este indicador alerta‑nos para um acentuado processo de dualização, agravado pela crise do Estado‑Providência e pela retracção dos direitos de cidadania, colocando largos sectores da população numa situação de exclusão, sem possibilidades de mobilizar o seu escasso capital social e exercendo uma “profunda clivagem entre os que estão dentro e os que estão fora”[481], a par de um apagamento nas lutas simbólicas que animam o campo cultural.

            Se parece credível afirmar que o aumento da escolaridade não constitui condição suficiente para o alargamento de acesso às práticas culturais mais exigentes e discriminativas, tal situação agrava‑se num país onde apenas uma escassa minoria possui níveis de escolaridade médios ou elevados. O Estudo Nacional de Literacia mostrou uma população fracamente escolarizada, cujos pais possuem níveis de instrução ainda mais baixos e em que predominam, na sua composição sócio‑profissional, os assalariados de fracos recursos económicos e baixas qualificações. Pelo contrário, os quadros técnicos, científicos e intelectuais, apesar de um franco progresso, constituem, por comparação com países mais avançados, um segmento bastante diminuto[482]: “A existência de cerca de 73% da população com o máximo de seis anos de escolaridade, para além de confirmar os dados internacionais que apresentam para Portugal, no conjunto dos países industrializados, dos mais baixos níveis de escolarização da população dos 25 aos 64 anos, reforça a convicção que aponta para a existência de um número significativo de adultos que vêem dificultada a sua inserção numa sociedade cada vez mais exigente, complexa e competitiva”[483].

            Para António Teixeira Fernandes, tal situação resulta, em grande parte, de um sistema de ensino desarticulado, rígido e baseado em modelos pedagógicos e de aprendizagem desadequados face às crescentes exigências do progresso científico‑tecnológico: “A escola não é um espaço de cultura e de educação, mas de mera informação fria e rotineira”[484].

            Alain Touraine, reflectindo sobre a realidade francesa, defende uma escola que seja capaz de pensar três ordens de problemas: “a ciência fundamental, o conhecimento economicamente orientado e os saberes socialmente úteis”[485]. Ao mesmo tempo, reconhece, com base nos estudos de Didier Lapeyronnie e François Dubet, que o universo escolar está cortado ao meio, devido a um grande desconhecimento mútuo entre alunos e professores.

            José Madureira Pinto, no entanto, recentra a análise nos espaços de socialização familiar e na esfera do trabalho. Se, como se verifica, apesar do aumento dos níveis de escolaridade se mantêm elevadas taxas de analfabetismo “literal” ou “funcional”, a par de reconhecidas dificuldades, mesmo entre os mais letrados, na execução de tarefas básicas, tal deve‑se a “processos de efectiva anulação de aquisições feitas na escola”[486] ou mesmo regressões que questionam a (in)capacidade de prolongar na família as aquisições feitas na escola. Por outro lado, valores como o sentido de autonomia, a criatividade e o espírito de iniciativa, apesar de instigados pela escola, não encontram uma efectiva correspondência no mundo do trabalho, marcado pela segmentação e empobrecimento das tarefas, reprimindo “disponibilidades de inteligibilidade e de expressão adquiridos em percursos educativos anteriores” e criando as condições “para que postos de trabalho desqualificados se tornem eminentemente desqualificantes”[487].

            Desta forma, importa colocar em questão um modelo de política cultural até há bem pouco tempo tido como intocável: o de que, pelo simples efeito conjugado de uma multiplicação da oferta cultural e de uma expansão dos níveis de instrução, se veriam resolvidos os problemas de acesso à cultura através de um irreversível processo de democratização.

            No que se refere ao nível de escolaridade vimos já que, para além dos seus baixos patamares, as aquisições estão longe de ser irreversíveis. Por outro lado, existe em Portugal uma certa contracção da oferta cultural, associada, por um lado, a uma forte centralização política, a que nem sempre o poder local consegue contrariar os efeitos e, por outro, à falta de exploração de alternativas na descoberta dos públicos e dos mercados (note‑se, a esse respeito, o cariz incipiente das iniciativas de mecenato cultural. Maria de Lourdes Lima dos Santos refere mesmo a necessidade de “integrar equilibradamente o apoio privado numa política cultural global”[488]). Em Portugal, o não‑público é uma imensa maioria (a centralidade e não a marginalidade, como refere Idalina Conde), o que constitui um estímulo para a conquista de novas camadas de praticantes culturais. Augusto Santos Silva pega na mesma ideia para sugerir uma dupla acção: por um lado, consolidar uma oferta cultural coerente e persistente, de forma a estabilizar o público já existente, aumentando a intensidade e a frequência das suas práticas. Por outro lado, conquistar públicos virtuais com certas potencialidades, designadamente no que se refere ao seu volume de capital escolar[489]. O não‑público, não o esqueçamos, é igualmente maioritário mesmo entre os mais escolarizados.

            Entretanto, assiste‑se a um certo desprezo pelas referências transmitidas pela cultura escolar, a que não será alheio o triunfo do audiovisual e a “morte” do livro, tudo isto enquanto se intensificou a massificação do sistema de ensino, mesmos nos seus níveis intermédios e superiores.

            Donnat defende, por isso, e como já referimos anteriormente, a existência de novas formas de consagração no campo cultural e no sub‑campo artístico. A “economia mediático‑publicitária” entra em competição com a cultura “clássica” de cariz escolar e académico. Como resultado, o “universo cultivado moderno” organiza‑se através de outras referências: “o conjunto imagem‑som e as saídas nocturnas como os concertos de jazz e de rock, os espectáculos de dança e de cinema”[490]. A este novo tipo de práticas culturais associa‑se uma superestrutura de valores, mitos, rituais e visões do mundo, prevalecendo, ainda segundo Donnat, o hedonismo, o individualismo, a juvenilização e a espectacularização do real.

            Em última instância, encontra‑se em causa a racionalidade ocidental com origem no Iluminismo, baseada na difusão do saber e do conhecimento como fontes privilegiadas de emancipação política e de acesso à cidadania. Como em causa está o modelo republicano e laico da escola, baseado nos mesmos valores. Uma derradeira utopia pretendeu ver na televisão uma outra escola: a “escola paralela”[491]. No entanto, os dados que possuímos levam‑nos a pensar que as paralelas encontrar‑se‑ão, cada vez mais, num longínquo, indefinido e sempre adiado infinito.

            O discurso sobre o falhanço da escola, extremamente vulgar nos países europeus durante os anos 80, leva, por vezes, a conclusões fatalistas sobre um irreversível “declínio cultural”, tanto mais paradoxal quanto aumentam os níveis de escolarização. Mas a preocupação é mais vasta: “No debate actual que temos procurado precisar, a nova querela escolar desempenha um papel de primeiro plano. Ela deixa transparecer uma grande parte dos receios e incertezas ligados actualmente ao conceito de cultura”[492]. Conceito que se torna mais vasto, elástico e aberto a referências iconoclastas face aos cânones escolares.

            Perante a persistência de profundas desigualdades no acesso à cultura, perante o falhanço das políticas tradicionais de difusão e de alargamento de públicos, falhanço patente apesar do acréscimo da escolaridade, da diversificação da oferta e mesmo, em alguns casos, da eliminação dos constrangimentos materiais (oferta de bilhetes junto das escolas, por exemplo), Donnat fala do “esgotamento das utopias”.

            Em contrapartida, aumentam os processos de construção social da realidade por parte dos mass media, instrumentos privilegiados de legitimação do que constitui ou não acontecimento, cultura ou mesmo arte.

 

            1.3. A juvenilidade das práticas culturais.

           

            Vários são os domínios em que o factor “idade” exerce uma forte influência, apesar de desconfiarmos da sua autonomização face a outras variáveis, tornando‑se‑nos difícil falar de “efeitos geracionais” tout court.

            Num inquérito às práticas de leitura dos portugueses, os jovens revelaram‑se os maiores leitores[493], não só no que respeita aos livros, como também aos jornais e revistas; em práticas como a audição de rádio e de música, televisionamento (a esse respeito, Luísa Schmidt fala de um “modelo juvenil «media minded», uma vez que a exposição mediática é cumulativa e se verifica uma atitude eclética face ao conjunto dos media: um médium não excluirá outros”[494]) e ida ao cinema os jovens são os principais praticantes, bem como em domínios da cultura cultivada, como a música clássica e o jazz. Os jovens são, igualmente, os maiores frequentadores dos equipamentos culturais urbanos[495] e os principais protagonistas de uma incipiente “cultura de saídas” (essencialmente direccionada para o cinema, os cafés e cervejarias, centros comerciais e discotecas, com valores muito reduzidos no que respeita a idas a exposições e museus, teatro, concertos e mesmo espectáculos desportivos).

            Maria de Lourdes Lima dos Santos estabelece uma comparação entre as práticas culturais dos jovens portugueses e franceses: “em França é sobretudo para os jovens que mais regridem, relativamente, os hábitos de leitura e mais se acentua a cultura de saídas de sociabilidade; em Portugal, os jovens têm uma prática de leitura relativamente mais forte e, ao mesmo tempo, uma mais acentuada cultura de domesticidade”[496]. No entanto, a domesticidade dos jovens portugueses associa‑se também a um modelo de convivialidade informal (recebendo amigos em sua casa ou indo a casa de amigos), como aliás demonstram os trabalhos de José Machado Pais, ao mesmo tempo que se revelam, a um nível muito elevado, tão ou mais do que os seus congéneres franceses, adeptos do audiovisual. Idalina Conde defende mesmo que existe uma “indução juvenil” na aceleração verificada na aquisição de equipamentos audiovisuais e informáticos.

            Importa referir, ainda, o rápido processo de envelhecimento cultural que caracteriza os jovens portugueses: em geral, a obtenção de um posto de trabalho e a constituição de família própria implicam uma redução drástica das sociabilidades extra‑familiares e da “cultura de saídas”, acentuando‑se, por conseguinte, a domesticidade.

            Segundo Donnat, os jovens franceses colocam‑se, decisivamente, no pólo dos “modernos” e dos “provocadores” (por oposição aos “clássicos” e aos “conformistas”) no que isso significa de rejeição dos valores consagrados da “cultura patrimonial”, dos valores e consensos dominantes. A estrutura do seu “capital informacional”[497] torna‑os mais sensíveis aos efeitos flutuantes da moda e das estrelas mediáticas, a par de uma desvalorização das referências académicas e convencionais.

            Maria de Lourdes Lima dos Santos fala, a esse propósito, da idade como um “capital transitório” equiparável, em certas circunstâncias, ao capital cultural[498].

            No entanto, Donnat mostra com clareza que o factor idade não é independente de uma vasta constelação de outras variáveis. O facto, por exemplo, de se ter abandonado precocemente a escola e não possuir um diploma é acentuadamente menos penalizador para todos aqueles, oriundos de um meio culturalmente rico, onde a socialização familiar funciona como equivalente funcional da escola na transmissão de saberes e competências. O mesmo acontece para os indivíduos provenientes da região parisiense e que têm uma intensa rede de sociabilidades.

            Eduardo Prado Coelho, baseado em Donnat, delimita três gerações[499]: a com mais de 50 anos, possuidora de um capital informacional clássico[500]; a que detém uma idade entre os 35 e os 50 anos, convertida à cultura mediática mas com a persistência de hábitos de leitura e, finalmente, a geração com menos de 35 anos. Esta, “pertence a uma sociedade em que se enfraqueceu poderosamente o papel de tutores culturais: os professores, os pais, os profissionais, as instituições, e isto porque se multiplicaram as condições que permitem ao indivíduo aprender «por si próprio»: quartos à parte, segundo ou terceiro aparelho de televisão, computadores e jogos educativos (...) Os seus valores são fundamentalmente os do espectáculo, do inebriamento sonoro, da «performance», da eficácia, da distracção e da evasão (...) Podemos falar em «geração rasca», mas o mais correcto é dizer que se trata de uma geração rasa de referências e de memória, arrasada pelo vazio de si mesma”[501].

            No entanto, Eduardo Prado Coelho parece esquecer o peso do capital escolar. O próprio Donnat refere, como já mencionámos, que os mais actualizados dos actualizados (“les plus branchés des branchés”) se caracterizam pelo ecletismo do seu capital informacional e pela cumulatividade de conhecimentos oriundos quer do pólo “clássico”, quer do “pólo moderno”; quer do pólo “conformista”, quer do pólo “contestatário”; adquirindo posturas quer intelectuais, quer anti‑intelectuais. Ora, este segmento é, antes de mais, um segmento jovem. A grande diferença é a posse de um elevado capital escolar. Trata‑se, tão‑só, da “posição cultivada das jovens gerações diplomadas urbanas de hoje”[502], os que, para além da leitura e audição dos “grandes nomes” e do respeito pela memória cultural, renovam os seus conhecimentos e gostam de jazz, rock e banda desenhada. A novidade deste conjunto de disposições é que a cultura escolar deixou de ser o eixo estruturante das práticas culturais e a “cultura‑diversão” não mais é olhada em jeito de heresia[503]. Os pontos de investimento desta nova atitude erudita centram‑se, como aliás DiMaggio sublinha, no desenvolvimento de densas redes de convivialidade extra‑familiar, na multiplicidade de papéis sociais exercidos e na estruturação de uma cultura de saídas activa e diversificada. Por outro lado, mantêm‑se atentos à novidade e resistem ao envelhecimento e à “classicização” cultural através de uma “circulação rápida das informações graças a circuitos curtos e difusos”[504].

            Falar de uma “geração rasa”, conduz‑nos, uma vez mais, a uma nova “ilusão da homogeneidade”. Por um lado, as características que Eduardo Prado Coelho atribui à “nova geração” não são unanimemente partilhadas; por outro, os jovens portugueses, como anteriormente se viu, revelam‑se, para a maior parte do elenco das práticas culturais, os seus mais intensos protagonistas. Sob o impacto do “boom” da “cultura juvenil” e de uma “juvenilização” simbólica de todo o tecido social, escondem‑se “universos culturais” distintos.

            Aliás, é precisamente na resistência ao envelhecimento cultural que cedo se distinguem as práticas e se estabelecem as desigualdades e clivagens entre os jovens. Como refere Maria de Lourdes Lima dos Santos, a sua aparente homogeneidade, fruto de uma partilhada experiência escolar, depressa se revela como uma “homogeneidade de superfície”[505].

 

            1.4. Distinções segundo o género

           

            No estudo sobre as práticas culturais dos lisboetas verifica‑se, desde logo, uma forte divisão quanto ao âmbito dos “universos culturais” masculinos e femininos. Os primeiros, não só possuem períodos mais extensos de tempos livres (porque libertos das tarefas e actividades domésticas), como a sua estrutura é mais diversificada. São eles, também, quem mais sai e mais se autonomiza face ao ambiente doméstico‑residencial.

            Depois, existe um sem número de pequenas distinções que contribuem, todavia, pela sua recorrência e sistematicidade, para a elaboração de perfis culturais distintos. É o caso, por exemplo, dos programas televisivos, em que o desporto aparece claramente como um domínio masculino, ao contrário das telenovelas, consumo predominantemente feminino. Da mesma forma, são os homens quem mais faz um uso selectivo da programação, utilizando frequentemente o zapping. De igual modo, no cinema, existem filmes consumidos preferencialmente por homens e outros por mulheres. No primeiro caso encontram‑se os filmes de acção, de guerra, Westerns, policiciais, ficção científica, crítica social, eróticos e pornográficos. Por seu lado, as mulheres escolhem relativamente mais filmes históricos, românticos, musicais, dramáticos e de terror[506]. Um outro exemplo, ainda, para salientar “que a frequência regular de teatros atrai, proporcionalmente, cerca do dobro de homens relativamente ao sexo oposto”[507]. No campo da leitura, finalmente, as mulheres lêem mais os romances, os livros sentimentais, os de culinária, conselhos práticos e religiosos. Eles, pelo seu lado, preferem os policiais, os westerns, os filmes de aventura e viagens, os científicos, os político‑filosóficos e, de novo, os pornográficos e eróticos.

            Segundo o estudo de Jorge Gaspar para a área metropolitana do Porto, é possível detectar outros indicadores deste duplo padrão cultural. Os homens, por exemplo, lêem muito mais os jornais diários. No caso das revistas, a situação inverte‑se. No que respeita aos livros, o panorama é mais equilibrado, embora existam proporcionalmente mais leitores masculinos (56.3% contra 46.2%)[508]. De acordo com o mesmo trabalho, os homens vão mais vezes ao cinema e ao teatro, bem como ao café. Pelo contrário, as mulheres frequentam mais as feiras e os mercados. Práticas sensivelmente equiparadas são a ida a exposições, discotecas e festas e romarias[509].

                       

            Existe, subjacente a estas distinções, um duplo padrão de moralidade que leva as mulheres a confinarem‑se ao espaço doméstico‑residencial, enquanto que os homens se abrem muito mais ao espaço exterior. Desde logo, devido aos subtis, profundos e persistentes mecanismos da socialização familiar, assentes em mecanismos sócio‑culturais de construção do género[510]. Ao contrário do sexo, ligado a diferenças biológicas, o género refere‑se a “um conjunto de padrões comportamentais que se aprendem”[511]. Enquanto que as mulheres valorizam a cultura do íntimo, do privado e do afecto, os homens orientam‑se mais em termos agonísticos e de abertura ao espaço público.

            As correntes pós‑modernas, ligadas aos Women Studies e inspiradas nos trabalhos de Derrida e Foucault, insistem na necessidade de fragmentar analiticamente as noções de masculino e feminino, de modo a evitar distinções com base em critérios essencialistas. Sugerem o exemplo da etnia e da colossal diferença que separa as mulheres negras das mulheres brancas. Defendem, por isso, a existência de masculinidades e feminilidades, baseadas nos distintos contextos situacionais e culturais.

            No entanto, a desintegração do conceito de género (assim como o de raça e classe) levaram a um negligenciar das principais divisões sociais. Sylvia Walby, apesar de insistir na mútua determinação dos conceitos de raça, género e classe, adverte para o perigo da dissolução da importância das relações sociais de poder, com especial ênfase nas relações económicas[512]. Para esta autora, assiste‑se a uma nova fase do patriarcado, em que as mulheres, de uma situação de trabalho doméstico não pago, transitam para um modelo de família de dupla carreira, onde continuam a ser exploradas. O principal indicador será, sem dúvida, o reduzido volume dos seus tempos livres, por comparação com o dos homens.

 

            2. Uma exclusão amplamente partilhada.

            Se observarmos agora os dados mais recentes disponíveis sobre as práticas culturais dos portugueses (quadros III e IV[513]) desde logo constatamos a existência de um enorme défice cultural, significativamente demonstrado pela quase total ausência de frequentação de um muito significativo leque de práticas culturais[514]. Aliás, apesar de as actividades com audiências mais minoritárias se situarem no pólo da chamada “cultura cultivada” (concertos, teatro e ópera), verificamos que, mesmo práticas próprias da cultura de massas (ver filmes vídeo, assistir a jogos...), registam valores de participação reduzidos.

            Somente cinco actividades conseguem cativar mais de 50% do público: a leitura de revistas e de jornais, a audição de rádio e de música e o televisionamento. Perante tal panorama, quando o cinema, espectáculo público mais frequentado, apenas é visto com alguma regularidade por 18% de portugueses, impõe‑se questionar os resultados das próprias políticas culturais.

 

QUADRO III — Indicadores de Não Frequência de Actividades Culturais (%)

 

Raramente + nunca

Nunca

Ver televisão

4

1

Ouvir rádio

18

5

Ouvir música

29

12

Ler jornais diários

48

28

Ler revistas

45

26

Ler livros

71

36

Ver filmes de vídeo

65

38

Assistir a jogos

69

47

Ir ao cinema

82

51

Visitar museus/exposi‑ções

88

55

Ir a livrarias

82

56

Ir a discotecas

78

60

Praticar desporto

78

63

Ir a bibliotecas

93

67

Ir a concertos

92

71

Ir ao teatro

96

76

Jogar no computador

89

78

Ir à ópera

99

91

 

 

Fonte: Eduardo de Freitas et al., Hábitos de Leitura. Um Inquérito à População Portuguesa, Lisboa, D. Quixote, 1998

 

 

            De facto, se “avaliar uma política consiste em determinar os seus objectivos, em precisar os seus programas de acção, em medir os seus resultados e em verificar se os meios aplicados produzem os efeitos pretendidos”[1], podemos, com algum suporte e coerência, sustentar a posição de que a democratização cultural, quer no seu sentido mais amplo e perene (o direito à cultura como direito de cidadania), quer no seu sentido mais restrito e imediato (alargamento do campo da cultura erudita, mediante uma apropriação mais alargada das suas obras) é um objectivo ainda por atingir. Nessa medida, não concordamos com António Barreto quando este autor refere que “é perceptível um acesso mais generalizado dos cidadãos aos veículos tradicionais de cultura: espectáculos, imprensa, bibliotecas, museus, jornais, televisão, etc.”[1], excepção feita para a televisão. O próprio autor salienta, ou efeitos de regressão em relação à década de 60 (“No princípio dos anos 60, cada cidadão, em média, assistiria a três espectáculos por ano; actualmente, menos de uma vez”, “aumento também do número de leitores apenas até aos finais dos anos 70, baixando a seguir para níveis próximos dos anos 60”[1]), ou os baixíssimos índices de frequentação. Uma vez mais, mesmo nos casos em que a oferta aumentou significativamente (como acontece com as bibliotecas) o número de leitores não acompanha essa evolução.

            Eduarda Dionísio corrobora, mediante a análise de estatísticas, a nossa opinião: “Em 1970, mais de um quarto da população não sabia ler nem escrever (...) Mas havia mais jornais para ler: em 1973, mais 200 títulos do que em 1991 (...) Em 1973 havia quatro vezes mais espectadores de cinema do que em 1991 e quase o dobro das salas de cinema de 1991 (...) Em 1973 funcionavam cerca de 80 salas de teatro (...) e as idas ao teatro foram um pouco mais de um milhão (...) Em 1991 eram 30 as salas e 300.000 os espectadores (...)”[1].

            Idalina Conde, numa breve comparação entre o estado da cultura em Portugal e as realidades europeias mais avançadas salienta a situação de “subequipamento em termos de produção e infraestruturas, níveis mais baixos de procura para alguns domínios e défices em continuidade, consistência ou activismo da política cultural”[1].

 

 

QUADRO IV — Não Frequência de Actividades Culturais Segundo o Habitat (%)

 

 

Total

Rural

Semi‑rural

Semi‑urbano

Urbano

Lisboa/

Porto

 

 

(Raramen‑te+ nunca)

(<1000)

(1000/10000)

(10000/20000)

(> 20000)

 

 

Ver televisão

4

4

4

4

4

2

 

Ouvir rádio

18

23

19

12

14

9

 

Ouvir música

29

38

30

23

22

21

 

Ler revistas

45

52

47

35

36

42

 

Ler jornais diários

48

54

50

40

40

42

 

Ver filmes de vídeo

65

73

67

59

60

53

 

Assistir a jogos de futebol

69

65

68

72

74

67

 

Ler livros

71

77

73

66

62

67

 

Praticar desporto

78

82

79

75

74

71

 

Ir a discotecas

78

81

80

72

76

73

 

Ir ao cinema

82

89

86

72

74

70

 

Ir a livrarias

82

86

83

75

77

79

 

Visitar museus/ex‑posições

88

93

91

80

85

79

 

Jogar jogos de computa‑dores

89

94

90

87

87

78

 

Ir a concertos

92

94

94

91

90

89

 

Ir a bibliotecas

93

93

90

88

87

88

 

Ir ao teatro

96

99

97

92

94

91

 

Ir à ópera

99

100

100

99

99

97

 

Fonte: Eduardo de Freitas et al., op. cit.

 

            Podemos ainda acrescentar que, perante tais indicadores, tudo nos leva a pensar que falharam os objectivos sociais das políticas culturais. De facto, a ampla exclusão cultural que constatámos apenas pode contribuir para reforçar situações de vulnerabilidade social, afastando dos ligames sociais uma vasta parte da população portuguesa, atomizada e sem mecanismos eficazes de integração social. A ausência de práticas culturais expressivas e/ou criativas reforça o fenómeno multidimensional da exclusão social, com implicações poderosas ao nível da auto‑estima pessoal e social, da participação pública e da própria densidade das redes de sociabilidade.

            Esta situação é ainda paradoxal face às modificações mais ou menos recentes que estilhaçaram o conceito tradicional de cultura. De facto, a uma concepção de “cultura património”, fechada e sem integrar as novas formas de expressão, sucede‑se uma outra concepção que, sem desprezar os valores e obras do passado, se preocupa em abarcar a cultura “na sua própria polivalência e multivariedade”[520], fazendo coexistir, não sem conflitualidade, novas e tradicionais culturas populares (as primeiras de cariz essencialmente urbano, as segundas vincadamente rurais), culturas e subculturas de minorias étnicas e outras, indústrias culturais, etc. Alarga‑se o campo cultural, multiplicam‑se as legitimidades culturais mas restringe‑se, simultaneamente, a diversidade das práticas.

 

            3. Uma política cultural inexistente?

           

            Apenas com uma excessiva boa‑vontade poderemos defender a ideia de que tem existido, em Portugal, uma política cultural articulada e sistemática de intuitos democratizadores. Aliás, convém desde logo distinguir entre o âmbito de políticas públicas de cultura e efectivas políticas culturais. As primeiras verificam‑se, segundo Philippe Urfalino, quando “uma autoridade política agarra um problema ou um fenómeno social e quando esse «investimento» político produz medidas que afectam grupos sociais”[521]. Ora, uma política cultural está longe de ser um inventário ou um somatório de políticas públicas, embora não possa prescindir delas. Como refere Urfalino, a sua emergência depende da convergência e da coerência entre as representações do papel do Estado na relação com a arte e a cultura e a organização de uma intervenção pública que tenha subjacente um mínimo de unidade de acção do poder político[522]. Impõe‑se, por isso, um nítido fio condutor, uma articulação, sistematização e hierarquização de medidas, que não podem ser acções avulsas. Estas, no entanto, têm sido a tónica dominante.

            Com efeito, logo nos primeiros anos após a revolução assistiu‑se a um suceder de iniciativas, a maior parte das vezes desligadas e contraditórias entre si, não só porque a instabilidade política e a sucessão de governos assim o justificava, mas também devido à existência de insanáveis diferenças programáticas entre os principais actores em presença.

            Além do mais, perante tantas prioridades, a cultura foi frequentemente relegada para segundo plano, facto agravado pela convicção de que, uma vez alterada a “infraestrutura”, seguir‑se‑iam inevitáveis reflexos na “superestrutura”. Como refere Eduarda Dionísio, “a cultura não será preocupação de um novo poder contraditório, a braços com um número crescente de questões «imediatas» e prementes (...) Desde cedo, a cultura, que não é uma prioridade revolucionária, irá construindo a sua história de adiamentos e de exigências do impossível”[523].          

            Não se pense, no entanto, que a revolução foi isenta de rupturas. Para além do desmembrar dos mecanismos repressivos e da censura, verificou‑se uma “explosão organizativa” dos vários sectores da criação cultural, a par de uma incontida vontade de “fazer arte para o povo”, através de acções de mobilização e descentralização cultural e de mostrar o que tinha permanecido tanto tempo escondido. Por outro lado, as estatísticas demonstram que, no período imediatamente pós‑revolucionário de 1974 e 75, os consumos culturais aumentaram em flecha. Todavia, a partir desse altura e para a maior parte dos sectores, não mais deixaram de descer, regredindo, em alguns casos, para valores próximos dos anos sessenta.

            Há quem considere, nostalgicamente, que os anos de brasa da revolução constituíram um interregno num processo de inexorável declínio. Quanto a nós, essa tese peca por excesso de pessimismo. De facto, não só se alargou o campo cultural e o espectro das práticas culturais, num movimento de aumento da diversidade e da pluralidade, como o país se abriu ao exterior e a inovação deixou de ser encarada como subversão. Inevitavelmente, as novas tecnologias e a abrangência da cultura de massas colocaram Portugal na órbita da “economia mediático‑publicitária”.

            O principal problema reside, a nosso ver, na enorme dificuldade que a Segunda República tem demonstrado em lidar com o preocupante défice cultural. Domínios como a animação sócio‑cultural, o associativismo cultural e a formação de novos públicos, apesar do apoio crescente do poder local, revelam níveis incipientes de investimento[524]. E esta preocupação é tanto mais consistente, quanto o nosso país depara, de facto, com carências estruturais e históricas acumuladas, próprias de “uma modernidade cultural (ainda) por construir”[525].

            Eduarda Dionísio fala do período de “normalização” como o da implantação de uma “cultura oficial”, com a definição do papel de “intelectual do regime” e a crescente preocupação com a “Portugalidade” (amplamente ilustrado pelas comemorações do 10 de Junho) e a salvaguarda e defesa do património. Com os anos 80 assiste‑se ao emergir de uma nova constelação de valores, com traduções evidentes no campo cultural: ênfase no espectacular e no convivial, aposta na rentabilização da arte e da cultura (com a consequente aproximação entre economia e cultura, nas suas duas vertentes – economia da cultura e cultura da economia), substituição do amadorismo pelo profissionalismo, a cultura como objecto de “gestão”, visão instrumental da cultura como factor de desenvolvimento.

            Os X, XI e XII governos constitucionais, presididos por Aníbal Cavaco Silva, são, a esse respeito, bastante claros: defende‑se, para além dos habituais objectivos de democratização cultural, uma “contenção da intervenção do Estado”, o “assegurar da dimensão cultural no desenvolvimento do país”, a “salvaguarda do património” e a “diversificação das fontes de apoio com o desenvolvimento do patrocínio particular e empresarial”, cabendo ao Estado uma “acção supletiva”. Uma certa visão de um “liberalismo cultural” encontra‑se presente na concentração de subsídios aos sectores culturais e na consideração do número de espectadores como critério de atribuição desses subsídios (distanciando‑se desta perspectiva, o XIII governo constitucional, coordenado por António Guterres, defende a “responsabilidade inalienável” da intervenção do Estado, em particular no que se refere ao assegurar da criação de infraestruturas e no apoio às entidades com “reduzida capacidade de gerar receitas próprias”, a par do considerar da cultura como área prioritária, juntamente com a educação, a formação e a ciência).

            A reduzida percentagem da despesa pública destinada à cultura (apesar de aumentos constantes na última década, estamos ainda longe do mítico 1% do PIB, que quase se tornou tradição em França), o distanciamento entre o discurso e a realidade no que se refere aos objectivos da democratização cultural, o excessivo ênfase nas grandes obras do “regime” e nas produções e autores consagrados, a exibição da cultura institucional em detrimento de uma “cultura‑acção”, a relativa demissão do Estado enquanto promotor da “cultura como serviço público” são alguns dos factores que constituem o reverso da medalha dos significativos progressos destas últimas duas décadas, em que a maior parte das actividades culturais se foram concentrando numa reduzidíssima elite urbana[526].

            Por outro lado, parece indiscutível, mediante a análise dos programas de governo, que a prioridade das políticas culturais nacionais tem oscilado entre a óptica patrimonialista e o apoio aos criadores.

            No primeiro caso, para além da habitual salvaguarda da herança histórico‑cultural e da preservação da língua e “valores nacionais”, não raras vezes se tem resvalado para uma instrumentalização reducionista do património como “cimento cultural comum”, patente na cultura de consagração dos grandes feitos ou na recuperação dos “grandes monumentos”. Impossível não descortinar aqui, para além de uma maior ou menor visão “conservacionista”, uma certa utilização ostentatória por parte do poder político, com intuitos cerimoniais e simbólicos.

            E, no entanto, a valorização do património poderia ser implementada numa perspectiva consideravelmente mais abrangente. Nas palavras de Augusto Santos Silva: “As políticas de património não se reduzem, claro está, a operações de salvaguarda e conservação de edifícios e documentos emblemáticos (...) abarcam também as medidas activas de defesa e divulgação da língua e cultura nacionais, das culturas subnacionais, dos reportórios literários, científicos, musicais, visuais, etc. – numa estratégia que (...) sabe fazer da função de arquivo e conservação patrimonial uma garantia, aos presentes e vindouros, de bases de continuidade e experimentação para o seu próprio trabalho e fruição”[527]. Em suma, uma política de património que não se contente com a celebração do morto e que seja, também, memória viva e inventiva, suporte para a criação presente e futura, assente em estratégias activas de difusão e captação de públicos.

            Por outro lado, o apoio à criação, se bem que imprescindível, não pode reduzir‑se à legitimação arbitrária de expressões ou níveis de cultura. Imprescindível, na medida em que, seguindo a já célebre lei de Baumol, as actividades culturais são cronicamente deficitárias do ponto de vista financeiro, requerendo um funcionamento em termos de “mercado assistido”, em especial no que se refere às produções que pretendem escapar aos circuitos e aos públicos das indústrias culturais e que, não raras vezes, proporcionam avanços ou “saltos” estéticos significativos (proceder de forma contrária seria sucumbir perante a ditadura do grande número e do cifrão, negando ao produto cultural a sua especificidade). Insuficiente, porque várias modelos de políticas culturais nacionais têm esbarrado na constatação de que um aumento da oferta cultural não acarreta efeitos automáticos de arrastamento da procura, o que se liga, a nosso ver, a um conjunto complexo de razões. Antes de mais porque tende muitas vezes a confundir‑se “política cultural” com “política artística”. Ora, a primeira é imensamente mais vasta e joga, necessariamente, no cruzamento, contaminação e complementaridade das várias formas de expressão cultural (das “velhas” e “novas” culturas populares, à invenção de conteúdos culturais na indústria e na investigação de ponta), ainda que se respeite a especificidade do património da criação artística, por vezes diluído na boa vontade do “tudo é cultura, tudo se equivale”, “vasto albergue espanhol onde cada um pode encontrar a resposta mistificadora que espera”[528]. Para além dos potenciais equívocos gerados por essa confusão: oscilação do papel do Estado entre a figura que garante a independência da criação artística e a velha tentação mecenática de interferência e imposição de cânones que traduzem a tentação de procurar nas artes um espelho onde o poder se reveja na sua majestade; fechamento do campo artístico em regras de autarcia onde apenas os pares usufruem do direito de legitimação do que é ou não arte.

            Mas também insuficiência de actuação do lado da procura e em várias frentes. Desde logo na vertente educativa de formação de públicos. Nas palavras de Augusto Santos Silva: “as políticas de realização de mercados, em matéria cultural, isto é, de reforço e alargamento de procuras, que permitam aumentar os consumos culturais e por aí estimular o lado da oferta, não podem ser vazadas em moldes puramente Keynesianos. Requerem intervenções deliberadamente concebidas como formação de públicos, assumindo portanto uma forte componente educativa, que não quer dizer necessariamente escolar, mas não dispensa a escola”[529]. Madureira Pinto aponta complementarmente na direcção do movimento associativo, enquanto quadro (único?) de expressão de culturas dominadas e/ou emergentes[530]. Revitalizá‑lo, dotá‑lo de equipamentos (que Santos Silva apelidaria de “estruturantes”), dignificá‑lo (isto é, dotá‑lo de legitimidade própria), incentivá‑lo a utilizar o espaço público (numa óptica de democracia participativa) e a prestar determinados serviços culturais, torná‑lo um agente efectivo de mediação entre obras e públicos seriam algumas das estratégias possíveis para combater a tendência de retraimento doméstico patente nas camadas sociais mais desmunidas[531]. Em ambos os casos, procurar‑se‑ia, não só o habitual alargamento de públicos, mas também uma aproximação ao acto criador, inclusivamente na sua própria esfera, democratizando (isto é, pluralizando, diversificando) a produção cultural. Ficar pelo primeiro estádio (alargamento do acesso dos públicos às modalidades cultivadas), de comprovada insuficiência, contribuiria para alimentar lógicas reprodutivas de perpetuação de distâncias e hierarquias[532].    

            Importa, por conseguinte, actuar simultaneamente nas duas esferas: oferta e procura. Consolidando, diversificando, alargando, descentralizando e dessacralizando a primeira; formando e legitimando as várias expressões da segunda. Aproximando‑as mutuamente, não só pela disseminação de competências decifratórias dos códigos de construção das obras, como pelo envolvimento de todos os actores envolvidos na criação e acção cultural (dos artistas aos animadores, passando pelos profissionais da cultura e toda a panóplia de intermediários culturais) nos “lugares de vida, espaços onde a população (e não os públicos) age sobre ela mesma, tanto no trabalho como nos lazeres”[533].

            É ainda cedo para afirmar que estamos, finalmente, a assistir à emergência de uma verdadeira política cultural, enquanto um conjunto sistemático, continuado e coerente de acções com uma ideia clara sobre os seus critérios e prioridades e assente numa definição consistente e transparente da relação do Estado com o campo cultural e a pluralidade dos seus agentes. Podemos afirmar, no entanto, que muito tempo se perdeu com a multiplicação e justaposição de políticas sectoriais, por vezes incongruentes, e com a fixação monotemática em determinados debates (veja‑se a questão da existência ou não de uma “subsidiodependência) e em determinados sectores (o património, quase sempre, mas também o teatro e o cinema), abdicando, paralelamente, da vasta área da animação sócio‑cultural, da promoção do associativismo, da articulação entre poder central e autarquias e do alargamento e formação de públicos.

            Além do mais, como realça Vieira Nery, o desafio colocado à estruturação de uma política cultural na especificidade da formação social portuguesa, assenta num triplo objectivo, que requer uma atitude particularmente exigente no que se refere aos meios colocados ao dispor de um incontornável serviço público cultural: “simultaneamente repor as pré‑condições infra‑estruturais da modernidade que não tivemos, assegurar, por assim dizer, a sua plena operacionalidade em velocidade de cruzeiro e viabilizar os veículos de expressão actual de uma pós‑modernidade em que não poderíamos hoje deixar de estar presentes”[534].

            Não tenhamos a ilusão de que será fácil conciliar de forma equilibrada intervenções que deparam com aporias tão arreigadas na acção cultural como criação versus animação, Estado versus mercado, cultura versus educação, modernidade versus tradição ou formação versus diversão. Mas exige‑se a tomada de opções nítidas, a disponibilização dos meios adequados e, ao mesmo tempo, a elaboração das sínteses e dos compromissos possíveis. Sem esquecer que, também neste domínio, é de política que se trata. E quem diz política diz poder.

CAPÍTULO VI

BREVE RETRATO DA SOCIEDADE PORTUGUESA NOS ANOS 90

 

 

            “As alterações espaciais, demográficas e socioprofissionais ocorridas na sociedade portuguesa ao longo das últimas décadas alteraram de tal modo a configuração do país que, tomando como ponto de partida os anos 60, se pode falar, com propriedade, de trinta anos de transformação estrutural.”

 

            Fernando Luís Machado e António Firmino da Costa[535]

 

            1. Da necessidade de contextualizar as práticas culturais.

 

            As práticas culturais de uma determinada população, já o dissemos, não podem ser estudadas isoladamente, como se constituíssem um domínio auto‑suficiente em termos analíticos. De facto, impõe‑se contextualizá‑las num determinado momento histórico, com o seu tempo e o seu espaço, seguindo o espírito subjacente ao conceito de fenómeno social total. Analisá‑las separadamente, ignorando a base demográfica, económica, social e política dos espaços‑tempos em que se encontram inseridas, conduziria ao grave erro (ou ilusão) de as transformar num microcosmos isolado, diminuindo consideravelmente a capacidade de imaginação sociológica, isto é, de colocar questões pertinentes sobre um dado objecto de estudo, articulando‑o com outras esferas do real. O carácter eminentemente relacional do objecto sociológico leva‑nos a procurar conexões onde aparente e superficialmente apenas existem factos isolados.

            No entanto, esta postura epistemológica não se coaduna com qualquer tentativa de hierarquizar em instâncias a realidade. Como refere Augusto Santos Silva, o estudo do simbólico, enquanto estudo de representações (“visões do mundo, percepções, avaliações e simbolizações”[536]) é também uma forma de “falar acerca de toda a acção, porque todas as práticas combinam posições no mundo e posições sobre o mundo”[537].

            Não havendo, necessariamente, uma hierarquização das necessidades humanas, o modelo reticular, baseado em trocas recíprocas e interdependências (“configurações estruturadas policentradas”[538]), parece ser o mais adequado para estudar uma realidade tensa, multidimensional e em permanente interrelação.

            Assim, quando falamos das práticas culturais dos portugueses é, acima de tudo, da sociedade portuguesa que estamos a falar.

 

            2. Evolução demográfica e reordenamento do território.

 

            O Portugal dos anos 90 tem muito pouco de semelhante com o país dos anos 60. No entanto, há já algum tempo que se desenrolavam processos de transformação social que, com uma inédita rapidez, mudaram de forma radical a paisagem física e humana da velha nação. Nas palavras de António Barreto: “Portugal não esteve parado até 1960. Mas talvez não tenha, nas décadas anteriores, mudado muito depressa (...) Portugal conheceu um período durante o qual, ou a partir do qual, o ritmo de mudança se acelerou consideravelmente. A década de 60 marca esse particular momento”[539].

            De facto, Portugal duplicou a sua população entre 1864 e 1960. No entanto, tudo se “acelerou consideravelmente” a partir de 60, a um ritmo nunca antes sentido. João Ferrão apelida este processo como sendo o “período de consolidação do Portugal demográfico «moderno»”[540], ou, se quisermos, a sua última fase. Na realidade, o processo ter‑se‑á iniciado a partir da década 20‑30, com os primeiros sinais de quebra da natalidade e da mortalidade e de aumento da esperança média de vida. No entanto, a “precipitação” das mudanças, a um ritmo sem precedentes, a partir da década de 60 até aos nossos dias, leva a que a análise se concentre com especial incidência neste curto período. Os indicadores deste arco temporal demonstram um conjunto nítido de tendências: decréscimo muito significativo da fecundidade, natalidade, mortalidade infantil e crescimento natural. A substituição de gerações, que exige um mínimo de 2.1 filhos por mulher, deixa de se verificar. A taxa de crescimento natural é, em 1995, de apenas 0.3 por mil, o que representa um dos valores mais baixos da União Europeia, consideravelmente inferior à sua média (0.8 por mil). Se atentarmos no Quadro V, verificamos que apenas a Alemanha, a Grécia e a Itália possuem um crescimento natural inferior ao nosso. A mortalidade infantil, que contribuía significativamente para a mortalidade total, apesar de ainda ser a mais elevada da Europa comunitária, enquadra‑se, doravante, nos níveis dos países mais desenvolvidos (9.2 por mil em 1992, quando a média comunitária é de 7.4 por mil e na década de 60 os valores andavam pelos 80 por mil). A natalidade desce, a par do índice sintético de fecundidade. “As taxas de fecundidade descem em todos os grupos etários, com especial incidência nos de 15 a 19 e 20 a 24 anos, assim como nos superiores a 35 anos. Noutras palavras, as mulheres têm filhos cada vez mais tarde, mas deixaram quase drasticamente de ter filhos depois dos 40 anos”[541].

 


QUADRO V — Movimento da população na União Europeia — Valores Absolutos e Taxas 1995

Países

População em 01.01.95

Nados vivos

Óbitos

Saldo natural

Saldo migratório

Crescimento da população 1995

Taxa de natalidade

Taxa de mortalidade

Por mil habitantes

(população média)

(Milhares)

 

 

Crescimento natural

Saldo natural

Saldo migratório

UNIÃO EUROPEIA

(p) 372653.6

(p) 3999

(p) 3719.4

(p) 279.6

(p) 787.3

(p) 1067.0

10.7

10,0

0.8

2.9

2.1

 

ALEMANHA

81817.5

765.2

884.6

(p) 

-119.4

398.3

278.9

9.4

10.8

‑ 1.5

3.4

4.9

 

ÁUSTRIA

8054.8

88.7

81.2

7.5

7.4

14.9

11.0

10.1

0.9

1.9

0.9

 

BÉLGICA

10143.0

(p) 114.7

(p) 104.8

(p) 9.9

(p)2.6

12.5

11.3

10.3

1.0

1.2

0.3

 

DINAMARCA

5251.0

69.8

63.1

6.6

28.7

35.3

13.3

12.1

1.3

6.8

5.5

 

ESPANHA

39241.9

(p) 359.9

(p) 342.7

(p) 17.1

(p) 47.4

64.6

9.2

8.7

0.4

1.6

1.2

 

FINLÂNDIA

5116.8

63.1

49.3

13.8

4.3

18.1

12.3

9.6

2.7

3.5

0.8

 

FRANÇA

(p) 58255.9

(p) 727.8

(p) 532.0

(p) 195.8

(p) 40.0

(p) 235.8

12.5

9.2

3.4

4.1

0.7

 

GRÉCIA

10465.1

101.5

100.2

1.3

20.9

22.2

9.7

9.6

0.1

2.1

2.0

 

HOLANDA

15493.9

190.5

135.7

54.8

14.9

69.8

12.3

8.8

3.5

4.5

1.0

 

IRLANDA

(p) 3615.6

48.5

31.5

17.0

(p) 3.9

(p) 20.9

13.5

8.8

4.7

5.8

1.1

 

ITÁLIA

57333.0

(p) 521.3

(p) 547.2

(p)

- 25.9

(p) 90.3

64.4

9.1

9.5

‑ 0.5

1.1

1.6

 

LUXEMBURGO

412.8

5.4

3.8

1.6

4.6

6.2

13.2

9.3

4.0

15.1

11.2

 

PORTUGAL

9920.8

107.2

103.9

3.2

5.4

8.6

10.8

10.5

0.3

0.9

0.5

 

REINO UNIDO

(p) 58694

732.0

86.6

86.6

(p) 107.2

(p) 193.7

12.5

11.0

1.5

3.3

1.8

 

SUÉCIA

8837.5

103.4

9.5

9.5

11.6

21.1

11.7

10.6

1.1

2.4

1.3

 

NOTA: (p) DADO PROVISÓRIO; FONTE: INE, ESTATÍSTICAS DEMOGRÁFICAS, 1996 — REFERÊNCIA: EUROSTAT, ESTATÍSTICAS DEMOGRÁFICAS


            Dados mais recentes, patentes no quadro VI, confirmam valores em diminuendo para a taxa de natalidade, que atinge em 1995 o mínimo de 10.8 por mil (ligeiramente acima da taxa de mortalidade, com 10.4 por mil), o mesmo acontecendo com a taxa de mortalidade infantil, com 7.4 por mil e a taxa de nupcialidade com 6.6 por mil no mesmo ano. Se, no caso das taxas de natalidade e nupcialidade as reduções são relativamente “suaves”, limitando‑se a confirmar um movimento anterior, já no caso da taxa de mortalidade infantil, mesmo pensando nos fabulosos ganhos que precederam o ano de 1985, os progressos continuam a ser assinaláveis.

 

            Quadro VI — Indicadores Demográficos (Portugal)

Designação do Indicador

Valor

Unidade

Período

Índice de envelhecimento

83.5

Percentagem

1995

Taxa de Mortalidade

10.4

Permilagem

1995

Taxa de Natalidade

10.8

Permilagem

1995

Taxa de Nupcialidade

6.6

Permilagem

1995

Taxa média de mortalidade infantil no Quinquénio

8.9

Permilagem

1991/1995

Saldo migratório

0.5

Permilagem

1995

Fonte: INE, Infoline. Pesquisa por Unidade Territorial.

 

            De qualquer forma, importa distinguir entre períodos diferentes. Assim, enquanto que a década de 70, no seu conjunto, revela um forte crescimento efectivo da população[542], extensível a todo o território, embora de forma não homogénea, já a década de 80 se caracteriza por uma estagnação generalizada. O crescimento anual médio é, de facto, reduzidíssimo: 0.03%[543]. Como consequência, “a maioria das regiões do País vê a sua população diminuir, e em certos casos de forma muito intensa”[544]. Entre 1986 e 1991 existiu mesmo, para o conjunto do país, uma perda contínua de população (Quadro VII).

 

QUADRO VII — ACRÉSCIMO DE POPULAÇÃO POR NUTS I, II E III

 

 

 

ANO

 

1981

 

1982

 

1983

 

1984

 

1985

 

1986

 

1987

 

1988

 

PORTUGAL

 

64960

 

55170

 

30830

 

38590

 

5770

 

‑ 7250

 

‑ 25690

 

‑ 26310

 

 

 

 

1989

 

1990

 

1991

 

1992

 

1993

 

1994

 

1995

 

1996

 

‑ 35360

 

‑ 32210

 

‑ 12597

 

4270

 

22999

 

19980

 

8260

 

13350

FONTE: INE, INFOLINE, DEMOGRAFIA E CENSOS

 

            Termina, deste modo, o que Ferrão apelida de fase de “transição demográfica”, acompanhada da “transição epidemiológica”, que acarreta modificações fundamentais nas causas de morte, num movimento de aproximação aos países mais desenvolvidos (recuo das doenças infecciosas e parasitárias, aumento significativo das doenças cérebro‑vasculares e dos tumores malignos). Finalmente, desenvolve‑se, também, a “transição familiar”: retardar da idade do casamento[545], diminuição das famílias numerosas, aumento moderado da “família nuclear”, aumento das taxas de divórcio, em especial a partir da década de 90 (fenómeno da precarização das uniões) e das uniões de facto, bem como dos nascimentos fora do casamento (informalização). Neste último caso (proporção de nados‑vivos fora do casamento), apesar dos valores serem, em 1992, os mais elevados dos países da Europa do Sul, situam‑se, ainda, em níveis inferiores aos da média comunitária.

            Uma consequência da maior importância desta transição (ou conjunto de transições) para o Portugal demográfico «moderno» prende‑se com o processo de duplo envelhecimento da população, visível tanto no topo como na base da pirâmide etária, arredondando‑a: há cada vez mais idosos e menos jovens (Quadro VIII).

 

QUADRO VIII — População por escalões etários, em 1960, 1971, 1981 e 1991 (Milhares)

 

 

 

 0‑14

anos

15‑24 anos

25‑64 anos

65 ou + anos

1960

2592 (29,2)

1452 (16,3)

4136 (46,5)

709 (8,0)

1970

2452 (28,4)

1359 (15,8)

3968 (46,1)

833 (9,7)

1981

2509 (25,5)

1628 (16,6)

4571 (46,5)

1125 (11,4)

1991

1972 (20,6)

1610 (16,8)

4718 (49,2)

1283 (13,4)

1996

 

1716

(17.3)

1595

(16.1)

5144

(51.8)

3105

(14.9)

 

Fonte: INE, Recenseamentos Gerais da População, in João F. de Almeida, A. Firmino da Costa, F. Luís Machado, op. cit., p. 314 e Infoline. Estimativas da População Residente, 1996

 

 

            Os mais novos, no grupo etário dos 0‑14 anos, representam em 1996 17.3% da população, contra 25.5 % em 1981. Por seu lado, os indivíduos com 65 e mais anos constituem neste mesmo ano 14.9% da população, enquanto em 81 se quedavam pelos 11.4%. “Enquanto que, em 1981, por cada 100 jovens com menos de 15 anos existiam 44.9 pessoas com 65 e mais anos”[546], em 1996, o índice de envelhecimento atingia já os 86.1%[547] (Quadro IX).

 

 

Quadro IX — Índices de Dependência e Envelhecimento em 1996 (Portugal)

NUTS I

Índices

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Dependência Total

Dependência Jovens

Dependência Idosos

Envelheci‑mento

Portugal

47,4

25,5

21,9

86,1

Continente

47,2

25,1

22,1

88,2

Reg. Aut. dos Açores

55,4

36,6

18,8

51,4

Reg. Aut. da Madeira

48,9

31,0

17,9

57,8

 

 

 

 

 

Fonte: INE, Estimativas de População Residente, nº25

 

            Por outro lado, tal como se verifica no mesmo quadro, o índice de dependência de jovens e de idosos tende a aproximar‑se[548]. António F. Costa e Fernando L. Machado salientam que “tanto a natalidade como a fecundidade passaram, em 1991, para metade dos valores que registavam 30 anos atrás”[549]. Se a estes factores adicionarmos o aumento da esperança média de vida, compreenderemos melhor todo este processo. Convém referir, no entanto, o desigual grau de envelhecimento do país: enquanto o Norte e as Regiões Autónomas são, ainda, zonas relativamente rejuvenescidas, a Região Centro, o Algarve e particularmente o Alentejo apresentam elevados níveis de envelhecimento (nestas regiões há já mais idosos do que jovens com menos de 15 anos).

            Estas alterações foram acompanhadas de profundas mutações no ordenamento do território. Antes de mais, verificou‑se um intenso processo de “desagregação da(s) ruralidade(s), em duas vertentes: a “dissociação mundo rural‑agricultura” (deixa de constituir a principal actividade, mesmo em meio rural) e a “dissociação ruralidade‑meio urbano”[550] (as primeiras gerações de origem urbana ou suburbana mantêm vínculos muito mais ténues com a mundividência rural).

            Outras modificações estruturais merecem ser realçadas. Atente‑se na distribuição da população activa por sectores de actividade. À acentuada subalternização da agricultura sucede‑se, paralelamente, uma transferência maciça, e por vezes de forma directa, para o sector dos serviços. Em Portugal, o sector secundário nunca chegou a ser predominante, o que constitui, sem dúvida, um dado essencial a reter para se compreender o processo de industrialização português. Aliás, se atentarmos nos números, constatamos que o sector terciário representa, em 1992, 55.2% da população activa portuguesa, enquanto o sector secundário se queda pelos 33.2% e a agricultura não ocupa mais de 11.6%[551]. Dados mais recentes, do Inquérito ao Emprego, apontam para um ligeiro aumento da população activa no sector primário (13.6%), uma estagnação do secundário (31.6%) e dos serviços (54.8%)[552]. Repare‑se que, em 1960, quase metade da população trabalhava ainda no sector primário (43.6%) e o sector terciário representava menos de 30%[553].

            Consequentemente, diminui drasticamente o peso relativo dos trabalhadores da agricultura e pesca na estrutura da população activa (43.6% em 1960 e 8.5% em 1992), verificando‑se, igualmente, embora de forma muito mais paulatina, uma tendência de decréscimo de importância dos trabalhadores industriais, em particular se considerarmos a última década (de 40.5% em 1981 para 32.4% em 1992). Pelo contrário, aumentam consideravelmente as profissões intelectuais, científicas e técnicas (aumento constante desde 1960), os empregados administrativos e, na última década e de forma fulgurante, os directores e quadros dirigentes (1.6% em 1981, 11.4% em 1992)[554]. Pode‑se falar, neste âmbito, de um fortalecimento das “novas classes médias”, profundamente ligado à rápida urbanização e terciarização bem como à melhoria dos níveis de escolaridade. Aliás, os indicadores de mobilidade social demonstram que o lugar de classe associado aos profissionais técnicos e de enquadramento recruta cerca de 30% dos seus efectivos em outras fracções de classe, nomeadamente junto do operariado agrícola e industrial e do campesinato. O mesmo acontece com os empregados executantes (geralmente associados ao terciário inferior) que recebem 53.3% do seu contigente das mesmas fracções de classe anteriormente referidas[555]. Outro dado extremamente significativo revela‑nos que cerca de 40% dos empresários e dirigentes são oriundos do operariado e dos assalariados agrícolas. Este fenómeno de autêntica “mobilidade social estrutural” (resultante do “próprio movimento global da estrutura social”[556]) encontra ainda uma expressiva tradução nos níveis de escolaridade de ego, por comparação com o grau de ensino do pai e da mãe[557]. De acordo com o Estudo Nacional de Literacia, baseado numa amostra representativa da população portuguesa, dos inquiridos portadores de um diploma de ensino superior (5.5%), 53.1% dos pais não possuíam mais do que o 1º ciclo do ensino básico, sendo que 10.7% não detinham mesmo qualquer grau. No que se refere às mães, o abismo é ainda mais acentuado: 62.6% não iam além do 1º ciclo do básico (18.2% sem qualquer grau).

            Esta(s) classe(s), que protagonizam (hipótese a testar) um importante papel nas práticas culturais urbanas, caracterizam‑se por uma grande separação física e simbólica face aos contextos físicos do trabalho manual, pelo exercício de competências de autoridade e, principalmente, pelo seu carácter de “grupo distributivo”[558], ligado a um certo estilo de vida baseado em padrões de consumo similares e, por conseguinte, a um campo relativamente fechado de relações sociais.

            Um estudo mais recente sobre a estrutura de classes portuguesa e os processos de mobilidade social, aplicando o modelo teórico de Erik Olin Wright chega a conclusões semelhantes, no que se refere à mobilidade estrutural, mas acrescenta novos resultados quanto à mobilidade social relativa e intergeracional[559]. De facto, e no que concerne à análise das taxas de retenção e de recrutamento das diferentes categorias de classe, constata‑se que “a estrutura apresenta um grau de abertura elevado e, por consequência, movimentos substanciais entre as localizações de classe que possuem propriedade, autoridade e qualificações”[560]. As excepções são a “pequena burguesia agrícola” e, em particular, os “trabalhadores”, o que leva os autores a salientar que “a reprodução social nos mais desfavorecidos é bastante acentuada”[561]. Tal como no estudo anterior, os detentores de capital económico (ou seja, de propriedade) revelam‑se como uma categoria extremamente permeável à mobilidade. Assim, estaremos em presença de uma sociedade dual, onde, ao contrário dos mais favorecidos que possuem possibilidades acrescidas de mobilidade social, os desfavorecidos encontram barreiras assinaláveis e oportunidades reduzidas. Entretanto, a análise da mobilidade relativa[562] permite concluir que os principais obstáculos a trajectórias ascendentes residem na esfera da Autoridade e, principalmente, na das Qualificações, o que leva os autores a considerar que “em Portugal, é a hipótese de Bourdieu (valor das credenciais) que se mostra (...) como mais plausível”[563]. Por outras palavras, os diplomas escolares apresentam‑se como passaporte indispensável de mobilidade social, com a agravante de terem sofrido uma acentuada desvalorização, fruto da massificação escolar iniciada nos anos 60: “para os mesmos lugares na estrutura social, sobretudo os mais valorizados socialmente, são necessárias mais qualificações”[564]. Daí que se mantenham as distâncias sociais relativas entre as diferentes categorias de classe.

            No entanto, a importância das qualificações afecta, sobretudo, os mais jovens (indivíduos com menos de 35 anos), já que, devido ao cariz tardio e limitado da expansão escolar, apenas recentemente os diplomas se tornaram requisitos obrigatórios de entrada nos segmentos qualificados do mercado de trabalho. Por outro lado, ainda de acordo com os autores, a aposta na escolaridade é sobretudo um atributo das categorias sociais que já possuíam algum capital escolar, visto que a pequena burguesia tradicional continua a investir na propriedade (aproveitando a agricultura de cariz doméstico e o trabalho informal para se instalar por conta própria), enquanto que os trabalhadores são vítimas da função selectiva da instituição escolar. Aliás, um estudo de Carlos Farinha Rodrigues vem comprovar que as variáveis económicas e de segmentação educacional são as principais responsáveis (e não as de cariz regional ou demográfica) pela desigualdade de tipo inter‑grupal durante a década de 80[565].

            Outro factor de primordial importância para a compreensão da evolução do país nas últimas décadas liga‑se ao aumento substancial da participação feminina na população activa. De facto, a taxa de actividade feminina aumentou de 13.0% em 1960, para 41.3% em 1992[566], representando a taxa mais elevada da União Europeia, quando medida em horas de trabalho. Paralelamente, o peso relativo dos homens activos tem vindo a decrescer. Nos escalões mais jovens esta tendência é ainda mais acentuada: a taxa de actividade feminina quase se assemelha à masculina. Em 1997, a taxa de actividade feminina era de 45%[567], ascendendo a 52.2% no sector dos serviços.

            Desta forma, a forte participação feminina na população activa foi de forma a substituir a diminuição da taxa de actividade masculina, “sobrecompensando largamente fenómenos semelhantes de envelhecimento na estrutura etária, aumento da escolarização e diminuição de inserções precoces no mundo do trabalho”[568]. De referir que este notável incremento da participação feminina tem, segundo A. Barreto, motivos históricos bem precisos, em particular a penúria de mão‑de‑obra causada pela fortíssima emigração dos anos 60 e princípios dos anos 70, a par da guerra colonial. Além do mais, como referem F. Luís Machado e António Firmino da Costa, apesar da sua indissociável ligação a mudanças estruturais no papel da mulher na sociedade portuguesa (por exemplo, na generalização do modelo da família de dupla carreira), este processo articula‑se, também, com a necessidade de complementar os rendimentos dos agregados domésticos, exercendo‑se, muitas vezes, em situações qualitativamente desqualificantes[569]. No entanto, Estanque e Mendes chegam à conclusão de que as probabilidades de ascensão social são significativamente mais elevadas para as mulheres, em todas as classes sociais: “o efeito concertado das qualificações, da autoridade e da propriedade, obriga os homens em Portugal a travar uma luta significativa para melhorar as suas oportunidades sociais (...) Para elas, a estrutura social apresenta‑se totalmente permeável”[570]. Estes autores explicam o fenómeno, não só pelo aumento da sua participação na população activa, mas também pelos seus elevados índices de escolaridade, em particular nos patamares mais elevados, bem como pelo papel empregador da Administração Pública (fruto da expansão tardia do Estado‑Providência). Aliás, o facto já referido da feminização da população activa ser muito mais nítida no sector terciário (superando a participação masculina), sugere algum paralelismo entre o incremento deste sector e o aumento daquela taxa. Finalmente, estes valores colocam Portugal numa posição extremamente singular no quadro europeu, distanciando‑nos dos países do Sul e aproximando‑nos das economias mais avançadas[571].

 

            3. Reordenamento do território e assimetrias regionais: retrato de um país a várias velocidades.

 

            O país, como já salientámos, aumenta consideravelmente a sua população na década de 70 (em especial na sua segunda metade[572], devido ao efeito conjugado do retorno das ex‑colónias e de algum retorno da emigração europeia) e muito timidamente na década seguinte (pode mesmo falar‑se de estagnação). No entanto, esse crescimento processou‑se de forma bastante desigual ao longo do território (Quadro X). Os saldos migratórios, aliás, revelam regiões eminentemente atractivas e regiões claramente repulsivas.

 

QUADRO X — População por regiões, em 1960, 1970, 1981 e 1991 (Milhares)

 

 

Norte Litoral

Porto

Centro Litoral

Norte/

Centro Interior

Lisboa/ Vale do Tejo

Alentejo

Algarve

Madeira

 Açores

Total

do País

1960

875 (9,8)

1193 (13,4)

1363 (15,3)

1640 (18,4)

2222 (25,0)

685 (7,7)

314

(3,5)

269

(3,0)

328 (3,7)

8889 (100,0)

1970

864 (10,0)

1319 (15,2)

1329 (15,3)

1328 (15,3)

2483 (28,7)

532 (6,1)

269

(3,1)

253

(2,9)

287 (3,3)

8664 (100,0)

1981

966 (9,8)

1562 (15,9)

1480 (15,1)

1312 (13,3)

3182 (32,4)

512 (5,2)

324

(3,3)

253

(2,6)

243 (2,5)

9833 (100,0)

1991

987 (10,0)

1635 (16,6)

1501 (15,2)

1172 (11,9)

3220 (32,7)

474 (4,8)

368

(3,7)

264

(2,7)

241 (2,4)

9862 (100,0)

1960/91*

+112

(+12,8)

+442

(+37,0

+138

(+10,1)

‑468

(‑28,5)

+998

(+44,9)

‑211

(‑30,8)

+54

(+17,2)

‑5

(‑1,9)

‑87

(‑26,5)

+973

(+10,9)

Nota: * Taxa de Variação. Fonte: INE, Recenseamentos Gerais da População (1960, 1970, 1981 e 1991), in J. Ferreira de Almeida, A. Firmino da Costa, F. Luís Machado, “Recomposição Socioprofissional e Novos Protagonismos”, in op. cit.., p. 309.

 

 

            De forma geral, pode dizer‑se que as maiores taxas de crescimento efectivo se verificaram no litoral do Minho ao Sado e Algarve[573]. Merecem especial destaque a Península de Setúbal e as duas áreas metropolitanas, apesar de valores de crescimento muito elevados em determinadas regiões do Norte Litoral (Cávado, Ave, EntreDouro, Vouga, etc.).

            Concomitantemente, as migrações internas acentuaram um abandono muito relevante das principais regiões do interior, num movimento de generalizado êxodo rural que atingiu o seu pico durante o período 1960‑73, por razões que, segundo João Ferrão, se ligam à saturação “quer do ciclo emigratório intercontinental (EUA e sobretudo Brasil) (...) quer da ocupação das áreas de charneca do Alentejo e Ribatejo”[574]. Por isso mesmo, “os anos de 1960‑73 correspondem ao período do Portugal contemporâneo em que as clivagens territoriais atingem a sua expressão máxima”[575]. Durante esse período, a densidade média nacional baixa cerca de 2%. Com excepção do Porto (que mantém a sua população) e de Lisboa (que a vê aumentar), a situação assemelha‑se a um cataclismo. Em muitos concelhos rurais verificam‑se perdas na ordem dos 30%. Em Trás‑os‑Montes, por exemplo, as densidades populacionais regridem para níveis semelhantes aos de 1911. Segundo François Guichard, tal conjuntura “é um caso quase único no mundo actual, fora de cataclismo natural ou de guerra afectando a metrópole”[576].

            Em 1981 a situação demográfica portuguesa, apresenta, então, três características essenciais: litoralização, bipolarização (em Lisboa e Porto) e aglomeração versus esvaziamento. Esta última tendência liga‑se, fundamentalmente, à consolidação do crescimento dos centros populacionais com mais de 10 mil habitantes, verificando‑se, por contraponto a esta vertente, uma rarefacção da população nas zonas circundantes. Este factor provoca efeitos muito especiais no interior do país, promovendo os centros urbanos como as capitais de distrito ou as sedes de concelho que oferecem uma quantidade/qualidade mínima de serviços indispensáveis.

            Na década de 90, apesar de, no essencial, se manterem estas tendências, assiste‑se a uma crescente complexificação das situações‑tipo do mapa português. Longe, bem longe, apesar de apenas três décadas se terem passado, ficava o Portugal do “bom velho mundo rural”, onde as marcas de modernidade, de tão confinadas, não conseguiam contrariar a imagem de um país parado no tempo.

 

            3.1. A sociedade dualista

            Em notável estudo publicado em finais da década de 60, Adérito Sedas Nunes refere‑se ao nosso país como uma “sociedade dualista em evolução”, dualismo esse com várias vertentes: sociológico, económico e cultural. Por um lado, temos uma parcela restrita do território, concentrada nos meios mais privilegiados de Lisboa e Porto, onde se verifica o aumento de mão‑de‑obra minimamente qualificada nos sectores da indústria e serviços; áreas que correspondem à maior concentração do produto interno bruto, dos capitais, dos rendimentos, dos cuidados de saúde, dos equipamentos, etc., etc. Em suma: “à margem e ao redor de algumas restritas áreas socialmente privilegiadas, nas quais os diversos elementos utilitários da civilização moderna atingiram já um grau notável de difusão, perdura e se estende toda uma zona social muito mais extensa, imersa em condições de vida e formas de civilização tradicionais”[577].

            A esse sector, urbanizado e possuidor dos estilos de vida ocidentais, contrapunha‑se o resto do país, incipientemente escolarizado[578], com uma agricultura de subsistência, representando uma sociedade bloqueada, a que apenas restava uma solução: “a fuga, o abandono — fuga e abandono numa escala sem precedentes”[579]. De rural, o êxodo adquire com a emigração dimensões nacionais.

            Esta sociedade ainda persiste. João Ferrão fala‑nos da persistência da tradicionalidade na sociedade portuguesa: “(...) a ruralidade dos campos tenderá a persistir, ainda que assumindo novas configurações”[580]. No entanto, trata‑se agora de uma “ruralidade urbana”, extremamente associada às migrações internas e que tenderá a incorporar‑se ou diluir‑se nos novos mapas culturais, à medida que vão falecendo os “avós da «terra»”. Nada há de comum com o Portugal dos anos 60, em que apenas 17.8% das habitações possuía cozinha ou onde, por mil habitantes, não havia mais do que 35.7 telefones particulares[581]. Nesses tempos, “o moderno aparece como um conjunto de rasgões e de furos abertos na imensa manta tradicional”[582]. Não admira, por isso, que A. Sedas Nunes, apesar de recusar o derrotismo fatalista, revele poucas esperanças quanto às possibilidades de alastramento do reduzido “sector moderno” da sociedade portuguesa. Aliás, o autor não afasta a hipótese de “regressão e degenerescência”, ou mesmo de bloqueio dos esforços progressistas: “Assim, sob a capa de um crescimento global estatisticamente comprovado, não pôde ver‑se que só muito parcialmente, e muito localizadamente, a sociedade portuguesa se ia desenvolvendo. E mal se começa a aperceber que um restrito desenvolvimento até as possibilidades ou perspectivas futuras do crescimento que se tem verificado pode vir a comprometer”[583].

 

            3.2. A complexificação do xadrez territorial

            A situação, no entanto, evoluiu de forma consideravelmente diferente (apesar da permanência, nalguns casos estrutural, de factores e formas de tradicionalidade, como adiante desenvolveremos). Se atentarmos apenas às dinâmicas demográficas do presente, podemos detectar, segundo João Ferrão, “cinco lógicas autónomas”[584], que têm subjacentes um suporte de desenvolvimento económico:

            – a concentração nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, especialmente atractivas nas décadas de 60 e 70, com incremento da suburbanização e declínio relativo das duas grandes cidades durante os anos 80;

            – atractividade do litoral algarvio, onde se verifica, de 1985 a 1991 um saldo migratório positivo semelhante ao de Lisboa e Vale do Tejo, situação que se encontra sem dúvida ligada ao potencial turístico desta região;

            – crescimento das cidades de média dimensão, em parte devido às melhorias no sector dos serviços, em especial os da Educação e Saúde, quer pelo dinamismo do poder local, quer ainda pela desconcentração de serviços ao nível regional e subregional;

            – dinamismo das áreas de industrialização rural difusa, a par do alargamento das bacias de emprego e da intensificação dos movimentos pendulares;

            – concentração de população ao longo dos grandes eixos viários.

            Assim, passa‑se de um modelo baseado em dicotomias (rural versus urbano; litoral versus interior; Norte versus sul; etc.) para um modelo multipolar, marcado, não tanto por movimentos inter‑regionais mas sim por fluxos internos[585], “traduzindo‑se por configurações territoriais em arquipélago”[586], onde se destacam, pelo seu dinamismo, as “ilhas” já mencionadas, rodeadas por “áreas submersas”, caracterizadas pela estagnação ou redução demográficas, colocando‑se em risco, muitas vezes, o limiar mínimo que justifica a instalação de equipamentos e serviços, factor que reforça, ainda mais, a concentração nas tais “ilhas”, onde se consolidam “pontos estratégicos de densidade relacional mínima entre indivíduos, grupos, instituições e empresas”[587].

            Álvaro Domingues vai no mesmo sentido, referindo as múltiplas metamorfoses do rural e do urbano (traduzidas por conceitos como “rurbanização”, “urbanização in situ”, “urbano difuso”, “conurbação”, “área metropolitana”, etc.) e propondo, igualmente, um modelo territorial do tipo “reticular”, correspondente a um “contexto em que o quadro da mobilidade das pessoas, dos bens, da informação, dos fluxos financeiros, etc., é cada vez mais complexo (...) transformando os efeitos geográficos do isolamento ou da exclusão em efeitos de relação”[588].

            Não será, todavia, algo apressado negar operacionalidade (e actualidade) às “antigas” dicotomias”?

            Augusto Santos Silva, por exemplo, referindo‑se à evolução demográfica da década de 80 fala do reforço das “relações de dominação e dependência[589] que reduz à dualidade e competição entre as duas maiores cidades as principais questões das assimetrias regionais, criando um vasto território ausente, incapaz de se fazer ouvir e de se afirmar como problema político a resolver. Desta forma, o país “parece mais pequeno”, principalmente quando falamos do “mapa (...) a que nos costumamos referir, quando tomamos ou discutimos opções políticas estratégicas, nos mais diversos domínios da vida social”[590].

            Mário Leston Bandeira, por seu lado, retoma a questão do dualismo Norte/Sul. Segundo este autor, a especificidade do processo de transição demográfica português prende‑se à coexistência de dois modelos diferentes: um, comum às regiões do Sul e semelhante ao conjunto europeu, e outro, característico das regiões do Norte através do qual se exprime um processo de “modernização lenta e tardia”[591].

            Assim, o desaparecimento progressivo dos sistemas demográficos regionais processou‑se, no nosso país, de forma extremamente paulatina. A nupcialidade muito lentamente deixou de desempenhar o seu papel regulador, tardando a desaparecer as imposições familiares, comunitárias e clericais ao casamento. Mas, mais importante ainda, o desaparecimento dessas limitações e o surgimento de padrões sexuais e familiares modernos foi mais rápido no Sul do que no Norte do país. Melhor se compreende, por isso, que, apesar de no período anterior à transição demográfica o Norte possuir uma taxa de natalidade menos elevada (as mulheres casavam mais tardiamente e, por isso, o seu intervalo de fecundidade era mais curto), ter sido no Sul que esta mais rapidamente desceu, aproximando‑se dos valores europeus, das práticas malthusianas modernas e dos novos modelos familiares (marcados, como de resto já referimos, por um aumento das taxas de divórcio, pela informalização e precarização das uniões, pelo aumento do número de filhos exteriores ao casamento, das famílias monoparentais e dos casos de celibato voluntário, em suma, pela diversificação de situações).

            Leston Bandeira afirma, por isso, que o dualismo que atravessa a sociedade portuguesa não é tanto o do urbano versus rural mas sim o do Norte versus Sul. Prova dessa tendência estrutural é a existência de duas lógicas urbanas autónomas: a de Porto e a de Lisboa: “No plano demográfico, os traços distintivos entre populações urbanas e populações não urbanas são ténues: o distrito do Porto esteve sempre mais próximo dos distritos vizinhos do que do distrito de Lisboa, o qual, por sua vez, sempre manifestou afinidades com os outros distritos do Sul”[592].

            João Ferrão, no entanto, aponta claramente para uma convergência dos dois regimes demográficos. Do mesmo modo, Fernando Luís Machado e Firmino da Costa, apesar de não negligenciarem algumas importantes variações regionais (patentes, por exemplo, na enorme dispersão dos valores da densidade populacional e na desertificação do interior, por comparação com o litoral onde se concentra 80% da população) reconhecem o “esbatimento das tradicionais disparidades” patente no facto “de hoje as taxas de natalidade, fecundidade e mortalidade infantil das várias regiões se encontrarem mais próximas umas das outras do que alguma vez estiveram nos últimos 150 anos”[593].

 

 

 

            3.3. O modelo de desenvolvimento português: rupturas e permanências.

 

            António Barreto traça um cenário bastante optimista sobre a mais recente evolução social portuguesa. Apesar de reconhecer as limitações e insuficiências deste movimento de progresso (queda real do salário mínimo, distribuição muito desigual das receitas dos agregados económicos, penalizando, essencialmente, os activos ligados à agricultura e reflectindo uma “forte desigualdade social estrutural”[594], etc.), não se cansa de assinalar os saltos quantitativos (mais significativos) e qualitativos (mais tímidos): “Portugal fez, em vinte ou trinta anos, o que, noutros países, tinha demorado cinquenta ou sessenta. Em muitos aspectos, sobretudo os económicos, Portugal não chegou a ficar a par dos vizinhos europeus, nem chegará tão cedo. Mas, noutros, sobretudo nos sociais, culturais e demográficos, os Portugueses parecem‑se hoje, de modo definitivo, com eles”[595].

            Admitindo a sua ocorrência, quais foram, então, os elementos estruturantes dessa acelerada transformação?

            Antes de mais, o aumento da coesão nacional, apesar do reconhecimento da pluralidade cultural, étnica, política, religiosa, económica. Intimamente relacionado com esta consolidação estrutural, encontra‑se a redução espacial das assimetrias, que são, cada vez mais, de cariz económico e social. Desta forma, a sociedade dualista delineada por A. Sedas Nunes, segundo A. Barreto, “quase não existe mais”[596]. Aliás, expande‑se o Estado‑Providência, apesar das suas deficiências e limitações, em especial na qualidade dos serviços, protegendo socialmente os excluídos e ganhando uma cobertura universal. O aumento da função social do Estado (traduzido pela integração de toda a população, incluindo os que nunca contribuíram para a segurança social), caminha a par do incremento do papel da administração pública na economia, o que reforça, em ambos os casos, o processo anteriormente referido de terciarização.

            Na educação, tornada a principal rubrica da despesa do Estado, as alterações são também fundamentais: eliminação quase total do analfabetismo juvenil, taxas de quase 100% na frequência do ensino básico, aumento muito significativo da frequência do ensino secundário e, em especial, do ensino superior, cuja população “mais do que decuplicou nas três (últimas) décadas”[597] (Quadro XI).

QUADRO XI — Evolução dos Níveis de Ensino Atingidos, de 1960 a 1991 (%)

 

 

1960

1970

1981

1991

Básico (primário e preparatório)

32,8

52,2

56,7

64,8

Secundário (unificado e complementar)

4,6

7,8

12,3

21,5

Médio/Superior

0,8

1,6

3,6

8,0

Fonte: INE, Recenseamentos Gerais da População, in J. Ferreira de Almeida, A. Firmino da Costa, F. Luís Machado, op. cit., p. 315.

F. Luís Machado e António Firmino da Costa realçam que, “em 30 anos (...) a proporção de universitários na faixa etária dos 20‑24 anos salta de 3.4% em 1960 valor que deixa claro que nessa época andar na universidade correspondia a um estatuto de elite para perto de 30% em 1991”[598]. Em 1996, essa percentagem eleva‑se para 35.2% (Quadro XII[599]).

 

QUADRO XII — Percentagem de Universitários sobre a População de 20‑24 anos

 

 

 

 

Homens

Mulheres

HM

1960

5,0

1,9

3,4

1970

8,7

6,1

7,3

1981

12,0

9,9

11,0

1989

15,3

19,3

17,3

 

Fonte: INE, Estatísticas da Educação e Recenseamentos Gerais da População, in J. Ferreira de Almeida, A. Firmino da Costa, F. Luís Machado, op. cit., p. 315 e Infoline. Séries Cronológicas. Estimativas da População Residente Segundo o Sexo por Idades.

 

 

Simultaneamente, as universitárias tornam‑se maioritárias, se atendermos à composição sexual da população do ensino superior. “No escalão dos 20 aos 29 anos, a percentagem de mulheres com um diploma universitário era, em 1992, já claramente superior à homóloga masculina”[600].

            Na saúde, os cuidados médicos essenciais alargaram‑se, também, a todo o território nacional, factor que encontra uma vez mais correspondência no aumento intenso da despesa pública neste domínio[601].

            Mesmo em factores como a posse de equipamentos ou a estrutura dos orçamentos familiares é possível notar, apesar da persistência das desigualdades, “uma relativa aproximação dos padrões de consumo por parte dos vários grupos sociais”[602]. Em 1995, 99.3% da população possui fogão, 94.5% frigorífico, 90% aparelho de rádio, cerca de 88% televisão a cores, 72.8% uma máquina de lavar roupa, 72% telefone, 58.4% um aspirador, 52% automóvel, 18.2% leitor de “compact‑disc”[603].

            Quanto ao início deste amplo e variado processo de transformações, a opinião de A. Barreto coincide com a de José da Silva Lopes: apesar da expansão dos direitos sociais ser uma consequência directa da sua consagração no período pós 25 de Abril, a “verdadeira revolução económico social”[604] antecedeu a ruptura revolucionária e teve lugar “durante os «anos de ouro» da década de 60 até 1973”. De acordo com esta tese, as reformas económico‑sociais precederam e de certo modo pressionaram as transformações políticas imediatamente posteriores.

            Outros autores e outros números levantam algumas dúvidas sobre as análises antecedentes.

            Fernando Medeiros, por exemplo, traça uma clara linha de continuidade na evolução económico‑social das últimas três décadas, com os efeitos da adesão à União Europeia a compensarem as perdas resultantes da quebra da emigração. Aliás, no balanço possível, apesar de pesarem favoravelmente uma melhoria da situação financeira (proporcionada pela redução do défice do sector público e do endividamento externo), das infraestruturas físicas e um tímido lançamento do “Estado‑Providência, contam negativamente o aumento dos desequilíbrios territoriais, a contenção dos salários reais, a precaridade do emprego, os baixos salários (que penalizam, principalmente, mulheres e jovens) e as extensas manchas de pobreza[605]. A este respeito, José Pereirinha, que considera a pobreza um fenómeno multidimensional, cumulativo e estrutural, refere dados de 1990 (Eurostat) que indicam que o nosso país possuía o PIB per capita mais baixo da U. E., bem como a média de salários mais reduzida. Ainda segundo o mesmo autor, a redução da pobreza na década de 80, foi insignificante nas zonas urbanas e inexistente nas áreas rurais, onde se terá mesmo verificado um agravamento das condições de vida. Assim, apesar do crescimento significativo do PIB na década de 80[606], que atingiu, no discurso oficial, dimensões retóricas assinaláveis, as melhorias na justiça redistributiva foram extremamente modestas[607]. O próprio processo de modernização acarretou a vulnerabilização de novas franjas sociais, doravante em situação de inadaptação face às reconversões tecnológicas (alguns chamam‑lhes mesmo os “novos pobres”[608]). Alem do mais, persiste um atraso assinalável em relação à média comunitária, no que respeita à protecção social. As despesas correntes neste domínio, bem como os montantes per capita são os mais fracos da comunidade europeia. Como alguns autores sublinham, o Estado‑Providência português nunca ganhou uma dimensão comparável ao dos países da Europa Central e do Norte. Fernando Ribeiro Mendes fala mesmo de um “modelo (tardio) de Estado‑Providência”, cobrindo para cima de 80% da população mas ainda distanciado dos sistemas de mais longa implementação, em que as despesas em prestações sociais rondam os 25% do PIB (contra os 20% do caso português)[609].

            No entanto, ao analisar as repercussões da integração europeia e do forte crescimento económico da segunda metade da década de 80 (superior à média comunitária) na distribuição do rendimento e da desigualdade, Carlos Farinha Rodrigues conclui por uma ligeira redução da desigualdade global, beneficiando, essencialmente, os grupos sociais mais desfavorecidos. De qualquer forma, os resultados obtidos “atenuam a tendência registada na década anterior (70) para um forte desagravamento da desigualdade”[610] que terá beneficiado principalmente as classes médias. Para além de que se regista um aumento em simultâneo da dimensão “dos agregados excluídos da actividade produtiva por motivos diversos (idade, desemprego, etc.)[611], tendo a proporção crescido de 9 para 14%.

            Assim, não admira que Fernando Medeiros fale de um processo paradoxal: o do “crescimento económico sem modernização” ou, se preferirmos, da “modernização por excesso de tradicionalidade”. A não aplicação dos fundos comunitários no terciário intermédio e superior, a sua concentração nos sectores tradicionais não reconvertidos, essencialmente virados para a exportação e, principalmente, a “descapitalização humana”, são alguns dos principais indicadores deste modelo de desenvolvimento muito pouco exemplar. Este último fenómeno, em particular, atinge proporções alarmantes, na medida em que tende a reproduzir o recurso intensivo a mão‑de‑obra juvenil barata, pouco escolarizada e com deficiente acesso à formação profissional que, em muitos casos, não faz mais do que prolongar a taxa de inocupação: “Há fortes razões para supor que o actual dispositivo da política activa de emprego dos jovens é mais da jurisdição da política de baixos salários que assegura o equilíbrio precário da economia portuguesa do que uma política de educação e de formação profissional viradas de maneira mais resoluta para os desafios sociais e culturais que a integração europeia coloca à sociedade”[612]. Aliás, como referem Estanque e Mendes, no proletariado cabem, não só os operários industriais, mas igualmente um vasto conjunto de indivíduos, tendencialmente jovens, de baixos níveis de escolaridade e trabalhando em situação precária nos sectores administrativos (o que se associa, sem dúvida, ao grande peso do terciário inferior na nossa estrutura produtiva)[613].

            Henrique Medina Carreira vai no mesmo sentido, ao considerar que o nosso atraso educativo é um dos principais obstáculos à convergência real face aos países mais avançados da União Europeia. Não só o nosso país revela baixíssimas taxas de escolarização (segundo dados da OCDE de 1993, utilizados pelo autor, enquanto que, na Alemanha, apenas 18% da população possuía um diploma igual ou inferior ao 1º ciclo do secundário, em Portugal tal percentagem subia, assustadoramente, para os 93%), como a qualidade do sistema de ensino, patente quer na “quantidade extraordinária das repetências e dos abandonos”[614], quer no altíssimo nível de discriminação sócio‑económica, está muito longe do desejável. Dados recentes indicam que a taxa de analfabetismo registada nos censos de 1991 (cerca de 11%) colocam o país ao mesmo nível da Europa do Norte ... há um século atrás[615]! Apesar das despesas com a educação, segundo um estudo de Medina Carreira, terem aumentado 17 vezes entre 1961 e 1993, a um ritmo anual de crescimento de 9.2% (aumento que sobe para 22% entre 1971 e 1976 e para 12.6% entre 1986 e 1992)[616]; apesar dos gastos com o funcionamento dos estabelecimentos de ensino terem quase triplicado; apesar, finalmente, da despesa anual por aluno ter duplicado[617], continuam a verificar‑se “taxas médias de reprovação e repetência 20 vezes superiores às médias de países ocidentais”[618] e, em 1991, existiam ainda 361 mil jovens fora da escola, representando 45% da faixa etária entre os 12 e os 22 anos. O estudo sobre a Literacia em Portugal apurou 10.3% de inquiridos no nível 0, ou seja, indivíduos que se revelaram incapazes de realizar qualquer das tarefas propostas. Segundo os autores, “é possível estimar, no conjunto da população do Continente dos 15 aos 64, a existência de 600 mil pessoas nestas condições”[619]. No entanto, ao contrário do que seria de esperar, não são apenas os analfabetos literais ou aqueles que não possuem qualquer grau de escolaridade completo que se situam neste nível. Existem, igualmente, perto de 18% que completaram o primeiro ciclo do ensino básico e aproximadamente 2% que concluíram o 2º ciclo[620]. Fernando Luís Machado e António Firmino Costa, na mesma linha, consideram que “o baixo nível de qualificações escolares e profissionais da população portuguesa” é um dos mais “importantes défices de modernização”[621], com repercussões significativas na qualificação da mão‑de‑obra: 65% dos trabalhadores industriais, por exemplo, não têm mais do que o 1º ciclo do ensino básico, enquanto que, entre os empresários e dirigentes, “o nível de habilitações literárias modal” é, igualmente, o primeiro ciclo do ensino básico, com a agravante de 16.2% não possuírem qualquer grau[622].

            Também Marçal Grilo defende uma “prioridade acrescida à formação dos recursos humanos”, baseado na constatação das “fragilidades e insuficiências”[623] do sistema educativo português[624]. Reconhecendo embora, tal como A. Barreto, um grande esforço de aumento da cobertura escolar e do acesso à educação, o autor regista grandes assimetrias regionais, relacionando os valores mínimos de escolarização com certas regiões do país (em especial no Norte) onde se verifica “um modelo de desenvolvimento assente em mão‑de‑obra desqualificada e, consequentemente, no recrutamento de jovens sem qualificação profissional precocemente atraídos para a vida activa e compelidos a abandonar o sistema educativo”[625].

            Uma das consequências mais visíveis desta situação prende‑se com o comportamento da variável «produtividade» no cômputo do processo de crescimento económico. De acordo com Silva Lopes, enquanto que no período 60‑73 se verificou uma importante contribuição da chamada “produtividade global”, intimamente ligada quer à introdução de novas tecnologias e formas de organização do trabalho, quer “à elevação dos níveis de escolaridade e de formação profissional da mão‑de‑obra”[626], no período posterior tal contribuição diminuiu, entorpeceu e tornou‑se “decepcionante”.

            Trata‑se, uma vez mais, da lógica de “descapitalização humana” de que há pouco nos falava Fernando Medeiros. Intimamente relacionado com esta lógica, também já o referimos, encontra‑se a aposta nos sectores tradicionais da economia, pouco exigentes em termos de qualificação profissional e acarretando um baixo valor acrescentado para a economia e sociedade portuguesas. Neste modelo, Portugal mais não pode aspirar do que a receber “segmentos truncados do sistema industrial exógeno”, assente em rígidos e ultrapassados mecanismos de raiz taylorista. Desta forma, tudo se coaduna para um subdesenvolvimento do terciário superior, a par da conjugação destes sistemas produtivos com a agricultura de cariz familiar. Neste esquema de disseminação de pequenas empresas, emaranhadas num sistema de “industrialização difusa” onde as figuras centrais são o “empresário‑negociante” e o “camponês‑operário”[627], os resultados são parcos e o desenvolvimento assegurado (melhor seria falar em mero crescimento) revela‑se efémero e ilusório.

            Como principal resultado, emerge com particular intensidade um novo dualismo, que tem na sua base uma profunda fractura social, e que opõe um Sul urbano‑industrial‑capitalista‑salarial a um Norte e Centro de industrialização difusa, familiarista e clientelar. Os fundos comunitários desempenharam uma função “providencial”, tal como a emigração, autêntica válvula de escape das décadas de 60 e 70, contribuindo para suster os conflitos, promovendo uma certa coesão social mas, perversamente, impedindo o país de caminhar para “novas formas de estruturação social”, próprias de um Estado capitalista moderno, com um forte desenvolvimento da relação salarial e uma sociedade civil activa e interveniente. Desta forma, “esses dois espaços, sócio‑morfologicamente bem diferenciados, têm preenchido, sucessivamente, importantes funções de adaptação ou de resguardamento da sociedade portuguesa às mudanças do mundo envolvente”[628].

            Boaventura de Sousa Santos utiliza os conceitos de “sociedade semiperiférica de desenvolvimento intermédio” para caracterizar a singularidade da situação portuguesa. É sua a já célebre tese da “descoincidência articulada entre as relações de produção capitalista e as relações de reprodução social”[629], ou, se preferirmos, entre os padrões de consumo, mais avançados e semelhantes aos dos países centrais, e os ritmos e lógicas de produção, mais próximos dos países periféricos. Assim, acentuam‑se fenómenos como o trabalho infantil e os salários em atraso, no quadro de uma sociedade onde ainda possuem bastante peso os mecanismo de “acção não capitalistas”, compensatórios face às deficiências produtivas e intimamente relacionados com a persistência da economia agrícola, geradora de rendimentos complementares e/ou substitutivos (próprio do camponês‑proletário, duplamente activo e com uma dupla pertença de classe) que “alimentam adicionalmente as práticas de consumo, permitindo que o nível de reprodução social seja mais elevado que o nível de produção capitalista”[630].

            Não é de admirar, por isso, que a sociedade civil portuguesa, fraca quando se trata de exercer ou gerir pressões, consensos e conflitos próprios das sociedades de capitalismo avançado, seja, igualmente, uma forte “sociedade‑providência” que substitui e/ou complementa os défices do Estado‑Providência nacional[631].

            Daí que Fernando Medeiros fale de um “dilema imemorial na sociedade portuguesa”, intimamente ligado ao “paradoxo da modernização por excesso de tradicionalidade”. Se, por um lado, no que respeita aos comportamentos demográficos, Portugal se encontra ao mesmo nível das sociedades mais avançadas (como de resto já tivemos ocasião de realçar), por outro, do ponto de vista sócio‑económico, verifica‑se, ainda, um grande atraso (baixa produtividade, padrões tradicionais de especialização, atraso tecnológico, baixos salários, etc.). Como realça Augusto Mateus, para que se registem transformações estruturais ao nível sócio‑económico torna‑se necessário promover “uma nova especialização produtiva mais aberta à qualidade das actividades económicas”[632], bem como uma estratégia de diversificação produtiva[633]. Esta ausência de convergência com as economias mais modernas, a par do reforço das indústrias tradicionais no período 1982‑92[634], acentua o peso da industrialização difusa na propagação dos modelos malthusianos (devido ao aumento da taxa de actividade e à crescente feminização da mão‑de‑obra, patente no aumento das famílias de dupla carreira), cujos efeitos podem ser comparáveis aos da emigração, da qual será, segundo Medeiros, um substituto funcional.

            Em suma, aos problemas dos países periféricos (baixos salários, precaridade dos vínculos laborais, trabalho infantil, etc.), juntam‑se os que resultam do ritmo inesperado com que Portugal completou o seu processo de transição demográfica e que se assemelham aos dos países centrais (duplo envelhecimento, dificuldades do Estado‑Providência, retrocessos nas políticas sociais, etc.).

            Em síntese, enquanto António Barreto inclui Portugal no centro, apesar de ser a “periferia do centro[635], Boaventura de Sousa Santos e Fernando Medeiros excluem essa tese, preferindo abordar as singularidades da posição portuguesa no processo de globalização. De acordo com B. de S. Santos, “o fim da função de intermediação de base colonial fez com que o carácter intermédio que nela em parte se apoiava ficasse de algum modo suspenso à espera de uma base alternativa”. Desta forma, assistiu‑se e assiste‑se ainda a um “processo de renegociação” da posição de Portugal no sistema mundial[636], situação que ocorre quando, findo o ciclo colonial, se consumou o “regresso à nossa territorialidade”. Regresso efémero, no entanto, pois desde logo se projectaram os anseios de inserção num “novo desterritório, a Europa da UE e do Acto Único Europeu”[637].

            Outros autores, como Mário Leston Bandeira, optam ainda pela tese do dualismo, acrescentando novos contornos à tese pioneira de A. Sedas Nunes, apesar de acabarem por reconhecer uma certa tendência para a uniformização, demonstrada, aliás, pela evolução demográfica (e os valores, atitudes e comportamentos que lhe estão associados) da última década.

            Parece‑nos, no entanto, que será porventura mais fecundo do ponto de vista heurístico, se considerarmos a situação portuguesa como uma coexistência particular de assincronismos, numa tensão permanente entre rupturas e continuidades, traduzida por diferentes ritmos e tempos de desenvolvimento, espacialmente distribuídos de forma assimétrica: a “velha” pobreza coexiste com a “nova”; o rural e o urbano oferecem‑nos múltiplos exemplos de combinações e metamorfoses; moderno e tradicional entrelaçam‑se constantemente, e por vezes lado a lado, originando uma matriz simbólica, também ela eclética e heterogénea, de várias facetas e dimensões. Tudo depende, afinal, do quadro teórico com que abordamos e questionamos a realidade. Se ele for fechado, então descobrir‑se‑á o moderno ou o rural onde de antemão se esperava que estivessem. Pelo contrário, se ele se revelar flexível, alargado e imaginativo, encontraremos abertas as portas para a apreensão da complexidade. Idalina Conde, nesta mesma linha, rejeita cenários exclusivos e avança com a ideia de uma “modernidade biface ou de várias faces (...) com nexos exclusivos, hiatos ou desregulações entre heranças e mudanças, ruralidade e urbanidade, universalismo e localismo”[638], recuperando o conceito de “sociedades múltiplas” de Fernando Medeiros.

            Esta atitude epistemológica revela‑se particularmente acutilante quando encaramos a questão das mudanças simbólico‑normativas no Portugal moderno.

            Boaventura de Sousa Santos, já o dissemos, defende a tese da permanência de valores de matriz rural no quotidiano português. No entanto, admite a reprodução activa (isto é, sob novas formas) dessas constelações normativas nos meios urbanos, bem como “a coexistência a muitos (...) níveis, da modernidade, da pré‑modernidade e da pós‑modernidade”[639].

            João Ferreira de Almeida aponta para assinaláveis mudanças normativas, associadas ao recrudescer dos individualismos, próprio dos processos de “desruralização”, com tudo o que isso implica de valorização no presente das estratégias e projectos vincadamente pessoais, sem que tal signifique, no entanto, o fim da solidariedade[640]. Segundo o mesmo autor, tornam‑se frequentes as “combinatórias diversificadas de opções” que dificultam as classificações tradicionais, mais distintas e lineares. Desta forma, o “feito por medida” substitui‑se ao “pronto a pensar”, substituindo‑se a crença em valores sistémicos mutuamente exclusivos por um “novo artesanato das ideias”[641].

            Finalmente, um dado a reter é o grau de participação de Portugal no amplo movimento de globalização das economias. Num futuro próximo, a sobrevivência da singularidade portuguesa em muito dependerá, enquanto pequena economia aberta, da profundidade e das modalidades de interrelação não só económicas, mas também políticas e culturais, entre o local e o global, entidades que, embora distintas, se encontram hoje indissociavelmente ligadas.

            A globalização, ao contrário do discurso de senso comum que dela se apropriou à medida de um estafado chavão, não conduz necessariamente à homogeneização. É um processo dinâmico e contraditório, onde se geram indiscutíveis hegemonias, mas onde existe também lugar para a associação de forças contradominantes. Existem, ao contrário do que é propagado por visões essencialistas, vários centros e várias periferias. E as relações que entre eles se estabelecem, são de teor complexo e pluridireccional. Há centros que são margens e margens que são centros. Portugal desempenhou, historicamente, um papel de “transporte” e de “ponte” entre uns e outros. Por isso, a sua constituição de país duplamente plural poderá incentivar esse papel dialogante e servir, algo paradoxalmente, de vantagem comparativa: pluralidade interna de um país a várias velocidades, habituado à inclusão de uma diferença endógena; pluralidade no plano exterior, dada a “obrigação” histórica de jogar em vários tabuleiros.

CAPÍTULO VII

O PORTO DOS ANOS 90

 

                  1. O Norte no conjunto do país.

 

            As assimetrias entre as regiões portuguesas, como de resto se afirmou no capítulo precedente, estão longe de ter desaparecido. O “Portugal europeu” é um país que avança a várias velocidades, retalhando o território em regiões com desiguais níveis de desenvolvimento. Vejamos, desde já, algumas das dimensões deste problema, bem patente no quadro XIII, referente ao índice sintético de evolução das assimetrias regionais, e que integra 25 variáveis “relacionadas com as características do sistema produtivo e com as condições estruturais (ensino, transportes, qualidade de vida, etc.)”[642].

            Se tivermos em conta que o grau de assimetria se mede pela diferença entre o valor de cada índice regional e a média nacional (100), concluímos que tanto a região Norte como a região Centro se encontram a 9 unidades de distância dessa média, enquanto que Lisboa e Vale do Tejo se apresenta como a única região que se distancia, pela positiva, da mesma.

            Aliás, no período entre 1986 e 1991, em que se investiram 3.500 milhões de contos no âmbito do Plano de Desenvolvimento Regional, o Norte apresenta uma pequena regressão, afastando‑se ainda mais uma unidade da média nacional e apresentando um índice igual ao de 1981. Por outras palavras, no espaço de uma década a região Norte manteve intacta a distância que a separa da média nacional, ao contrário da região Centro, Alentejo, Algarve, Açores e Madeira que registam no mesmo período ganhos positivos.

 

 

 

 

            Quadro XIII : Índice Sintético de Evolução das

 

Assimetrias Regionais (*)

 

 

 

 

 

 

Região

1981

1986

1991

 

Norte

91

92

91

 

Centro

88

90

91

 

Lisboa e Vale do Tejo

123

119

120

 

Alentejo

78

86

83

 

Algarve

90

97

99

 

Açores

80

79

83

 

Madeira

76

80

82

 

 

 

 

 

 

(*) O grau de assimetria mede‑se pela diferença entre o valor de cada

índice e a média nacional de 100

 

 

 

 

 

 

 

 

Fonte: Ministério da Administração do Território e Planeamento.

 

 Direcção Geral do Desenvolvimento. Estudo da análise e

 Perspectivas de desenvolvimento regional in Leonor Coutinho, art. cit., p. 125

 

 

 

 

 

 

            Um estudo de 1997, referente à análise das contas regionais de 1992, chama a atenção para os baixos padrões de produtividade e qualificação da região Norte, que a colocam abaixo da média nacional no que se refere ao Valor Acrescentado Bruto (VAB) per capita. Apesar de ser a Região que mais contribui para o emprego nos sectores primário e secundário, o Norte é prejudicado pela predominância das especializações industriais de tipo intensivo, “com consequentes impactos pouco favoráveis em termos de produtividade e remunerações médias”[643]. Aliás, verifica‑se um fortíssimo peso dos sectores tradicionais”[644] e da construção, com valores de produtividade inferiores à média nacional (importante presença das industrias têxteis e do vestuário[645]). A situação prolonga‑se para o sector terciário. Este, apesar de ser o que mais contribui para o VAB regional, não concentra a maior parte do emprego (que se encontra localizado no secundário). Aliás, “o Norte pertence ao grupo de regiões onde a contribuição do terciário era inferior à média nacional”[646], o mesmo acontecendo com a produtividade específica deste sector.

            No que se refere às remunerações médias, o Norte situa‑se igualmente abaixo da média nacional, existindo apenas duas regiões (Centro e Algarve) com prestação pior. Avaliando o nível de vida das famílias, a situação afigura‑se ainda mais preocupante. Com efeito, a região “onde reside 35.25 da população do país, concentra apenas cerca de 30% do rendimento primário nacional, proporção idêntica à do seu contributo para a riqueza nacional medida pelo Valor Acrescentado Bruto”[647]. Se tomarmos apenas como indicador o rendimento disponível bruto per capita, sem tem em conta os processos de redistribuição, associados às transferências privadas internacionais (remessas de emigrantes), o Norte ocupa a pior posição no cômputo nacional.

            O estudo sobre o poder de compra concelhio é, igualmente, extremamente elucidativo. O Norte é a terceira região do país ao nível do poder de compra per capita (81.87, em 1995 e 83.17 em 1997) logo abaixo do Algarve (que se situa sensivelmente na média nacional) e de Lisboa e Vale do Tejo, a região mais favorecida (Quadro XIV), representando aproximadamente 4/5 do poder de compra per capita do país. Repare‑se, no entanto, nas profundas assimetrias internas da região Norte, diluidoras de qualquer ilusão de homogeneidade. Em 1995, “O Grande Porto beneficia de um poder de compra per capita que ultrapassa em um pouco mais de um terço o valor médio nacional. Em todo o país apenas a sub‑região da Grande Lisboa supera esta performance (...) por outro lado, quatro das seis sub‑regiões que registam menores níveis de poder de compra per capita localizam‑se no Norte”[648]. De facto, em 1997, o Grande Porto possui um poder de compra per capita de 131.18, enquanto que o Tâmega atinge apenas 47.15. Aliás, é notória a situação privilegiada dos centros urbanos. Quase sempre, possuem valores superiores à média da sub‑região onde estão enquadrados. É o caso de Braga (102.97, para 71.21 da sub‑região do Cávado); Guimarães (67.74, para 62.40 do Ave); Viana do Castelo (75.08, para 58.04 do Minho‑Lima); S. João da Madeira (158.18 — o segundo concelho da região Norte neste indicador, logo a seguir ao concelho do Porto — para 69.96 de EntreDouro e Vouga); Vila Real (76.16, para 50.87 do Douro) e Bragança (82.50, para 54.82 de Alto Trás‑os‑Montes)[649].

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

           

QUADRO XIV — INDICADOR PER CAPITA DO PODER DE COMPRA CONCELHIO EM 1995 E 1997

 

 

 

 

 

1995

 

1997

 

PORTUGAL

 

100,00

 

100,00

 

CONTINENTE

 

102,00

 

101,98

 

NORTE

 

81,87

 

83,17

 

CENTRO

 

71,63

 

71,07

 

LISBOA E VALE DO TEJO

 

144,60

 

142,94

 

ALENTEJO

 

69,62

 

68,03

 

ALGARVE

 

100,43

 

106,47

 

AÇORES

 

64,47

 

60,59

 

MADEIRA

 

59,74

 

64,35

 

GRANDE LISBOA

 

188,30

 

185,63

 

GRANDE PORTO

 

134,43

 

131,18

 

             Fonte: INE — Infoline, Estudo sobre o Poder de Compra Concelhio, Número II e III, 1995 e 1997.

 

 

            Impõe‑se salientar o facto de, fora do Grande Porto, apenas Braga e S. João da Madeira possuírem valores acima da média nacional. Contudo, o dinamismo das cidades de média dimensão parece conferir credibilidade à tese de uma maior complexificação do xadrez territorial, defendida por João Ferrão e referida no anterior capítulo. Em termos de percentagem de poder de compra, a Região Norte, com 29.6% fica, uma vez mais, a considerável distância face a Lisboa e Vale do Tejo, com aproximadamente metade do poder de compra nacional[650]. No entanto, de novo constatamos que a região Norte, claramente periférica a nível do país, divide‑se também ela internamente em centro e periferias. A sub‑região mais privilegiada é o Grande Porto (15.7% do poder de compra nacional). Das restantes sub‑regiões, apenas o Ave atinge valores na ordem dos 3%.

            Persistindo na análise das condições de vida das populações e observando a posse de determinados bens e equipamentos, detectamos, uma vez mais, fortes desigualdades inter‑regionais. Tomando em linha de conta apenas os que, desses bens e equipamentos, possuem pertinência enquanto suporte ou veículo de práticas culturais, verifica‑se uma sistemática descoincidência entre os valores da Região Norte e de Lisboa e Vale do Tejo, com prejuízo nítido da primeira. Se, no que respeita à televisão a cores, a diferença é pouco relevante (no Norte, 88.71% dos agregados possuem esse aparelho, em Lisboa e Vale do Tejo o valor eleva‑se para 92.54%), para outros equipamentos a distância é já considerável, traduzindo desiguais possibilidades de prática cultural[651].

            Uma outra dimensão de extrema relevância para a contextualização estrutural do Norte do país, prende‑se com os níveis de escolaridade. Apesar de uma nítida melhoria nas taxas de escolarização e de uma redução das disparidades nacionais desde 1987, a região Norte permanece distante face às médias do continente nacional. Assim, enquanto que esta região representa, no ano lectivo 1994/95, 40.1% do total nacional de frequência do ensino básico, no que respeita ao ensino secundário o valor desce para 30.3%, o que indicia uma lógica de acentuada selecção escolar[652]. Já no que se refere ao ensino superior, a frequência mantém‑se praticamente idêntica à registada no secundário (30.2%[653]), o que nos leva a supor que o grosso do abandono escolar se processa após o completar da escolaridade obrigatória. Por outro lado, o nível de frequência escolar regional é claramente inferior ao peso dos grupos etários correspondentes, o que comprova, uma vez mais, níveis significativos de abandono escolar.

            Se analisarmos, agora, a composição sócioprofissional da região Norte por comparação com as restantes regiões (quadro XV), chegamos à conclusão de que existe uma predominância relativa dos seguintes grupos: trabalhadores da agricultura e pesca; trabalhadores da produção industrial e artesãos; operadores de instalações industriais e máquinas fixas, condutores e montadores.

 

Quadro XV : Distribuição por Regiões dos Empregados por Grupo Profissional

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Região

Grupo 1

Grupo 2

Grupo 3

Grupo 4

Grupo 5

Grupo 6

Grupo 7

Grupo 8

Grupo 9

Total

Norte

38,65%

28,45%

30,92%

30,61%

30,56%

42,67%

49,04%

47,23%

33,22%

38,06%

Centro

15,46%

14,26%

14,76%

12,63%

15,26%

31,02%

16,13%

18,93%

18,20%

17,17%

Lisboa e Vale do Tejo

39,09%

51,02%

47,15%

49,37%

42,54%

15,14%

28,18%

26,72%

37,07%

36,13%

Alentejo

2,99%

3,64%

4,03%

3,93%

5,85%

6,27%

3,89%

5,13%

7,82%

5,08%

Algarve

3,81%

2,62%

3,14%

3,46%

5,80%

4,90%

2,76%

2,00%

3,69%

3,55%

Continente

169 702

222 100

293 959

421 440

527 156

322 321

943 714

353 157

651 544

3 945 520

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Fonte: INE, Censos de 1991

 

 

 

 

 

 

 

 

 

            Pelo contrário, a região de Lisboa e Vale do Tejo revela uma supremacia relativa nos restantes grupos profissionais: membros de corpos legislativos, quadros dirigentes da função pública e das empresas; profissões intelectuais e científicas; profissões técnicas intermédias; empregados administrativos e pessoal dos serviços de protecção e segurança e dos serviços pessoais e domésticos[654]. Contudo, importa relativizar estes números através da utilização de um índice de especialização profissional a nível regional (“que nos permite confrontar o peso do emprego numa dada profissão em cada região com o verificado a nível nacional”[655]), já que a região Norte concentra cerca de 1/3 da população nacional. Assim, a especialização da região Norte encontra‑se patente em quatro grupos profissionais: membros de corpos legislativos, quadros dirigentes da função pública, directores e quadros dirigentes de empresas; trabalhadores da agricultura e pesca; trabalhadores da produção industrial e artesãos; operadores de instalações industriais e máquinas fixas, condutores e montadores.

            Se pretendermos caracterizar socioprofissionalmente os grupos de profissões, chegamos às seguintes constatações:

 

            – os membros de corpos legislativos e dirigentes da função pública e das empresas constituem um grupo onde predominam os dirigentes de pequenas empresas que são simultaneamente patrões; no geral – e apesar de alguns núcleos altamente escolarizados e qualificados, ligados às grandes empresas – possuem um baixo nível de instrução (59% não ultrapassam o ciclo preparatório)[656] e uma forte masculinização (as mulheres encontram‑se, por isso, fortemente subrepresentadas nos lugares de chefia), o que confirma, aliás, estudos efectuados a nível nacional[657];

 

            – as profissões intelectuais e científicas, por seu lado, caracterizam‑se por um alto nível de escolarização (cerca de 90% possuem um diploma de ensino superior), por uma forte feminização, em especial no sub‑grupo docente, e ainda por serem, na sua maioria, trabalhadores por conta de outrem;

 

            – as profissões técnicas intermédias, mais instruídas que a média da população, possuem, no entanto, níveis inferiores aos do grupo anterior (43% lograram atingir o ensino secundário e 37% o ensino superior), sendo constituídas, em grande parte, por trabalhadores por conta de outrem e marcadas por uma alta taxa de feminização;

 

            – os empregados administrativos, extremamente ligados aos serviços financeiros e de contabilidade, bem como ao comércio, têm um nível de escolaridade inferior ao do grupo anterior, se bem que 63% possuam o ensino secundário, e revelam uma participação feminina muito desigual (3/4 em alguns sectores, extremamente reduzida noutros);

 

            – o restante pessoal dos serviços revela, pelo contrário, baixos níveis de escolarização (70% possuem, no máximo, o ciclo preparatório) e a inserção profissional feminina é, também, muito desigual;

 

            – os trabalhadores qualificados da agricultura e pesca formam um grupo com fortes lacunas em termos de instrução, factor que se reflecte nos baixos rendimentos e na alta duração média diária da jornada de trabalho, concentrando grande número de trabalhadores por conta própria, em especial na agricultura, sector que conta com uma tradicional forte participação feminina (39%);

 

            – os trabalhadores da indústria e dos transportes[658] revelam‑se um grupo desqualificado, com reduzidos níveis de instrução (cerca de 90% têm no máximo o ciclo preparatório), com horários laborais superiores à média e baixas remunerações, em tudo demonstrando níveis medíocres de investimento tecnológico, próprios de um modelo de utilização intensiva de mão‑de‑obra barata[659]. A participação feminina é extremamente desigual, sendo muito significativa na indústria têxtil e no calçado e escassa na construção civil;

 

            – finalmente, os trabalhadores não qualificados dos diferentes sectores (que constituem, não o esqueçamos, o segundo grupo profissional mais numeroso na região Norte) agrupam, essencialmente, trabalhadores do terciário, embora também exista uma componente significativa de operários da indústria transformadora. Fracamente escolarizados, têm no seu seio um importante peso de jovens e mulheres[660].

 

            Em síntese, a composição socioprofissional da região Norte indica uma forte preponderância do chamado terciário inferior, ligado aos empregos de execução, desqualificado e precário, a par de um significativo peso dos trabalhadores da indústria e dos transportes que constitui, aliás, o grupo em que a região revela uma maior especialização. De notar, igualmente, um grande número de trabalhadores não qualificados e a persistência de trabalhadores por conta própria na agricultura e pesca, em especial nas sub‑regiões do Minho‑Lima e Alto Trás‑os‑Montes[661]. O aumento do nível de actividade feminina é uma realidade quase transversal (cresceu 25% entre 1981 e 1991, o que corresponde, em termos absolutos, a mais 131 mil trabalhadoras e a um salto na taxa bruta de actividade de 30% para 36.8%). Pelo contrário, a taxa de actividade masculina desceu ligeiramente (de 55.7% para 54%). Desta forma, o aumento da população activa no período em causa cifrou‑se em 9.3% (cerca de 135 mil trabalhadores), devido quer ao efeito demográfico, quer à acentuada subida da participação feminina[662].

            Comparando este panorama com a situação nacional, verifica‑se, em ambos os casos, um acentuado processo de terciarização, patente no aumento dos empregados administrativos e dos empregados do comércio e dos serviços pessoais. Estes, a respeito dos níveis de escolaridade, e apesar de uma situação mais favorável nos primeiros, não ultrapassam, na sua maioria, o ensino básico – factor que se revela da maior importância para se compreender o processo de expansão do terciário em Portugal e na região Norte. No entanto, como se constata pelo Quadro XVI, o sector terciário ocupa, ainda, no conjunto da região Norte, uma posição subalterna em relação ao sector secundário, em grande parte devido à importância da indústria têxtil e da construção[663]. Desta forma, os trabalhadores da indústria e dos transportes têm um peso relativo elevado na região (claramente acima dos 40%, enquanto que a média nacional, em 1992, se quedava em 32.4%[664]).

           

QUADRO XVI — DISTRIBUIÇÃO SECTORIAL DO EMPREGO NA REGIÃO NORTE

 

SECTOR PRIMÁRIO 11,1%

 

 

 

 agricultura, produção animal, caça e silvicultura

 restante sector primário

 

10,3%

0,8%

SECTOR SECUNDÁRIO 49,0%

 

 

 

 indústria têxtil

 — construção

 indústrias do couro e o dos produtos do couro

 indústrias metalúrgicas de base e produtos metálicos

 indústrias transformadoras não extractivas

 indústrias da madeira e da cortiça e suas obras

 restante sector secundário

 

17,9%

10,6%

4,6%

3,4%

2,5%

2,2%

7,9%

SECTOR TERCIÁRIO 39,9%

 

 

 

 — comércio a retalho (excepto automóveis e motociclos); reparações;

 bens pessoais e domésticos

 administração pública, defesa e segurança social obrigatória

 — outras actividades de serviços colectivos sociais e pessoais; famílias

 com empregos domésticos; organismos internacionais e outras

 instituições extraterritoriais

 educação

 transportes, armazenagem e comunicações

 saúde e acção social

 alojamento e restauração (restaurantes e similares)

 — comércio, manutenção e reparação de veículos automóveis e

 motociclos; comércio a retalho de combustíveis para veículos

 actividades imobiliárias, alugueres e serviços prestados às empresas

 restante sector terciário

 

 

9,5%

4,7%

 

 

4,6%

4,6%

3,2%

2,8%

2,7%

 

2,4%

2,2%

3,5%

 

Fonte: INE, Censos de 1991

            O aumento da taxa de actividade feminina, por seu lado, é também um fenómeno de âmbito nacional[665], embora de contornos ainda mais expressivos, como de resto mencionámos no capítulo anterior. De qualquer forma, não podemos esquecer que a inserção da mulher no mercado de trabalho se faz, muitas vezes, em segmentos precários, desqualificados e desqualificantes. Na região Norte, e atendendo aos grupos socioeconómicos, a inserção feminina é insignificante no conjunto dos empresários e dos directores/dirigentes. Pelo contrário, os trabalhadores independentes e, em especial, os não qualificados revelam uma predominância feminina. A excepção a esta lógica será, porventura, a elevada feminização existente no grupo dos quadros, fruto, em grande parte, do peso relativo da profissão docente[666] e da expansão dos serviços públicos. Convém não esquecer, além do mais, que nos deparamos, nesta Região, com uma persistência do campesinato parcial, articulado com a industrialização rural difusa, fenómeno que se encontra indissociavelmente ligado a uma sobrecarga de tarefas que prejudica a mulher, já que esta, frequentemente, desempenha funções produtivas na economia agrícola de cariz doméstico.

            Quanto aos níveis de desemprego, é de notar que, apesar de um decréscimo generalizado patente em todas as regiões, o Norte, com 6.6% de taxa de desemprego no segundo trimestre de 1997, apresenta um valor praticamente idêntico ao de há um ano atrás (2º trimestre de 1996 – 6.7%), com a agravante de, agora, se situar uma décima percentual acima da média nacional que se cifra em 6.5%.

            Finalmente, e no que respeita às variáveis demográficas (que nunca são estritamente demográficas, incluindo‑se no âmbito mais vasto dos fenómenos sociais totais), apesar da tendência, anteriormente referida, de uma relativa uniformização dos comportamentos, com o esbatimento dos sistemas demográficos regionais, notam‑se, ainda assim, algumas diferenças do panorama regional face à situação nacional (Quadro XVII). De facto, a natalidade continua a ser superior, ao mesmo tempo que a nupcialidade. Concomitantemente, o índice de envelhecimento é significativamente inferior.

 

            Quadro XVII — Indicadores Demográficos da Região Norte

Designação do indicador

Valor

Unidade

Período

Taxa de Natalidade

12.2

Permilagem

1995

Taxa de Mortalidade

9.1

Permilagem

1995

Excedente de vidas

3.1

Permilagem

1995

Taxa de Nupcialidade

7.5

Permilagem

1995

Taxa de divórcio

0.9

Permilagem

1995

Índice de Envelhecimento

65.7

Percentagem

1995

               Fonte: INE, Infoline. Retratos Territoriais. Indicadores Demográficos

 

             No entanto, e apesar de a Região Norte ser responsável por mais de 40% dos casamentos celebrados no Continente nacional, a taxa de nupcialidade sofre uma quebra acentuada (14%) entre 1990/91 e 1994/95. Paralelamente, aumenta a idade média em que as mulheres têm o primeiro filho (27.16 anos em 1990‑91)[667]. Como salientam demógrafos e sociólogos, estas alterações demográficas estão longe de ser independentes de profundas transformações nas sociedades globais, sendo estímulo e efeito de novos comportamentos conjugais: “nível de instrução, em particular das mulheres, independência económica, participação da mulher no mercado de trabalho, prática religiosa, experiência familiar, etc.[668].

            No que se refere ao envelhecimento, dados de 1996, já apresentados no capítulo anterior[669], mostram que, com excepção das Regiões Autónomas, o Norte é a Região menos envelhecida do país, já que sofre ainda os efeitos de uma queda mais tardia da natalidade, tradicionalmente elevada. Aquando do Recenseamento de 1991, “a população idosa da Região Norte situava‑se (...) em 11.4% (...) significa isto que à ideia de relativa juvenilização da Região Norte, tão frequentemente invocada, deve associar‑se também a de um envelhecimento menos acentuado do que o verificado à escala nacional e muito inferior ao de outras unidades territoriais homólogas do País”[670]. No entanto, observando a série cronológica 1990‑96, verifica‑se um gradual duplo envelhecimento, enquadrado, aliás, na evolução nacional: em 1990 o índice de dependência de idosos era de 17.2%; seis anos mais tarde aumentara 1%. Simultaneamente, o índice de dependência de jovens descia significativamente de 33.2% em 1990 para 27.7% em 1996[671].

 

            2. A Área Metropolitana do Porto no Conjunto do Norte.

            A área metropolitana do Porto (AMP) representa um papel predominante no seio da região Norte. Desde logo, pelo seu volume demográfico (1.167.800 indivíduos), correspondente a 1/3 da população da referida região[672] e a mais de 1/3 dos empregados.

            No entanto, é nítida uma tendência recente de desaceleração do crescimento demográfico: enquanto que na década de 70 se verificou um aumento de 20%, os anos 80 registam, apenas, um acréscimo de 5%. Esta tendência enquadra‑se num processo mais amplo de atenuação do processo de bipolarização que engloba as duas áreas metropolitanas.

            O crescimento natural, por seu lado, revela um movimento de abrandamento, em tudo semelhante ao da Região Norte e mesmo do conjunto nacional, cifrando‑se nos 6%. Este abrandamento corresponde a um “abatimento progressivo da natalidade”, a par da “estabilização das taxas de mortalidade”[673]. No entanto, o saldo migratório é negativo (‑2%), “o que significa que, globalmente, o volume daqueles que deixaram este território foi superior ao dos que para aqui foram atraídos”[674]. Esta situação encontra‑se certamente relacionada com os tipos de uso do solo e com o mercado de habitação. Por outro lado, e tal como na Região Norte, é nítido o processo de duplo envelhecimento: no Grande Porto, no período 1990‑96, o índice de dependência dos idosos aumentou de 15.2% para 16.9%, o que, continuando a ser um valor inferior ao da Região Norte no seu conjunto, revela um ritmo de envelhecimento no topo superior. No que se refere ao índice de dependência de jovens, uma vez mais a evolução é semelhante, no sentido de uma quebra: de 28.8% em 1990 para 25.1% em 1996[675].

            Se atentarmos, agora, numa série de indicadores de qualidade de vida ligados à habitação, facilmente constatamos (quadro XVIII) que as condições de alojamento da AMP são significativamente superiores às verificadas na região Norte, embora, comparando com o continente, os números sejam muito semelhantes.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Quadro XVIII : Aspectos Qualitativos dos Alojamentos (1991)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

alojamentos de residência habitual

 

 

 

 

ligados a redes públicas de

Concelhos

Total

Equipados

Água

Esgotos

Espinho

10 124

8 549

84,4

6 343

62,7

5 755

56,8

Gondomar

40 863

33 104

81,0

34 089

83,4

7 849

19,2

Maia

26 320

20 361

77,4

13 099

49,8

8 425

32,0

Matosinhos

45 179

36 380

80,5

28 286

62,6

18 947

41,9

Porto

95 453

85 304

89,4

89 430

93,7

77 648

81,3

Póvoa de Varzim

14 011

11 747

83,8

9 261

66,1

6 480

46,2

Valongo

20 176

15 722

77,9

13 180

65,3

6 838

33,9

Vila do Conde

16 251

12 311

75,8

4 965

30,6

4 476

27,5

Vila Nova de Gaia

72 486

55 634

76,8

37 155

51,3

17 074

23,6

A.M.P.

340 863

279 112

81,9

235 808

69,2

153 492

45,0

A.M.L.

847 004

781 542

92,3

782 864

92,4

729 584

86,1

Norte

984 154

715 891

72,7

479 912

48,8

266 570

27,1

Continente

2 968 239

2 322 876

78,3

2 014 030

67,9

1 455 193

49,0

Fonte: INE, Census 91

alojamentos equipados = alojamentos com electricidade, retrete, água e banho

 

            Contudo, face à área metropolitana de Lisboa (AML) a situação afigura‑se bastante mais desfavorável. Os alojamentos equipados (isto é, possuindo electricidade, retrete, água e banho) representam 81.9%, para um valor de 72.7% na Região Norte, de 78.3% no continente e 92.3% na AML[676]. No que se refere a alojamentos ligados a redes públicas de água, os números mostram, de novo, o lugar cimeiro da AML (92.3%), seguida, de longe, pela AMP (69.2%) e, em valores muito próximos desta, pela média do continente (67.9%). Na posição menos privilegiada, o Norte tem menos de metade dos seus alojamentos ligados a redes públicas de água. Finalmente, no que se refere aos esgotos a situação mantém‑se, embora com uma significativa alteração: os níveis de cobertura da AMP (45%) são mesmo inferiores à média do continente (49%).

            Outras dimensões contribuem, decisivamente, para o retrato de cariz estatístico que pretendemos fazer sobre a AMP. Desde logo, as que se referem à caracterização da população activa.

            Um dado a guardar prende‑se com a relevância da AMP no conjunto da região Norte em termos da população empregada, já que representa mais de 1/3 do total de empregados desta região[677].

            Por outro lado, é patente o seu grau de autosuficiência no que se refere à relação entre a população empregada e o local de trabalho. Assim, constata‑se que cerca de 96% dos movimentos pendulares se limitam ao espaço metropolitano, o que, sem dúvida, contribui para conferir uma identidade real a este espaço administrativo, caracterizado por uma complexa rede de interdependências. Outro aspecto significativo é o elevado nível de atracção que a AMP, independentemente dos seus processos de distribuição e reorganização internas, exerce, sobretudo face à região Norte (4.6 milhares de indivíduos num total de 5.3 milhares respeitante ao país e estrangeiro).

            No que respeita à distribuição dos grupos profissionais, constata‑se que predominam, em termos relativos, os empregados administrativos (em resultado do processo de terciarização em curso), embora na maior parte dos concelhos tenham ainda preponderância os trabalhadores da indústria e dos transportes, escasseando os quadros dirigentes e as profissões intelectuais e científicas. Além do mais, mantém‑se muito significativo o peso absoluto e relativo do grupo dos trabalhadores não qualificados, o que prolonga, no geral, o panorama regional mais amplo.

            Este quadro indica ainda, segundo Emília Saleiro e Sónia Torres, um baixo nível de instrução e de qualificação, associado ao “grau de exigência requerido na execução de tarefas neste contexto produtivo”[678], em grande parte dominado por um alto nível de especialização em indústrias tradicionais de base local.

            No que se refere ao peso relativo da população a trabalhar por conta de outrem, é de notar que na AMP tal conjunto representa 83% da população activa, enquanto que na região Norte a percentagem desce para 77%, o que revela, sem dúvida, que existe na AMP um menor peso da população a trabalhar por conta própria, em geral intimamente associada aos sectores da agricultura e do comércio tradicional.

            Por outro lado, não podemos deixar de referir um aspecto extremamente relevante: a AMP concentra 46% dos desempregados da região Norte, sendo os jovens e as mulheres os mais prejudicados. Esta situação reflecte‑se, desde logo, numa taxa de desemprego que é a mais elevada da região Norte[679] e pelo facto de “concentrar proporcionalmente mais desempregados do que empregados”[680]. Aliás, “mais de 2/3 do acréscimo que também ocorreu no desemprego do Norte era proveniente daquela sub‑região”[681]. Preocupante e grave, ainda, é a circunstância de um valor superior a 2/3 dos desempregados serem provenientes dos grupos dos trabalhadores administrativos e operários das indústrias têxtil, metalúrgica e da construção, o que revela grandes dificuldades de adaptação e reconversão do terciário inferior e das indústrias tradicionais. Aliás, 78% da população desempregada tem o ensino básico como patamar de escolarização mais elevado.

            No caso da AMP, estes dados poderão constituir indicadores de um mais rápido processo de modernização económica, no sentido “corrente” do termo: aceleração do crescimento do terciário médio e superior, declínio dos sectores que revelam pouca competitividade num contexto de abertura da economia regional, aumento da qualificação da população assalariada. Mas também o lado negro dessa modernização: aumento do desemprego, da intermitência, da desregulamentação, flexibilização e precarização do emprego.

            Torna‑se imperioso, por isso, conhecer os níveis de escolarização da população da AMP[682], já que continua a verificar‑se que a obtenção dos graus de ensino mais elevados é o melhor antídoto contra a vulnerabilização social, a exclusão e o desemprego. Ao fazê‑lo, destaca‑se, desde logo, uma percentagem de população analfabeta claramente inferior à do conjunto da região Norte: 5.9% contra 9.9% em 1991. No que diz respeito aos níveis de escolarização da população residente, salienta‑se um aumento de 7.7% no número de indivíduos que possuem o ensino básico, com um assinalável salto na população feminina (+11.7%) e uma progressão modesta no sexo masculino (+3.9%)[683]. No entanto, o aumento mais expressivo situa‑se ao nível do ensino secundário: +45% no espaço de uma década, com as mulheres a assumirem, de novo, uma variação positiva espectacular (+66.9% contra “apenas” +28% no caso dos homens). Ainda assim, importa moderar a apreciação altamente positiva destes valores, já que os níveis de partida são extremamente medíocres. Finalmente, a “taxa específica da escolarização superior/pós‑graduação, confirma uma tendência transversal aos diversos níveis de escolarização: “a Área Metropolitana detém uma situação relativamente privilegiada do ponto de vista educativo em confronto com o contexto regional em que se insere”[684]: 4.2% para a região Norte e 7.2% para a AMP. Num sentido lato, ou seja, agregando a população que possui o ensino secundário e superior, a diferença é ainda mais visível: 11% no caso da região Norte, 17% na AMP (ver gráficos nº 1 e 2).

            Dados mais recentes, de 1993/94, indicam que a população a frequentar o ensino superior na região Norte representa 7.7% dos alunos matriculados nesse ano lectivo, percentagem que sobe para 11.6% na AMP[685].

Fonte: António Joaquim Esteves, op. cit., p. 41                       

           

 

Fonte: António Joaquim Esteves op. cit., p. 41

 

            Em jeito de síntese, podemos dizer que, apesar de prolongar, no essencial, os traços distintivos da região Norte (grande peso do terciário inferior, das indústrias tradicionais, da pouca qualificação da população activa, etc.), a AMP revela um maior protagonismo sócio‑económico, representando, apesar das suas limitações endógenas, um dos pólos mais significativos de desenvolvimento no conjunto nacional.

            Esta afirmação é reforçada por Paulo Gomes, Sérgio Bacelar e Emília Saleiro[686], ao considerarem que, em termos comparativos, a AMP é “um espaço relativamente homogéneo cuja competitividade face a outros territórios é manifesta” com “um posicionamento único no contexto regional e supraregional que, apesar da perda de dinamismo demográfico, não encontra ainda verdadeiramente concorrentes no interior da região Norte”[687].

 

            3. O Porto no conjunto da área metropolitana.

            Uma das melhores provas da indesmentível centralidade exercida pela cidade do Porto encontra‑se, uma vez mais, na análise dos movimentos pendulares. Para além de constituir o maior pólo de emprego da região Norte, este concelho fixa no seu interior a maior parte da população activa que nele reside, ao mesmo tempo que atrai cerca de 114 mil activos. Por outro lado, é ainda relevante o facto de cerca de 2/3 da mão‑de‑obra importada pelo Porto exercerem a sua actividade no sector terciário, que representa perto de 3/4 da população activa que reside e trabalha no Porto.

            No entanto, do ponto de vista demográfico, a cidade do Porto não demonstra o mesmo dinamismo. Com efeito, entre 1981 e 1991, o concelho perdeu cerca de 7.6% da sua população, acelerando‑se o processo de suburbanização (quadro XIX), com particular incidência em Valongo, Maia, Matosinhos e Vila Nova de Gaia. Assim, a “concentração urbana ultrapassou os limites administrativos da cidade do Porto, conquistando o espaço de adjacência e estruturando o que alguns autores designam por «Cidade‑Aglomeração»”[688].

 

 

 

 

 

 

Quadro XIX : Evolução da População da A.M.P. no Intervalo 1991‑994

 

 

 

 

Concelhos

População

Variação

Variação

 

1994*

média anual

Média anual

 

 

1991‑1994

1981‑1991

Espinho

35 620

179

255

Gondomar

148 550

1 177

1 243

Maia

97 480

1 165

1 147

Matosinhos

158 110

1 730

1 518

Porto

288 380

‑3 793

 ‑2 490

Póvoa de Varzim

56 410

437

54

Valongo

77 500

896

994

Vila do Conde

66 010

316

43

Vila Nova de Gaia

257 200

2 324

2 223

A.M.P.

1 184 260

4 431

4 988

* valores estimados

Fonte: Isabel Martins, art. cit., p. 7

.

            Na mesma linha, nota‑se uma acentuada desaceleração na componente natural do crescimento demográfico, com indícios de uma não renovação das gerações, patente no facto de os óbitos superarem os nascimentos, devido, em grande parte, ao abrandamento da taxa de natalidade: em 1995, a taxa de mortalidade era de 11.6 por mil, enquanto que a taxa de natalidade se quedava pelos 10.2 por mil[689] Assiste‑se, assim, a um fenómeno de duplo envelhecimento — na base, com diminuição do peso relativo dos mais jovens e no topo, com um aumento da proporção de idosos. O Porto detinha, em 1996, o mais baixo índice de dependência de jovens dos concelhos AMP (Porto: 22.2%; média da AMP: 25.1%) e o mais alto índice de dependência de idosos (Porto: 24.2%; média da AMP: 16.9%). O índice de envelhecimento, então, é significativamente mais elevado (Porto: 108.9%, média da AMP: 67.3%), mesmo em relação ao valor médio nacional que ascendia, recorde‑se, a 86.1%[690]. Outro dado relevante indica que são, precisamente, os concelhos contíguos ao Porto aqueles onde a proporção de idosos é menor, o que dá bem conta de um processo de suburbanização baseado no êxodo de população mais jovem[691]. A nível intraconcelhio, constata‑se que é nas freguesias do núcleo histórico que se verificam os índices de envelhecimento mais acentuados. A. J. Esteves E J. Madureira Pinto elaboram a esse respeito duas considerações: por um lado, o facto de que “o já referido processo de suburbanização foi alimentado, em parte, pelo êxodo de populações tendencialmente jovens destas freguesias”; por outro, os inevitáveis fenómenos de “degradação física, desvitalização e estigmatização sociais” associados a áreas profundamente envelhecidas[692]. O que não deixa de ter pesadas consequências na desertificação do centro da cidade, em especial à noite, interpelando as políticas de animação cultural para uma atenção redobrada a esta situação, potenciadora de um abandono do núcleo antigo da cidade.

            Em termos de escolarização, o Porto é o concelho da AMP com um panorama mais favorável. Desde logo, ao possuir a menor taxa de analfabetismo, mas prolongando‑se, igualmente, pelos diversos níveis de ensino. Se atentarmos na taxa de variação (entre 1981 e 1991) da população residente com o ensino básico completo, constatamos que assume valores negativos (‑11.3%). Tal situação pode todavia ser explicada, de acordo com A. Joaquim Esteves[693], pelo facto de a população do concelho obter níveis de escolarização superiores. Da mesma forma, os tímidos acréscimos na população residente que possui o ensino secundário completo (+1.4%), em especial quando comparados quer com a média da AMP (+45%), quer, sobretudo, com a variação de alguns concelhos (superior a 100% em Gondomar, Maia e Valongo) significam, antes de mais, um peso cada vez maior do ensino superior. Nos restantes concelhos, as expressivas variações positivas da população com o ensino básico e com o ensino superior representam, na realidade, uma etapa que o Porto já ultrapassou. Aliás, a população deste concelho que possui o ensino superior significa 43% do total de indíviduos da AMP a frequentar o ensino superior. De notar, ainda, a predominância das mulheres (53.7% contra 46.3% dos homens). Em termos da taxa de escolarização, a população com instrução superior atinge 13.2% no Porto, enquanto que na AMP se fica pelos 7.4% e na região Norte apenas pelos 4.2%.

            Estes dados relativos à escolarização são de fundamental importância para se concluir do grau de qualificação da população activa. De facto, o Porto possui apenas 1.5% de não escolarizados (a percentagem mais baixa da AMP, juntamente com Valongo). Pelo contrário, ascende a 19.3% e a 17.9% o conjunto de indivíduos que possuem, respectivamente, o ensino secundário e a instrução superior (contra apenas 15.2% e 9.8% na AMP). Por grupos etários, verifica‑se que os jovens adultos (20‑24, 25‑34 e 35‑44 anos) constituem o segmento mais escolarizado, não só porque apresentam um número meramente residual de não escolarizados (0.4%, 0.5% e 0.6% respectivamente), como atingem, em número acima da média do concelho, a instrução secundária e superior, fruto dos progressos relativamente recentes na expansão dos níveis mais elevados de escolarização[694].

            Por outro lado, o Porto beneficia, em termos da composição socioprofissional da sua população, da tendência de uma maior concentração de grupos como os directores/dirigentes e os quadros em lugares populosos[695]. Desta forma, encontram‑se criadas as condições para uma grande visibilidade simbólica destes conjuntos juvenilizados e económica e culturalmente privilegiados que alimentam e se alimentam de consumos mais ou menos demarcados e distintivos. É deles que amiúde se fala, quando se utilizam expressões como as “novas classes médias urbanas”, as “elites urbanas”, “a concentração de «massa crítica» nas grandes aglomerações” ou os processos de “gentrificação”.

            De facto, é notório na AMP e em particular no concelho do Porto uma reestruturação vasta do espaço urbano, ligado, em grande parte, ao afastamento das famílias menos favorecidas em relação às áreas residenciais centrais (apesar de continuarem, na sua maioria, a trabalhar no concelho do Porto), mas também ao declínio das facilidades concedidas à instalação de indústrias, numa reorientação que favorece a expansão dos serviços. Tornam‑se patentes, por isso, profundas modificações na estrutura social, com as camadas mais favorecidas a experimentarem novos modos de vida, a que não são alheias as transformações demográficas e a alterações das estruturas familiares e das atitudes face à família, encontrando tradução adequada em novos estilos de vida, em que o consumo aparece com uma certa primazia (há autores que falam mesmo da “soberania do consumo”[696]), demarcando espaços sociais e territoriais. Aliás, os dados disponíveis sobre os comportamentos familiares indicam que, na AMP, o Porto é um dos concelhos onde menos se casa (o que se enquadra num movimento mais geral de quebra da taxa de nupcialidade); é igualmente o concelho onde a taxa de divórcio é mais elevada[697] (o que se traduz na maior percentagem de recasamentos da AMP), sendo responsável por mais de 22% dos divórcios da Região Norte; possui um baixo índice sintético de fecundidade (apenas em Gondomar e na Maia é menor) e a mais tardia idade média em que se tem o primeiro filho (a taxa de fecundidade aos 30 anos é superior à dos 20), indiciando um crescente intervalo entre a idade do casamento e a idade da fecundidade. O Porto é ainda o concelho onde se regista um maior peso relativo de famílias monoparentais (11.66%)[698]. Todos estes indicadores traduzem a disseminação e a diversidade de novos modelos familiares, baseados num papel mais activo da mulher (por uma constelação de motivos já mencionados em capítulos anteriores e que passam por um acentuado aumento do seu nível de instrução e por uma fortíssima participação no mercado de trabalho), numa maior fragilidade e flexibilidade conjugal, num outro valor dado à criança, num alto número de nascimentos fora do casamento (o mais elevado índice da AMP) enfim, numa intensa “«mobilidade matrimonial — união livre, casamento, divórcio, recasamento, separados por períodos de celibato mais ou menos longos”[699]. Interessará, agora, verificar em que medida estes fenómenos de recomposição social e familiar se associam à matriz de consumos e práticas culturais, designadamente no que se refere a uma maior disponibilidade face à “cultura de saídas” (favorecida, eventualmente, pelo retardar do “envelhecimento cultural” muitas vezes iniciado com o casamento, por processos de retorno à “condição juvenil” proporcionado pela dissolução da conjugalidade, pelo menor número de filhos, etc.).

            Não é de admirar, por tudo o que anteriormente foi referido, que o Porto apareça posicionado em primeiro lugar, no conjunto do Grande Porto, face à dimensão “excelência” de uma tipologia socioeconómica[700] elaborada para caracterizar os concelhos da região Norte. Esta dimensão pretende destacar “os concelhos onde predominam o sector terciário, os níveis de qualificação secundário e médio/superior, as profissões tipo 1 e 2 (membros de corpos legislativos, quadros dirigentes da função pública, directores e quadros dirigentes de empresas e profissões intelectuais e científicas) e os Quadros”[701]. Da mesma forma, o concelho do Porto surge em segundo lugar a nível nacional no que se refere ao poder de compra per capita, com 257 pontos (para uma média nacional de 100), apenas abaixo da cidade de Lisboa[702].

            Não podemos, no entanto, esquecer o reverso da situação. Se é verdade que o concelho do Porto concentra cerca de 41% do emprego da AMP, não é menos certo que nele residem um número muito significativo de desempregados. A taxa de desemprego, segundo dados de 1991, é a segunda mais elevada da AMP (6.0%, seguindo‑se a Matosinhos com 6.2%), sendo mais significativa nos indivíduos que apenas possuem o ensino básico (6.7%)[703].

            Por outro lado, contrastando com a visibilidade, muitas vezes opulenta e ostentatória dos grupos sociais mais favorecidos, existem, nas grandes cidades, numerosas situações de vulnerabilidade social e de exclusão. Com efeito, o lado sombrio da atracção que as duas maiores urbes do país exercem, enquanto ponto de chegada de grande parte dos movimentos migratórios, reside nas franjas muito significativas e igualmente visíveis de pobreza urbana, intimamente relacionadas a situações de analfabetismo funcional, de envelhecimento cultural, de desvalorização dos diplomas, de inadaptação face às novas tecnologias e ao endurecimento das exigências de qualificação profissional[704]. Assim, a grande cidade é palco de profundas clivagens sociais, associadas ao “encadeamento de mecanismos de produção de segmentos sociais sujeitos a novas modalidades de vulnerabilização à pobreza, a par da tendencial melhoria dos níveis de vida e das condições de reprodução social dos segmentos incluídos no sistema de garantias estatal e nas zonas de regulação institucional da gestão de mão‑de‑obra”[705]. Cria‑se, por isso, uma sociedade dual, em que os grupos socialmente vulneráveis engrossam uma underclass caracterizada pela destituição e precaridade, sem a ajuda dos tradicionais instrumentos e instituições de integração social, entretanto dissolvidos[706].

            Finalmente, um breve olhar sobre os equipamentos e serviços de cultura e lazer leva‑nos a realçar a indiscutível centralidade do Porto, tão esmagadora que não será exagerado considerá‑la uma autêntica metrópole cultural regional.

            De facto, e face à AMP, o Porto concentra 60.7% das bibliotecas existentes; 87.3% das sessões de espectáculos públicos e 89.6% dos espectadores; 88.5% das sessões e 88.1% dos espectadores de cinema; 63.6% das publicações periódicas e 96.5% da tiragem anual. Quanto à região Norte, o Porto representa 62.1% das sessões de espectáculos públicos e 57.9% dos espectadores; 62.1% das sessões de cinema e 53.9% dos espectadores; a 69.9% da tiragem anual das publicações periódicas[707].

            Razões acrescidas, assim o pensamos, para localizar no espaço social portuense (encarado de forma lata e não nas estritas fronteiras administrativas do concelho) este estudo sobre práticas culturais.

 

 

            4. Novo ponto de partida

 

            A caracterização precedente, bem como todo o capítulo anterior, constituem passos indispensáveis para a compreensão das condições objectivas de existência da população portuguesa, com um especial enfoque no Porto e na sua área metropolitana.

            Desta forma, julgamos ter obtido um primeiro esboço da sociedade portuense (e, indissociavelmente, da sociedade portuguesa – é impossível retratar o Porto sem retratar o país e viceversa), da sua exemplaridade e singularidade, enquanto quadro de vida específico onde se desenvolve um leque finito de práticas sociais.

            Um retrato fundamental, embora necessariamente parcial. Fundamental, porque as práticas sociais são, por definição, localizadas e territorialmente enquadradas. Parcial, já que o enfoque desenvolvido privilegia os grandes enquadramentos, as quantificações, as análises e comparações genéricas. Retrato, em suma, que exige novos contornos, desta feita de maior minúcia e proximidade face ao “vivido”. Sinal, enfim, de que o insubstituível processo do trabalho de campo se avizinha.

CAPÍTULO VIII

DO PORTO ROMÂNTICO À CIDADE DOS CENTROS COMERCIAIS

BREVE VIAGEM PELO TEMPO

 

            A destruição do passado – ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam a nossa experiência pessoal à das gerações passadas – é um dos fenómenos mais característicos e lúgubres do final do século XX

                        Eric Hobsbawn, A Era dos Extremos

 

            ...esse tempo sobrecarregado de acontecimentos que enchem o presente e o passado próximo...

                        Marc Augé, Não‑Lugares – Introdução a uma Antropologia da Sobremodernidade

 

            É impossível desprezar o tempo quando se pretende fazer ciência social. Enquadrar os objectos no seu contexto histórico, restituí‑los à duração, revela‑se um exercício de extrema utilidade analítica. Permite a comparação e a recusa dos absolutos essencialistas.

            Na análise da vida cultural, de forma ainda mais visível, é impossível destruir o passado. Ele surge, repentinamente, quando menos se espera, tornando‑se presente, porque reapropriado no tempo actual. A contemporaneidade é uma visão sincrética de assincronismos; uma coexistência de ritmos sociais justapostos mas com temporalidades distintas. Além do mais, como refere Augé, a história acelera‑se, persegue‑nos, torna‑se iminente, carregada de acontecimentos não previstos que nos exigem, cada vez mais, uma busca de sentido e de inteligibilidade, de forma a não ficarmos submersos na “superabundância de acontecimentos”, no “excesso de tempo, de espaço e de imagens que caracterizam as nossas sociedades[708]. Lembremos ainda Wright Mills, quando alude à fonte primeira da imaginação sociológica: o cruzamento das histórias com a História, das biografias com os seus contextos, exercício cada vez mais plausível num cenário demográfico marcado pelo aumento da longevidade e da coexistência de três ou quatro gerações, com todas as suas implicações ao nível do aumento da “memória colectiva, genealógica e histórica[709].

            Inútil estudar as práticas culturais no Porto contemporâneo sem esse regresso ao passado mais recente. Fazê‑lo, seria como que reincidir numa espécie de miopia analítica, incapaz de descortinar para além do imediato, do que ainda fervilha. Amnésia que ignora a constituição das sociedades como um processo onde indissociavelmente se articulam, como as duas faces de uma moeda, a diacronia e a sincronia, o vertical e o transversal.

            O Porto finissecular de Oitocentos faz tão parte de nós como o Porto dos anos noventa, às portas do terceiro milénio.         

 

I – O Porto de Oitocentos

            1. A burguesia triunfante.

 

            Falar da vida cultural do Porto do século XIX implica, necessariamente, abordar os modos de vida da burguesia triunfante e da superestrutura de valores e estilos de vida que a ela se associam, em particular depois da vitória definitiva da causa liberal.

            Por burguês entende E. J. Hobsbawn, “um «capitalista» (ou seja, um possuidor de capital, ou o recebedor de um rendimento derivado do capital, ou um empresário votado à obtenção de lucros, ou as três coisas ao mesmo tempo)[710]. Apoiados na força conquistadora do lucro, os burgueses afirmaram‑se, um pouco por toda a Europa (embora a ritmos diferentes), como o grupo hegemónico do século, abanando, com poderosa determinação, uma sociedade baseada nos privilégios do nascimento. Enquanto classe, a burguesia liga‑se, de forma indissociável, à meritocracia e à crença de que qualquer indivíduo, independentemente da sua origem social, pode ascender ao estatuto que a sua capacidade de iniciativa lhe permitir.

            Por esta mesma razão, no início do século a burguesia era ainda uma classe insegura, profundamente necessitada de impor como universal a sua própria ideologia (ou, como diria Bourdieu, de impor arbitrariamente um arbitrário cultural), carecendo, por isso, de todos os meios de legitimação e de reconhecimento. O mundo da cultura constituía, então, para utilizar uma expressão de Hobsbawn, a “quinta‑essência” do universo emergente. E quem diz o mundo da cultura, refere‑se, obrigatoriamente, às suas múltiplas dimensões, desde o vestuário, à decoração interior e exterior das casas, às formas de apresentação no espaço público, até às instituições especialmente criadas para a mise‑en‑scène de uma nova constelação de valores e comportamentos. Como refere ainda Hobsbawn, o “espírito da época” colocava “muita gente na situação historicamente nova de ter de desempenhar papéis sociais novos (e superiores)[711]. Digamos que, como acontece nos ritmos de aceleração mais ou menos brusca da história, as novas condições sociais objectivas necessitavam de um “espelho” correspondente no mundo “imaterial” e simbólico, mais resistente à mudança e caracterizado pelo peso da tradição.

            Maria de Lourdes Lima dos Santos, ao estudar os manuais de civilidade correntes no século XIX, chega precisamente à conclusão de que tais cartilhas consubstanciavam o essencial da ordem social emergente: “O manual de civilidade terá o seu momento privilegiado como contributo para a legitimação dos que se orientam para um novo destino de classe[712], fornecendo inúmeros conselhos de savoir faire e savoir vivre, de forma a colmatar as lacunas de aprendizagem dos que, não tendo nascido em berço de ouro, ascenderam a posições cimeiras na sociedade, necessitando, por isso, de uma reconversão mais ou menos brutal do seu sistema de disposições ou habitus. Tal como refere a mesma autora, trata‑se, afinal, de consagrar a nobreza adquirida como mais meritória do que a nobreza herdada. A “educação pelo mundo”, substitui, paulatinamente, a educação pelo nascimento.

            De qualquer forma, a nova classe dominante não necessitava, apenas, de legitimar a sua ascensão social. Simultaneamente, impunha‑se‑lhe restringir a mobilidade às classes populares, cada vez mais representadas e sentidas como “perigosas”. Daí a ênfase nos procedimentos distintivos, garante e comprovativo da sua “superioridade”: “neste instável equilíbrio entre democratização e elitismo se estribava a burguesia ascendente para legitimar a sua escalada ao Poder – pela aquisição de várias formas de saber‑fazer, de competência, ela valorizava‑se face à antiga classe dominante ao mesmo tempo que se demarcava das classes populares[713].

            Assim, se o século XIX é inseparável do triunfo da burguesia “conquistadora”, ele é, também, a outra face da moeda: a derrota das tentativas revolucionárias de impor, nos países mais desenvolvidos, uma ordem social tendencialmente igualitária. Neste sentido, o século XIX representa o drama, como assinala Hobsbawn, de muitos milhões de pessoas à escala planetária: a vitória da burguesia trazia benefícios apenas para uma ínfima minoria e as cedências que a custo foi fazendo, como a instauração do sufrágio directo e universal, apesar de incómodas, eram “politicamente inócuas”.

            O Porto de Oitocentos não é excepção. Como adiante veremos, a descontinuidade do tecido social urbano era uma realidade incontornável, bem como a segregação sócio‑espacial que lhe está subjacente e que se traduz, de forma extremamente visível, nas manifestações de sociabilidade e na organização do espaço público. O conceito burguês de cidadania fica desde logo patente, após a vitória liberal, no proliferar de medidas de proibição da mendicidade e de encarceramento dos pedintes, “vadios” e “vagabundos” em instituições totais, de tipo asilar.

            Como caracterizar, no Porto do século XIX, esta nova classe dominante, considerada ainda, poucas décadas atrás, como o 3º Estado?

            A literatura naturalista fornece‑nos alguns excelentes retratos, assumindo‑se os seus autores como atentos observadores do quotidiano burguês, ora identificados com os seus quadros de vida, ora distanciados em críticos e desencantados comentários[714].

            A burguesia portuense surge‑nos, antes de mais, caracterizada pela sua diversidade interna. Afinal, os novos critérios de hierarquização social originavam ascensões sociais demasiado rápidas para a “boa sociedade” que se mantém fiel a um certo conceito de “bom gosto” e de “cultura”.

            Como Maria Antonieta Cruz teve o cuidado de verificar, os dicionários da época não cristalizavam, ainda, o domínio da nova classe emergente. O burguês surge como sinónimo de “indivíduo pouco delicado, de modos e gestos grosseiros” podendo significar, enquanto adjectivo, “vulgar; trivial; ordinário; chato; grosseiro; sem arte; sem gosto; sem distinção; acanhado[715].

            Aliás, a falta de instrução da burguesia portuense, sobretudo por comparação com outras realidades, marcará irreversivelmente o discurso de muitos personagens dos romances naturalistas, como o Valdez de O Bastardo, de Júlio Lourenço Pinto: “...não há quem saiba conversar, quem se interesse por duas ideias de arte ou literatura. Há apenas a vida de escritório, do Banco, da alfândega, a vida do boi sorumbático (...) depois, feito o negócio, tudo se amorrinha no pesadume crasso e bilioso da digestão flatulenta[716].

            Segundo os Censos de 1874, a percentagem de analfabetos rondava os 84.4%, descendo nas grandes cidades para 64%. O ensino primário obrigatório apenas surge, no Porto, em 1844, data em que, nesta cidade, somente se conta um liceu (existindo outros quatro em Lisboa, Coimbra, Braga e Évora), exclusivamente direccionado para a população masculina[717]. Tardiamente os burgueses portuenses se aperceberão da importância do diploma como garante social de classe, exceptuando as profissões liberais (representadas em reduzido número nos recenseamentos eleitorais). Nos inventários de bens relatados pelos falecidos de elevados rendimentos, os livros raramente aparecem, tirando, uma vez mais, alguns médicos, juizes e proprietários. Na fracção de classe dos negociantes, onde se concentrava uma fatia significativa da burguesia portuense, apenas 9% faziam constar a posse de livros[718].

            Aliás, a especificidade da burguesia no nosso país liga‑se ao seu tardio e incipiente processo de industrialização, que levava Oliveira Martins a definir o Portugal de Oitocentos como “uma Granja e um Banco”. Essencialmente ligada ao comércio, à especulação financeira e à posse de terras (sinal duradouro de prestígio e riqueza), demorará a constituir‑se uma elite burguesa de pendor industrial, preocupada com o progresso da tecnologia, da ciência e das formas de gestão. Gaspar Martins Pereira refere, a esse respeito, a persistência da articulação do factory system com o domestic system, permitindo uma durável imbricação entre os factores de mudança e os elementos tradicionais: “A mesma geração que vê circular os primeiros carros eléctricos e que se habitua a saber as horas pelo silvo dos comboios continua a acordar ao toque das avé‑marias, indiferente à chiadeira dos carros de bois que quotidianamente cruzam as ruas da cidade (...) persistem extensas zonas rurais, «trechos de aldeia autêntica»[719].

            Mais importante do que o progresso económico e os ganhos em produtividade, parecia ser a obsessão mimética face à nobreza, através da permanente procura de nobilitação, em especial os negociantes e banqueiros (entre os quais muitos “brasileiros”) recém‑chegados à esfera do poder.

            Neste contexto, o que se pode esperar da vida cultural no Porto de Oitocentos? A resposta faz‑nos distinguir duas fases. Uma primeira, em que dominava uma ética do trabalho, assente em padrões rígidos de conduta associados à procura da rentabilidade económica. Uma segunda fase, de clara visibilidade do capital simbólico e um paralelo esmorecimento da ética laboral[720], assente em consumos públicos e privados de cariz ostentatório, na proliferação da figura do “burguês que vive de rendimentos” e no dispêndio descomplexado.

 

                   2. Vida cultural, sociabilidades e estilos de vida da «boa sociedade».

 

            É, pois, na segunda metade do século XIX, que assistiremos a um notável fervilhar da cidade em termos culturais. Aliás, é toda a imagem da cidade que, aos poucos, se vai modificando, com a introdução de uma série de melhorias infraestruturais: a iluminação a gás (substituindo os “mortiços lampiões de «azeite de purgueira»[721]) a macdamização[722] e os transportes, através do surgimento do americano em 1872 (primeiramente movido a tracção animal, posteriormente a vapor e, finalmente, a electricidade – 1895), favorecendo as ligações a uma cidade em franco crescimento[723].

            Multiplicam‑se, antes de mais, os pontos de encontro da burguesia mais ou menos diletante, proliferando, nas ruas de Santo António, Clérigos e Almada, os cafés e botequins, como o Portuense, o Suiço, o Lisbonense, o Águia d'Ouro e o Guichard, este último o café da moda: “Estava longe de ser um café elegante, arejado e espaçoso. Mesmo assim, como espaço social, era para o Porto o que o Marrare era para Lisboa. Para além do botequim, onde se jogava o dominó, o Guichard dispunha ainda de outras salas de jogo nos andares superiores”[724] (monte, voltarete, quino e dominó). No entanto, como refere Gaspar Pereira, os jovens burgueses não se coibiam de frequentar tascos e tavernas, procurando as suas delícias gastronómicas[725], o que também pode ser interpretado como uma certa persistência dos contactos interclassistas do Antigo Regime, apesar dos crescentes intuitos segregacionistas da burguesia. Camilo Castelo Branco dá conta da atmosfera de um desses botequins: “Homens de grandes cabelos, sem bigodes, com fraques coçados no fio e cadeias vistosas de latão a tremeluzir nas calças brancas espipadas nos joelhos e vincadas de surro, bebiam cerveja da pipa com os queixos espumosos (...) a um canto estava um velho de semblante lívido, muito desgraçado, com um chapéu enorme de seda dum azulado decrépito (...) Ao lado, sobre um mocho, via‑se uma guitarra com manchas gordurosas de suor que punham brilho, e aos pés um cão de água com o felpo encarvoado[726].

            Uma das distracções mais frequentes, em especial depois dos progressos na iluminação nocturna, eram os Passeios Públicos: alamedas, parques e jardins. Locais de apresentação pública da burguesia e suportes da “cultura de aparência”, cedo estes espaços se tornaram de acesso reservado, como aconteceu logo após a inauguração do jardim da Cordoaria, em 1867[727]: “Aos Domingos e dias festivos, e às Quintas‑feiras à noite, o alegre recinto era tomado de assalto pela burguesia tripeira, que se apossava da avenida fronteira ao coreto. Os arruamentos abertos em volta do lago ficavam à disposição das costureiras, das criadas de servir, dos soldados da municipal[728].

            Atente‑se na seguinte descrição do cenário humano que invadia esse jardim, em especial em tardes de música, e repare‑se como o vestuário servia os intuitos de distinção dos actores em presença: burgueses espanejavam ao sol a sua obesidade preguiçosa, dandys com camélias na botoeira, damas todas encolhidas no regalo quente das suas peles, cocottes com vestidos mirabolantes, estudantes de medicina pondo uma vaidade espectaculosa nas suas pastas amarelas, de fitas vermelhas flutuando, militares alisando as fardas com luvas de camurça, todo um público pacato, passeando com um método ordeiro na grande álea, acotovelando os mirones que paravam em frente do coreto, para não perderem o gesto largo da batuta do regente[729].

            Na rua central do jardim da Cordoaria, desenhado por um engenheiro paisagista alemão, no jardim de S. Lázaro, ou ainda no Passeio Alegre, a passerelle romântica multiplicava a exibição de signos da “cultura de aparência”. Gaspar Martins Pereira encontra factores explicativos para esta explosão dos sinais ostentatórios: por um lado, a já referida necessidade de distinção, capaz de afirmar a “nova aristocracia”, ainda insegura, no papel cimeiro de imposição das modas; por outro lado, o desejo tão próprio do romantismo, de afirmação individual patente nas nuances interpretativas desses padrões estéticos dominantes, mas também numa redescoberta do corpo, dos cuidados pessoais e de higiene (patente, por exemplo, na “difusão do espelho, dos produtos de toilette, do banho e das roupas interiores[730]). Manifesta‑se, uma vez mais, a dupla acção da moda, segundo Simmel: a satisfação simultânea da aspiração ao geral (desejo de integração e reconhecimento) e da necessidade do singular (particularização)[731]. Neste âmbito, surge, igualmente, uma “cultura do bizarro” e da excentricidade (dentro, evidentemente, de certos padrões sociais e morais): “Camilo usava botas e calças à hussardo, colete e casaca ou sobrecasaca apertada, laço de gravata à byron e capa à espanhola. Era vulgar andarem sempre de esporas e com bengalas de cana‑da‑India, badines, «chicotinhos» ou casse‑têtes que serviam muitas vezes de arma nas zaragatas. Adereços indispensáveis eram ainda os colarinhos altos («velas latinas»), as luvas brancas ou de cor (...), os chapéus (...) e o lenço branco, elemento simbólico fundamental nos jogos de sedução[732]. Por outro lado, como refere E. J. Hobsbawm, um duplo padrão moral (ou uma tensão entre a “moral oficial” e a moral de um capitalismo hedonista) estava omnipresente na moda burguesa, “uma combinação extravagante de tentação e proibição[733]: se, por um lado, imperava o recato e a ocultação da sensualidade e da sexualidade (“até os objectos que faziam lembrar o corpo (as pernas das mesas) eram por vezes escondidos[734]), por outro, proliferavam as alusões e os estímulos ao mundo dos sentidos e das sensações: “Simultaneamente, e sobretudo nas décadas de 1860 e 1870, as características sexuais secundárias eram grostecamente acentuadas: o cabelo e as barbas dos homens, o cabelo, o peito, as ancas e as nádegas das mulheres, que atingiam um tamanho exagerado devido ao uso de postiços[735]. Importante era, sobretudo, gerir cautelosamente o equilíbrio: nas aparências impunha-se não exagerar nem por defeito, nem por excesso, demonstrando a postura exacta dos que se movem, com à vontade e familiariedade, no “bom mundo burguês”. Cautelas redobradas num tempo em que os estatutos adquiridos, como já referimos, suplantavam os herdados: “— Que, diga‑se a verdade, chegámos a um tempo em que já se não sabe o que é a primeira sociedade, a sociedade elegante, distinguée. Tudo confundido, submergido sob esse aluvião de brasileiros enobrecidos, de burgueses opulentados[736].

            Mas tempos houve, em pleno ultra‑romantismo, de consagração do exagero, em que o mundo espiritual, cada vez mais inacessível ao comum dos mortais, exigia duros sacrifícios. Morrer de amor era, então, a suprema glória. Sofrer, sinónimo de caminhada para o paraíso. As mulheres, pálidas à custa de vinagre e de frequentes jejuns “desmedravam a olhos vistos e amolgavam as costelas entre as compressas d'aço do colete. Estas não são já as mulheres que eu vi, sadias e frescas, como se saíssem do paraíso terreal[737]. Os homens, em especial os mais jovens, cultivavam também a tez pálida “e tossia‑se diante da mulher amada com a dispneia dos últimos tubérculos[738]. Os encontros românticos proporcionavam‑se nos cemitérios, elevados à categoria de passeios públicos.

            Neste novo espírito, eram patentes algumas das contradições da família burguesa. Apesar da repressão, em particular sobre as mulheres (que representavam a unidade da família, da propriedade e da empresa, sendo igualmente veículo de trocas e estratégias matrimoniais), os impulsos individuais e a ascese espiritual, forçavam os apertados limites do ethos burguês.

            Simultaneamente, verifica‑se um retraimento na esfera doméstica e uma mais nítida separação entre o público e o privado. Impunha‑se a criação de espaços de sociabilidade selectiva e de acesso controlado. Desta forma, os salões e os saraus vão sendo paulatinamente transferidos para instituições com uma indelével marca de classe[739].

            Nestas, desenvolvem‑se actividades propícias ao “convívio entre iguais”. Merecem especial destaque os bailes, extremamente associados à prática da dança, actividade que permitia um interconhecimento rigorosamente vigiado entre elementos de sexo oposto, bem como a concretização de desejos e rituais de sedução reprimidos/estimulados pela “boa sociedade”: “Adelina estava radiosa neste ambiente todo rescendente a emanações palacianas; a sua pessoa atraía as atenções, a toillette era notada (...) como era bom vestir‑se de cetim e rendas! Como dá realce à beleza um vestido de baile! (...) O visconde Odivelos (...) vinha na comitiva real (...) Relanceava a vista inquiridora pela sala com a repousada confiança de quem se sente à vontade, e o seu olhar, plácido e firme, percorria com uma insistência apeciadora as formas de Adelina[740].

            Desenvolvia‑se, pois, toda uma panóplia de pequenos pormenores que obrigavam os mais leigos e desconhecedores a um esforço desmedido de descodificação. Frequentar a vida mundana, crescentemente sofisticada, exigia verdadeiros requintes de aprendizagem. Os manuais de civilidade são, a esse respeito, bastante elucidativos. A sua primeira preocupação, no que se refere aos bailes, é a de evitar, a todo o custo, os locais públicos não consagrados e destituídos da aura de classe. Aliás, nestas ocasiões festivas, todos os cuidados são poucos: “É nos bailes onde se acende o sangue e se estimulam as paixões em razão da música, luzes, etc., e por isso é mister sabê‑las reprimir[741]. Aliás, o verdadeiro cavalheiro deverá “ter todo o receio (enquanto dança) de chegar aos vestidos ou ao corpo da dama”, enquanto que esta “evitará, quanto puder, pedir alguma coisa, para que o cavalheiro não tenha motivo de voltar ao pé d'ella[742]. É toda a apologia de uma moral da contenção e da distanciação/aproximação contida entre os sexos[743]. Aconselha‑se, por isso, o uso de luvas e de leques: “Se desejais que vos não notem a direcção de um olhar, o leque presta‑vos gentilmente os interstícios das varetas rendilhadas (...) abafa os suspiros, encobre o rubor, o riso (...) salva as aparências[744]. “Salvar as aparências” e ter “boas maneiras”, eis a pedra de toque da burguesia finissecular. O que, diga‑se em abono da verdade, nem sempre se conseguia: “À medida que as senhoras saíam, a mesa era invadida sofregamente pelos homens (...) Os convivas apertavam‑se muito ocupados em ingerir abundantemente; outros, de fora da mesa, estendiam mãos rapaces por cima dos ombros, e invadiam os bufetes dando pábulo provisório às impaciências do estômago (...) sentia‑se um sussurro forte de conversas entre mastigações, tinidos batalhadores dos talheres sobre os pratos, e o ruído alegre da animalidade contente que se expande em risos (...) Neste momento a mesa tinha o aspecto de um esplendor orgíaco e descomposto, como uma bela mulher em desalinho, desbotada e murcha, depois de uma noitada lasciva[745].

            De facto, pelas descrições dos escritores naturalistas, a burguesia portuense estava longe de poder exibir os “bons costumes” de uma socialização adequada. As suas posturas, a linguagem utilizada, os conhecimentos culturais exteriorizados denotavam uma série de défices ainda não superados. Apesar dos progressos técnicos, do crescimento urbano e dos novos equipamentos culturais, grande parte da média e alta burguesia ostentava ainda os sinais visíveis de uma promoção recente. Por isso, os manuais de civilidade estão repletos de advertências sobre as regras de comportamento nos locais públicos e semipúblicos, ocasiões em que era possível aferir da educação de cada um e em que os processos distintivos mais necessários se tornavam.

            E no entanto, como referimos, a cidade estava irreconhecível, nesta segunda metade do século XIX. Com frequência apareciam novas escolas de música e de canto; na Rua do Almada proliferavam as lojas de fotografia onde se podia “tirar retrato daguerreotipado, em tom de ouro e azul, ao gosto inglês[746]; surgiam os primeiros jornais, como o Comércio do Porto, onde se torna habitual a publicação de romances e novelas em fascículos, lidos ao serão para toda a família; multiplicavam‑se as festas particulares com ou sem fins caritativos, mas quase sempre de feição mundana; os concertos de bandas; os espectáculos de fogos de artifício nas comemorações mais significativas; os famosos bailes de máscara no Carnaval; etc. A Foz torna‑se local de eleição, em especial no Verão e em particular após a entrada em funcionamento do Americano, que em muito possibilitou a compressão das distâncias. Aqui, foi‑se desenvolvendo uma cultura cosmopolita com o seu passeio público (Passeio Alegre), os seus cafés da moda, os seus hotéis e mesmo o seu casino.

            Os públicos alargam‑se e diversificam‑se, embora em pequena escala. Joel Serrão, em estudo sobre os livros publicados em Portugal por volta de 1870, conclui pela existência de centenas de títulos, de autores em via de consagração, embora com tiragens muito reduzidas[747]. E, novidade que indicia o breve surgimento de uma indústria cultural, surge um grande número de edições populares, em especial de autores estrangeiros (Zola, Victor Hugo, Eugène Sue, La Fontaine, Goethe, Júlio Verne, Chateaubriand, etc.)[748].

            Os equipamentos culturais sucedem‑se a um ritmo quase vertiginoso, vontade de uma burguesia que pretende “modernizar” a cidade e fazer concorrência à capital. No final do século, o Porto orgulhava‑se do seu Palácio de Cristal (cuja construção data da década de 60), palco de numerosas exposições industriais e hortícolas, das quais se destaca a Exposição Internacional de 1865; dos seus museus (o Portuense – do Ateneu D. Pedro – o Municipal e o Industrial e Comercial); das suas bibliotecas (em que se inclui uma biblioteca pública); da sua Academia de Música; dos seus teatros (o S. João – o mais antigo, inaugurado em 1798, o Príncipe Real, antes designado por Teatro Circo, o Gil Vicente, no Palácio de Cristal, o Baquet, que foi totalmente destruído por um incêndio em 1888 e o Teatro dos Recreios, essencialmente destinado à ópera). No entanto, de todos estes equipamentos, apenas o S. João e o Baquet possuíam as condições mínimas para o teatro declamado e lírico[749]. Não admira, por isso, que ironicamente A. Menezes considerasse “que só havia o Variedades, irrisoriamente denominado Teatro Camões, próximo da «Feira dos Carneiros» de resto...”. Camilo Castelo Branco apelidava sugestivamente este teatro de a “barraca de Liceiras[750]. Aliás, ao analisarmos, por exemplo, a programação do Baquet rapidamente constatamos da sua falta de coerência e de qualidade: “Altas comédias, tragédias, zarzuelas, dramas, óperas, operetas, vaudevilles, sucediam‑se, muitas vezes alternando com espectáculos de equilibrismo, como o do japonês All Right, domadores de Leões, o homem‑cascável, prestigitadores, mágicos e meras curiosidades[751].

            No entanto, nada supera o gosto da burguesia portuense pela música e pelas artes cénicas, em especial a ópera e o teatro lírico. Cria‑se, inclusivamente, a figura dos Concertos Populares que, no entanto, de popular têm apenas o nome. De facto, o preço da entrada (300 réis) “era uma extravagância para qualquer operário, cuja diária não excedia o rendimento de 400‑500 réis, mas que explica bem a ideia da burguesia sobre quem era o povo[752].

            Maria do Carmo Serén e Gaspar Martins Pereira referem mesmo que o Porto do ultra‑romantismo “está na iminência de se tornar uma cidade amante da música e um dos públicos mais conhecidos da Europa[753]. No entanto, os autores não explicitam as fontes ou os argumentos que lhes permitem sustentar essa opinião. Pelo contrário, as idas ao teatro musicado e à ópera aparecem abundantemente descritas nas obras dos naturalistas em tons pouco abonatórios. O panorama não é de forma alguma coincidente... Aliás, os comportamentos de grande parte dos frequentadores das grandes ocasiões culturais parece pautar‑se, preferencialmente, pela lógica do reconhecimento social:

            Senhoras entravam para os camarotes, acomodando‑se na frente, uma grande ostentação de toillette para recompensar a incompreensão da ópera. – Pouca gente conhecida – e assestava o binóculo, movendo‑o em diferentes direcções (...) – Aí o comendador, o padrinho! – Aonde? –  Ali na superior, olha...[754].

            Muitas vezes, a mise‑en‑scène dos espectadores suplantava largamente a apresentação dos actores...: “Os coros desafinavam o mais possível, num compromisso funesto de enterrar a partitura. Via‑se o regente gesticular, numa agitação febril, a batuta num voltear vertiginoso; um rumor surdo saía das torrinhas, prenúncios de tempestade na plateia (...) A pateada rebentou furiosa, uma grande tempestade; cadeiras rangiam e viam‑se dândis numa tarefa inglória, tentando quebrar os bancos, assobiando, gesticulando com veemência. Falava‑se alto, disputas, questões com os vizinhos, uma balbúrdia, pano descido (...) a Polícia interveio, desmaios nos camarotes, as famílias burguesas retiravam‑se[755].

            Em suma, fica‑nos a ideia de um campo cultural fracamente estruturado, tanto ao nível da oferta (actores com fraca formação, repertórios de duvidosa qualidade) como da procura, existindo aqui, por isso, um efeito de homologia: apesar da assinalável homogeneidade cultural do público (aqui o singular impõe‑se, dada a falta de diversidade), os seus conhecimentos culturais e artísticos apenas permitiam a viabilidade de uma oferta de medíocre qualidade, tanto mais que a fruição cultural assentava numa lógica essencialmente instrumental – meio de apresentação pública, ocasião de consumo sumptuário, reafirmação simbólica das posições sociais, palco de redes sociais[756]. Tal não é de admirar, num contexto de profunda mutação social, em que a elite recém‑empossada não possuía ainda um discurso e uma representação definidas sobre o seu papel na ordem cultural e simbólica. Além do mais, os fraquíssimos níveis de instrução não eram de molde a permitir uma familiarização objectiva com códigos culturalmente exigentes.

            O assinalável sucesso do teatro lírico encontra‑se ligado, não tanto a um progresso nos hábitos culturais, mas muito mais à necessidade de espaços estratégicos de convivialidade e de encontro: “reunia os ultra‑românticos e irreverentes filhos‑família, esperando encontros com as meninas elegantes ou seguindo as actrizes da ópera[757].

            A formação de claques, geralmente intervenientes activas nas pateadas e nos confrontos verbais e físicos que se lhes seguiam, tinham muitas vezes a ver com lógicas absolutamente exteriores ao campo cultural: “... os grupos rivais tinham também conotações políticas, dividindo‑se entre patuleias e cabralistas[758].

            O conteúdo do repertório indicia ainda uma fraca autonomia da criação cultural (longe ainda do modelo da arte pela arte). Os dramas sociais (ou “drama da actualidade, comédia de costumes, comédia‑drama, drama realista[759]) correspondiam às necessidades de educação e socialização da burguesia em ascensão, capaz de criar um novo modelo de herói, emancipado face à tradição e premiado pelo seu esforço de auto‑valorização, assente em valores como o progresso e o trabalho. Mas o drama social fornecia ainda, embora ficcionalmente, a ideia de harmonia social. Ideia que, conforme se caminha para o final do século e se abandonam, tardiamente, os modos de produção do Antigo Regime, encontra cada vez menos correspondência na realidade.     

 

            3. O reverso da “boa sociedade”.

 

            O Porto de finais de Oitocentos está longe de se confinar ao universo burguês. Nele existem as “ilhas” (que albergavam cerca de 1/3 dos habitantes da cidade e onde se desenvolviam intrincadas relações de parentesco), as “colmeias” e as “casas da malta[760] que abrigavam em condições miseráveis os que abandonavam as aldeias em busca do sonho citadino. O mundo iluminado da burguesia “contrasta com a ausência de iluminação pública nos arrabaldes rurais e com a presença das velas e dos candeeiros de petróleo nas casas mais pobres ou nos lugares mais afastados[761].

            Em 1905, o abastecimento de água ao domicílio é de apenas 32%; a rede de esgotos cobre somente 27% das habitações; a canalização a gás não ultrapassa os 47% das ruas da cidade. Não são de admirar, por isso, a alta taxa de mortalidade e as epidemias que até tarde fustigam a população socialmente mais desprotegida do Porto – em 1889 é a última cidade europeia a ser atingida pela peste bubónica.

            O crescimento da relação salarial é também visível no significativo aumento das associações operárias de carácter mutualista. As classes laboriosas tornam‑se, progressivamente, classes perigosas, influenciadas pelo surto de associativismo operário, pela difusão dos ideais socialistas e instigadas pelas suas miseráveis condições de existência. Na década de 70 surgem as primeiras greves e a comemoração do dia do trabalhador torna‑se uma realidade a partir de 1890, reunindo cerca de doze mil pessoas. João Grave, um dos raros escritores naturalistas a retratar a vida das classes populares, oferece‑nos um expressivo retrato de uma greve: “Os homens, esfarrapados, com os casacos remendados ao ombro, mostravam os pulsos deformados pelas brutalidades do trabalho áspero e constante. Nas suas faces lívidas, os malares rompiam agressivamente e os dentes branquejavam na cor escura dos lábios (...) rugidos surdos rebentavam, explodiam (...) como pragas fulgurantes (...)

            – A greve!

            – Viva a greve!

            – Abaixo o capital!

            – Viva o operariado!

            – Morram os exploradores do povo!

            – Morram! Morram!

            – Peguemos fogo às oficinas, camaradas! (...)

            – Ao fogo, ao fogo, ao fogo!...[762].

            Não admira, assim, a crescente segregação espacial que a burguesia impõe, limitando a cidadania a vastas camadas sociais, escondendo a sua insegurança através de uma “moral da rejeição” que atinge as prostitutas, os pedintes, os “rapazes garotos”, os aguadeiros, o pequeno comércio de rua, as actividades artesãs...

            Nas práticas culturais e na ocupação dos (raros) tempos livres reproduziam‑se, igualmente, distâncias e (im)possibilidades. O Domingo dos pobres, segundo João Grave, passava‑se na rua, ao ar livre, cobiçando as mercadorias das lojas de moda. Mas existiam ainda os passeios ao campo ou ao rio, onde se improvisavam “grupos de tocadores de «ramaldeiras» em bailaricos e descantes[763]. A música e a dança, aliás, tornam‑se o passatempo favorito, ao mesmo tempo que as associações operárias reservam nas suas sedes espaços para essas actividades. A pequena burguesia, com o crescimento do terciário, inicia também os seus processos de distinção social, em grande parte miméticos face à grande burguesia, organizando sociedades recreativas, frequentando os passeios públicos onde são toleradas e alugando “camarotes de terceira” no teatro lírico, num movimento que principia o alargamento de públicos.

            Os mais desfavorecidos fazem da rua o seu local de eleição, prolongando, muitas vezes, o espaço doméstico. É na rua, também que se concentram as novidades e os espectáculos: desde os “artistas populares, saltimbancos e vagabundos”, até aos exóticos “cães malabaristas, ursos que fazem vénias, o canário que toca pífaro, a mulher gigante, a mulher anã, as vistas estereoscópicas das cidades estrangeiras ou da vida de Cristo[764], sem esquecer o circo, os parques de diversões e as sessões de hipnotismo.

            O quotidiano, de resto, continua a marcar‑se por cadências ruralizantes, mantendo‑se uma fortíssima influência do calendário religioso, com as suas procissões e as festas sacro‑profanas dos santos populares. Excepcionalmente, a monarquia concedia ao povo ocasiões festivas para “aclamação dos monarcas ou por ocasião do nascimento de um príncipe ou da vinda da família real ao Porto[765]. Outras vezes, contudo, as preocupações deixavam pouca disponibilidade para os festejos:

            (...) Na taberna da srª Madalena, tão concorrida aos domingos, dois soldados tocavam guitarra, sentados entre uma jovial assembleia de vagabundos. O cortejo atravessou vagarosamente toda esta onda de miséria e de infortúnio, despertando uma compadecida emoção. Manuel ia exausto, abandonado às mãos amigas que o acarinhavam (...)

            – Veio da fábrica escoadinho em sangue!

            – Foi apanhado por uma trave que caiu do tecto.

            – Parece que já morreu!...[766].

 

II – O Novo Século.

            1. As novidades.

 

            Aos poucos, as novidades iam chegando ao Porto. Entre 1909 e 1911 funcionou um original cinema, o Metropolitano, que tinha a aparência de uma carruagem de comboio: “«a carruagem tremelicava, como se avançasse sobre a linha, e pela janela viam‑se correr as paisagens projectadas no écran, de viagens a Paris, Londres, Berlim, etc.» O espectáculo era total: tocavam campainhas e apitos com ruídos de fundo iguais aos de um comboio autêntico[767].

            Os primeiros anos do século traziam a magia das imagens em movimento. O cinema, como Walter Benjamim tão agudamente observou, marca como nenhuma outra forma de arte a divulgação em massa e a associação à indústria, ao mesmo tempo que permite a “recepção na diversão[768], dimensões indissociáveis do novo “espírito do tempo”.

            A cidade do Porto mergulhou nesse desígnio, como o demontram os seus numerosos cinemas. O Águia d'Ouro, inaugurado como teatro em 1899 projecta sessões de cinematógrafo, importando a tecnologia directamente dos estúdios Lumière. O salão High‑Life, situado no local onde hoje se encontra o cinema Batalha, era bastante frequentado pelas camadas populares: “Pelas sua pantalha passaram as mais espantosas fitas de aventuras, de pancadaria e os Western. Era um edifício sem grandes condições, rodeado por um gradeamento dando a volta à esquina da Praça, que subsistiu até aos anos 40[769]. O seu maior sucesso concretizou‑se na exibição da película A Vida e a Morte de Jesus, “colorida e com 1200 metros[770]. Posteriormente, o cinema Batalha será objecto de admiração pela ousadia estética da sua configuração arquitectónica. Merecem ainda referência, nas primeiras décadas do século, o Sá da Bandeira, o Passos Manuel, o Salão Pathé, o Trindade, o Eden Teatro e o Metropolitan‑Cinematour e o Olympia.

 

            O Rivoli, por seu lado, foi inaugurado em 1932, substituindo o antigo Teatro Nacional. Era seu proprietário o empresário Pires Fernandes, considerado pelos seus mais próximos colaboradores como “um homem dinâmico, meticuloso e de grande tacto administrativo[771]. O seu projecto para a sala de espectáculos assentava numa programação virada para o “grande público”, sem descurar, no entanto, a preocupação com a qualidade. Nessa linha, a estreia ficou a cargo da Companhia Amélia Rey Colaço – Robles Monteiro, que apresentou a comédia em três actos de Marcelino Mesquita “Peraltas e Sécias”. Como actores principais destacam‑se alguns nomes bem conhecidos: para além da própria Amélia Rey Colaço e Robles Monteiro, salientamos Raúl de Carvalho, António Vilar e João Villaret. Oscilavam os preços entre os 60 escudos dos Camarotes e Frisas e os 4 escudos da geral, o que dá bem conta da diversidade de públicos abrangidos. Segundo relatos de jornais, na noite de estreia “o Rivoli mobiliza as atenções de grande parte da cidade”, ”Todo iluminado, portas e janelas amplas, o novo teatro do Porto chama a atenção de quem passa[772]. Sucedem‑se, entretanto, uma vasta galeria de espectáculos: teatro de “tipo romântico”, comédias, dramas históricos, revistas, opereta e mesmo companhias de circo, logrando‑se obter assinaláveis êxitos e muitas lotações esgotadas. No final de 1932, o Rivoli entra também na moda do cinema, fechando para instalação do sistema sonoro.

     De qualquer forma, um olhar de conjunto sobre a programação teatral e musical das principais salas portuenses faz com que nos apercebamos de um défice fundamental: não existe notícia de nenhum espectáculo produzido no Porto – os grandes sucessos eram importados de Lisboa o que representa, sem dúvida, “um retrocesso em relação a épocas anteriores da história teatral portuense[773], em particular se pensarmos no orgulho e vontade da burguesia oitocentista em rivalizar com a capital.

 

            2. Uma nova realidade: a metrópole.

 

            Durante as primeiras décadas do século, e com especial aceleração a partir dos anos sessenta, o Porto reforça o seu poder de atracção de pessoas, mercadorias e informação, assistindo‑se a uma inédita concentração de funções (cultura, administração, educação, saúde, etc.). A única solução para evitar uma ruptura passou pela integração dos espaços municipais limítrofes, através da reanimação de vários pólos urbanos e da delegação de funções e competências. Assim,  o Porto vê reforçado o seu papel orientador, embora no quadro de um “sistema urbano multipolar” mediante a “conversão progressiva do centro de área produtora e mercantil em espaço gestor e comercial[774]. O centro da cidade desdobra‑se em dois, com a importância crescente da Boavista. O centro clássico, esse, diminui: “de 1900 para 1991 o centro antigo desceu de 21% para 6%”, embora a tendência se estenda ao próprio centro moderno que recua de 45% para 27%. Pelo contrário, “a área pericentral passou de 13 para 20% e a periferia de 21% para 47%. No início do século, dois terços dos portuenses viviam no centro da cidade. Noventa anos mais tarde, a mesma proporção de pessoas reside fora dele[775]. Progressivamente, a cidade especializa‑se nas grandes estruturas de enquadramento e na concentração de direcções regionais e sedes de empresa.   De dia, os bairros residenciais desertificam‑se e o centro fervilha. De noite, o panorama é o oposto. Cresce a tendência para o esvaziamento dos lugares públicos e, apesar da importante concentração de oferta cultural na cidade, a cultura de saídas ressente‑se.

 

3. Um período de discrição e semiclandestinidade.

 

            Com o avançar do século, conjugam‑se dois factores determinantes na estruturação da vida cultural portuense. Por um lado, as pesadas imposições do regime ditatorial vigente, muito pouco dado a manifestações públicas e espectaculares ou mesmo ao incentivo da cultura e da criatividade, enquanto inevitáveis expressões de liberdade, criavam dificuldades acrescidas. Por outro lado, a especificidade de uma burguesia utilitária e pragmática leva a que se reserve “o brilho para a intimidade. Tal como tinha escondido atrás de fachadas austeras a talha dourada, o salão árabe e os lustres dos seus clubes, o Porto escondeu a Arte Nova no interior das suas novas residências[776] (com duas importantes excepções, não por mero acaso cafés: a Brasileira – 1903 – e o Majestic – 1921).

            Os curtos anos da 1ª República conheceram ainda uma notável vitalidade, em especial nos restritos círculos da intelectualidade e no domínio da expansão escolar. Criou‑se, em 1911, a Universidade do Porto que contava, em 1926, com mil alunos. Em 1917 nasce o Conservatório de Música e em 1923 o primeiro cineclube português. Multiplicam‑se, por esta altura, os cursos livres (em grande parte devido à acção dinamizadora da Universidade Popular e da Universidade Livre), os debates e as tertúlias, bem como publicações (jornais e revistas) de cariz académico, das quais se destaca a Águia, fundada em 1911.

            Mas os sinais de um Estado que se pretendeu Novo, cedo se fizeram sentir, cortando cerce os ímpetos emancipatórios da Primeira República. Logo em 1928 é encerrada a Faculdade de Letras (fundada em 1919). Desde essa altura, a tradição democrática e cívica do Porto vê‑se rodeada de suspeitas, denúncias e censuras. A discrição impunha‑se como estratégia de sobrevivência, enfraquecendo‑se a esfera pública: “A partir daí o debate só podia limitar‑se à intimidade ou adoptar modos de circulação tão disfarçados que escapavam à percepção da maioria[777].

            Exemplo desse espírito é a actuação multifacetada do liberal Ateneu Comercial do Porto, com as suas “manhãs literárias”, o incentivo dos seus prémios, os seus revigorantes concertos e recitais de canto e, acima de tudo, as suas conferências e debates por onde passaram alguns vultos do maior prestígio da intelectualidade portuguesa do presente século. A título de exemplo, refiram‑se os nomes de Miguel Torga, Vitorino Magalhães Godinho, Hernâni Cidade, Lopes Graça, João Villaret, Aquilino Ribeiro, Agostinho da Silva, António Gedeão, Vasco da Gama Fernandes e tantos, tantos outros[778]. As homenagens a Antero de Quental (1942) e a Almeida Garrett (1956) suscitaram a mobilização das energias liberais da velha burguesia, adormecida mas não aniquilada.

            Discretamente, mas de forma indelével, a cidade continua a marcar a sua presença na vida cultural portuguesa, embora sem conseguir aproximar‑se do fulgor da capital, agora confiante do seu papel de metrópole colonial, e apoiada de forma notável pela actividade insubstituível da Fundação Calouste Gulbenkian.

            De facto, alguns nomes dos novos intelectuais e artistas portugueses são do Porto: Sophia de Mello Breyner Andresen, Ruben A., Eugénio de Andrade, Agustina Bessa‑Luís, Óscar Lopes, Manoel de Oliveira, Fernando Lopes‑Graça, António Cruz... No entanto, falta a animação colectiva, a vitalidade das instituições e dos equipamentos. Antes dos anos sessenta, com a notável excepção da criação do TEP (em 1951), a sensaboria parece imperar.

            Com a nova década um renovado dinamismo faz surgir alguns importantes movimentos: na arquitectura consolida‑se o prestígio da “Escola do Porto”, através de nomes como Fernando Távora e Siza Vieira; criam‑se novos grupos de música e de teatro; emerge o ensino artístico cooperativo (Cooperativa Artística Árvore, inaugurada em 1963); implanta‑se a Fundação Engenheiro António D'Almeida (1969). Entretanto, de forma difusa e semiclandestina, florescem os pequenos grupos anti‑regime, muitas vezes organizados (?) em forma de tertúlia e extremamente diversos quanto à sua composição, indo desde os católicos progressistas inspirados na figura do Bispo D. António Ferreira Gomes, até à emergente extrema‑esquerda, de várias matizes. Anuncia‑se um novo ciclo.

 

            4. Uma nova fase: a aplicação de uma política cultural autárquica.

 

            Com a “explosão” revolucionária, o Porto vê surgir inúmeros embriões de associações e grupos culturais, animados do intuito de fazer do quotidiano uma mescla indissociável de cultura e política, na esteira de alguns movimentos sociais, mais ou menos estruturados. Alexandre Alves Costa definiu da seguinte forma o espírito que lhes estava subjacente: “Foi um puro início, como tempo novo, sem mancha nem vício[779]. No entanto, muitos deles revelaram‑se luzes fugazes, em especial após a consolidação do chamado período de “normalização democrática” iniciado com o 25 de Novembro e marcado por uma “institucionalização” dos consumos culturais, com a crescente intervenção do poder político, na definição dos critérios e domínios de financiamento e enquanto poderoso agente de consagração de certos nomes no panorama cultural[780]. As manifestações culturais acantonaram‑se, progressivamente, nos locais especificamente destinados à cultura.

            Faltava à cidade uma perspectiva estratégica do seu papel de metrópole cultural regional. Com um conjunto de equipamentos degradados e a necessitar de urgente reciclagem; padecendo de um localismo paroquial; sentindo a ausência de um quadro de suporte ao movimento associativo; excessivamente centrada na rentabilização inerte do seu património histórico e artístico, o Porto foi, durante décadas, uma cidade onde as iniciativas, esparsas, não eram enquadradas em qualquer exercício de planeamento sistemático e onde os agentes sócio‑culturais sentiam a falta de redes e de interlocutores. Uma intervenção cultural implica, já o dissemos, um quadro de referências e prioridades, bem como meios de acção pública especializados.

            Na nossa opinião, a cidade só começou a usufruir de uma verdadeira política cultural (conjuntos articulados de iniciativas coerentemente planeadas e avaliadas; objectivos claros e operacionalizáveis; mecanismos eficazes de produção e divulgação; diversificação das actividades; diálogo com os potenciais públicos; recuperação de infraestruturas; etc.) a partir de 1989, com a criação do Pelouro de Animação da Cidade. Relembramos alguns dos eixos estruturadores desse projecto pioneiro: “apoio às associações recreativas e culturais da cidade, visando a sua revitalização”; “apoio à criação artística em sentido lato”; “diálogo permanente com as instituições públicas e privadas da cidade”; “promoção e/ou apoio à realização de acções de prestígio no campo cultural”; “apoio à inclusão do Porto nas digressões de artistas e companhias nacionais e estrangeiras de alta qualidade”; “desenvolvimento da cooperação com outros municípios”; etc.[781].

            Em termos mais concretos, podemos assinalar duas faces complementares dessa política cultural de cidade: uma visível e espectacular; outra mais recôndita e de longo prazo. Na primeira é possível incluir uma série de festivais (produzidos ou apoiados pela autarquia), de cariz sazonal e que vêm marcando, desde há vários anos, a vida cultural da cidade. De tendência claramente cosmopolita, proporcionam o cruzamento de artistas e de formas de expressão provenientes de várias partes do globo: é o caso de Ritmos (festival de formas musicais emergentes no espaço afro‑latino); Intercéltico (projecto que procura reconstruir afinidades no seio de uma matriz cultural que engloba países e regiões como o Norte de Portugal, a Galiza, a Irlanda, o País de Gales, etc.); o Festival de Jazz; o Festival Internacional de Marionetas; o Salão Internacional de Banda Desenhada do Porto; as Jornadas de Arte Contemporânea; as Noites Ritual Rock; o Fazer a Festa — Festival Internacional de Teatro para a Infância e a Juventude; etc.[782]. Nesta vertente podem ainda considerar‑se as iniciativas de cariz mais espontâneo e convivial (com uma forte componente de animação de rua) como as Festas da Cidade e Do Natal aos Reis. A diversificação da oferta, patente nesta pluralidade de eventos, articula‑se com o princípio de alargamento dos públicos, também eles heterogéneos. Faltarão ainda, no entanto, programas que propiciem o cruzamento de formas de cultura, criando dinâmicas transversais que contribuam para superar velhas hierarquias e classificações (como acontece, por exemplo, em certas peças musicais que tentam associar música popular e música erudita[783]), apesar do tenso equilíbrio a que tais propostas obrigam. A outra face, mais discreta, mas nem por isso menos significativa, centra‑se em três aspectos fundamentais: a recuperação permanente de equipamentos (salas de espectáculo; museus; bibliotecas; arquivos; parques de recreio); a relação com as associações (apoio à melhoria de instalações; formação profissional; suporte de acções voltadas para a comunidade; etc.) e a ligação às escolas, mediante projectos de formação de novos públicos[784], de onde se destaca o programa Descobrir[785], direccionado para as artes, ciência e tecnologia.

            Como suporte desta política estimulou‑se um alargamento da rede municipal de equipamentos, de cariz estruturante. Na transição do último para o actual mandato, para além da renovação do Rivoli (cujo orçamento ascendeu a dois milhões de contos[786]), destacam‑se a construção do teatro do Campo Alegre, que servirá de sede da companhia Seiva Trupe, bem como a renovação das casas‑museu de Guerra Junqueiro e de Marta Ortigão Sampaio.

            Importa referir, também, o esforço de outras entidades neste domínio, indicador de que houve uma aceleração global no desenvolvimento cultural da cidade. Antes de mais, o Estado, destacando‑se a recuperação do teatro S. João e a sua elevação à categoria de Teatro Nacional, com a lei orgânica publicada em 1997, bem como a consagração da Orquestra Nacional do Porto (ainda não sinfónica...) e a instalação, no Porto, do Centro Português de Fotografia. Salienta‑se, igualmente, a acção da sociedade civil organizada, apoiada pelo Estado e pela autarquia. Sublinham‑se, neste âmbito, o FITEI (Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica) e o Fantasporto (festival de cinema fantástico).

            Desta forma, aumenta a necessidade de parceria entre os vários agentes culturais locais, proliferando os equipamentos geridos em comum, as co‑produções e as iniciativas conjuntas.

            A Fundação de Serralves, por exemplo, criada com o objectivo de instalar o Museu de Arte Contemporânea, conta com o apoio de fundos públicos e da iniciativa privada. A Fundação Ciência e Desenvolvimento resulta da colaboração entre a autarquia e a Universidade do Porto. O Coliseu do Porto que, juntamente com o Rivoli e o Teatro Nacional S. João, constituem o “núcleo‑duro” das salas de espectáculo portuenses, é actualmente gerido (depois de uma movimentação popular contra a possibilidade de o imóvel ser adquirido por uma organização religiosa) através de fundos municipais e da iniciativa privada, tendo igualmente recebido apoio do Estado para a sua recuperação após o incêndio de Setembro de 1996. As co‑produções começam igualmente a ganhar algum relevo, apesar de estarem longe de ser uma prática generalizada.

            Segundo cálculos da autarquia, nos últimos dez anos o investimento cultural total na cidade do Porto superou os 26 milhões de contos. Ainda de acordo com a mesma fonte, num domínio sensível, como é o caso do teatro, em dez anos os grupos e companhias passaram de três a dezoito. Em 1997 foram dez os projectos teatrais portuenses apoiados pelo Ministério da Cultura, tendo outros tantos ficado de fora. Por outro lado, existem três instituições de formação artística nesta área[787].

            No que se refere a cinemas, o Grande Porto (incluindo Porto‑cidade e Vila Nova de Gaia) possuía, a 1 de Outubro de 1997, 46 salas (representando um acréscimo, nos últimos 7 anos, de 32 espaços de exibição)[788]. Quanto a editoras, a grande concentração verifica‑se na região de Lisboa. Ainda assim, a revista Hei! identifica sete editoras activas, três delas de carácter quase artesanal, definida por um dos proprietários como “editora de autor[789]. A nível de galerias e de espaços de exposição, o inventário da Comissão de Coordenação da Região Norte dava conta de 40 unidades, sendo que 25 são especificamente galerias[790]. Finalmente, o tecido associativo da cidade apresenta, segundo dados municipais, um conjunto de mais de seiscentas associações e colectividades, dinamismo que, no entanto, pode ser contrariado se atentarmos no gráfico nº 3, respeitante a uma proposta de tipologia das associações.

 


            De facto, a grande concentração nas categorias “Associação de cariz popular” e “Cultura, desporto e recreio” revela, numa análise mais superficial, um tecido potencialmente envelhecido, acantonado à gestão corrente do subsídio, muitas vezes enquistado numa noção fixista de tradição e especialmente vocacionado para a ocupação convivial dos tempos livres dos seus associados, o que, sendo meritório, não fornece o “salto” qualitativo desejável para uma nova ligação às comunidades, em mais ou menos rápida recomposição, nem tão‑pouco aos novos padrões comportamentais emergentes, muitas vezes articulados com determinadas culturas juvenis.

            Existe, no entanto, um risco. Todo o pluralismo subjacente à estruturação de uma política cultural municipal encontra a sua génese, segundo Phlippe Le Moigne[791], num processo de institucionalização e regulação do campo cultural local por esferas exteriores ao próprio campo (patente, por exemplo, na elaboração ao nível nacional de critérios político‑administrativos para o apoio à criação, ou para a consagração artística) e na apropriação dos valores das “classes médias”, que “conferem à acção cultural uma missão de promoção identitária[792], necessária para a legitimação da sua trajectória social. Esta heterogeneização das iniciativas desemboca, paradoxalmente, num efeito de homogeneização: no seu sincretismo, na sua retórica de conciliação de interesses e de promoção de equilíbrios, as políticas culturais urbanas tendem a assemelhar‑se cada vez mais, enfraquecendo as ligações à sua base sócio‑espacial (com tudo o que isso implica de diluição de efeitos de posicionamento na estrutura social e territorial) e tornando‑se um foco secundário de luta política, ou mesmo o terreno de uma certa despolitização. Corre‑se então o risco de, imbuída desta “polivalência simbólica”, a política cultural municipal perder a noção das prioridades e cingir‑se a uma lógica de “acumulação de iniciativas” sem orientação estratégica ou fio condutor, visando um pluralismo assente numa certa “exaustividade cultural”, pluridireccional e visando estabelecer compromissos e mediações entre os vários actores em presença.

            Não nos parece que isso aconteça com a nova política cultural municipal.

            A primeira política cultural de cidade do século XX tem vindo a distinguir‑se publicamente por resultados positivos em várias frentes (criação de uma rede de equipamentos, cruzamento de localismo e cosmopolitismo, articulação entre a oferta e a procura, etc.) e com uma definição estratégica de prioridades, como anteriormente referimos.

            No entanto, os resultados são mais modestos (apesar dos esforços de revitalização do tecido associativo e de contacto interactivo com o sistema formal de ensino) no alargamento da participação cultural e no contrariar das “tendências de evasão e demissão cívicas[793]. Joga‑se, nesta dimensão, uma luta desigual entre uma lógica de acção local, com uma ancoragem territorial, contra uma lógica global, de cariz a‑espacial, deslocalizada e onde se enquadram as tecnologias da comunicação e as indústrias culturais.

            Por mais que se estruture a oferta cultural não são de esperar, como de resto mencionámos no capítulo V, efeitos automáticos de arrastamento da procura. O Porto deixou de ser a cidade provinciana de que nos falam grande parte dos escritores que sobre ela meditaram (“O Porto é província, e província do Douro (...) O Porto é a última cidade de Trás‑os‑Montes, de gleba transmontana[794]) e, por isso, não mais é imune às grandes (e transnacionais) recomposições no domínio das sociabilidades e do espaço público.

 

            5. As novas faces da cidade.

 

            Não nos parece errado afirmar, como de resto está patente nas páginas anteriores, que a história cultural do Porto sofreu profundas metamorfoses nos últimos dez anos. À lentidão da evolução anterior, à aparência mesmo de estagnação durante os longos anos do Estado Novo, surge uma década breve, para utilizarmos de empréstimo a metáfora de Hobsbawn a propósito do nosso século (um século breve). O efeito que sobre nós provoca essa aceleração é mais visível quando nos damos conta da inadequação de comentários ainda recentes. François Guichard, por exemplo (1992!), fala‑nos de um Porto centrado nas tertúlias de cafés e pastelarias, símbolo do traço pretensamente mais distintivo da urbe (a sociabilidade, ou uma certa sociabilidade); uma cidade cristalizada num espírito semelhante ao que “animava os grandes cafés franceses de antes da guerra[795]; uma aglomeração onde os tascos traduzem um típico “mundo fechado de homens[796], em ambiente de quente cumplicidade. O tasco seria “o verdadeiro símbolo da sociedade do Porto (...) fechada mas calorosa, conservadora, tradicionalista, ainda muito masculina”. Os outros lazeres resumem‑se a uns passeios à Foz e Matosinhos, em busca da praia ou de bons ares, ou ainda à pesca à linha e piqueniques junto ao rio, hábitos bucólicos preferidos pelos mais antigos. Ainda mais recentemente, a propósito da rede de cruzamentos proporcionada pelo festival Ritmos, alguém afirmava: “Ritmos, outros ritmos, cruzamentos múltiplos, mestiçagens várias (...) no Porto. Cidade improvável, até há algum tempo pouco dada a estas miscelâneas[797].

            Não chegaremos ao exagero de dizer que este Porto, tradicional e ritualizado, morreu. Ele permanece, decerto, em franjas etariamente idosas, ou em alguns segmentos profissionais com particulares enraizamentos territoriais, mas vão noutro sentido as grandes transformações sócio‑culturais que atravessaram a sociedade portuguesa no seu conjunto e de que demos conta em anterior capítulo. Tais símbolos já não são, seguramente, elementos estruturantes da imagem dominante da cidade. Tão‑pouco esta outra representação de uma “cidade do trabalho e em certos aspectos pacatamente provinciana, e orgulhosa de sê‑lo (...) urbe densa cujas ruas em geral adormecem cedo e se animam cedo[798].

            De facto, importa particularizar. Se há ruas sossegadas e hábitos domésticos fortemente sedimentados, noutras zonas da cidade as noites são longas e servem de suporte a múltiplos usos, simbologias, representações, papéis e actores: a noite dos comportamentos desviantes, a noite distinta e elegante, a noite juvenil e estudantil, a noite mundana... Na própria Internet, mito e veículo ultracontemporâneo da sociedade digital, encontrámos um site com comentários extremamente personalizados a propósito de mais de duas dezenas de bares e discotecas do Porto e arredores mais próximos[799]. Nele, fala‑se de uma constelação imensa de ambientes musicais (metal, punk/hardcore, música antiga, música alternativa, acid, etc., etc.). Existem também referências aos melhores dias da semana; à hora de início da maior animação (por vezes a partir das cinco da madrugada...); ao tipo de clientela (“selecta”, “gay”, “pirosa”, etc.) e surgem curiosas importações linguísticas (por exemplo, movida), bem como sugestivos recursos de estilo (portagens refere‑se ao “filtro” exercido à entrada de muitos estabelecimentos nocturnos por empregados ou “seguranças”). Alguns vêem em toda esta diversidade de espaços, estilos e linguagens o entusiasmante caleidoscópio pós‑moderno. Outros, avisam prudentemente que a pluralidade de opções é mais de fachada e as margens de real alternativa apresentam uma reduzida flexibilidade.

            Mas um outro tipo de consumos culturais invade o quotidiano portuense. Referimo‑nos à rápida aparição das modernas catedrais de consumo, os shopping centers, onde milhares de cidadãos passam fatias cada vez mais significativas do seu tempo livre[800]. E se delas falamos é porque configuram uma radical reestruturação das formas tradicionais da esfera pública. Não é por acaso que, a propósito de dois megacentros comerciais de Lisboa se criaram os seguintes slogans: “O mundo”; “A cidade dentro da cidade”; “O centro da cidade”. Porque de cidades se tratam. Cidades sem geografia, abstraídas do espaço e do tempo exteriores; muitas vezes em ruptura com a configuração urbana onde se localizam; com as suas próprias ruas, praças e fontes; cidades onde as formas urbanas perdem legibilidade e as hierarquias se despacializam embora saiam reforçadas pela ordem do consumo[801]. Edifícios que poderiam estar – e estão – em qualquer local, seguindo o princípio de que “tudo se combina com o que quer que seja”. Cidades que têm mais a ver com a racionalidade do fax, do modem, dos computadores e dos cartões de crédito do que com a “velha” lógica dos cenários físicos das urbes modernas. Cidades‑televisão, onde, perante a aparente diversidade de lojas e produtos, o nosso olhar se assemelha ao zapping televisivo, talvez com uma diferença: temos todos os canais num só[802].

            O mais curioso nesta nova arquitectura urbana é o colapso da história e do clima. Nestas catedrais encontram‑se pastiches de todos os estilos arquitectónicos, misturando‑se pormenores barrocos com requintes neoclássicos e pós‑modernos. Num certo sentido, o “excesso de tempo” de que nos fala Marc Augé a propósito das dimensões constitutivas da “sobremodernidade”, está aqui presente[803]. No Via Catarina, na baixa comercial da cidade, podemos caminhar entre miniaturas de casas típicas do Porto, remetendo‑nos para várias épocas. A temperatura é artificialmente mantida a um nível constante. No Cidade do Porto é‑nos dada a possibilidade de patinar num lago gelado sem sofrermos os rigores da Invernia[804]. No extremo, as vinte e quatro horas do dia poderiam ser passadas num centro comercial. Nada nos faltaria: das lojas de múltiplos artigos (embora a diversidade seja mais aparente do que real, dada a duplicação de estabelecimentos iguais ou extremamente semelhantes) às praças da alimentação (onde se experimentam tanto o standard do fast food como as delícias das cozinhas mais exóticas, israelitas ou mexicanas), passando pelos centros de lazer, alguns especialmente vocacionados para as crianças; outros mais dirigidos aos adultos, como as grandes cadeias de cinema. Os centros comerciais tornam‑se mesmo locais de encontro social; oportunidade para conhecer caras novas ou ocasião de passear com o(a) namorado(a). Entretanto, o centro histórico da cidade perde vitalidade e desertifica‑se às primeiras horas da noite. Daí os slogans de que há pouco falámos: os centros comerciais são de facto, cada vez mais (e não num sentido meramente metafórico), o centro da cidade. Ao mesmo tempo, este “urbanismo de fantasia[805] dissemina uma nova atitude segregacionista. Se, de facto, a ruptura face ao exterior é quase total (ausência de ruídos, de oscilações de temperatura, música ambiente) todos os aspectos negativos da cidade tendem a ser eliminados: sujidade, toxicodependência, trânsito, pobreza. Além do mais, o invisível olho electrónico dos modernos sistemas de vigilância substitui a presença por vezes incómoda da autoridade (como aponta M. Crawford, existe uma ténue fronteira entre convite e exclusão). Um paraíso artificial – dirão alguns. Mas também uma encenação, um despertar simultâneo de estímulos contraditórios, que tanto passam pela excitação e ansiedade como pela sedação. Uma “viciante droga ambiental”, no dizer de Joan Didion[806].

            Espaços de trânsito e de passagem que colocam a nossa identidade entre parênteses, dado o seu cariz fracamente relacional. Espaços que, ao contrário dos “lugares antropológicos” (identitários, relacionais e históricos, delimitáveis num tempo e num espaço onde se produzem “formas sociais orgânicas”) se fixam numa “contratualidade solitária”. Não‑lugares, no dizer de Marc Augé[807].

            O que leva tantas pessoas a frequentar estes espaços? A resposta é complexa e articula, certamente, para além de outros factores, défices de formação cultural com a reduzida exposição a uma oferta lúdica alternativa. Mas também o curioso sentimento de um certo anonimato que se refugia numa identidade provisória (apenas quebrada, aqui e além, pela apresentação de um documento, um cartão de crédito...), também ela em trânsito, geradora de representações ambíguas. Por um lado, a “multidão solitária”, a pouca riqueza interactiva, o sentir‑se espectador, inclusivamente de si próprio[808]. Por outro lado, a sensação de libertação face aos constrangimentos habituais (“a obrigação de...”), a leveza de um novo papel (passageiro, cliente...): “Objecto de uma doce posse, à qual se abandona com maior ou menor talento ou convicção, goza, momentaneamente, como qualquer possuído, as alegrias passivas da desidentificação e o prazer mais activo da representação de um papel[809].

            Qual a resposta de uma política cultural de cidade face à proliferação de não‑lugares? O centro da cidade desertifica‑se ao cair da noite e durante o fim de semana. Paralelamente, centros comerciais e grandes superfícies comerciais fervilham de gente. Possuem estes espaços algum potencial de revitalização de uma “cultura de saídas”? A resposta deve ser prudente. Não podemos esquecer que, em grande medida, representam um prolongamento da exposição à sociedade de consumo patente nos tempos doméstico‑receptivos. Do mesmo modo, o seu cariz socializador afigura‑se fraco. Os não‑lugares só lidam “com indivíduos (...) mas estes não são identificados, socializados e localizados (...)É à maneira de um imenso parêntese que os não‑lugares acolhem um número cada vez maior de indivíduos (...) O não‑lugar é o contrário da utopia: existe e não alberga nenhuma sociedade orgânica[810]. Mas estes espaços podem conter, em si mesmos, sementes de um “espaço praticado” (para utilizar a terminologia de Certeau). Iniciativas de animação (concertos, exposições, performances) têm vindo a proliferar nestes cenários. Sabemos que elas constituem, antes de mais, uma tentativa de reforço do ethos consumista (que talvez se possa definir pela máxima de Augé: “fazer como os outros para ser ele próprio[811]), através do poder da “atracção adjacente[812] que direcciona os olhares e os estímulos para as mercadorias circundantes e omnipresentes. Ao abranger a esfera do lazer, mais necessidades são satisfeitas e mais motivos as pessoas encontram para frequentar estes locais. Mas demitirmo‑nos de uma acção cultural organizada, equivaleria a legitimar a fuga da cidade, dentro da cidade, que eles também (e tão bem) representam. E, quem sabe, se em vez de se oferecerem como objecto de uma “etnologia da solidão” de que Marc Augé reivindica a emergência, não poderão constituir novos cenários de encontro, “agir comunicacional” e sociabilidade. Neles circulam cidadãos, ainda que adormecidos, públicos virtuais a serem conquistados.

 

                                                           CAPÍTULO IX

ESTRATÉGIAS DE PESQUISA

 

“Il n'y a pas de raison de penser que soient inconciliables l'étude (que l'on veut certainement qualifier d'«objectiviste» si elle menée de manière unidirectionnelle) des structures de vie en commun et celle (que l'on peut certainement qualifier de «subjectiviste», si elle est menée de manière unidirectionnelle) du sens en fonction duquel les participants à une existence commune font l'experience des divers avatars de celle‑ci.”

               Norbert Elias, “Sur le concept de vie quotidienne”[813]

 

1.     Elogio do ecletismo metodológico.

 

Hoje começa a ser predominante a perspectiva dos que consideram que as reconfigurações do social exigem um acompanhamento permanente por parte da construção teórica e da reflexão metodológica, com importantes consequências sobre o aparato tecnológico das ciências sociais. Se os fenómenos sociais se transformam, deverá igualmente modificar‑se a forma de os apreender através de instrumentos conceptuais adequados. A proliferação de teorias auxiliares de pesquisa[814], permite vislumbrar o princípio de que a investigação empírica é ela própria conduzida por hipóteses sobre o carácter social das relações de observação, explicitando os “processos simbólico‑ideológicos envolvidos na elaboração (recolha e tratamento) da informação empírica sociologicamente relevante”[815]. Assim, somos levados a reflectir sobre a necessidade de conjugarmos procedimentos metodológicos diversos.

Se é legítimo desconfiar das concepções positivistas que encontram nas estatísticas o alfa e omega da cientificidade, também nos parece inadequado resvalar para um “anti‑cientismo” totalmente confiante na veracidade da expressividade do ponto de vista do agente. Aliás, esta dupla desconfiança é o desafio exigido pelas novas condições sociais e teóricas da prática científica. Se, como refere António Teixeira Fernandes, a concepção determinista dos fenómenos sociais (associado à crença “cientista” do positivismo) se prende a um mundo de referências seguras e estáveis, próprio de um modelo integrado de cultura, da mesma forma as metodologias compreensivas tendem a impor‑se num cenário em que os sistemas sociais perdem normatividade e coerência, fragmentando‑se e flexibilizando‑se, o que leva ao centramento da análise nas condutas individuais e interindividuais e no sentido que produzem[816]. No primeiro caso, favorece‑se a “entificação da sociedade como um todo”, bem como a “reificação da realidade social”[817], de maneira a prever a evolução dos fenómenos, captados através de regularidades e leis. No segundo, emergem “paradigmas de indeterminismo”[818] para apreender as lógicas dos micro‑sistemas culturais em que se baseiam as identidades plurais. Os fenómenos sociais são apresentados como “fluidos, multiformes, pulverizados e em constante mudança”[819].

No entanto, como o mesmo autor refere, a dissolução aparente do social esconde, afinal, processos de recomposição e movimentos cíclicos de reestruturação. Se é verdade que as realidades sociais se apresentam sob novas formas, certamente menos coerentes e previsíveis de acordo com paradigmas teóricos desactualizados, nada nos aconselha a aceitarmos a acção social como actuando num campo infinito de liberdade e indeterminismo, condição, aliás, que contraria não só a possibilidade de existência de um discurso e prática sociológicos autónomos, como os próprios conceitos de sociedade e relação social.

Assim, parece‑nos mais adequado multiplicar as formas de abordagem do objecto de estudo, negando modelos metodológicos unidimensionais e privilegiando a complementaridade, exercício de “compatibilização deliberada entre extensividade e intensividade, centrifugação e centripetação da pesquisa”[820].

Desta forma, conciliámos técnicas como um inquérito por questionário aos públicos de três organizações culturais, a análise documental de fontes estatísticas (elas mesmas produtos institucionais normalizadores que requerem exame crítico permanente, em particular no que se refere ao estado pela luta de classificações legítimas que de alguma forma reflectem: nomear e categorizar, como já tivemos ocasião de afirmar, é também criar, seleccionar, incluir, excluir[821]), a análise de conteúdo de entrevistas, por número de ocorrências e por definição de categorias temáticas (abordagem qualitativa) e a observação directa metódica e sistemática. É o próprio carácter relacional do objecto de estudo que assim o exige.

Em todos os momentos do trabalho de campo deparámos com operações quantitativas e qualitativas. As primeiras nunca o são inteiramente, já que é necessário seleccionar e definir o que vai ser medido e posteriormente interpretado. Do mesmo modo, as metodologias qualitativas não prescindem hoje de uma contabilização estatística mínima da frequência dos fenómenos que observam.

Finalmente, importa salientar a omnipresença da teoria (embora em “doses” distintas) ao longo da pesquisa. De facto, esta unifica os momentos de investigação, impedindo divisões artificiais entre concepção e execução, estando presente quer na definição de modelos de análise, quer no próprio trabalho de campo, o qual, ao requerer uma presença muito activa do investigador, faz redobrar a necessidade de uma atenta vigilância epistemológica, impossível de accionar sem quadros teóricos adequados. O que não significa, obviamente, que não se desafie a teoria de partida, testando o seu grau de adequação ao real — exigência crucial em processos que lidam com o simbólico, ou seja, com a produção, circulação e apropriação de sentido pelos agentes sociais em contextos específicos.

 

2.     Breve reflexão sobre as técnicas utilizadas.

2.1.  Análise documental de fontes estatísticas.

 

O nosso primeiro exercício, prévio mesmo à fase exploratória de trabalho de campo, consistiu na recolha e análise de uma ampla gama de indicadores que fornecessem uma imagem de conjunto, ao mesmo tempo sincrónica e diacrónica, dos contextos territoriais. Assim, tentamos obter dados estatísticos de índole demográfica, económica, social e cultural, de maneira a compor um quadro relativamente completo das respectivas dinâmicas. Utilizamos quer informações já recolhidas e construídas em “segundo grau” em trabalhos sobre a realidade portuguesa, inseridas num quadro interpretativo próprio, quer uma série de publicações do Instituto Nacional de Estatística (INE), ou indicadores fornecidos on line pelo site do INE na Internet, onde a informação aparece mais actualizada e desagregada, quer ainda informação estatística tratada em revistas de estudos do INE. Sempre que possível, comparámos quatro escalas territoriais: nacional, regional (Nuts II — Região Norte), metropolitana e concelhia. Desta forma, pretendemos não só reconstituir imbricações entre os diferentes níveis referidos, como salientar as respectivas especificidades. Revelou‑se extremamente elucidativo para o nosso objecto de estudo o trabalho de análise das reconfigurações recentes da estrutura social portuguesa, em particular no que diz respeito à composição socio‑profissional e à mobilidade social.

 

2.2.  Entrevistas exploratórias.

 

Estas entrevistas, acompanhadas de uma observação incipiente e “diletante” de alguns “quadros” de interacção, permitiu‑nos orientar as “grandes teorias” ou “teorias gerais”[822] do modelo de análise para certos aspectos “locais” da pesquisa. Por outras palavras, favoreceu uma flexibilização de conceitos abstractos, permitindo uma selecção das teorias de médio alcance mais adequadas, bem como o accionar das já referidas teorias auxiliares de pesquisa, num processo em que se combinam, como aliás ao longo de todo o trabalho, procedimentos lógico‑dedutivos (partir de modelos teóricos preexistentes) e indutivos (em que se parte dos factos empíricos para produzir “um esquema de inteligibilidade teórica que possa evidenciar, em doses variáveis, relações sistémicas, causais ou funcionais, processos, etc.”[823]). A fase exploratória, de índole qualitativa tem, pois, o mérito de não aplicar uma “camisa” de forças aos dados empíricos, deixando‑os “desafiar” as teorias de partida.

No entanto, não nos parece, ao contrário do que por vezes se vem advogando, que esta fase exploratória deva ser meramente empírica, ou reduzida a uns vagos conhecimentos sobre o tema que se pretende estudar. O aprofundamento dos quadros teóricos deve ser um trabalho activo desde os primeiros passos da pesquisa. Somente desta forma se poderá falar, com pertinência, de vaivém teoria/pesquisa empírica ou de resolução do hiato que tantas vezes as separa.

No presente estudo, as entrevistas exploratórias dirigiram‑se aos responsáveis dos espaços culturais em análise, bem como a alguns informantes privilegiados sobre os mundos noctívagos da cultura. Baseou‑se, igualmente, numa análise de conteúdo qualitativa dos materiais de publicidade produzidas para divulgar a oferta cultural desses espaços. Ou seja, procurou‑se, essencialmente, construir um esquema de inteligibilidade da oferta teórica e das representações dos directores artísticos e produtores culturais.

 

2.3.  O inquérito por questionário.

 

Como vários autores têm referido, a possibilidade de inquirir populações relativamente vastas e a comparação de resultados são duas das vantagens dos inquéritos por questionário. No nosso estudo o inquérito permitiu‑nos, de facto, descortinar regularidades nas práticas culturais dos públicos, bem como as clivagens exercidas por variáveis estruturadas e estruturantes como a idade, o sexo, o capital escolar e a trajectória social. Simultaneamente, possibilitou‑nos a comparação entre os três espaços seleccionados, bem como a explicitação de lógicas de heterogeneidade internas a cada um deles, desfazendo assim as recorrentes “ilusões da homogeneidade”.

No entanto, a aplicação de um inquérito sobre práticas culturais comporta vários riscos e desvantagens. Desde logo, por questões práticas. O inquérito que construímos revelou‑se inadequado face à reduzida disponibilidade revelada pelos inquiridos. De facto, um inquérito longo (Anexo III) que demora cerca de trinta minutos a ser preenchido coaduna‑se mal com o espírito de descontracção e diversão das saídas culturais nocturnas. Por outro lado, condições de ruído pouco favoráveis (no B Flat e na Praia da Luz) reduziam o tempo efectivamente consagrado ao inquérito. Deveríamos ter elaborado um instrumento mais ágil e com menos questões abertas. Assim, os inquéritos recolhidos (547) e distribuídos em várias ocasiões, para cada um dos espaços, de forma a conseguirmos uma aproximação à real diversidade e constituição dos públicos, representam apenas cerca de 30% dos inquéritos distribuídos. De igual modo, as respostas às questões respeitantes à caracterização socioprofissional dos inquiridos, da sua família de destino e de origem, obtiveram índices de não‑resposta ou resposta incompleta superiores a 50%, impossibilitando a utilização de uma matriz de construção de lugares de classe.

Mas há razões mais profundas e que nada têm a ver com este tipo de contingências. Com efeito, o inquérito por questionário é frequentemente criticado por reproduzir uma versão oficial da realidade, na medida em que, na elaboração das perguntas, nas respostas e na sua posterior codificação intervêm factores sociais que transcendem a situação de inquérito, embora esta também seja socialmente condicionada (em especial nos casos de administração indirecta, em que se verifica interacção entre inquiridor e inquirido). Reacções de prestígio e acomodação aos padrões sócio‑culturais que se julgam dominantes são atitudes que, em especial em inquéritos sobre práticas culturais, aos quais está subjacente uma definição legítima dessas práticas, se revelam habituais. A resposta, como escreveu Virgínia Ferreira, é o “resultado da identidade social e pessoal estratégica que o respondente definiu como adequada à situação”[824]. Claro que, no presente caso, e à luz de todos os anteriores trabalhos neste domínio, seria previsível (tal como efectivamente se veio a verificar) uma certa homogeneidade nas características sócio‑demográficas dos inquiridos (juvenilidade, alto capital escolar, etc.) o que evita grandes desvios face ao “inquirido modelo” (em termos de competências cognitivas, linguísticas e culturais) que está igualmente implícito em cada inquérito e que, não raras vezes, se aproxima do perfil social do investigador.

De qualquer forma, e como acentua João Sedas Nunes, mesmo num inquérito em que se utilizam tipologias de práticas culturais que se aproximam de uma visão alargada e diversificada do campo cultural, tendo‑se em conta, paralelamente, os usos quotidianos do tempo, introduz‑se, mais ou menos subliminarmente um arbitrário cultural: “por que razão um museu é naturalmente um equipamento cultural e uma linha de metropolitano não o é? (...) Por que razão a ida a um museu é naturalmente uma frequência cultural e a utilização daquela linha não o é? Ou, num outro plano, por que razão a leitura de um livro é entendida como recepção de uma «obra cultural» e a resposta a um inquérito (...) não o é?”[825].

De qualquer forma, o inquérito é um instrumento útil na contextualização social das práticas culturais e das representações simbólicas, ao permitir detectar constelações de atitudes, opiniões e crenças, relacionando‑as com variáveis que traduzem relações e condições objectivas de um espaço social estruturado, dentro de uma perspectiva que se pode considerar holística, bem como definir a frequência estatística das dimensões observadas. Desde que se tome consciência da sua falsa neutralidade e, bem entendido, conquanto seja integrado em programas de pesquisa ecléticos no que respeita à utilização da panóplia de técnicas disponíveis.

 

2.4.  As entrevistas semi‑directivas.

 

Estas entrevistas, aplicadas em número de 88 durante a fase central do trabalho de campo, em paralelo com os inquéritos (embora a indivíduos diferentes), como se pode constatar pelo respectivo guião (Anexo IV), tinham como objectivo captar o discurso dos praticantes culturais sobre a relação entre o “ficar em casa” e o “sair à noite”, bem como os significados associados ao espaço doméstico e ao espaço semi‑público de sociabilidade mundana e cosmopolita. O guião revelou‑se suficientemente flexível para permitir aos entrevistados a expressão da sua “realidade”, quadros interpretativos e esquemas de referência, sem obrigar a entrevistas muito longas (quinze a vinte minutos em média). Ao contrário do inquérito, a reacção dos entrevistados foi quase sempre positiva, o que se pode relacionar, precisamente, com a maior possibilidade de estruturarem o seu discurso sem grandes limitações prévias.

Se iniciássemos agora a pesquisa, reformularíamos as questões abertas e semi‑abertas relativas aos modos de recepção cultural de forma a fazerem parte do guião de entrevista. Estas dimensões requerem, de facto, um enquadramento menos “cartesiano”, de maneira a que, em situação de entrevista, as respostas reflectissem as singularidades dos universos simbólicos dos entrevistados, evitando qualquer lógica de estandardização ou condicionamento prévio.

 

2.5.  A observação directa.

 

Com a utilização de uma grelha de observação directa, pretendeu‑se colmatar alguns dos limites inerentes às metodologias extensivas, bem como superar a velha divisão do trabalho entre a sociologia (supostamente cingida ao inquérito por questionário, instrumento da objectividade oficial e garante da separação rígida entre sujeito e objecto) e a antropologia (limitada às técnicas de observação, imersão nas realidades vividas)[826]. Como se sabe, a descoincidência entre práticas efectivas e práticas declaradas obriga a uma utilização crítica das verbalizações dos inquiridos e entrevistados, em especial no que se refere à expressão dos gostos e aos usos da cultura, em que a paralinguagem (ritmo e timbre de voz, silêncios, hesitações, dicção, etc.) e a linguagem cinética (gestos, olhares, posturas corporais, etc.) ocupam um lugar central. Como refere Serge Collet, na defesa de uma “etnografia dos públicos em acção”[827], os gostos devem ser captados tanto por sistemas de atitudes verbalizados num discurso coerente, como por gestos e mímicas: “Un spectateur, ça bouge!”[828]. No entanto, não se pense que a corporalidade é o reino do inefável: as reacções mais íntimas do imaginário do espectador são codificadas e acessíveis à análise. Além do mais, a pluralidade de formas de recepção de um espectáculo impele‑nos a ter em conta, em diferentes momentos (antes do espectáculo, durante a sua realização, nos intervalos, no final) dimensões como a relação com o espaço físico e a forma como está organizado e regionalizado, os modos de apresentação em cena, as modalidades de interacção, as conversas “espontâneas” (desenrolando‑se perante a suposta ausência do investigador, que as regista a coberto do anonimato), os registos descritivos de comportamentos, a sociabilidade etc. Trata‑se, afinal, de captar “os comportamentos no momento em que eles se produzem e em si mesmos, sem a mediação de um documento ou de um testemunho”[829], com a vantagem de ser uma técnica “não‑reactiva”, como realça Crespi, “no sentido de reduzir ao mínimo os efeitos da presença do investigador”[830].

 Se a “verdade” dos respondentes não capta a totalidade das relações sociais, se o seu sentido não se esgota na intencionalidade dos agentes, não bastará, no entanto, utilizar técnicas de cariz etnográfico. Como refere António Joaquim Esteves, “qualquer processo de empatia do investigador, colocando‑se do «ponto de vista» do autor, não pode ficar refém da sua subjectividade ou do sentido. A ser assim, o trabalho de investigação nem chegaria a estar à altura de um trabalho de tradução”[831]. A objectivação dos mecanismos simbólico‑ideológicos de que os agentes se servem quotidianamente no processo de construção social da realidade revela‑se igualmente indispensável.

 

3.     Um estudo de casos comparativo.

 

 

O carácter multifacetado desta pesquisa não pode ser dissociado do facto de estarmos em presença de três estudos de caso, em que se pretendeu analisar, com um certo grau de exaustividade e profundidade, a interacção de factores inerentes às vivências culturais em cenários com identidades específicas. Claro que não se logrou esgotar o leque de dimensões de análise, como por vezes ingenuamente se espera de um estudo intensivo. Antes se optou pela análise selectiva de questões‑chave, nomeadamente as que remetem para a interdependência recíproca entre o espaço social e a esfera cultural em processos de rápida mudança social em contexto urbano.

A generalização é, obviamente, limitada, embora não impossível. O mais importante, todavia, como salienta Judith Bell, é alargar os quadros do conhecimento existentes, de forma a fornecer modelos de análise que possam ser testados em situações semelhantes[832].

Uma dimensão deste estudo que deve ser realçada é o seu cariz comparativo. De facto, ao analisarem‑se três espaços de fruição cultural com programações diferentes (embora com pontos de convergência) pretendeu‑se dar conta da pluralidade de mundos da cultura, ao mesmo tempo que se insinuou a possibilidade de cada um deles constituir um tipo‑ideal de instituição cultural. Finalmente, ao introduzir‑se a perspectiva comparativa, clarificou‑se a especificidade de cada local. Assim, o Teatro Municipal Rivoli, por exemplo, ganha contornos mais nítidos (a sua singularidade torna‑se mais transparente) ao ser posto em relação com os restantes espaços e vice‑versa.

 

4.     Uma nova grelha de classificação das práticas culturais.

 

                                                                                             

               Com o duplo propósito de, por um lado, operacionalizarmos as categorias e relações entre categorias presentes no modelo de classificação das práticas culturais desenvolvido por José Madureira Pinto[833], e, por outro, de mantermos o princípio de cumulatividade do conhecimento científico, propomos a grelha seguinte. Como se poderá constatar, ela segue relativamente de perto a nomenclatura utilizada por José Machado Pais em vários estudos[834], não excluindo, no entanto, novos critérios de agrupamento das práticas culturais (modificando o conteúdo das categorias) e mesmo algumas alterações conceptuais.

 

            I. Espaço Doméstico

            1. Práticas domésticas criativas: fazer “bricolage”; artesanato; escrever um “diário”; cozinhar por divertimento.

            2. Práticas domésticas expressivas, de interacção e sociabilidade: receber familiares em casa; receber amigos em casa; ir a casa de familiares; ir a casa de amigos.

            3. Práticas domésticas receptivas, de consumo e/ou fruição: ver televisão; ouvir rádio; ouvir música; ler livros sem ser de estudo ou profissionais; ler jornais[835]; ler revistas; ver filmes vídeo em casa.

            4. Práticas domésticas de abandono: não fazer nada; dormir a sesta.

 

            II. Espaço Público

            5. Práticas expressivas públicas: Frequentar festas de carácter popular; passear; fazer desporto; fazer “jogging”; fazer pequenas viagens; ir à pesca; ir à caça; ir à praia; passear em centros comerciais; ir a feiras.

            6. Práticas participativas públicas: assistir a jogos de futebol (ou outros espectáculos desportivos); assistir a touradas; ir ao circo; ir a concertos de música popular e moderna.

 

            III. Espaço Semi‑público

            7. Práticas expressivas semi‑públicas: ir a cafés, cervejarias, pastelarias; ir à missa ou a cerimónias religiosas; ir a discotecas; ir a bares; almoçar ou jantar fora sem ser por necessidade; jogar em máquinas electrónicas (casas de jogos); ir às compras (roupa, discos, livros, etc.).

            8. Práticas receptivas semi‑públicas: ir ao cinema.

 

 

 

 

            9. Práticas de rotina semi‑públicas: comprar comida e mercearias.

 

            IV. Espaço Associativo/espaço semi‑público organizado

 

            10. Práticas associativas criativas: fazer teatro amador; dançar (dança contemporânea, ballet, jazz e folclore); tocar (num grupo musical, coro, rancho, etc.); cantar (num grupo musical, coro, rancho, etc.).

            11. Práticas associativas expressivas: ir a associações recreativas ou a colectividades locais; jogar xadrez; jogar às cartas, damas, bilhar, etc.; fazer campismo e caravanismo.

 

            V. Espaço da cultura cultivada/sobrelegitimada

            12. Práticas eruditas criativas: escrever (poemas, contos, etc.); artes plásticas (pintar, desenhar, etc.); fazer fotografia (sem ser em festas ou em férias).

            13. Práticas receptivas e informativas de públicos cultivados: ir ao teatro; ir a concertos de música clássica; visitar museus, exposições, etc.

 

            Convém explicitar que a tipologia proposta por José Madureira Pinto assenta no cruzamento de dois critérios: “modos de relação com os bens culturais” e “espaços sociais de afirmação cultural”. A grelha deste autor complexifica o modelo sugerido por Lalive D'Epinay[836], que cruza a posição do actor (dicotomicamente dividida em “emissor” e “receptor”) e o espaço das práticas, segmentado em “caseiras” e “exteriores” (cada um dos conjuntos com várias subdivisões). O esquema de Madureira Pinto permite ir mais longe na consideração das hierarquizações do campo cultural ao considerar, para além do “público” e “privado”, o espaço organizado e mais ou menos tutelado das subculturas dominadas e/ou emergentes, o espaço das indústrias culturais e o círculo da cultura cultivada.

             Por outro lado, enquanto D'Epinay considera apenas três conjuntos de práticas —expressão, interacção, informação —, Madureira Pinto propõe criação, expressão (associada à interacção), participação e recepção/consumo, enriquecendo o leque de modos de apropriação da cultura.

             A nosso ver, na “participação” podemos conceber a “fruição cultural”, enquanto processo de recepção tão activo que transforma o receptor em emissor, ainda que no contexto de uma produção que lhe é exterior (por exemplo, assistir a espectáculos desportivos ou de música popular/moderna — o espectáculo dentro do espectáculo).

             Acrescentamos uma outra categoria, de carácter quase residual no conjunto da tipologia, retirada da proposta de José Virgílio Pereira[837] (por sua vez inspirada em Lalive D'Epinay e Norbert Elias) — “práticas de rotina semipúblicas” — e que apenas pode ser incluída no campo cultural se da cultura mantivermos uma concepção ampla e antropológica.

            Ir ao cinema, enquanto saída cultural relativamente generalizada e abrangendo uma pluralidade de géneros (filmes de “autor” — a chamada “indústria de conteúdos” —, megaproduções “comerciais”, filmes pornográficos, etc.), foi separada das práticas receptivas e informativas dos públicos cultivados.

             Quando nos referimos a “práticas associativas” fazêmo‑lo num sentido lato, já que não têm necessariamente de ocorrer em associações formalmente constituídas, mas sim em espaços colectivamente organizados com fins também, embora não exclusivamente, formativos (é o caso de praticar canto ou dança em escolas especializadas).

            A inclusão dos centros comerciais no espaço público justifica‑se pelo facto incontornável de serem o “passeio público” da actualidade (sub)urbana, de acesso quase livre e potencialmente gratuito. Não esquecemos, todavia, que constituem “mundos artificiais” onde se exerce de forma velada uma efectiva selecção e controlo sociais.

             Ir às compras sem ser por mera rotina (caso das roupas, livros e discos) assume‑se como um acto de potencialidades lúdicas, conviviais e mesmo formativas (frequentar assiduamente uma livraria, por exemplo), com o intuito explícito, muitas vezes, de quebrar a dita rotina.

Finalmente, importa referir que estes mecanismos de selecção, ordenação e abstracção do material recolhido (nomenclaturas, tipologias), ao mesmo tempo que facilitam a interpretação, excluem certas dimensões de análise. Na pesquisa, como em qualquer actividade humana, optar acarreta sempre ganhos e perdas.

CAPÍTULO X

ESPAÇOS E TEMPOS DE UMA INVESTIGAÇÃO

 

            1. Rivoli: A fénix renascida.

            1.1. Breve Historial.

            O Teatro Rivoli acompanha muito de perto a história do Porto neste século. Lugar de evocações, memórias, vivências e emoções, associa‑se, de forma marcante, a uma determinada época da vida de muitos portuenses:

            “Para mim o Rivoli com o seu nome de sabor italiano pontuado de vogais abertas é uma memória do princípio da adolescência (...) o teatro aparecia‑me enorme na sua arquitectura ágil de desassombrado modernismo numa cidade quase sempre dominada pelo peso granítico dos edifícios oitocentistas (...) Apagavam‑se as luzes do teatro e soavam os primeiros acordes de afinação, enquanto subiam as luzes do palco e algumas tosses renitentes se iam aplacando na plateia (...) Mais do que a missa, ainda em latim, que não tinha idade para perceber, o concerto de domingo de manhã no Rivoli iniciava‑me à dimensão misteriosa do espiritual”[838].

            Para outros frequentadores, o Rivoli soará de forma diferente, porque muitos foram os que transpuseram as suas portas ao longo de uma história multifacetada e salpicada de imprevistos. Alguns lembrar‑se‑ão das soirées de dança, música ou ópera, outros de filmes a diferentes títulos memoráveis (alguns de películas de duvidosa qualidade, inclusivamente de cariz pornográfico...), outros ainda da metamorfose do teatro em gigantesca discoteca. Enquanto lugar de memória, o Rivoli é um manancial de vozes que a seu modo interpretam os contextos espaciais em que se movimentam. O Rivoli, espaço e lugar, é um texto polissémico e gerador de discursos polifónicos: existirá sempre em função de diferentes pontos de vista de actores socialmente situados[839]. Como refere Isabel Alves Costa, directora artística do novo Rivoli:

            “Esta casa tem um peso muito grande na memória das pessoas: foi um centro de ópera muito importante em determinada época; há memória de cinema, sobretudo nas camadas mais populares; a formação musical de muitas pessoas foi feita aqui”[840].

            Ou ainda Pedro Ramalho, arquitecto responsável pela recente recriação do edifício:

            “Do ponto de vista arquitectónico e urbanístico, considero que o Rivoli faz parte integrante de toda a renovação urbana do centro do Porto desde o início do nosso século (...) o mérito da obra é muito mais exterior do que interior e tem a ver com a sua localização”[841].

            O seu nascimento remonta ao antigo Teatro Nacional, propriedade de Manuel Pires Fernandes e da família Borges (ligada à banca), abrindo as suas portas em 5 de Dezembro de 1913, com uma lotação de 1500 lugares, para a estreia de uma peça de teatro de revista “importada” de Lisboa. Ocupava o grandioso edifício todo o espaço do actual Rivoli e da filial da Caixa Geral de depósitos. A sua construção articula‑se com uma profunda renovação urbanística do “novo” centro da cidade (Avenida dos Aliados, Praça da Liberdade) que se inicia na segunda década do nosso século. Pelos registos da imprensa local, o novo espaço causou admiração, dada a sua dimensão e arrojo, salientando‑se, desde logo, no conjunto dos equipamentos culturais da época[842].

            Demolido o Teatro Nacional, nasce, em 20 de Janeiro de 1932, o Rivoli, propriedade do mesmo empresário, Pires Fernandes. Dois anos antes, em Assembleia Geral da empresa que viria a gerir o Rivoli, regista‑se que “o desideratum desta empresa era dotar o Porto com uma casa de espectáculos digna da capital do Porto, e nunca com fins de especulação rendosa, pois nenhuma probabilidade havia de se poder obter um juro remunerador do capital a despender, jamais no estado em que se encontra o Teatro Português”[843]. Curiosas e actuais palavras... Repare‑se que o seu sentido permanece inteiramente actual: aponta‑se a região do Porto (e não apenas a cidade, a capital) como área beneficiária do equipamento; define‑se a intenção de uma política de serviço cultural não lucrativo e fala‑se, ainda, da “crise” do teatro português como dificuldade a superar.

            Uma vez mais, o Rivoli, que aumenta a sua capacidade para 1800 lugares, estreia com uma peça produzida em Lisboa, estilo teatro‑comédia, da companhia do Teatro Nacional liderado pela famosa dupla Amélia Rey Colaço — Robles Monteiro. De novo, recepção entusiástica da crítica e do público. O edifício impressionava pelos seus “átrios, escadarias, decoração, pinturas, comodidade e número de lugares”[844], sendo por alguns considerado “a última palavra em modernismo, em conforto e em bom gosto”[845]. Logo oito meses após a sua inauguração, o Rivoli encerra para breves obras, tendo em vista a introdução do cinema sonoro. A isso obrigou a pressão do público, claramente rendido à sétima arte. Como refere Bandeira, “verificamos que uns bons 90% da programação do Rivoli, a partir da temporada de 1933/34, é constituída por cinema”[846], correspondendo a uma época de ouro da cinematografia americana[847]. No entanto está igualmente presente o teatro para o grande público, a par dos concertos, da ópera e da opereta.

            A partir de 1944, com a ascensão de D. Maria Borges ao cargo de directora, começa o que para muitos foi a época áurea do Rivoli. Autêntica mecenas das artes, apoia a Orquestra Sinfónica do Conservatório de Música do Porto, bem como o Círculo de Cultura Musical, promovendo igualmente temporadas de ópera e recebendo algumas das melhores companhias teatrais europeias, mantendo‑se, simultaneamente, o cinema de qualidade. Pode‑se considerar que esta fase, que durou até aos anos 60, representa uma reorientação do Rivoli em direcção a públicos mais cultivados, cumprindo, ao mesmo tempo, a função de representação simbólica da burguesia portuense instruída.

            Nos anos 70 (D. Maria Borges morre em 1976), a agonia toma conta do Rivoli, a contas com grandes dificuldades financeiras e com uma degradação extrema da sua programação, confinada exclusivamente ao cinema, exibindo mesmo, entre 74 e 75, colecções de filmes pornográficos. Antes de ser adquirido, em 1989, pela Câmara Municipal do Porto, o Rivoli foi ainda uma danceteria e cobiçado por empresas imobiliárias, sendo ventilada a ideia de demolição. A intervenção camarária salva o edifício e submete‑o a obras urgentes de remodelação. Ainda em 1989, é consagrado como Teatro Municipal, por unanimidade dos partidos representados na autarquia.

            A partir de 1991, e com a criação do Pelouro de Animação da Cidade, decide‑se proceder a uma ampla reconstrução do edifício, sendo o projecto da responsabilidade do arquitecto Pedro Ramalho. Entretanto, e antes de as obras se iniciarem, é desenvolvido um período de programação cultural que serve para testar projectos, burilar o futuro modelo organizacional e apreender algumas características dos públicos potenciais. Mesmo com a primeira fase das obras a decorrer (que incluíram a remoção das cadeiras da sala de espectáculos) teve lugar o ciclo de teatro Rivoli Vazio, com o intuito de experimentar as potencialidades cénicas de um espaço “despido” e provisório[848].

            O “novo” Rivoli, renascido de um teatro esventrado que pouco mais conservou do que algumas fachadas, baixos‑relevos e traços arquitectónicos de identificação, é inaugurado a 16 de Outubro de 1997 com um concerto da recém‑criada Orquestra Nacional do Porto. O edifício afigura‑se bastante remodelado e com uma multiplicidade de espaços. Desde logo o grande auditório com lotação de 858 lugares, em forma de anfiteatro, sem os velhos camarotes e com uns polémicos painéis acústicos. Mas contando igualmente com um pequeno auditório para cerca de 180 espectadores, um café‑concerto e um restaurante, um amplo foyer e, em zona reservada, uma sala de ensaios que reproduz o palco, camarins, um bar de artistas e um espaço amplo para o sector administrativo.

 

            1.2. Um novo modelo organizacional e de programação cultural.

 

            Muitas outras dimensões mudaram com o “novo” Rivoli. O modelo organizacional e gestionário é inédito na história cultural da cidade. Com efeito, “a programação, organização e produção das actividades do Rivoli Teatro Municipal”[849] é uma das principais incumbências da CulturPorto — Associação de Produção Cultural, composta por dois associados fundadores: a Câmara Municipal do Porto (que assegura a sua direcção, através da vereadora do Pelouro de Animação da Cidade) e o Instituto Politécnico do Porto, onde se encontram integradas as Escolas Superiores de Teatro e de Música e, futuramente, de Dança. Várias são as razões subjacentes à escolha deste modelo. Por um lado, como nos referiram os responsáveis autárquicos, obtém‑se um grau de flexibilidade e operacionalidade que jamais se conseguiria caso fosse a autarquia a gerir o Teatro, sujeita que está a uma vasta panóplia de obrigações burocráticas[850]. Por outro lado, estimula‑se a possibilidade de fomentar a educação artística, um dos objectivos declarados da nova direcção artística. De facto, para lá da promoção de novos artistas e do serviço público de apoio à criação artística propõe‑se contribuir para a formação, em contacto com o público e com outros agentes culturais, de maneira a quebrar eventuais efeitos de fechamento. Aliás, toda esta vertente é pensada articuladamente com a formação de públicos em geral, e na sua dimensão juvenil em particular, através de três possíveis hipóteses:

            ‑ “convidar um encenador para fazer uma produção no teatro, sendo proposto a um grupo de escolas o mesmo texto para que, durante o processo de montagem do espectáculo profissional, pudesse haver encontros e discussões, tornando os jovens que trabalharam aquela mesma história em público privilegiado do espectáculo”

            ‑ “convidar uma companhia de fora para residir durante um certo tempo no teatro, montando e fazendo a estreia de um seu espectáculo (...) queria recuperar a ideia de residência, obrigando contratualmente os artistas. Eles saberiam o que tinham para fazer, obrigando‑os a uma participação activa nas actividades do teatro. Podendo fazer ensaios abertos, participar em colóquios, em conferências, tertúlias (...) tentar saber antes de elas serem residentes qual o tema, partindo de um texto ou de uma criação colectiva e propor essa problemática ao grupo das escolas”

            ‑ “ a terceira maneira era partir de um espaço, convidar as escolas para virem ver o espaço e dizer‑lhes «este é o teatro onde podem apresentar o vosso trabalho de fim de ano». Implica fazer uma visita séria ao auditório, com todas as indicações técnicas precisas. Parte‑se de uma apreensão do espaço para uma criação”[851].

           Existe, aliás, dentro desta mesma linha, um interessante projecto, ainda não concretizado, apresentado por Teresa Lima e que tem por lema, precisamente, a formação do espectador. Considera‑se, nesse documento, que o contacto com as escolas e o movimento associativo são a pedra de toque de uma política de formação de públicos. Insiste‑se, igualmente, na dessacralização da produção artística através do contacto próximo com as técnicas da criação e com os próprios criadores.

           No entanto, um dos pressupostos revela‑se no mínimo discutível, especialmente tendo em conta a vocação municipal do Rivoli, ou, se preferirmos, a sua “natureza” de instituição cultural de serviço público. Quando se afirma que “formar espectadores significa formar melhores espectadores e não angariar mais espectadores (vocação da publicidade e marketing)”[852] resvala‑se para uma aporia de contornos duvidosos, já que, como discutimos noutros capítulos, tal diferendo deve ser assumido como uma tensão em permanente busca de compromisso.

            Outro eixo estruturante da programação liga‑se à polivalência do Teatro. Como já referimos, o Rivoli é composto por uma pluralidade de espaços onde, simultaneamente, se podem realizar actividades diversas, embora quase sempre complementares. Uma das preocupações da direcção é, precisamente, conferir uma certa identidade às várias iniciativas, de forma a evitar a imagem de fragmentação. A própria filosofia inerente à polivalência é de molde a suscitar sérias apreensões, desde logo na concepção do espaço, como realça o arquitecto responsável pelo novo projecto:

            “Como espaço polivalente, nunca seria possível criar condições óptimas para cada um dos diferentes espectáculos. Tivemos de conciliar as diversas situações possíveis”[853].

            Preocupações igualmente presentes na direcção artística:

            “A ideia da polivalência tem aspectos muito complicados. Nós sabemos que em termos de visibilidade, de acústica, de comodidade, é um compromisso difícil que se tem de encontrar para se fazer um bom concerto com uma orquestra, mais um eventual com um Pedro Abrunhosa, mais uma ópera, um teatro, cinema, etc., já que uma destas actividades ou mesmo todas resultarão menos boas (...) portanto, o supermercado da cultura, como lhe costumo chamar, tem os seus perigos. Um deles é o de não haver uma identidade definida”[854].

            De facto, a filosofia da polivalência elimina a velha especialização das casas de espectáculo, que tornava eventualmente mais fácil a opção do espectador, habituado a relacionar um dado espaço com um determinado género ou produção cultural. No entanto — e essa é uma enorme vantagem ‑, permite a captação de correntes diversificadas de públicos, para além do contigente já cativado. Um outro ganho prende‑se com a possibilidade de explorar uma unidade temática através de várias formas de expressão e níveis de cultura, repartidas por espaços de características diferentes (o grande auditório, o café‑concerto, o foyer, etc.). De certa forma, uma ideia‑mãe metamorfoseia‑se numa miríade de modalidades, com públicos‑alvo diferenciados, embora sem deixar de lado o eventual trânsito e intercâmbio que um espaço destes propicia. A mesma directora artística, ciente, como há pouco vimos, das acrescidas dificuldades desta polivalência, não deixa de assumir as suas vantagens:

            “Eu gostava que o Rivoli fosse um Centro Cultural do Porto. Não um centro comercial de cultura, mas um centro cultural no sentido positivo do cruzamento, do encontro, da discussão, do diálogo entre as várias expressões”[855]; “Pretende‑se que o Rivoli possa ser um centro de convívio, formação, cruzamento, versatilidade, confronto, discussão...”[856].

            Esta questão é indissociável da vocação municipal do teatro. Não só se pretende que atinja um público vasto, como, mais importante ainda, se almeja que cumpra um espírito de democratização cultural e onde a experimentação tenha um cunho de aprendizagem. A directora artística define desta forma essa vocação intrínseca, por oposição ao status quo de um Teatro Nacional:

            “Um teatro municipal é um espaço mais democrático. Democrático no sentido nobre da palavra. Um Teatro Nacional é um espaço menos democrático, na medida em que tem de haver uma indicação mais fechada em relação à definição dos seus objectivos (...) o S. João devia ser um exemplo do melhor que se faz. O Rivoli, por ser um espaço mais democrático, tem mais direito ao erro. É um espaço que tem outra dinâmica, deve‑se dar oportunidade às pessoas de fazerem mal, ali podem errar porque só assim aprendem”[857].

            Os reflexos deste espírito estão nitidamente patentes na programação. Ao olharmos, aleatoriamente, para um qualquer mês de actividade (Novembro de 1997, por exemplo), deparamos com a seguinte repartição:

            ‑ Grande Auditório: Festival de Jazz; Gust (dança contemporânea); A Libertação de Prometheus (música); Máquina Hamlet (teatro), etc.

            ‑ Pequeno Auditório: Cinema e Jazz; Inventão (teatro); Fausto e Prometeu no Imaginário Ocidental (conferência); concerto de Domingo; ciclo de vídeo H. Muller; etc.

            ‑ Café‑concerto: programa Nascer da Noite[858]: club jazz; programa Chá das 6[859]: A propósito do jazz; Chá das 6: conversa com Francisco Camacho; Nascer da Noite: Frei Fado d'El Rei (música portuguesa); Nascer da Noite: A canção alemã; etc.

            Repare‑se como muitas das actividades se encontram articuladas. A unidade temática jazz reparte‑se por vários espaços e iniciativas; o mesmo acontece com a unidade teatro alemão, partindo da peça Máquina Hamlet de Heiner Muller ou ainda, em menor dimensão, com a dança contemporânea, já que o autor de Gust, Francisco Camacho, participa igualmente na tertúlia.

            Olhando para a programação que acompanhou a duração do trabalho de campo, torna‑se igualmente patente a especialização de cada um dos espaços. O Grande Auditório, dadas as suas características físicas e simbólicas, contempla os grandes concertos (embora se note aqui uma grande pluralidade, que vai da música clássica à música ligeira passando pelo jazz e pela dança contemporânea, sem esquecer o teatro e o cinema, na forma de um festival internacional); o Pequeno Auditório, por seu lado, alberga peças de teatro que requerem menores recursos cénicos, a par de conferências, ciclos de vídeo e de cinema, bem como lançamento de revistas; o Café‑Concerto, de longe o espaço com programação mais heteróclita, acolhe espectáculos de magia, tertúlias, música erudita contemporânea, hip‑hop, música de raiz trovadoresca, jazz, performances teatrais, etc. Finalmente, o foyer destina‑se quase exclusivamente a exposições.

            Outra importante consequência deste estatuto de Teatro Municipal ancora na assunção da natureza não‑lucrativa (ou mesmo deficitária) do seu funcionamento, numa lógica assumida de serviço público. Como refere a vereadora da Animação da Cidade:

            “A CulturPorto vai ser financiada pela Câmara precisamente porque presta um serviço público. Naturalmente que alguns espectáculos podem dar prejuízo...”[860].

            Esta lógica de serviço público tem naturalmente consequências financeiras significativas, obrigando à definição rigorosa de critérios e prioridades, de forma a optimizar recursos escassos. Trata‑se, uma vez mais, de delinear políticas. E de exercitar o espírito inventivo dos programadores:

            “A minha experiência anterior do Festival de Marionetas habituou‑me a trabalhar com pouco dinheiro e a tentar encontrar soluções interessantes e baratas. Dizia muitas vezes que esperava que nunca me dessem dinheiro suficiente para perder a imaginação necessária a criar formas de fazer capazes de vivacidade e não produtos institucionais (...) Tivemos uma atenção quase política, porque um teatro municipal depende de fundos municipais de municípios que não são ricos num país que não é rico”[861].

            Uma das formas de contornar custos económicos elevados e de fomentar a colaboração entre instituições culturais de perfil complementar é a realização de co‑produções. Aliás, a recente implantação e/ou recuperação no Porto de diversos pólos culturais (com especial destaque para o Teatro Nacional S. João e para o Coliseu) obriga a uma profunda articulação de programas, não só para, precisamente, rentabilizar recursos e fomentar intercâmbios, mas igualmente tendo em vista eliminar formas “negativas” de concorrência. O próprio público, não o esqueçamos, é bastante restrito e não se coaduna com a exibição, em simultâneo, de produções de cariz semelhante.

            Outra estratégia, frequentemente usada pelos produtores do Rivoli, consiste, perante a falta de verbas avultadas para as suas áreas, em utilizar redes informais de conhecimentos, junto de produtores de outras instituições, eventualmente mais abonadas, tendo em vista a obtenção de uma informação complementar que permita um conhecimento diversificado de novas propostas artísticas. Se um desses produtores mais afortunados tem a possibilidade de se deslocar amiúde ao estrangeiro para se inteirar das dinâmicas recentes do mercado internacional, é certo que prestará alguma atenção aos pedidos dos seus colegas do Rivoli, mediando contactos e trazendo informação. Tudo isto contribui, em nossa opinião, para criar dinâmicas de colaboração no interior de um campo habitualmente conflituoso e competitivo. Por outras palavras, a magreza dos orçamentos não tem só consequências negativas e não é uma fatalidade incontornável.

 

 

 

 

            1.3. As expectativas do campo cultural portuense.

           

       Como tivemos ocasião de esclarecer no capítulo IX, referente às estratégias metodológicas, uma das nossas abordagens exploratórias consistiu na auscultação às organizações culturais sediadas no Porto sobre as expectativas criadas perante a renovação do Rivoli. Apesar do fraco índice de respostas, é‑nos possível delinear um conjunto de conclusões que, de certa forma, exprimem as posições ocupadas por essas instituições no campo cultural portuense, os seus interesses específicos, bem como a representação que elaboram sobre o posicionamento virtual do Rivoli. Assim:

       – A maior parte das entidades (12 em 16) desenvolve outras iniciativas, para além da actividade principal a que se dedica. Tal deve‑se à vontade de colaboração inter‑artística (juntando, por exemplo, o teatro, os audiovisuais, a música e as artes plásticas), o que de alguma forma confirma tendências recentes da produção cultural, no sentido de criar obras multiformes e de fronteira, sacrificando a ideia de uma “pureza” e linearidade originais[862]. Outro dos terrenos onde essas organizações investem cinge‑se às actividades de animação cultural e de formação. Razões de procura de fontes complementares de sobrevivência económica estão também na origem deste exercício da polivalência;

– A maior parte optaria também por uma conciliação entre ruptura e continuidade (8 respostas em 16 possíveis) no funcionamento do Rivoli, de forma a preservar uma certa memória e uma tradição de qualidade, mas equipando simultaneamente o espaço com as melhores condições técnicas e com uma maior zona de trabalho para os artistas, a par de uma diversificação das áreas de expressão cultural. As entidades que advogam a ruptura justificam‑na pela inexistência anterior de um modelo de contornos precisos e pela degradação a que o espaço tinha chegado;

       – 12 destas instituições defendem a polivalência (no que se refere aos espaços, às actividades e aos públicos‑alvo) e a multifuncionalidade do Rivoli, nomeadamente pela possibilidade de maior abertura a múltiplas e heterogéneas formas de expressão, inclusivamente para além do domínio das artes do espectáculo. Uma das instituições inquiridas afirma mesmo a sua aspiração de que “o Rivoli se torne um centro cultural digno, que a cidade não possui. Que seja um pólo de atracção e de animação permanente”. Esta ideia de centro cultural e de pólo é, aliás, recorrente;

       – um altíssimo nível de expectativas face ao “novo” Rivoli, o que revela, sem dúvida, não só a confiança de alguns dos principais agentes culturais na viabilidade do seu projecto, mas, igualmente, uma fortíssima carência de um equipamento com o perfil anteriormente delineado. Por outras palavras, parece consensual a legitimidade atribuída ao Teatro Municipal enquanto entidade privilegiada de criação, difusão e animação cultural citadina e metropolitana. Repare‑se que do Rivoli se espera, entre muitas outras funções, que promova “actividades regulares de atendimento ao público muito jovem”; que dinamize o teatro infantil; que contribua para a “criação de hábitos culturais e de públicos regulares”; que estimule “ a realização de exposições, conferências, debates, reuniões direccionadas para diferentes temas e áreas de interesse social, político, cultural, estético, ético e artístico”; que crie, à semelhança do que acontece com as empresas, “ninhos de artistas”; que promova regularmente workshops e oficinas diversas; que satisfaça, simultaneamente, “gostos populares e eruditos”; que seja um espaço gerido por “pessoas inquietas e apaixonadas”; que invista nas “actividades multimedia e interactivas, com especial destaque para todas quantas contribuam para o “consumo activo” da cultura e da Arte; que acarinhe a abertura de uma Escola Municipal de Dança; que convide “estudantes de pintura para mostrarem os seus trabalhos e dar‑lhes a oportunidade de se tornarem jovens cenógrafos, tanto para espectáculos de bailado, como ópera, teatro, etc.”; que tenha “uma gestão moderna”; que “todo o espaço seja cultural: exposições de fotografia, design, pintura, escultura, ocupando os corredores, os orifícios e os buracos do teatro”; etc., etc.

 

            Em suma, quando questionados sobre as suas aspirações face ao Rivoli remodelado, os agentes culturais deixam transparecer a lógica sectorial dos seus interesses e a singularidade do seu posicionamento no campo cultural. Enquanto que uns, por exemplo, colocam a ênfase num tipo de gestão de rigor tecnocrata, outros insistem na rejeição das “formas funcionalistas, comerciais e atrofiantes (quando não clientelistas) da pseudo‑gestão nacional da cultura”. No limite, trata‑se de visões inconciliáveis e que transcendem, muitas delas, no seu exagero de expectativas, as reais potencialidades de um teatro municipal. Aliás, quase nunca manifestam consciência dos constrangimentos e condicionantes a que um equipamento desta natureza está inevitavelmente sujeito. O que significa que, com o decorrer do tempo e a concretização/actualização do seu projecto (com todas as prioridades, inclusões e exclusões que contempla), inerente a uma experimentação/negociação do seu lugar no campo cultural portuense, o Rivoli irá desiludir parcial ou totalmente alguns destes agentes. A definição de uma política pública a isso obriga.

 

2. A esplanada da Praia da Luz.

 

2.1. Uma certa cultura mundana.

 

            Situado na Foz, zona de lazer por excelência, com as suas inúmeras esplanadas, os seus bares, as suas praias, o estabelecimento Bar da Praia da Luz funciona como palco privilegiado de uma certa cultura mundana e cosmopolita. Antecâmara de outras saídas, este espaço comercial possui também alguma polivalência, servindo de café e esplanada, durante todo o dia, transformando‑se em restaurante, pela hora do jantar, e em bar noctívago a partir do fim da noite e início da madrugada. A nossa análise centrar‑se‑á neste último (e primeiro...) período do dia, não só por nele se concentrar de forma extremamente visível uma certa ética de apresentação e encenação social, como pelos espectáculos que nele se realizam e que traduzem, como veremos, uma noção relativamente recente de estetização do quotidiano e de alargamento sem precedentes do campo cultural.

            Propriedade, na altura do trabalho de campo, de um empresário ligado à animação comercial nocturna, o espaço Bar da Praia da Luz caracteriza‑se pelas suas duas “regiões”, para utilizarmos uma expressão cara a Goffman: a esplanada, espécie de anfiteatro sobre a praia, iluminada durante a noite, e o café‑restaurante‑bar, espaço rectangular coberto, embora com amplas vidraças sobre a paisagem marítima, possibilitando, apesar de mais recatado, ver e ser visto com facilidade. O seu interior, abundantemente forrado de madeira, ostenta uma decoração mínima e sóbria. Sobressaíam, na altura, duas filas de écrans de televisão penduradas no tecto de forma a poderem ser vistos por todos os clientes. A programação desses écrans era constituída, quase invariavelmente, por uma sucessão de imagens, algumas delas extremamente bizarras, inseridas em vídeo‑clips de uma estação internacional de televisão exclusivamente consagrada à música pop‑rock. O sentimento de deslocalização (ou descontextualização, na acepção de Giddens[863]) era acentuado pela ausência de volume. De facto, as imagens sucediam‑se em silêncio, o que, de certa forma, aumentava o seu ritmo vertiginoso. Esse sentimento traduz a emergência da separação, ali bem visível, entre o espaço e o lugar. Dito de outra forma, na Praia da Luz assiste‑se a uma combinação de um cenário de interacção, um lugar (identitário, relacional e histórico, os requisitos postulados por Marc Augé para a sua existência[864]), com esse não‑lugar das imagens televisivas, vazio, deslocalizado, fantasmagórico. Em qualquer outro lugar do mundo aquelas imagens seriam visíveis, embora apropriadas de forma plural.

            A sua colocação ali não é inocente. Ela articula‑se, assim o pensamos, com o terceiro paradigma da “teoria da visão” explicitado por Jameson, traduzindo uma determinada “cultura social” e uma específica “experiência social da visão”[865], extremamente associada à “euforia da alta tecnologia” e à celebração da “versão tecnológica do pós‑modernismo”[866], uma “superabundância de imagens” que elimina a reflexividade. Como refere Jameson, este novo paradigma da visão social “significa uma mais completa estetização da realidade que é também, ao mesmo tempo, uma visualização ou colocação em imagem mais completa dessa mesma realidade”[867]. Tentaremos, mais adiante, aprofundar esta ideia, ao analisarmos as formas sociais de apresentação dominantes na Praia da Luz.

 

2.2. A programação: uma ilustração da expansão do campo cultural.

 

            O estabelecimento da Praia da Luz é, antes de mais, uma casa comercial. A rentabilidade é, indiscutivelmente, o seu principal objectivo. Como nos referiu um gerente de um conhecido e moderno estabelecimento nocturno do Porto:

            “Há lugares que pretendem estar na moda e nunca conseguem estar (...) locais onde se muda o ambiente, lavam a cara, tornam o ambiente em algo que não tem nada a ver, não sabem aproveitar ou gerem mal ou fazem daquilo um clube de amigos e para isso não dá. A noite é muito cara, tem de se facturar”.

            Uma das estratégias consiste na invenção de ocasiões, numa espiral interminável de busca da novidade: “Todos os dias temos de pensar em coisas diferentes para trazer cá as pessoas. Fazemos festas completamente loucas e fora de tudo, dar um ambiente diferente, decorar a casa com papel branco e apostar no jogo de luzes, arranjar festas com patrocínios, mexer com as pessoas (...) Este ano a nossa festa de Carnaval marcou o Porto pela diversidade dos temas e pela forma como foi feito. Começou com um baile dos bombeiros, ao qual os próprios aderiram a 100%, tentamos recriar o salão nobre dos bombeiros, onde estes fazem as festas. Até metemos lá dentro um carro dos bombeiros!”.

            Surpreender um público vacinado contra a novidade pela constante exposição à mesma, não é tarefa fácil. Mas dela depende a sobrevivência económica dos espaços comerciais de animação nocturna. A programação da Praia da Luz enquadra‑se no movimento de estetização do quotidiano, correlativo da expansão e flexibilização de fronteiras do campo cultural, apelidada por Jameson de “tendência cultural dominante”[868]. Durante o período de duração do trabalho de campo assistimos à noite Dry Martini & Lounge Music, com dois Dj's convidados (atente‑se na íntima associação entre um produto comercial alcoólico e um género musical, como se entre ambos houvesse uma implícita transacção — a bebida culturaliza‑se e a música mercantiliza‑se[869]); a noite ADN, igualmente com DJ's convidados (um deles vindo do estrangeiro)[870]; as Elektra Nights, programa mais vasto que abarcou dois meses e que incluía Live Performances, lançamento de livros, uma passagem de modelos, DJ's convidados e ainda uma Scrooge Night Party. A passagem de modelos, de longe a iniciativa mais fulgurante, a começar pela panóplia de meios utilizados, ilustra bem o novo espírito das franjas recém‑incorporadas no campo cultural (moda, design, publicidade...): como declarou um dos responsáveis da escola de formação de modelos e manequins que organizou um dos dois desfiles a que assistimos (onde participaram os finalistas dos primeiros cursos), “o mundo da moda funciona como qualquer outra empresa”[871].

            Trata‑se, evidentemente, de um segmento peculiar do campo cultural, marcado pelas novas tecnologias (veículo e estrutura de sentido), pelo efémero, por uma ligação estreita com os cenários lúdicos da noite e por uma predominância do jogo e do gosto visuais. Como acentua Jameson, “é o próprio visual que abstrai esses públicos dos seus contextos sociais imediatos”[872].

 

             3. B Flat: um clube de jazz?

 

            3.1. Um francês em Portugal.

 

            O B Flat jazz club nasceu em 1994, sobressaindo desde então na noite de Matosinhos pela sua permanente e diversificada oferta neste género musical. Aberto apenas de Quinta‑feira a Domingo, garante sempre a oportunidade de se assistir a música ao vivo. Situado em pleno coração da cidade de Matosinhos, a escassos metros da Câmara Municipal, o B Flat reivindica, no entanto, uma projecção que em muito ultrapassa os estreitos limites concelhios. A cave reconfigurada, que serve de bar e sala de espectáculos, denuncia a ambição dos seus responsáveis: ser um clube de jazz. As cadeiras de veludo e as mesas baixas sucedem‑se até ao palco. O piano e todo o esquema de iluminação dão indícios do que à noite se passa. Os seus proprietários, de nacionalidade francesa, possuem larga experiência de trabalho e de contactos neste subcampo artístico. Um deles fala‑nos mesmo, com indisfarçado orgulho, do reconhecimento internacional que o B Flat obtém, embora no restrito círculo dos conhecedores:

            “Lá fora — no «milieu», não no «povo» — toda a gente conhece o B Flat, toda a gente quando me vê, nos colóquios em que eu participo me pergunta logo pelo B Flat. Temos o e‑mail cheio de mensagens de artistas que querem vir cá tocar”.

            No discurso deste fundador, o B Flat é um projecto artístico, rodeado de uma certa aura romântica e desinteressada:

            “Vim para Portugal porque em França as pessoas já não se interessam por certos valores. E não por dinheiro — eu trabalhava na Ópera de Paris, num lugar muito bem remunerado. Mas parece‑me que vou ter de continuar a procurar esses valores, porque aqui...”.

            De facto, durante o período em que decorreu o trabalho de campo, o B Flat parecia viver algumas dificuldades financeiras, oriundas, em grande parte, de uma relação sinuosa com a autarquia local. Esta apoiou durante todo o ano os dois clubes de jazz do concelho (e da Área Metropolitana do Porto), assumindo, como justificação, o suporte de uma centralidade cultural no concelho através do jazz. Neste âmbito, surgiram dois programas: O Jazz desce à cidade e O jazz desce à escola. Com o primeiro apoiava‑se a oferta permanente de jazz ao vivo nos dois bares (o que acaba por constituir, indirectamente, um subsídio à criação e difusão artísticas, na medida em que cria uma lógica de mercado assistido para o jazz); com o segundo pretendia‑se uma formação contínua de públicos, através da deslocação às escolas do concelho de bandas de jazz com o intuito de fornecer, pedagogicamente, conteúdos sobre a história do jazz e da pluralidade dos seus géneros, a par de um pequeno concerto comentado. O culminar destas dois programas consistia num festival de grandes dimensões, realizado no grande auditório da Exponor (com capacidade para duas mil pessoas) com a presença de grandes nomes do jazz nacional e internacional.

            O já citado proprietário do B Flat revela‑se descontente com a estrutura e as intenções subjacentes a este projecto, em especial no que se refere à drástica diminuição sentida nos apoios concedidos, depois do último festival:

            “Com o Festival a Câmara gastou todo o dinheiro que tinha para o jazz. Foi um acontecimento gigantesco, mediático mas efémero. E agora não há dinheiro para o B Flat!”.

            Desta forma, quebra‑se a lógica do mercado assistido e, ainda segundo o proprietário, gera‑se uma inevitável degradação na qualidade da oferta:

            “Ultimamente têm surgido críticas, nomeadamente na imprensa, quanto à menor qualidade dos grupos que vêm ao B Flat. Se calhar é verdade, mas isso acontece depois do festival. A fasquia subiu muito alto com o festival. E agora há dificuldades financeiras. Mas eu opto por ajudar os grupos mais jovens. Se eu apostasse nos consagrados, as dificuldades económicas não seriam problema... Se houvesse espectáculos com grupos consagrados os bilhetes poderiam a subir a ??? dois mil escudos e a audiência poderia ser de mil pessoas. Isso dava dois mil contos só numa noite”.

            A opinião da autarquia é divergente. Alguns responsáveis por nós contactados referem o carácter comercial do estabelecimento para limitarem o apoio financeiro. Mas esse epíteto — “comercial” — é liminarmente rejeitado pelo nosso interlocutor. O B Flat, explica, “não é um bar; é um clube de jazz”. É nessa linha, aliás, que justifica o pagamento, extra‑consumo, de um “bilhete” de 500 escudos: quem quiser assiste apenas ao espectáculo — razão de ser do estabelecimento — e não bebe nada.

            No que se refere à programação, existem, de acordo com os responsáveis, três critérios fundamentais:

-          a prioridade aos novos valores (uma vez mais a função de suporte de um clube de jazz);

-          o ecletismo, através da apresentação de vários tipos de jazz (de vanguarda — experimental ‑, “clássico”, de “mestiçagem” — mistura com ritmos latinos e africanos, etc.) e a combinação tradição/inovação[873];

-          o intercâmbio internacional.

            Aliás, os responsáveis enfatizam a singularidade do B Flat no panorama do jazz português, não só pelas excelentes condições técnicas de que dispõe (“Posso dizer com conhecimento de causa que o B Flat está melhor apetrechado do que qualquer dos clubes de jazz de Paris!”), como pela actualidade da programação (“ao contrário da maior parte dos conhecedores portugueses de jazz, que ficaram pelos anos 50 — veja‑se o caso do Hot Club — , nós procuramos estar na vanguarda”). O que vem colocar a ênfase, de novo, na faceta propriamente artística do local (uma sala de espectáculos), omitindo a dimensão comercial (um bar), herética face aos critérios de legitimação do subcampo cultural em questão[874]:

“Se isto não der, se deixar de ter prazer no que faço, vendo isto e vou‑me embora, se for preciso volto a ser intérprete num grupo de jazz”.

 

4.        As “vozes” da noite.

 

“A noite é liberdade”

(Das entrevistas)

“A noite traz no rosto sinais

de quem tem chorado demais”

(Ivan Lins)

 

            O nosso trabalho de campo (entrevistas, inquéritos, deambulações etnográficas, conversas informais...) desenrolou‑se sempre durante a noite, na maior parte dos casos a partir das 22 horas e algumas vezes até às duas ou três horas da madrugada. Por isso, as práticas culturais que estudámos merecem o epíteto de “nocturnas”.

            Mas que significados associam os praticantes culturais à “cultura de saídas” noctívaga? Que representações possuem desses espaços‑tempos de tonalidades tão ambíguas (a noite do medo e da insegurança versus a noite das ocasiões de “reencantamento” do mundo)? A análise das entrevistas fornece‑nos alguns contornos de um interessante campo semântico.

 

 

 

 

 

 

 

 

4.1. Os lugares da noite.

 

Quadro XX — Lugares associados a “sair à noite”

. Bares

. Discotecas

. Cafés

. Esplanadas

. Ribeira

. Foz

. B Flat

. Teatro

. Cinema

. Concertos

. Casa de amigos

. Jantar fora

. Centros comerciais

40

22

 7

 6

14

 4

 2

11

27

 5

 3

 2

 5

(*)

Nota: (*) — Número de ocorrências

 

            A noite do Porto tem os seus territórios próprios. Como se constata pelo quadro anterior, há uma nítida preferência por três tipos de práticas: ir a bares, ao cinema e a discotecas. Sabendo‑se que estas actividades se concentram em alguns — poucos — pólos de animação, é‑nos possível traçar o mapa noctívago da cidade: zona da Ribeira, Foz, zona industrial paralela à Via Rápida e os grandes centros comerciais das salas multiplex (o “cinema pipoca”, como refere um dos nossos entrevistados). Com menor frequência, as salas de espectáculos.

            Em suma, uma acentuada restrição territorial, consentânea com a especialização de certas áreas da cidade nos lazeres nocturnos e um leque aparentemente pouco diversificado de práticas. Nas palavras de uma entrevistada: “faltam locais onde se vá sem ter uma ideia predestinada... eu gostava que houvesse zonas onde eu pudesse entrar num bar, noutro e noutro, sem ter que decidir logo à partida onde quero ir, tipo mapa... gostava que fosse mais livre a escolha...” (B Flat; sexo feminino; 29 anos; advogada)

            Restrições que, desde logo, contrariam a tão propagada representação romântica da noite exo‑domiciliar como lugar privilegiado do exercício de uma liberdade plena, descrita nos seguintes termos por Anne Cauquelin: “O homem do dia é um fantasma, ectoplasma do vivo, dorminhoco embrutecido, mudo, sem contacto, um robot. O homem da noite reencontra um sexo, uma voz, uma mão que apalpa, um nariz que cheira”[875].

            Que discursos suscita a noite? O que se revela e o que se oculta nessas narrativas?

4.2. A noite e os seus “paradoxos”.

 

Quadro XXI — Significados associados a “sair à noite”

 

. Diversão/Distracção

. Quebrar a rotina

. Descansar

. Conviver/sair com os amigos

. Conhecer pessoas novas

.Comunicar de forma mais aberta e autêntica

. Liberdade

. Fazer coisas diferentes

. Ouvir música

. Ribeira

. Foz

. Bares

. Discotecas

. Insegurança

. Pouca diversidade

 

 16

 11

 6

 16

 2

 4

 6

 4

 4

 4

 2

 3

 2

 2

 10

 (*)

Nota: (*): Número de ocorrências.

 

            Anne Cauquelin afirma que “a noite não é nudez: ela veste‑se, pinta‑se, perfuma‑se”[876]. Nós acrescentaríamos que a noite também tem uma voz, um discurso, uma narrativa. Plurais e polifónicos.

            Atente‑se no quadro anterior. Há uma série de significados que nos remetem, simultaneamente, para uma noção de continuidade e ruptura face ao dia. De facto, quando se refere “Quebrar a rotina”, “descansar/descontrair” ou mesmo “Fazer coisas diferentes”, somos aparentemente levados a acentuar o lado da ruptura. Aliás, grande parte da mitologia da noite passa por esse eixo de “quebra”, ou “cisão” redentora. No entanto, essa mesma ruptura é, para uma boa parte dos entrevistados, indissociável da estrutura do dia. De facto, a face diurna aparece claramente associada à actividade produtiva e ao desgaste por ela provocado. Desta forma, a noite surge como oportunidade de compensação e de recuperação de energias. Neste sentido, torna‑se difícil manter a ideia de uma absoluta ruptura ou de uma “pureza” original entre os dois períodos, noite e dia:

            “Sair à noite é para desanuviar do dia, quebrar a rotina” (Praia da Luz; sexo masculino; 19 anos; estudante);

             “descansar do stress do dia” (B Flat; sexo masculino; 25 anos; estudante);

             “quebrar a rotina do quotidiano, quebrar a rotina para espairecer” (B Flat; sexo feminino; 16 anos; estudante);

             “é aquela quebra em relação ao trabalho” (B Flat; sexo feminino; 17 anos, estudante);

             “descontrair ao fim de uma semana de estudo” (Rivoli; sexo masculino, 20 anos; estudante);

            “é aliviar de uma semana de rotina de aulas” (Rivoli; sexo masculino; 17 anos; estudante);

            “eu já não estudo, por isso para mim sair à noite é muito importante para manter a minha jovialidade” (Rivoli; sexo feminino; 19 anos; estudante);

            “distrair do dia‑a‑dia” (Praia da Luz; sexo masculino; 25 anos; professor);

            “A noite transmite uma certa paz, de dia é muito agitado” (Praia da Luz; sexo feminino; 24 anos, vendedora).

 

            Muitos tendem a ver nesta “compensação” uma funcionalidade propícia ao modo de produção capitalista: trata‑se, afinal, de recuperar a força de trabalho... Nesta óptica, as saídas nocturnas só serão compreensíveis por referência à esfera laboral. Os lazeres noctívagos aparecem, então, como expressão alienada de uma ilusão, a de transgredir a ordem estabelecida. Como refere Anne Cauquelin, essas “transgressões” não se colocam no plano da subversão das normas e das barreiras sociais, mas sim no seu permanente restabelecimento. De dia, ao acordar, a experiência da noite anterior dilui‑se nas exigências de um novo dia...

            Claro está que toda esta linha explicativa, nas suas diferentes nuances, desemboca na impossibilidade de conceber uma acção (relativamente) autónoma dos agentes. No entanto, tal como anteriormente defendemos[877], não podemos esquecer a capacidade de produção de novos significados permanentemente associada à acção social. As práticas quotidianas não são uma mera reprodução da “engrenagem” social mais vasta. Tal não significa, no entanto, que aceitemos sem distanciamento crítico todas as representações mitológicas da noite, aquelas que, por definição, seriam um discurso que se explica a si mesmo e que estão implícitas nos fragmentos seguintes:

            “A noite é liberdade” (Praia da Luz; sexo feminino; 19 anos; estudante)

            “As pessoas são muito mais abertas à noite” (Praia da Luz; sexo feminino; 27 anos; técnica de informática industrial);

            “O pessoal à noite solta‑se mais, bebe uns copos, é mais porreiro do que de dia” (Rivoli; sexo masculino; 23 anos; estudante);

            “fazemos o que nos apetece” (Rivoli; sexo masculino; 20 anos; formando de um curso profissional);

            “à noite as pessoas são diferentes” (Rivoli; sexo feminino; 28 anos; professora);

            “a noite para mim é tudo” (Rivoli; sexo feminino; 23 anos; estudante);

            “permite fazer o que não é possível durante o dia” (Rivoli; sexo masculino; 25 anos; designer);

            “de noite as pessoas estão muito mais desinibidas, aquele stress do dia desaparece e as pessoas ficam mais saudáveis” (Praia da Luz; sexo masculino; 33 anos; jornalista);

            “ a cidade à noite , acho que é uma das mais belas da Europa... é antiga, então tem toda uma atmosfera muito romântica, todo o século dezanove... o rio e o mar” (B Flat; sexo feminino; 29 anos; advogada);

            “para mim a noite é luz” (Rivoli; sexo feminino, 23 anos; estudante).

 

            A noite é luz. Metáfora poética enunciadora de todo um discurso de aura que cobre, diáfana, a realidade das práticas nocturnas. Esquece, por exemplo, que a noite, para os que estão do “outro lado” (por vezes a escassos metros — do outro lado do balcão...) se reveste de outra tonalidade. Como nos referiu um gerente de um estabelecimento nocturno, “a noite é cara” e surge para muitos como oportunidade de emprego e fonte de hierarquias:

            “... arrumadores de automóveis que são nossos, não são espontâneos, são pagos por nós, até aos apanha‑copos, que têm um trabalho menor (apanham copos, trazem gelo), até ao pessoal dos bengaleiros e às pessoas dos bares que não são empregados directos, porque são pagos por quem explora os bares. Contamos também com um responsável pelas relações públicas, o DJ, o gerente, as pessoas dos transportes (temos também uma carrinha para levar a casa quem já não está em muito bom estado...) e temos duas pessoas que são chamadas de arrumadores e que servem para tratar de por na rua quem não se porta bem. Já não existem seguranças, neste momento a nossa segurança é a polícia”.

            Repare‑se como todo este vocabulário nos reenvia para um campo diferente. Desde as referências a um sistema de divisão do trabalho, até à presença de agentes de dissuasão, cujo principal objectivo é zelar pela ordem estabelecida, sem esquecer os representantes da vigilância oficial — a polícia. Anne Cauquelin, numa linha foucaultiana, realça esta última presença com especial ênfase. Não só a luz que ilumina à noite a grande urbe permite preservar a memória da cidade diurna e dos seus códigos normalizadores, hierarquizando, ao mesmo tempo, o espaço urbano (os locais iluminados, lisíveis, são os locais disponíveis, os únicos que existem) como sinalizar e localizar os comportamentos desviantes: “o olhar deve poder ver tudo”[878]; “toda a miséria fica apagada, toda a vergonha escondida”[879].

            Mas os próprios agentes sociais identificam o “outro lado” da noite. Nessas ocasiões, omitem‑se as referências à liberdade de acção e mencionam‑se os constrangimentos:

 

Quadro XXII — Obstáculos associados a sair à noite

.Falta de dinheiro

.Falta de vontade/preferência por ficar em casa

.Falta de companhia

.Falta de tempo

.Insegurança/mau ambiente

.Os pais

.Os filhos pequenos

.Os poucos transportes/não ter carro

.Ter de trabalhar/estudar no dia seguinte

.O cansaço

. Não há obstáculos

24

11

8

2

7

10

2

7

18

5

9

(*)

 

Nota: (*) — Número de ocorrências

 

            Como se pode verificar pelo quadro anterior, a principal dificuldade em sair à noite reside na falta de disponibilidade financeira, o que nos remete, de forma pelo menos implícita, ou para a situação de dependência dos entrevistados (muitos deles estudantes), ou para factores como o seu capital económico, o que se relaciona, por sua vez, com níveis de escolaridade, de qualificação, de autoridade, etc., ou ainda com eventuais atitudes de poupança (motivadas, por exemplo, pela consciência de elementos de imprevisibilidade no futuro virtual — admitamos a instabilidade no vínculo contratual) ou de subalternização das actividades lúdicas e culturais.

            Por outro lado, o mundo diurno — do trabalho e/ou do estudo — surge explicitamente como a segunda maior dificuldade do sair à noite. Necessidade de recuperar a força de trabalho despendida, ou os seus reflexos (“cansaço”, “falta de tempo”, “falta de vontade”...). De novo, ambas as faces da moeda indissociavelmente ligadas.

            Outros constrangimentos afloram na análise deste quadro. O receio das “patologias urbanas” (sentimento de insegurança ); a dificuldade de mobilidade na cidade à noite; obstáculos associadas a condições sociais específicas (no caso da juventude, o prolongamento da escolaridade e o retardamento de entrada na vida adulta, com a consequente dependência face à família; no caso dos jovens casais, os filhos pequenos) e ainda a subordinação das saídas a redes de sociabilidade mais ou menos estruturadas:

            “A cidade à noite tem vários perigos, roubos, violações, é preciso ter cuidado...” (Rivoli; sexo masculino; 37 anos; publicitário);

            “a cidade, a maneira como está estruturada para um nível etário até aos 30 anos, é bastante negativa, condiciona muito a liberdade de escolha das pessoas... em Espanha não é como aqui, não há a preocupação se a pessoa está bem ou mal vestida, não há aquele cartão, as pessoas da noite estão ali para servir as outras e não para ditar um status (Praia da Luz; sexo masculino; 29 anos; estudante);

            “o Porto tem uma noite muito cara” (Praia da Luz, sexo masculino; 30 anos; oficial do exército);

            “a noite do Porto é elitista” (B Flat; sexo masculino; 43 anos; professor);

            “só é pena os transportes colectivos serem poucos” (Rivoli; sexo masculino; 24 anos; estudante);

            “... há as violações, os roubos e também a preocupação dos nossos pais quando vamos sair, as horas a que chegamos” (Rivoli; sexo feminino; 17 anos; estudante);

            “por eu ser rapariga os pais não dão muita liberdade e depois há os problemas da escola, estamos cansados e não apetece fazer mais nada” (Rivoli, sexo feminino; 17 anos; estudante);

            “não arranjar companhia, eu às vezes posso sair mas os outros não podem e eu então não saio” (Rivoli; sexo feminino; 27 anos; publicitária);

            “não ter carta de condução e carro, não ter dinheiro, morar longe das pessoas e ter de me levantar cedo” (Rivoli, sexo masculino; 20 anos; formando de um curso profissional).

 

            Aos poucos, outras realidades saem da sombra. A aparente diversidade da oferta de lazer é contrariada por discursos que denunciam uma ausência de alternativas, homogeneizadas no seu conteúdo substantivo, apesar de diferentes no “invólucro”. Por vezes, os circuitos nocturnos traduzem “a passagem do idêntico ao idêntico”[880]. Mas daí advém um outro mito: a noite do Porto está “atrasada” em relação a outros lugares. A “verdadeira” noite situa‑se algures, em Lisboa ou Espanha:

            “em termos de noite, o Porto deixa um bocado a desejar... há muito pouca coisa, em especial quando comparado com Lisboa” ( B Flat; sexo feminino; 29 anos; especialista de marchandising);

            “acho a noite muito desinteressante, a noite está muito confusa, as pessoas saem porque não têm mais que fazer e por isso ao fim de quatro noites já estamos fartos... há falta de alternativa, é tudo muito igual” (B Flat; sexo masculino; 46 anos; médico)

            “acho que o Porto à noite é muito igual, são sempre as mesmas pessoas, as mesmas conversas” (Praia da Luz; sexo feminino; 19 anos; estudante);

            “o Porto está cada vez mais igual. Gosto imenso da noite de Lisboa” (Praia da Luz; sexo feminino; 18 anos; estudante);

            “Não acontece nada... é sempre o mesmo rame‑rame, a mesma situação, divirto‑me com as mesmas pessoas, a música é sempre a mesma, há falta de oferta, é horroroso...” (Rivoli; sexo masculino; 24 anos; estudante).

 

            No entanto, noctívagos de fora da cidade enaltecem as qualidades do burgo:

            “o Porto à noite é muito interessante, por isso é que moro a 40 Km daqui e venho para cá. É tudo diferente, a vida na nossa terrinha é muito pacata, limita‑se a ser sempre a mesma coisa, é muito banal” (Praia da Luz; sexo feminino; 21 anos; estudante).

            Há mesmo quem não se incomode com a falta de diversidade:

            “o Porto à noite é muito giro, é igual a todo o lado” (Praia da Luz; sexo masculino; 24 anos; chefe de cozinha);

            “o Porto à noite é uma cidade muito bonita, menos movimentada do que Lisboa, as pessoas saem menos do que em Lisboa. O Porto é mais íntimo, mais acolhedor” (Praia da Luz; sexo feminino; 25 anos; professora).

 

            É certo que as interpretações são ambivalentes. Para ao arautos da pós‑modernidade, ou mesmo para um defensor da modernidade tardia e radical, como Giddens, a possibilidade de escolha múltipla é uma realidade contemporânea e o desdobramento de escolhas uma consequência do acréscimo de reflexividade dos agentes[881]. No entanto, como outros autores salientam, “se as escolhas aumentam, os elementos a escolher tornam‑se, eles próprios, idênticos para todos (...) ao mesmo tempo que os objectos se multiplicam, a industrialização e a estandardização parecem ganhar muitos domínios e uniformizar as cidades e a vida quotidiana (...) Por um lado, a gama das escolhas alarga‑se; por outro, as escolhas propostas parecem irrisórias”[882]. Mas também no domínio das sociabilidades deparamos com paradoxos. De facto, podemos considerar, seguindo Giddens, que a busca de autenticidade, supostamente mais presente nas interacções nocturnas (“Á noite as pessoas estão mais desinibidas... ficam mais saudáveis...”), é, enquanto processo de recontextualização, uma reacção à impessoalidade dos sistemas abstractos onde não há amigos mas sim “conhecidos” ou “colegas”, alguém que nos é imposto pela participação num determinado cenário de interacção. As práticas culturais nocturnas seriam um contexto favorável ao processo de busca de identidade através do auto‑desvendamento dos agentes e da abertura ao outro. Mas não será esse, precisamente, um requisito de manutenção da “ordem diurna”? O contraponto necessário à estranheza de um sistema onde “o impessoal submerge cada vez mais o pessoal”[883]?

            Por outro lado, esta procura de autenticidade nas relações sociais parece contrariar a tese de Simmel segundo a qual a atitude blasé, de reserva e distanciamento perante os outros habitantes da metrópole é um requisito necessário para a manutenção de uma esfera de liberdade[884]. As entrevistas mostram de forma clara uma associação entre a liberdade que a noite confere (emancipando as pessoas face aos constrangimentos “diurnos”) e a possibilidade de uma sociabilidade mais íntima e transparente. Claro que a tese de Simmel se desenvolve tendo em conta uma determinada evolução do subsistema económico capitalista (o novo papel da técnica, o calculismo, a economia monetária) e , nesse aspecto, adequa‑se preferencialmente ao espírito “diurno”.

            Em suma, noite e dia, produção e consumo, norma e transgressão, constrangimento e liberdade, distanciamento e proximidade, eu individual e eu social devem ser vistos como pólos relacionais, em permanente tensão. Se a noite e o dia estão indissociavelmente ligados, como irmãos gémeos de temperamentos diferentes, tal não desemboca na impossibilidade de os contextos noctívagos propiciarem ocasiões autónomas de produção de sentido, marcadas por rituais específicos e por uma criatividade mais ou menos generalizada ou por momentos de autêntica recomposição identitária. Não podemos, no entanto, caucionar a tese de que a noite exo‑domiciliar é um palco autónomo, isento de constrangimentos, libertador e irruptivo por excelência. Lugar de heterogeneidade, ela é um contexto da variedade das práticas citadinas nas microssituações mais diversas”[885]. Talvez o conceito de heterotopia de Foucault nos forneça algumas pistas ao sugerir a coexistência justaposta de uma grande multiplicidade de “mundos possíveis”, por vezes mesmo incongruentes. Mas isso não significa, necessariamente, mergulhar na visão caótica, tão do agrado de certa pós‑modernidade, do “hipermercado dos modos de vida”[886], ou, dito de outra forma, da total desregulação, dispersão e indeterminação dos comportamentos e valores sociais.

 

 

CAPÍTULO XI

DOS PÚBLICOS, DA CULTURA E DAS SUAS PRÁTICAS

 

1. Caracterização genérica.

1.1. Uma “cultura jovem”?

 

                   Uma das nossas principais preocupações, no tratamento quantitativo da informação recolhida e seleccionada, consistiu em aplicarmos, sempre que possível, a panóplia de testes estatísticos disponíveis. Assim o fizemos com grande parte dos cruzamentos efectuados com a variável idade, como de resto se verifica pelo quadro XXIII.

 

                        Quadro XXIII - Variáveis correlacionadas com a idade

Variáveis Correlacionadas

Grau de Correlação com a Variável Idade

Práticas Domésticas de Abandono

0,146**

Práticas Receptivas Semi‑Públicas

0,195**

Cinema – Consagrados Clássicos

0,355**

Cinema – Não Consagrados

‑0,227**

Música1

0,367**

Música2

‑0,374**

Música3

‑1,135**

Práticas Expressivas Semi‑Públicas

0,324**

Práticas Receptivas e Informativas de Públicos Cultivados

 

‑0,128**

Práticas Eruditas Criativas

0,153**

Passeexp

0,133**

Práticas Associativas Criativas

0,182**

Espaço Doméstico

0,101*

                              * Correlação significante para P <0,1

                              ** Correlação significante para P <0,01

 

Ao observarmos o Quadro XXIV constatamos que existe uma acentuadíssima juvenilização na amostra obtida. De facto, 65.1% dos inquiridos não têm mais do que 30 anos o que vem comprovar análises anteriores sobre práticas culturais, designadamente quando associam a cultura de saídas a uma forte componente juvenil.

Quadro XXIV - Estado civil por escalões etários

 

Escalões Etários

 

Estado Civil

Até 20

N=78

(15,0%)

21‑30

N=262

(50,3%)

31‑40

N=89

(17,1%)

Mais de 40

N=92

(17,7%)

Casado

N=120

(23,0%)

 

5,1

 

7,6

 

42,7

 

63,0

Solteiro

N=361

(69,3%)

 

93,6

 

90,1

 

40,4

 

17,4

Divorciado

N=21

(4,0%)

 

 

 

 

7,9

 

15,2

Viúvo

N=15

(0,8%)

 

 

0,4

 

 

 

3,3

União de Facto

N=15

(2,9%)

 

1,3

 

1,9

 

9,0

 

1,1

 

Vários factores podem explicar articuladamente esta situação. Por um lado, os maiores níveis de escolaridade (como adiante teremos ocasião de comprovar) das gerações mais novas, fruto de um processo relativamente recente de expansão do sistema de ensino português. Por outro lado, a maior disponibilidade associada à condição social juvenil e que encontra suporte em factores como o já referido prolongamento da escolaridade (associada a uma tendência de progressiva inclusão escolar de um grande número de jovens, mesmo quando se dissimulam formas mais subtis de selecção[887]), a entrada cada vez mais morosa no mercado de trabalho, com a consequente dilatação do chamado “período de moratória” e o aumento da idade média do casamento, a par de uma fecundidade mais tardia. Aliás, ao observarmos o mesmo quadro, verificamos que a esmagadora maioria destes jovens são ainda solteiros. Assim, acumulam factores de propensão a uma maior disponibilidade cultural preservando dimensões de autonomia[888], embora estejam longe da ideia do estereótipo do “viver gratuito”, que, segundo Enrique Gil Calvo, “é o único viver sério quando se é jovem, implicando uma mescla do desportivo fair play com o estético da arte pela arte[889]. Pelo contrário, ser‑se jovem na contemporaneidade implica um esforço de constante adaptação a situações de contornos imprecisos, pouca propícias à formação de identidades sólidas e em espaços‑tempos precários e provisórios, apesar dos actuais “rituais de passagem”, pelo seu prolongamento, aprisionarem os jovens nessa mesma “passagem”[890].

Esta maior disponibilidade dos jovens traduz‑se em acrescida visibilidade pública. O próprio tecido social adopta referenciais simbólicos comuns à imagem dominante de juventude. Como refere Mike Featherstone, “existe de facto alguma evidência de que os estilos e estilos de vida juvenis estão a galgar a escala etária”[891]. Por outro lado, na medida em que se verifica uma certa dissociação entre os modos de vida juvenis e o mundo do trabalho (à já referida dilatação do período de moratória acresce uma entrada sinuosa, flexível e precária no mercado de trabalho, mesmo nos segmentos pós‑industriais, ligados aos serviços, manifestando‑se através de ensaios, rectificações de trajectórias e períodos de experimentação[892]), a esfera de construção das identidades tende a transferir‑se progressivamente para o campo simbólico (patente, de forma “explosiva”, nos processos de estetização do quotidiano e de modelação de estilos de vida). Não se defende, como alguns teóricos da pós‑modernidade (veja‑se o exemplo de Baudrillard), “que o factor classe surge como questão do passado” e que as “identidades relacionadas com a casa e o trabalho são esmagadas por um verdadeiro carrossel de consumos culturais (desprovido de qualquer componente económica”[893]. Como salienta Robert G. Hollands, no seguimento desta crítica, “ há uma relação muito íntima entre transformação económica, consumo cultural e construção e significado social do espaço urbano”[894]. Por outras palavras, o declínio das formas tradicionais de transição para o trabalho (como refere Hollands, os “ritos de passagem” tendem a ser cada vez mais prolongados) abre caminho a que a esfera do consumo e a vivência urbana surjam como espaços alternativos de recomposição identitária.

Ao procurarmos analisar a relação entre a idade e uma série de práticas culturais, verificamos, desde logo (Quadro XXV), que, ao contrário do que se poderia esperar, são os mais jovens (no escalão até aos 20 anos) quem mais adere às práticas domésticas de abandono[895]. De facto, seria razoável prever que, com o avançar da idade, crescesse a propensão para uma certa desvitalização das práticas culturais. Aliás, vários estudos têm demonstrado a existência de um envelhecimento cultural extremamente precoce, intimamente ligado à entrada estável na vida activa. Por outro lado, a nossa amostra, como de resto já adiantámos, é muito pouco envelhecida.

Quadro XXV - Frequência das práticas domésticas de abandono por escalões etários

 

Escalões Etários

Práticas Domésticas de Abandono

Até 20

N=74

(15,7%)

21‑30

N=243

(51,7%)

31‑40

N=79

(16,8%)

Mais de 40

N=74

(15,7%)

Frequentemente

N=33

(7,0%)

 

14,9

 

5,8

 

6,3

 

4,1

Com Alguma Frequência

N=113

(24,0%)

 

29,7

 

25,9

 

19,0

 

17,6

Raramente/Nunca

N=324

(68,9%)

 

55,4

 

68,3

 

74,7

 

78,4

 

Mesmo o escalão de “mais de 40 anos” contempla essencialmente adultos e não idosos. Além do mais, a idade não pode ser considerada, como adiante veremos, independentemente de outras variáveis, como o volume e a estrutura do capital escolar e a trajectória social. Daí resultam, aliás, as nossas dúvidas sobre a pertinência heurística de uma auto e heterodenominada “cultura jovem”, designadamente no que se refere à “ilusão de homogeneidade” que fomenta[896]. Os elementos mais idosos da nossa amostra são, precisamente, os que menos aderem às práticas de abandono. Estaremos em presença de um grupo de “activistas culturais” que, pela própria circunstância da sua idade ser mais avançada, acumularam experiências e reforçaram predisposições inculcadas, resistindo, por isso, a movimentos de anomia cultural?

Não pretendemos, no entanto, negar a existência de uma “tipicidade juvenil”[897]. Ela manifesta‑se, por exemplo, no significado atribuído a “não fazer nada” (Anexo V/Quadro I. Repare‑se como os inquiridos com idade até 20 anos são os que mais aderem a esta prática). Esta expressão condensa modos de ocupação quotidiana dos tempos livres de difícil definição categorial (condicionada pelo código do investigador), mas facilmente identificáveis pelos praticantes juvenis. “Não fazer nada” é, muitas vezes, deambular sem destino no espaço doméstico, estar provisoriamente desocupado em termos de uma actividade socialmente reconhecida (como estudar ou ajudar nas tarefas domésticas) ou simplesmente conversar com familiares ou amigos sem tema fixo ou predeterminado. Como refere expressivamente E. Gil Calvo, “os jovens são multimilionários em tempo, se é verdade, como se diz, que o tempo vale ouro”[898], embora seja fundamental avaliar da qualidade desse tempo (no caso dos desempregados pode equivaler a um tempo livre forçado) e da sua distribuição pelas distintas condições juvenis. O mesmo autor acrescenta que, por conseguinte, aos jovens interessa encontrar “uma espécie de máquina do tempo (…) que sirva para conseguir que o tempo passe, que o tempo corra, que o tempo voe (…): uma máquina do tempo que o mate”[899]. No entanto, ao contrário do autor, pensamos que as culturas juvenis, na sua diversidade, (re) inventam formas de passar o tempo, não  interessando apenas aos jovens que a sua vida passe a correr, mesmo tratando‑se, para muitos, de uma interminável “sala de espera”.

De qualquer forma importa salientar que, apesar das diferenças detectadas, é reduzido o peso relativo dos que frequentemente aderem às práticas domésticas de abandono, sendo pelo contrário sempre elevado o valor dos que raramente ou nunca as exercitam.

Se atentarmos agora nas práticas receptivas semi‑públicas (referentes à ida ao cinema — Quadro XXVI) notamos que o escalão dos 21 aos 30 anos é o mais aderente, logo seguido pelo grupo dos 31 aos 40 anos.

 

Quadro XXVI - Frequência de práticas receptivas semi-públicas por escalões etários

 

Escalões Etários

Práticas Receptivas

Semi‑Públicas

Até 20

N=76

(15,1%)

21‑30

N=252

(50,2%)

31‑40

N=88

(15,5%)

Mais de 40

N=86

(17,1%)

Frequentemente

N=259

(51,6%)

 

44,7

 

63,5

 

52,3

 

33,7

Com Alguma Frequência

N=159

(31,7%)

 

40,8

 

28,6

 

30,7

 

33,7

Raramente/Nunca

N=74

(14,7%)

 

14,5

 

7,9

 

17,0

 

32,6

 

Nos extremos etários situam‑se os que menos as praticam, em particular os mais idosos. Não podemos deixar de associar à frequência cinéfila a necessidade de uma certa disponibilidade financeira, que penalizará os mais jovens. Mas, simultaneamente, importa enquadrar o cinema no âmbito de um paradigma cultural do som e da imagem (culto do audiovisual e da “imagem”), propício a uma postura juvenil de maior distanciamento face às formas tradicionais da cultura cultivada “clássica” e de maior renovação e actualização do capital informacional.

Repare‑se no Quadro XXVII. Quando questionados, em concreto, sobre o seu grau de identificação face a determinados filmes (indicador que revela a estrutura “moderna” ou “clássica” do seu capital informacional e cultural — como refere Olivier Donnat a identificação e o conhecimento revelam quase sempre uma orientação cultural, de gosto[900] —, bem como a sua preferência por modelos mais ou menos consagrados do subcampo artístico em questão) nota‑se uma muito menor identificação em relação aos consagrados clássicos por parte do escalão mais jovem (não havendo mesmo um único inquirido com um alto grau de identificação), enquanto que, a partir dos 31 anos, essa identificação aumenta significativamente, com o pólo médio/alto grau de identificação a superar, embora por uma diferença escassa, o pólo grau de identificação nulo/baixo.

Quadro XXVII - Grau de identificação com filmes "consagrados clássicos" por escalões etários

 

Escalões Etários

Cinema – Consagrados Clássicos

 

Até 20

N=52

(19,0%)

21‑30

N=144

(52,6%)

31‑40

N=41

(15,0%)

Mais de 40

N=37

(13,5%)

Nulo Grau de Identificação

N=49

(17,9%)

 

34,6

 

18,8

 

7,3

 

2,7

Baixo Grau de Identificação

N=93

(33,9%)

 

46,2

 

34,7

 

26,8

 

21,6

Médio Grau de Identificação

N=40

(14,6%)

 

19,2

 

35,4

 

36,6

 

32,4

 Alto Grau de Identificação

N=40

(14,6%)

 

 

11,1

 

29,3

 

32,4

 

Olivier Donnat chegou a constatações idênticas ao estudar as práticas culturais dos franceses. Com efeito, verificou‑se que os posicionamentos próximos de um pólo contestatário no eixo provocação/conformismo associavam os jovens a uma preferência pelos artistas e géneros fora do sistema de consagração, rejeitando os valores “clássicos e patrimoniais”, próprios de um cânone oficial e por vezes escolar. Desta forma, tal orientação dependia mais da idade do que do nível de escolaridade, o que nos poderá remeter para uma eventual “pertença geracional”. O “classicismo”, pelo contrário, tende a aumentar com a idade, entrando no domínio da memória e da acumulação de referências convencionais e consagradas. Na mesma linha podemos compreender a nítida preferência do escalão mais jovem pelos filmes não consagrados (Quadro XXVIII) e a elevada ausência de identificação dos mais velhos (grupo dos inquiridos com mais de 40 anos), onde apenas 4.3% exprime, face aos mesmos, um grau médio de identificação, não havendo um único inquirido a sentir‑se muito identificado. Aliás, muitos dos filmes não consagrados alcançaram notáveis sucessos de bilheteira, alcançando legitimidade na esfera “comercial” própria das indústrias culturais, mas causando repulsa nas instâncias de consagração do campo artístico.

Quadro XXVIII - Grau de identificação com filmes "não consagrados" por escalões etários

 

Escalões Etários

 

Cinema – Não Consagrados

 

Até 20

N=52

(19,0%)

21‑30

N=144

(52,6%)

31‑40

N=41

(15,0%)

Mais de 40

N=37

(13,5%)

Nulo Grau de Identificação

N=66

(24,1%)

 

15,4

 

25,7

 

31,7

 

21,6

Baixo Grau de Identificação

N=136

(49,6%)

 

26,9

 

52,8

 

51,2

 

67,6

Médio Grau de Identificação

N=45

(16,4%)

 

32,7

 

13,2

 

12,2

 

10,8

 Alto Grau de Identificação

N=27

(9,9%)

 

25,0

 

8,3

 

4,9

 

 

Resta saber se esta atitude de maior abertura ao pólo não consagrado por parte dos jovens radica numa maior permeabilidade à economia/cultura mediático‑publicitária ou advém, pelo contrário (ou em simultâneo) de um ecletismo baseado na busca da actualização e diversificação cultural e das referências modernas, exprimindo, por isso, um mais elevado capital informacional. Neste caso, a sua postura teria menos a ver “com a ignorância ou com a existência de resistências face à cultura consagrada e mais com uma real competência moderna”[901]. De qualquer modo importa não perder de vista que o pólo constituído por um médio e alto grau de identificação é claramente minoritário em todos os grupos etários, embora com muito maior incidência na categoria mais jovem. Tal constatação leva‑nos a tirar ilações sobre a estrutura do gosto dominante da amostra em análise, designadamente no que se refere aos seus critérios selectivos que a levam a rejeitar maioritariamente os filmes que fogem aos cânones da consagração.

Ao nível da música passa‑se algo que ajuda a reforçar a ideia de uma especificidade geracional. Repare‑se nos quadros que cruzam idade e grau de identificação face aos nomes incluídos nas categorias dos “consagrados clássicos” (Quadro XXIX) e dos “consagrados modernos” (Quadro XXX). No primeiro caso nota‑se uma maior identificação por parte dos inquiridos com idade entre os 31 e mais de 40 anos e um claro afastamento dos que têm idade inferior aos 21 anos (os adolescentes). No segundo caso, o perfil clássico começa a ser predominante (com uma rejeição maioritária dos “consagrados modernos”) a partir dos 31 anos e, de forma expressiva, nos inquiridos com mais de 40 anos (o afastamento verificado por parte dos adolescentes — 52.6% revelam um “baixo grau de identificação” — pode aqui ser explicado, uma vez mais, pela insuficiente acumulação de “competências modernas”, na medida em que o seu “período formativo”, para utilizar um conceito de Inglehart, ainda não terminou).

 

 

 

 

 

 

Quadro XXIX - Grau de identificação com compositores "consagrados clássicos" por escalões etários

 

Escalões Etários

Música – Consagrados Clássicos

Até 20

N=57

(14,9%)

21‑30

N=187

(48,8%)

31‑40

N=67

(17,5%)

Mais de 40

N=72

(18,8%)

Nulo Grau de Identificação

N=52

(13,6%)

 

22,8

 

17,6

 

6,0

 

2,8

Baixo Grau de Identificação

N=154

(40,2%)

 

43,9

 

43,3

 

47,8

 

22,2

Médio Grau de Identificação

N=81

(21,1%)

 

14,0

 

23,0

 

25,4

 

18,1

 Alto Grau de Identificação

N=96

(25,1%)

 

19,3

 

16,0

 

20,9

 

56,9

 

 Não se trata, como provou Donnat, de um simples efeito “natural” de atracção dos jovens e dos adultos pelas referências etariamente próximas (identificarem‑se com nomes de idade semelhante)[902].

Quadro XXX - Grau de identificação com compositores "consagrados modernos" por escalões etários

 

Escalões Etários

Música – Consagrados Modernos

Até 20

N=57

(14,9%)

21‑30

N=187

(48,8%)

31‑40

N=67

(17,5%)

Mais de 40

N=72

(18,8%)

Nulo Grau de Identificação

N=40

(10,4%)

 

10,5

 

 

5,9

 

6,0

 

26,4

Baixo Grau de Identificação

N=237

(61,9%)

 

59,6

 

55,6

 

73,1

 

69,4

Médio Grau de Identificação

N=76

(19,8%)

 

17,5

 

26,2

 

20,9

 

4,2

 Alto Grau de Identificação

N=30

(7,6%)

 

12,3

 

12,3

 

 

 

Não nos parece, também, que existam clivagens devido a diferenças assinaláveis de capital cultural e escolar (como veremos mais adiante, a amostra é relativamente homogénea nesse ponto), que se notariam preferencialmente, aliás, no eixo da consagração, onde tal não se verifica (atente‑se no Quadro XXXI onde se constata que o distanciamento face aos não consagrados é esmagador entre todos os grupos etários).

Quadro XXXI - Grau de identificação com compositores "não consagrados"

 

Escalões Etários

 

Música – Não Consagrados

Até 20

N=57

(14,9%)

21‑30

N=187

(48,8%)

31‑40

N=67

(17,5%)

Mais de 40

N=72

(18,8%)

Nulo Grau de Identificação

N=175

(45,7%)

 

33,3

 

46,5

 

41,8

 

56,9

Baixo Grau de Identificação

N=185

(48,3%)

 

57,9

 

46,5

 

53,7

 

40,3

Médio Grau de Identificação

N=76

(5,7%)

 

8,8

 

6,4

 

4,5

 

2,8

 Alto Grau de Identificação

N=30

(0,3%)

 

 

0,5

 

 

 

Existe, em consequência, um certo “comportamento geracional”, também encontrado por Donnat na sua análise às práticas culturais dos franceses e que se traduz por um forte distanciamento dos mais jovens (em especial dos adolescentes) face à cultura consagrada clássica. Donnat questiona‑se: “como explicar que os adolescentes de hoje, que são mais escolarizados que os seus antepassados e mais próximos das aprendizagens escolares, estejam assim em recuo mesmo em relação aos seus predecessores imediatos?”. Dito por outras palavras, como explicar que os adolescentes actuais, mais escolarizados que os seus progenitores, se sintam tão pouco identificados com a cultura escolar? A resposta pode encontrar‑se, em boa parte, na própria cultura escolar e nos contextos da sua prática pedagógica (distanciamento face à pluralidade e complexidade dos quotidianos estudantis[903]; “mal estar docente” e dificuldade no estabelecimento de condições mínimas de comunicação pedagógica[904]). Mas também nos processos de socialização familiar que, muitas vezes, devido à pouca experiência de escolarização dos progenitores, propiciam efeitos de autêntica regressão cultural ou, pelo menos, de insuficiente consolidação dos ensinamentos escolares. Ou ainda, face ao fracasso da escola e dos tradicionais agentes que asseguravam a transmissão/reprodução da cultura consagrada, a uma maior permeabilidade em relação às instâncias d a “economia mediático‑publicitária” que, de uma forma mais ou menos intensa, tem vindo a modificar o “conjunto dos procedimentos de reconhecimento e de legitimação” do campo artístico tradicional, ameaçado na sua “pureza” (enquanto distanciamento face à mercantilização e à economia) e autonomia[905]. Desta forma, e mediante a poderosa aliança entre mass media, publicidade e indústrias culturais, criam‑se as condições para a emergência de formas alternativas de consagração e distinção, intimamente ligadas à superestrutura “juvenil”, mediante a difusão de valores “que globalmente são os do universo cultural dos jovens (hedonismo, anticonformismo, velocidade, convivialidade, gosto do risco…)”[906]. Laura Bovone associa a ascensão da economia mediático‑publicitária (ou da “moda audiovisual”, nas palavras de H. Gil Calvo) à emergência de uma nova classe de intermediários culturais, cuja centralidade se deve, em boa parte, ao seu papel determinante na “cadeia criação‑manipulação‑transmissão de bens com elevado conteúdo de informação, cujo valor simbólico é preponderante”[907]; representantes privilegiados da hibridez e ecletismo pós‑modernos, com reflexos poderosos na formação dos gostos das novas gerações, embora longe de um modelo simplista de manipulação.

No entanto, se analisarmos a frequência com que os inquiridos ouvem música (Anexo V/Quadro II), torna‑se difícil estabelecer clivagens. De facto, existe uma massiva adesão trans‑etária a esta prática, facto que estará certamente relacionado com o forte peso dos espectáculos musicais no conjunto da programação cultural dos três espaços em estudo. Por isso, a diferenciação estabelece‑se de formas mais subtis, pelo eixo “clássico/moderno”, ou pela identificação preferencial com certos géneros ou subgéneros.

Ao atentarmos, agora, no quadro XXXII, verificamos que são os inquiridos com idade até aos 20 anos quem mais se identifica com a esfera das práticas expressivas semi‑públicas[908]. Se no caso das idas ao café, cervejaria e pastelaria poderemos estar em presença de investimentos relacionais no quadro de práticas de sociabilidade local que de certa forma prolongam o espaço residencial encarado no seu sentido mais amplo, já as idas a restaurantes, bares e discotecas[909] remetem‑nos para a crescente centralidade das funções de consumo que a cidade desempenha, quer estejam ou não associadas a processos de reestruturação urbana do tipo gentrificação. Neste último caso, em particular, desenvolve‑se toda uma “cultura de saídas” que requer rituais e formas de apresentação em cena adequados, fomentando‑se uma série de espaços socializadores que tendem a escapar à lógica e controle domiciliar e familiar e estimulando‑se a consolidação de estilos de vida relativamente plásticos e autónomos, embora não isentos de constrangimentos sociais, como julga encantatoriamente o pós‑modernismo mais ingénuo[910].

Quadro XXXII - Frequência de práticas expressivas semi-públicas por escalões etários

 

Escalões Etários

Práticas Expressivas

Semi‑Públicas

Até 20

N=72

(15,2%)

21‑30

N=243

(51,4%)

31‑40

N=79

(16,7%)

Mais de 40

N=79

(16,7%)

Frequentemente

N=41

(8,7%)

 

15,3

 

9,5

 

7,6

 

1,3

Com Alguma Frequência

N=314

(66,4%)

 

66,7

 

72,8

 

62,0

 

50,6

Raramente/Nunca

N=118

(24,9%)

 

18,1

 

17,7

 

30,4

 

48,1

 

Os grupos etários mais idosos, em particular os que são detentores de elevados capitais escolares, tenderão a dirigir a sua “cultura de saídas” preferencialmente para “templos” da cultura erudita, ou, de uma forma geral, para o espaço semi‑público sobrelegitimado (salas de concertos, de teatro, de exposições, etc.), o que não significa que as actividades aí incluídas não atraiam também contigentes de jovens relativamente elevados (sem perder de vista que falamos nestes casos de públicos extremamente exíguos ou mesmo de “clientelas”, como propõe Idalina Conde em relação à ópera[911]).

Aliás, ao observarmos o quadro XXXIII, respeitante ao cruzamento entre a idade dos inquiridos e o grau de frequência de práticas receptivas e informativas de públicos cultivados reparamos que, para todos os grupos etários, apenas uma escassa minoria (à volta dos 9%) é público assíduo de actividades como ir ao teatro; ir a concertos de música clássica ou visitar museus e exposições. De qualquer forma, os inquiridos com idade até aos 20 anos são os que mais raramente ou mesmo nunca frequentam estas práticas.

Quadro XXXIII - Frequência de práticas receptivas e informativas de públicos cultivados por escalões etários

 

Escalões Etários

Práticas Receptivas e Informativas de Públicos Cultivados

Até 20

N=75

(15,4%)

21‑30

N=242

(49,6%)

31‑40

N=84

(17,2%)

Mais de 40

N=87

(17,8%)

Frequentemente

N=46

(9,4%)

 

9,3

 

9,5

 

9,5

 

9,2

Com Alguma Frequência

N=183

(37,5%)

 

36,0

 

39,7

 

31,0

 

39,1

Raramente/Nunca

N=259

(53,1%)

 

54,7

 

50,8

 

59,5

 

51,7

 

Uma vez mais a necessidade de acumular um volume mínimo de capital informacional (com tudo o que isso significa de incorporação de capital cultural — embora a relação não nos pareça automática — e de familiarização com códigos artísticos marcados por um acentuado desvio em relação às linguagens quotidianas) favorece idades mais avançadas, embora não seja necessário galgar a pirâmide etária. Com efeito, o grupo etário em que o pólo “frequentemente/com alguma frequência” adquire valores superiores é dos inquiridos com idade compreendida entre os 21 e os 30 anos. O que mostra que não existe, antes pelo contrário, rarefacção relativa de jovens na esfera erudita mas sim um limiar mínimo de recrutamento que tende a afastar os públicos propriamente adolescentes (reflecte‑se, de novo, o facto de não estar ainda completo o seu “período formativo”).

No entanto, esse afastamento já não se verifica quando se trata de práticas criativas eruditas (Quadro XXXIV)[912].

 

 

Quadro XXXIV - Frequência de práticas eruditas criativas por escalões etários

 

Escalões Etários

 

Práticas Eruditas Criativas

Até 20

N=74

(15,0%)

21‑30

N=249

(50,5%)

31‑40

N=84

(17,0%)

Mais de 40

N=86

(17,4%)

Frequentemente

N=31

(6,3%)

 

10,8

 

6,0

 

4,8

 

4,7

Com Alguma Frequência

N=106

(21,5%)

 

32,4

 

22,5

 

16,7

 

14,0

Raramente/Nunca

N=356

(72,2%)

 

56,8

 

71,5

 

78,6

 

81,4

 

Note‑se que, para jovens oriundos de camadas sociais favorecidas, o exercício criativo pode funcionar como forma ultrafamiliar de confirmação e concretização da incorporação dos códigos estéticos mais exigentes. Para outros, eventualmente desmunidos à partida desses recursos, a criação (com a aprendizagem que requer e os repertórios e redes de sociabilidade que lhe estão associados) contribui como canal socializador alternativo, treino de novas competências que poderão servir como utensílio de mobilidade social. Não deixa de ser significativo, no entanto, que o “envelhecimento cultural” se revele mais precoce nas práticas criativas do que nas informativas e receptivas, as primeiras exigindo uma intervenção activa do emissor/receptor, transformado em produtor. Provavelmente estas estarão igualmente ligadas a formas de expressão e consolidação das identidades em formação. Atente‑se em dois exemplos ilustrativos das diferenças entre práticas criativas e receptivas situadas na esfera erudita (Anexo V/Quadros V e VI). No que se refere à prática de escrita literária, a sua frequência, sendo globalmente reduzida, decresce com a idade (o mesmo acontecendo com as artes plásticas). Pelo contrário, a ida a museus (símbolos precisamente, da acumulação patrimonial e da memória social), embora mais generalizada, aumenta com a idade.

 Analisando agora a adesão etária às práticas associativas, quer de cariz expressivo (Quadro XXV)[913], quer de cariz criativo (Quadro XXXVI)[914], podemos constatar, desde logo, um massivo afastamento por parte de todos os grupos. Tal poderá explicar‑se pela tendência, verificada em múltiplos estudos, de acentuado desinteresse face à participação na acção colectivamente organizada, com tudo o que ela representa de regulação institucional, de escalonamento de prioridades e objectivos, de equacionamento de meios e recursos, de diagnóstico de fins a atingir. Aliás, é frequente defender‑se que a participação juvenil se verifica em contextos informais, de forte componente convivial.

Quadro XXXV - Frequência de práticas associativas expressivas por escalões etários

 

Escalões Etários

Práticas Associativas Expressivas

Até 20

N=74

(15,3%)

21‑30

N=244

(50,3%)

31‑40

N=84

(17,3%)

Mais de 40

N=83

(17,1%)

Frequentemente

N=12

(2,5%)

 

2,7

 

2,5

 

2,4

 

2,4

Com Alguma Frequência

N=62

(12,8%)

 

20,3

 

14,3

 

6,0

 

8,4

Raramente/Nunca

N=411

(84,7%)

 

77,0

 

83,2

 

91,7

 

89,2

 

Henrique Gil Calvo considera mesmo que a chave para a compreensão das condutas juvenis não se encontra nos “canais de regulação primários” (partidos políticos, aparelhos ideológicos diversos, com especial destaque para a escola, família), onde se concentram os principais grupos de pertença, mas sim nas modalidades de organização informal, assente numa rede de grupos de iguais (“rede de companheirismo, amizade e ajuda mútua”[915]) onde frequentemente se constrói uma nova definição da realidade (baseada amiúde em grupos de referência), capaz de gerar uma ordem normativa extraoficial. Desta forma, falhando em conseguir adesão e eficácia, os agentes de socialização formais não logram funcionar enquanto meios de transmissão de informação e de preparação cultural. No que diz respeito ao movimento associativo identificaram‑se ainda como obstáculos à participação juvenil a excessiva burocratização, a monotonia da oferta cultural, relações intrassociativas de cariz vertical e excessivamente hierarquizadas (contribuindo para afastar dirigentes e associados) e uma falta de articulação entre objectivos pessoais e objectivos associativos[916].

Quadro XXXVI - Frequência de práticas associativas criativas por escalões etários

 

Escalões Etários

Práticas Associativas Criativas

Até 20

N=75

(15,4%)

21‑30

N=245

(50,2%)

31‑40

N=85

(17,4%)

Mais de 40

N=83

(17,0%)

Frequentemente

N=12

(2,5%)

 

6,7

 

2,0

 

2,4

 

 

Com Alguma Frequência

N=45

(9,2%)

 

20,0

 

9,8

 

3,5

 

3,6

Raramente/Nunca

N=431

(88,3%)

 

73,3

 

88,2

 

94,1

 

96,4

 

Assim, e tendo em conta a persistente valorização por parte dos jovens de dimensões normativas ligadas à possibilidade de autorealização e a dominância de um individualismo de tipo relacional, não admira que o afastamento face ao espaço associativo seja tão expressivo[917]. Podemos ainda enquadrar estes dados numa tendência mais vasta. Inglehart, por exemplo, tem vindo a defender, com fundamento numa impressionante base de informação empírica, que nas sociedades dotadas de uma relativa prosperidade ou sujeitas a períodos relativamente longos de crescimento económico, existe, desde há algum tempo (nos países mais desenvolvidos desde a primeira geração pós segunda grande guerra) uma nítida preferência pelos valores pós‑materialistas, distintivos, entre outras dimensões, pela prioridade concedida à “maximização do bem‑estar subjectivo” em detrimento do crescimento económico, ou ainda pela erosão dos centros tradicionais de autoridade (religião, estado) devido a uma valorização acentuada do indivíduo e da sua necessidade de auto‑expressão[918]. Esta constelação de valores assenta, entre outros, na defesa da realização pessoal, da satisfação no trabalho, das preocupações ambientais, na tolerância face à diversidade de orientações normativas, na valorização da livre escolha, do lazer, da saúde e das redes de sociabilidade, num claro recentramento em torno de um individualismo fortemente aglutinador. Torna‑se pouco propícia, por isso, a uma participação em organizações que se caracterizam por altos níveis de burocracia e centralização de iniciativa. Por outro lado, a vertente hedonista deste individualismo coaduna‑se mal com tudo o que implique uma cedência do espaço pessoal de manobra, mesmo que em nome de interesses colectivos.

De qualquer modo, apesar da falta de identificação com o espaço semi‑público organizado alcançar níveis extremamente elevados, convém salientar que o grupo etário dos inquiridos que têm até vinte anos revela uma maior adesão ao espaço associativo, em particular no que se refere às práticas criativas (fazer teatro amador, tocar ou dançar, etc.). Para além dessa tendência ser compatível, como já referimos, com um processo de construção de identidade e com a necessidade de expressão/consolidação de traços emergentes de personalidade, existe uma ligação à fortíssima componente musical da categoria em questão. A música, não o esqueçamos, constitui uma das vertentes fundamentais de suporte e difusão das culturas juvenis, em especial enquanto veículo privilegiado de constituição de redes de sociabilidade e convívio intimamente associadas à organização informal dos seus quotidianos. Henrique Gil Calvo apresenta uma concepção algo maquiavélica da função da música (e em geral do que ele apelida de “moda audiovisual”[919]) na estruturação das culturas juvenis, ao considerar que o seu principal objectivo é informar cada jovem das modificações ocorridas nas condutas dos demais, de acordo com a sua posição na estrutura social e com o ritmo global de mudança. Por outras palavras, em universos crescentemente competitivos, marcados por conjunturas demográficas e económicas desfavoráveis (pautadas pela escassez de postos de trabalho, por comparação com o contigente de pretendentes), torna‑se imprescindível para os jovens saberem em tempo útil e a baixo custo, quais os exogrupos (grupos de referência ou grupos de iguais, por oposição aos endogrupos, grupos de pertença — família, por exemplo) que melhor defendem os seus interesses, num clima de veloz mudança social. Ou seja, para ultrapassar os outros na fila de espera que caracteriza a sua condição social, os jovens mergulham numa pluralidade de modas (em que a música aparece como o campo mais paradigmático com a proliferação de combinações de géneros e subgéneros) que fornecem preciosas informações sobre aquilo que os divide (e não sobre o que os une, como acontece em conjunturas demográfico‑económicas favoráveis): “assim, mediante a atenção prestada à moda audiovisual, cada jovem fica perfeitamente informado, e a baixo custo, de qual é a subdivisão social ocupada por todos e cada um dos demais jovens competidores, dentro do repertório de subdivisões estabelecido pela divisão social dos jovens”[920]. Esse seria, aliás, o único interesse desta categoria social — adiantar‑se face aos concorrentes na “interminável” fila de espera da sua condição: “se não os podes vencer, luta: estabelece com eles uma corrida de velocidade de imitação em que vence quem correr mais depressa no seguimento da moda audiovisual. Marca a moda quem se adianta em imitar os demais antes que os demais: superando em rapidez de imitação os próprios exemplos do modelo a imitar. Círculo vicioso que é o imperativo categórico do depredador audiovisual”[921]. Claro que esta visão nos parece simplista e unidimensional. Se é verdade que a intensa adesão juvenil a uma cultura da imagem e do som se liga a uma necessidade de rápida actualização de conhecimentos num contexto axiológico extremamente mutável; se nos surge como igualmente viável a hipótese de alguma associação dessa cultura aos fenómenos da moda e da diversidade/competição intergrupal, todavia a questão tem de ser encarada pelo outro lado da moeda: tais fenómenos representam, igualmente, tentativas de auto‑expressão criativa e os seus conteúdos funcionam como uma narrativa que os jovens contam a si próprios, a respeito de si mesmos. Dito por outras palavras, a música e toda a cultura da imagem e do som constituem veículos privilegiados de suporte, difusão e construção das identidades juvenis, num tempo em que o padrão de uma cultura unificada cede lugar a práticas difusas, descontextualizadoras e fragmentadoras dos seus significados tradicionais (o discursivo, por exemplo, é vertiginosamente substituído pelo figurativo — imagens), o que confere importância acrescida a todos os processos de apresentação de uma imagem de si (roupas, adornos, posturas corporais, etc.) como âncora de identificação e, simultaneamente, de diferenciação estilística e cultural[922].

Uma última nota para realçar que não existe na nossa amostra um comportamento distintivo dos grupos etários mais jovens face a um indicador crucial de adesão à cultura audiovisual como é o caso da frequência com que se vê televisão (Anexo V/Quadro VII). No entanto, por comparação com inquéritos nacionais, verifica‑se uma menor adesão dos jovens da amostra face a essa prática[923]. Estarão outras variáveis, que não a idade, relacionadas com este comportamento? Não deixa de ser curioso verificar a frequência com que se vêem filmes vídeo em casa. Ela alcança níveis superiores precisamente junto dos mais jovens. Apresentar‑se‑á esta prática, ligada à possibilidade de escolha, como um substituto parcial da recepção televisiva, mais passiva? Voltaremos a este aspecto quando relacionarmos um conjunto de práticas culturais com o capital escolar dos inquiridos.

 

Podemos então falar, em síntese, da existência de uma “cultura jovem”?

A resposta é sim e não. Sim, se a entendermos enquanto uma especificidade geracional (a tal “tipicidade juvenil” de que fala Machado Pais e que apressadamente rejeitamos, como já referimos, em trabalhos anteriores), baseada na comparação de um mínimo denominador comum face às demais gerações, produzido sócio‑culturalmente pela exposição a um mesmo período histórico, um “pano de fundo” que cobre processos de socialização necessariamente distintos consoante a classe social, o sexo, o contexto residencial, a etnia, etc. Neste âmbito, podemos falar, entre outras dimensões, de um afastamento face aos padrões clássicos de cultura e às vias tradicionais de consagração e legitimação, maxime a escola. Assim, os jovens tendem a explorar e a investir em vias alternativas de legitimação cultural, em particular as que se enquadram na “economia mediático‑publicitária”. Serão por isso mais visíveis as disposições inculcadas que vão no sentido de uma valorização da apresentação estilística e do consumo cultural urbano, com especial ênfase nos espaços‑tempos de lazer (F. Godard fala mesmo da criação de um “mercado cultural da juventude”[924]) e nas práticas conviviais. Inglehart também salienta a existência de significativas diferenças intergeracionais em sociedades sujeitas a períodos relativamente longos de crescimento económico, como é o caso de Portugal, o que reforça a tendência para que o período formativo dos mais novos tenha ocorrido em situação de segurança económica[925] propiciando a identificação com valores pós‑materialistas que favorecem um recentramento na esfera do simbólico (auto‑expressão, gratificação individual, qualidade de vida como prioridade, participação, bem‑estar subjectivo, etc.).

 A nossa amostra mostra, aliás, uma maior adesão dos inquiridos com idade compreendida entre os 21 e os 40 anos (jovens e jovens adultos) ao espaço semi‑público. No entanto, não se pode afirmar que os inquiridos mais velhos assumam uma lógica clara de desinvestimento neste espaço. Aliás, ao contrário do que se poderia pensar, o escalão etário dos inquiridos com idade superior a 40 anos é o que menos adere ao espaço doméstico (Quadro XXXVII). O que nos alerta para o facto de, na nossa amostra, as clivagens com base na idade não serem muito significativas (veja‑se o caso da generalizada falta de identificação com o espaço associativo). Eventualmente os inquiridos mais idosos que a constituem estão longe de serem representativos do comportamento médio da sua faixa etária. Outras variáveis interferirão na sua resistência diferencial ao “envelhecimento cultural”. O que nos remete para o outro lado da pergunta inicial.

Quadro XXXVII - Frequência do espaço doméstico por escalões etários

 

Escalões Etários

 

Espaço Doméstico

Até 20

N=67

(17,0%)

21‑30

N=202

(51,1%)

31‑40

N=64

(16,2%)

Mais de 40

N=62

(15,7%)

Frequentemente

N=18

(4,6%)

 

6,0

 

4,0

 

6,3

 

3,2

Com Alguma Frequência

N=264

(66,8%)

 

70,1

 

66,8

 

68,8

 

61,3

Raramente/Nunca

N=113

(28,6%)

 

23,9

 

29,2

 

25,0

 

35,5

 

De facto, não existe uma “cultura jovem” se considerarmos que apenas certos segmentos da categoria social “juventude” adoptam comportamentos e atitudes como os anteriormente descritos. Da mesma forma, essa especificidade dilui‑se se estiver presente em determinados estratos de outras gerações ou grupos etários. Como refere Featherstone, citando um colunista de uma revista juvenil, “ninguém é doravante um adolescente se toda a gente o é”[926]. Ou, como acrescenta o mesmo autor, importa, para além de tentar analisar os conteúdos da mudança cultural (em direcção ao que muitos apelidam de “cultura pós‑moderna”), saber onde essa cultura surge e que grupos sociais a protagonizam. Até que ponto a adesão às imagens e à imagem como apresentação de si, à identidade descentrada e ao individualismo relacional (e também narcísico) eliminou hierarquias e estruturas simbólicas tradicionais, generalizando e democratizando códigos outrora restritos e apanágio de grupos dominantes. Urge, por isso, conhecer o habitus desses grupos juvenis que, de forma mais visível, parecem representar toda uma geração, funcionando mesmo como espelho, muitas vezes, de uma sociedade inteira[927].

 

 

2. Género: o fim do “duplo padrão” de comportamento?

 

Anthony Giddens coloca a reflexividade feminina no centro daquilo que apelida de “política da vida”[928], um programa que coloca no centro das orientações normativas a procura quase obsessiva da auto‑identidade e a concretização das “decisões da vida”[929]. Assim, a mulher liberta‑se não só das obrigações familiares e da “mística feminina” como se recusa a seguir, na esfera profissional, os estereótipos masculinos. A “política da vida” encontra‑se pois intimamente ligada à definição da identidade de género.

No entanto, se atentarmos no Quadro XXXVIII constatamos que, apesar do afastamento face ao espaço público ser comum aos dois sexos, a exclusão das mulheres é muito mais significativa.

 Apesar de as mulheres terem definitivamente conquistado os vários níveis de ensino, incluindo, de forma expressiva, o ensino superior, bem como importantes segmentos qualificados do mercado de trabalho [930], não lograram ainda abrir as portas do espaço público[931]. Trata‑se, por isso, de um défice de cidadania que justifica a continuação de políticas e práticas emancipadoras, na medida em que persiste uma apropriação desigual de recursos baseada na diferença sexual. Giddens considera que a autonomia é o principal “princípio mobilizador” da perspectiva emancipadora: “A emancipação significa que a vida colectiva é organizada de modo que o indivíduo é capaz — de uma maneira ou de outra —, de acção livre e independente nos ambientes da vida social”[932].

Quadro XXXVIII - Frequência do espaço público por sexo

 

Sexo

 

Espaço Público

Masculino

N=207

(46,6%)

Feminino

N=237

(53,4%)

 

Frequentemente

N=3

(0,7%)

 

1,0

 

0,4

 

Com Alguma Frequência

N=76

(17,1%)

 

27,1

 

8,4

 

Raramente/Nunca

N=365

(82,2%)

 

72,0

 

91,1

 

 

Nesta medida, pode‑se afirmar que a identidade de género, mesmo antes de se embrenhar na “política da vida” (ligada à pluralidade de escolhas e estilos de vida da “modernidade tardia”, segundo Giddens) necessita de resolver situações que, de acordo com o autor inglês, pertencem a uma ordem tradicional. Por outras palavras, tradição e pós‑tradição não são momentos sequenciais, etapas de uma qualquer progressão, mas sim dimensões coexistentes.

Veja‑se o quadro referente às práticas expressivas públicas[933] (Quadro XXXIX).

Quadro XXXIX - Frequência de práticas expressivas públicas por sexo

 

Sexo

Práticas Expressivas

Públicas

Masculino

N=210

(46,0%)

Feminino

N=247

(54,0%)

 

Frequentemente

N=6

(1,3%)

 

1,4

 

1,2

 

Com Alguma Frequência

N=159

(34,8%)

 

41,9

 

28,7

 

Raramente/Nunca

N=292

(63,9%)

 

56,7

 

70,0

 

 

A exclusão feminina volta a ser muito mais significativa que a reduzida participação masculina. Este fenómeno pode funcionar como uma forma relativamente dissimulada de reprodução das desigualdades sexuais. Não sendo tão visível e explícita como há décadas atrás, em grande parte devido à recente conquista feminina dos níveis elevados de escolaridade e do mercado de trabalho, a manutenção de padrões de desigualdade de oportunidades pode estar associada a uma sobrecarga de trabalho doméstico e a um défice de tempo disponível para actividades de lazer. Aliás, os nossos dados revelam, o que à partida poderia parecer paradoxal, que não há diferenças assinaláveis na adesão ao espaço doméstico (Anexo V/Quadro XII). No entanto, não nos podemos esquecer que a nossa tipologia de actividades culturais se enquadra no tempo do não‑trabalho. Se porventura tivéssemos medido o tempo de permanência em casa, certamente que as mulheres revelariam uma muito maior dependência face ao espaço doméstico.

Onde se verifica, igualmente, uma sobreexclusão feminina, é no espaço associativo (espaço semi‑público organizado). Apesar de os inquiridos do sexo masculino, uma vez mais, se revelarem igualmente afastados desse círculo, a minoria que participa é mais alargada (Quadro XL). Desta forma, as mulheres encontram‑se privadas de contextos de socialização onde se incorporam valores de mobilização, participação e acção colectiva, muitas vezes contra poderes e lógicas tutelares[934]. Por outras palavras, vêem‑se amputadas da aprendizagem de uma lógica política de contornos emancipatórios, o que não deixa de ser funcional para a manutenção das desigualdades de índole sexual.

Quadro XL -Frequência do espaço associativo por sexo

 

Sexo

Espaço Associativo (Semi‑Público Organizado)

Masculino

N=214

(45,1%)

Feminino

N=260

(54,9%)

 

Frequentemente

N=5

(1,1%)

 

1,9

 

0,4

 

Com Alguma Frequência

N=38

(8,0%)

 

11,2

 

5,4

 

Raramente/Nunca

N=431

(90,9%)

 

86,9

 

94,2

 

 

Finalmente, o Quadro XLI mostra‑nos que, em relação ao espaço semi‑público, não só não se verifica qualquer discrepância, em termos de tendência, entre os dois sexos, como, inclusivamente, se denota uma ligeira adesão superior por parte das mulheres. Esta constatação pode‑se explicar, a nosso ver, pela combinação de dois factores: i) a presença nesta categoria de práticas como “ir às compras”, “ir à missa ou a cerimónias religiosas” ou ainda “comprar comida e mercearias” que são tradicionalmente feminizadas; ii), a associação existente entre o espaço semi‑público e as práticas de sociabilidade local (ir a cafés ou pastelarias) que prolongam os quadros identitários de base doméstica.

Quadro XLI - Frequência do espaço semi-público por sexo

 

Sexo

 

Espaço Semi‑Público

Masculino

N=213

(45,7%)

Feminino

N=253

(54,3%)

 

Frequentemente

N=151

(32,4%)

 

27,2

 

36,8

 

Com Alguma Frequência

N=250

(53,6%)

 

55,4

 

52,2

 

Raramente/Nunca

N=65

(13,9%)

 

17,4

 

11,1

 

 

Em suma, no que se refere à abertura ao espaço exterior amplo, à lógica da esfera pública (onde se desenvolvem, de forma ímpar, competências comunicacionais que favorecem a acção cívica e política) as mulheres sofrem uma significativa discriminação. Escapam‑se‑lhes, por isso, as arenas urbanas onde se forma a opinião pública e onde se confrontam modelos díspares, o que acaba por reduzir a gama de estilos de vida possíveis.

No entanto, convém realçar que, apesar de estarmos indiscutivelmente na presença de uma lógica de género, a tendência mais ampla é transversal aos dois sexos (afastamento do espaço público e do espaço semi‑público organizado) e exige a implicação de outras dimensões explicativas.

 

 

3.1. Espaços, perfis de públicos e formas de apresentação.

 

 

Mike Featherstone chama a atenção para a crescente importância dos factores culturais no contexto da competição entre cidades. Com efeito, o modelo de um formalismo exagerado e abstracto, ligado a uma racionalidade económica de cariz tecnocrata (a cidade meramente funcional), ou a exploração de uma tradição baseada na história e nas artes, cedem cada vez mais o lugar à urbe onde a iconografia urbana desempenha um papel fundamental no imaginário cosmopolita dos seus habitantes. A “imagem de cidade” torna‑se pois crucial para a atracção de investimentos, mostrando como as esferas da cultura e da economia se aliam e interpenetram (apesar das suas lógicas relativamente autónomas e amiúde conflituais). O processo de gentrificação enquadra‑se, aliás, neste amplo processo[935]. Mas igualmente na crescente implantação de pólos de atracção cultural, embora numa lógica distinta das instituições e hierarquias tradicionais.

Atente‑se nos espaços que estamos a analisar. O Rivoli, como já foi referido[936], assume‑se como centro cultural polivalente, dividindo‑se internamente em espaços de vocação diferenciada, de forma a propiciar cruzamentos e encontros de públicos e níveis de cultura distintos, funcionando, indiscutivelmente, como local de atracção metropolitana.. O B Flat combina a lógica informal de bar com a função de sala de espectáculos, contribuindo para a imagem que o município de Matosinhos pretende transmitir de “cidade do jazz”. A esplanada da Praia da Luz apresenta igualmente um perfil híbrido, funcionando como café, bar e local ocasional de espectáculos, inserindo‑se num movimento relativamente recente de dinamização da zona marítima da cidade. Por outras palavras, não são apenas locais onde se consomem signos culturais, são eles próprios signos que se consomem e que contribuem para a imagem de cidade.

De certa forma, subjacente a qualquer um destes três espaços, existe a intenção de transgredir significados estáticos e tradicionais de cultura, fomentando a diversidade de linguagens culturais e “baralhando” hierarquias e sistemas de classificações. Repare‑se que, não só um local de convívio mundano (Praia da Luz) se abre às novas expressões do campo cultural (moda, design, música alternativa), como espaços de expressão cultural consagrada (o B Flat e o jazz, o Rivoli e o teatro, a dança, a música erudita, o cinema de autor) adoptam lógicas democratizadoras, viradas para a expansão de públicos (multifuncionalidade) e mescladas com o lazer e a diversão. Apresentam‑se por isso, à partida, como espaços liminares, lugares de “complexa interacção de campos e sentidos” onde se flexibilizam categorias e papéis instituídos e onde não existem critérios universais de classificação e legitimação[937].

Serão estes objectivos atingidos?

Atente‑se no quadro XLII. Nos três espaços o grupo etário modal é o que congrega os inquiridos com idade compreendida entre os 21 e os 30 anos. No primeiro destes lugares o público adolescente é quase inexistente, o que já não é verdadeiro para a Praia da Luz onde representam 25.8% do público total da amostra. No caso do Rivoli, apesar da já referida elevada concentração no grupo etário 21‑30 anos, existe uma distribuição mais equilibrada. Em suma, as clientelas afiguram‑se consideravelmente juvenilizadas, com particular incidência na Praia da Luz. B Flat e Rivoli têm um peso relativo mais significativo dos inquiridos com idade compreendida entre os 31 e mais de 40 anos (respectivamente 41.5% e 37.8%)[938].

 

 

 

 

Quadro XLII -Escalões etários por espaços

 

Espaço

 

Escalões Etários

B Flat

N=142

(27,1%)

Praia da Luz

N=93

(17,8%)

Rivoli

N=289

(55,1%)

Até 20

N=79

(14,9%)

 

3,5

 

25,8

 

17,0

21‑30

N=263

(50,2%)

 

54,9

 

58,1

 

45,3

31‑40

N=90

(17,2%)

 

22,5

 

11,8

 

16,3

Mais de 40

N=93

(17,7%)

 

19,0

 

4,3

 

21,5

 

 

3.1.1 Praia da Luz ou a cidade e a moda: em direcção a um habitus plasticizado?

 

 Vários são os factores que podem explicar esta composição etária. O tipo de oferta cultural existente na Praia da Luz, a par da organização do próprio espaço — grande informalidade, importante (omni)presença do audiovisual (écrans de televisão onde se sucedem imagens vídeo; música pop passando a alto volume) — propiciam as sociabilidades juvenis e a cultura diversão, ao mesmo tempo que exigem uma estrutura moderna do capital cultural, imprescindível para se decifrarem as linguagens e os códigos “do momento”. Uma inscrição num folheto de divulgação das actividades promovidas na Praia da Luz não podia ser mais explícita:

“Quem não está in está out.

As nossas deambulações etnográficas permitiram‑nos reforçar estas primeiras observações. Nas centenas de pessoas que invadiram o bar‑esplanada numa noite de passagem de modelos, a esmagadora maioria era adolescente, embora também se vislumbrassem alguns jovens adultos. Curiosamente, as pessoas mais velhas adoptavam uma postura bastante mais reservada e discreta, muitas delas assistindo ao “espectáculo” a partir da rua sobranceira. As indumentárias, aliás, denunciavam, numa primeira impressão, a aparente uniformização das vestes juvenis (informalidade, “valorização” do corpo — jeans; t‑shirts por debaixo de camisas abertas; algumas raparigas de mini‑saia). No entanto, um olhar mais atento permitia detectar “regiões” onde dominava a sofisticação. Nestes casos, a estilização da presença em cena, a ocupação de regiões frontais, o look trabalhado, lembram uma citação de Mike Featherstone: “Estão fascinados pela identidade, apresentação, aparência, estilo de vida e pela incessante busca de novas experiências”[939].

Adolescentes pintadas de forma por vezes exótica (máscaras pós‑modernas?); raparigas com chapéus em citação de tempos idos, botas negras até ao joelho; rapazes de cabelo multicolor; calças justíssimas com terminação à boca de sino. Colagem, absorção do passado[940], paródia, uso do kitsch. Segundo Featherstone, trata‑se do colapso das fronteiras entre a arte e a vida quotidiana, especialmente patente nos estilos juvenis. Fazer da vida uma obra de arte (adoptar a divisa “a vida pela arte e a arte pela vida”[941]); ser cada um artista de si mesmo; estetizar o momento. O espectáculo dentro do espectáculo: estão ali para assistir à passagem de modelos, mas apresentam‑se a si próprios como possíveis “modelos” a seguir; consomem um produto cultural e como tal são consumidos. A sua individualidade exprime‑se, supostamente, através dos seus corpos, da sua hexis, da sua face, da sua indumentária e adornos. O “eu” torna‑se também um efeito de representação, um happening, em suma, um “eu” performativo (“performing self”[942]). O comportamento em matéria de traje revela‑se indissociável da teatralidade da vida quotidiana (“é uma maneira de se representar e de se apresentar”[943]), como de resto os interaccionistas não se cansam de referir. Símbolo de identificação a um estilo de vida (e aos grupos que nele se reconhecem), serve também de demarcação face aos restantes. “Ritual confirmativo” (na expressão de Goffman) e, ao mesmo tempo, emblema de exclusão. “Ponte” que nos liga a alguns “outros”, “porta” que de “outros” nos afasta. Simmel fala, por isso, numa dupla função da moda: “construir um círculo, isolando‑o ao mesmo tempo dos demais[944].

Vale a pena descrever o momento da passagem de modelos para elucidar um pouco melhor a íntima relação que se estabelece entre estes estilos de apresentação em cena e as franjas emergentes do campo cultural:

 

 Num palco muito próximo do mar prolonga‑se uma passerelle erigida em plena praia. Antes do desfile actua um grupo de dança. Semi‑nus, os bailarinos ondulam ao som de ritmos africanos, imitando cadências “tribais”. De entre o grupo destaca‑se um executante de peito nu e longos cabelos pretos. O exótico é descontextualizado, “colado” a outras referências e apreendido em paródia de forma fragmentária. Num outro quadro, os bailarinos surgem em traje “futurista”, sugerindo a iconografia de um cenário de ficção científica.

Começa o desfile. Os modelos são muito jovens, boa parte deles adolescentes. Imediatamente antes passa num grande écran constituído por doze televisores uma lista contendo os seus nomes, acompanhados dos respectivos rostos em poses ora “exóticas”, ora descontraídas, ora ainda “provocadoras”.

 As modelos são extremamente magras (o corpo da “moda”, uma versão legítima do corpo, ou como as pressões sociais reaparecem onde menos se espera, no próprio terreno do “eu performativo”[945]). Os rapazes denunciam um porte viril, ostentando músculos trabalhados (a imagem constrói‑se, burila‑se — tudo se passa nos limites do “descontrole controlado” do habitus). Caminham a passos largos ao longo da passerelle; aproximam‑se da assistência, tiram os óculos escuros de lentes oblíquas, fitando longamente o público sem fixar ninguém em concreto; despem o casaco em pose provocatória e retiram grande ovação à assistência (paródia da inversão dos papéis sexuais tradicionais — o homem como objecto de desejo, o seu corpo como mercadoria num tempo em que toda a mercadoria se culturaliza. Mas não resultará este jogo numa confirmação/reforço da ordem normativa tradicional?).

De repente, ainda o desfile não terminara irrompe uma intensa chuva. As pessoas correm para debaixo das árvores e dos guarda‑sóis. Os grupos de amigos desfazem‑se. Muita gente pergunta por alguém que se perdeu. A realidade quotidiana regressa como realidade primeira. Muda‑se de província finita de sentido (Schutz).

 

Por vezes, o “choque” de estilos provoca situações desconcertantes, surgindo a dissonância e mesmo o ruído:

 

10 horas da noite. Esplanada cheia. Ambiente vincadamente juvenil, ou mesmo adolescêntrico, com excepção de alguns — poucos — casais. As vestes são claramente informais, quase desportivas.

A partir da uma hora da madrugada a composição do público vai‑se progressivamente alterando, com tendência para um ligeiro envelhecimento. Os jovens adultos, na casa dos vinte anos, tornam‑se predominantes. O restaurante metamorfoseia‑se totalmente em bar. O DJ convidado inicia a sua actuação. A música aumenta de volume e a luz enfraquece. Começam a aparecer grupos de aparência estilizada, com especial destaque para as raparigas, onde a panóplia de adornos e a profusão de signos decorativos é abundante. Vestidos de alta costura, em geral negros, calças pretas justas, alguns tops ousados. Maquilhagem de múltiplas matizes.

De repente, a perplexidade apodera‑se dos presentes. Surge um grupo nitidamente desadequado face ao cenário, provavelmente oriundo de um dos muitos casamentos que se realizam no Verão. Os seus fatos e vestidos são igualmente formais, mas visivelmente fora de moda. Os olhares dos habitués não descolam daquele grupo. Nota‑se troça e desconforto.

 

Convém referir, no entanto, que os grupos de jovens onde se distingue a indumentária sofisticada (ligada à “exploração lúdica de experiências transitórias e aos efeitos estéticos de aparência”[946]) representam uma minoria face ao conjunto da assistência onde predomina a informalidade e os estilos de apresentação mais “vulgares” (menos “trabalhados”), embora dentro dos cânones da moda. Não se pode afirmar, por isso, que exista aqui um “colapso das hierarquias simbólicas”[947] e dos rituais de distinção. Seguindo Simmel, ocorre‑nos referir, a este respeito, o paradoxo que a moda resolve: ela permite, ao mesmo tempo, a fusão no grupo, a integração social (através da tendência para a imitação) e a diferenciação, a distinção (na busca constante do novo). Simmel acrescenta ainda que “as modas são sempre modas de classe”[948] mas não deixa de realçar a componente de criatividade e expressão individual patente neste fenómeno. A sua análise, de resto, nada fica a dever aos comentários de alguns ensaístas da pós‑modernidade, excepto no optimismo desmesurado com que encaram a questão. Para Lipovetsky, por exemplo, a moda contribui para o fortalecimento das democracias e das sociedades livres: “é a idade da moda que mais tem contribuído para arrancar o conjunto dos homens ao obscurantismo e ao fanatismo, para instituir um espaço público aberto, para moldar uma humanidade mais legalista, mais madura, mais céptica”[949], vendo nela um instrumento “iluminado” de emancipação individual. Mas já Simmel falara da presença do efémero e do forte sentimento de presente que a moda acarreta. Ela está, afinal, indissociavelmente ligada ao espírito do tempo, traduzindo a “«impaciência» específica da vida moderna”[950] e a perda de terreno das “grandes convicções duráveis”[951] e exprimindo a “atracção formal inerente à fronteira, ao começo e ao fim, ao vai‑e‑vem”[952]. Mas se não exclui ninguém, na medida em que se define mais pelo desejo de possuir, do que pela propriedade, a moda marca distâncias e torna‑as mensuráveis. Se assim não fosse, se a moda se alargasse infinitamente, deixaria de o ser. De certa maneira, a moda são os outros, os diferentes. O gosto é sempre um produto relacional.

Na Praia da Luz essas distâncias são visíveis na forma de ocupação do espaço e de apresentação em cena. Há códigos simbólicos que manifestamente não estão generalizados e seguem as leis da escassez, valorizando‑se. São relativamente poucos os indivíduos que conseguem fazer da sua aparência uma obra de arte. É difícil, no entanto, fazer juízos automáticos sobre a pertença de classe dos portadores de um determinado estilo de apresentação (e representação). Não só porque os símbolos envolvidos na construção de uma imagem tendem a complexificar‑se, como aumenta a gama de combinações e de escolhas possíveis. Dito de outra forma, o habitus tende a tornar‑se mais plástico, reflectindo mediações subtis entre as condições objectivas de existência, as disposições incorporadas (hexis) e os esquemas simbólicos e valorativos (ethos) de percepção e classificação da realidade. Se é verdade que Bourdieu refere a singularidade de cada habitus e a sua capacidade estratégica de improvisação e criatividade (e, por conseguinte, de abertura à mudança), não deixa de o enquadrar num sistema orquestrado e unificado das práticas sociais. Realça, por isso, o carácter duradouro e irreversível das disposições inconscientes, extremamente dependentes das suas “condições primitivas de aquisição” que, por isso, se tornam uma “quase‑natureza”, fisicamente inscritas — incorporadas[953]. No entanto, o conceito acaba por se revelar demasiado estático e inoperante aquando de situações ou conjunturas de aceleração do ritmo de mudança social e de permeabilidade face ao novo. Os usos sociais da moda e a complexificação/multiplicação dos estilos de vida fazem parte desta tendência de velocidade de circulação que se associa, nas nossas sociedades, ao valor de signo das mercadorias e ao seu curto prazo de validade. Impõe‑se, por isso, tornar mais plástico o conceito de habitus inserindo‑o numa “perspectiva processual”[954], aberto à permanência dos processos de socialização e à pluralidade de quadros de interacção e de grupos de referência com quais os agentes se identificam.

Mas a realidade não cessa de existir e impele‑nos a desmistificar a ilusão de uma vitória da estética, do lúdico e da estilização da vida sobre as segmentações e hierarquias do espaço social. O fundamental é saber que modos de vida estas modas exprimem. Voltaremos adiante a esta questão crucial.

3.1.2. B Flat — Ecletismo, mas...

 

No B Flat, por seu lado, apesar de uma maior variedade etária, destaca‑se o predomínio dos adultos com idade entre os 30 e os 40 anos. Os adolescentes, aliás, estão praticamente ausentes. Em algumas noites, no entanto, a presença de jovens adultos é significativa. Os grupos tendem a ser etariamente homogéneos. A indumentária é bastante informal (jeans, t shirts, pólos), com excepção de alguns grupos onde se realçam da parte masculina o uso de gravata e da parte feminina um estilo “clássico” (saia e casaco, por exemplo). Estes grupos são quase sempre mais idosos. Serão estas diferenças resultado de uma representação diferenciada sobre os usos sociais da “cultura de saídas”, entendida por alguns como um acto banal e por outros como uma ocasião especial e de “cerimónia” (ou seja, ritualizada)?

Não existe, no entanto, como em certos grupos da Praia da Luz, um investimento extremamente visível nos modos de apresentação. De certa maneira, este menor investimento na imagem acaba por criar a impressão de uma maior homogeneização. A estilização da vida quotidiana não é aqui um traço dominante. O que não significa que as pessoas não se apresentem à moda. Como Simmel refere, por vezes a moda pode conferir a impressão de que as pessoas “estão de uniforme”[955]. Tal pode acontecer, paradoxalmente, por uma necessidade de preservar a liberdade interior. Nesses casos, a observância à moda surge como refúgio: “a obediência cega às normas da generalidade, em tudo o que é exterior, representa para eles o meio consciente e deliberado de reservar o seu sentimento pessoal e o seu gosto”[956].

O espaço, na sua aparência de “cave” e na sua horizontalidade favorece muitíssimo a apreensão de um sentimento de informalidade. Por outro lado, a grande proximidade face ao “palco” (que apenas se distingue por lá estarem os artistas e os instrumentos) impele a uma maior concentração no espectáculo. A oferta cultural é também elucidativa. Atente‑se nos seguintes “retratos”:

 

Noite de 24 de Abril de 1997. Programa dedicado à comemoração da revolução. Repertório alusivo à canção de intervenção, recriada com arranjos jazzísticos. Sala decorada com posters da bandeira nacional, numa parede, e quadros de pintura abstracta, noutra. Em pontos estratégicos, quatro grandes fotografias: uma multidão em manifestação, retratos de José Afonso, Sérgio Godinho e Adriano Correia de Oliveira. Ouvem‑se palmas quando soam os primeiros acordes de “A Pedra Filosofal”. A partir da uma da madrugada a sala começa a esvaziar‑se.

 

Setembro de 1997. Actuam Fernando Tarrés e o seu grupo. Na sala exibe‑se uma colecção de pinturas, estilo banda desenhada, com colagens de papel de jornal e grandes incrições: “If love be rough with you, be rough with love”. O quadro retrata dois polícias a arrancarem uma flor do cabelo de um jovem.

A apresentação dos músicos é feita pelos próprios, em espanhol. Anunciam uma homenagem a Astor Piazzolla, a alguns compositores brasileiros e a Pablo Picasso.

 A informalidade é a nota dominante, quer na apresentação dos músicos (extremamente sóbria, quase descuidada), quer na sua postura durante o espectáculo (por exemplo, bebendo cerveja no intervalo entre cada composição).

 

Como se depreende por estes dois breves “retratos” o tipo de espectáculos apresentados no B Flat revelam a preocupação de, dentro dos limites do jazz, propiciar uma mistura de géneros e lançar pontes em direcção a outras formas de expressão. No entanto, o repertório não deixa de impor limites dentro dos quais se recrutam os públicos. Não só algumas das menções implicam a acumulação de referências históricas e políticas (que afastam, eventualmente, os públicos adolescentes), como favorecem uma recepção mais intelectualizada (e por isso menos dispersa pela forma, pelo “invólucro”, pela apresentação), embora dentro de universos culturais modernos (a exposição de pintura abstracta, as referências a Picasso ou Piazzolla).

 

3.1.3. Rivoli

 

Se atentarmos no quadro XLIII, respeitante à distribuição etária por espaços internos do Rivoli (e respectivos espectáculos), constatamos que o público adolescente se concentra de forma nítida no café concerto (48%), enquanto que os inquiridos mais idosos frequentam preferencialmente o grande auditório (69.3%).

Quadro XLIII - Sub-espaços do Rivoli por escalões etários

 

Escalões Etários

 

Rivoli – Espaços Internos

Até 20

N=48

(17,0%)

21‑30

N=126

(44,7%)

31‑40

N=46

(16,3%)

Mais de 40

N=62

(22,0%)

Grande Auditório

N=134

(47,5%)

 

31,3

 

47,6

 

37,0

 

67,7

Pequeno Auditório

N=44

(15,6%)

 

20,8

 

14,3

 

21.7

 

9,7

Café Concerto

N=104

(36,9%)

 

47,9

 

38,1

 

41,3

 

22,6

 

Tal não admira se atendermos à estrutura da oferta de cada um dos subespaços. No grande auditório predominam os espectáculos que se enquadram na “cultura erudita”, enquanto que, ao nível do café concerto, embora existam algumas produções de difícil classificação, dado o seu carácter iconoclasta (caso dos Repórter Estrábico), certamente que nenhum repertório caberia nessa categoria. Mas existe igualmente um “efeito espaço” que não podemos negligenciar. Enquanto que o grande auditório, apesar da des‑sacralização patente na sua remodelação, responde a objectivos de representação simbólica e de prestígio, o café concerto caracteriza‑se pela sua informalidade (patente na distribuição das pessoas por mesas, na grande proximidade face ao pequeno palco, na sensação de horizontalidade que predomina, no garrido das cores das paredes junto às janelas, a lembrar peças multicolores de um puzzle gigantesco). A estrutura de interacção que se desenrola nestes cenários não é independente da sua configuração. Giddens é um dos autores que mais tem insistido nesta questão, ao enfatizar que “os agentes movem‑se em contextos físicos cujas propriedades interagem com as suas competências (...) ao mesmo tempo que os agentes interagem entre si”[957]. Assim, torna‑se importante compreender que o espaço não é neutro, embora os seus constrangimentos e/ou recursos não sejam indissociáveis dos projectos dos agentes na construção diária da realidade. Desta forma, através do espaço‑tempo os padrões institucionalizados de comportamento ligam‑se às micro‑situações de interacção quotidiana.

Alguns “retratos”, no entanto, ilustrarão melhor o que se pretende demonstrar:

 

Segunda noite de estreia do novo Rivoli[958]. Concerto pela novel Orquestra Nacional do Porto. Sala apinhada de gente. Respira‑se a solenidade de uma grande ocasião. O espaço de entrada contíguo ao grande auditório está impecável: tons claros e suaves nas paredes e colunas, chão de mármore ou alcatifado, assistentes de sala cuidadosa e uniformemente vestidos por uma marca consagrada. Por todo o lado, o brio na indumentária salta à vista. No entanto, não há uma grande variedade estilística, como acontecia na Praia da Luz. Os cânones são aqui mais restritos, certamente porque o grau de formalidade e de ritualização é superior. Quase não há homens sem gravata. As mulheres ostentam vestidos de cerimónia. Algumas trazem casaco de pele. Contam‑se pelos dedos as calças de ganga. Há poucos jovens, e os que estão presentes não se distinguem, dada a sensação de selecta uniformidade.

 

Café concerto. Espectáculo com os Mind da Gap, um grupo emergente de hip‑hop, constituído por quatro rapazes de média etária que pouco deve ultrapassar os vinte anos. Movimentam‑se ao som da música, de forma sincopada. Vestem calças larguíssimas, apresentam a barba por fazer, dois deles usam boné com a pala virada ao contrário, o vocalista canta tapando o nariz com o dedo, de maneira a conseguir um certo efeito vocal. Alguns versos das suas canções denotam uma certa agressividade agonística:

“O inimigo foi vencido/chegou a hora da sua morte”

“Quem sobrevive é o mais forte/não serei vencido/nem depois da morte”

“Rap duro como o aço”

Outros uma ética de diversão:

“Dêem‑me aquela garrafa de absinto”

“Toda a gente vai ficar a curtir”

“Agora que te encontrei estou super‑contente”

“Põe a ganga na mortalha”

Outros ainda um sentimento iconoclasta, provocatório e anti‑sistema:

“São fachadas as figuras/do ministro e presidente”

“Governo e corrupção/arrogância e ignorância/dinheiro e poder”

“Têm mais merda na cabeça/do que a fralda de um bébé”

“Quem não se sentir bem/faça‑me um favor e saia”

Há também referências a uma certa desorientação normativa:

“O pensamento é a minha droga/a droga é o meu pensamento” (refrão)

“Andei perdido/confundido/completamente à toa”

Mas existem versos de afirmação de “autenticidade” e de livre‑arbítrio:

“Somos nós, somos nós/não copiamos ninguém”

“Quem me dera que o mundo fosse como eu queria/mas a vida é madrasta/já há muito se dizia/o mundo é teu, meu/encontremos a solução/luta sempre/o destino está na tua mão” (refrão)

A assistência é bastante jovem, rondando a média etária dos artistas, notando‑se poucos adolescentes. Há também algumas pessoas que aparentam ter à volta de trinta anos. A indumentária é claramente informal. No entanto, há quem se apresente de forma extremamente trabalhada, ainda que simulando uma postura négligé. Nota‑se com particular visibilidade a presença de uma “tribo” juvenil: os rapazes caracterizam‑se pelos seus longos cabelos e boné vestido com a pala ao contrário. Eles e elas usam brincos, muitos deles no nariz e nas sobrancelhas.

 

Café concerto. Espectáculo com os Repórter Estrábico. O vocalista inicia o concerto com um grito: “Free me!”. A actuação é acompanhada pela projecção de slides. O vocalista é simultaneamente um actor. A sua apresentação é uma paródia de certos tipos sociais: veste um fato de treino com um telemóvel à cintura e uma camisa de alças branca.

Um dos slides (com a legenda: “Tiburones vivos”) é alusivo a cartazes de um circo espanhol, mostrando tubarões de boca aberta e dentes afiados. Outro diapositivo mostra um crânio a ser aberto como uma lata de conservas. O vocalista pergunta: “O que seríamos nós sem ela? Uma palavra vale por mil imagens, uma imagem por mil palavras”.

Novo slide, desta feita com o símbolo da Expo 98. O vocalista intervém com sarcasmo: “Faltam 767 dias para o ano 2000. Para 98 eles que façam as contas”.

Aparece uma imagem do galo de Barcelos. O vocalista vai mostrando cartões com inscrições em inglês (“Tall”/”Clean”/”Bright”/”Very Tipical”). Sucedem‑se slides com palavras ou interjeições (“Baby”/”hum”). As provocações e as analogias com outros símbolos são evidentes: num slide com as inscrições “Com Some” as letras imitam o ícone da Coca Cola. Num dos últimos slides surge um telemóvel. O vocalista aproveita a ocasião e coloca o telemóvel a tocar junto ao microfone.

 

Torna‑se notória a existência de um certo grau de homologia entre a oferta cultural destes subespaços e o perfil etário dos públicos. No caso do grande auditório a aproximação à cultura consagrada e ao seu aparato simbólico é evidente (apesar de haver alguns laivos de ecletismo, com a apresentação de cantores como Sérgio Godinho). Não admira, por isso, que a média etária do público seja superior e que os modos de apresentação traduzam uma postura adequada, traduzida pela sua formalidade e sofisticação dentro de cânones estéticos relativamente rígidos de distinção social (embora essa distinção se atenue num contexto de grande homogeneidade, própria do convívio entre pares). O ambiente revela, então, uma selectividade onde as contradições aparecem mirificamente resolvidas. Não há grande lugar para o diferente. Os corpos respiram poder.

No café concerto, apesar de grandes variações nos perfis de públicos consoante os espectáculos, o panorama geral é outro. Os universos culturais dominantes situam‑se claramente no pólo moderno, por vezes mesmo não consagrado. Exigem uma certa actualização cultural que favorece claramente os públicos mais jovens. Por outro lado, joga com a provocação, o iconoclasmo e a cumplicidade (o “piscar de olhos”) do receptor (desenvolveremos mais adiante esta dimensão). A maior parte dos artistas situa‑se à margem das grandes organizações de produção e distribuição. Podemos situá‑los no âmbito do que Diana Crane apelidou de urban culture ou urban core: “cultura urbana produzida e disseminada em cenários urbano para audiências locais”[959], fazendo apelo a audiências relativamente pequenas. Por vezes podem ser considerados como o equivalente pós‑moderno das vanguardas. Diana Crane refere características que se enquadram perfeitamente na análise feita ao espectáculo dos Repórter Estrábico: provocações intencionais à audiência, diluição das fronteiras entre arte e vida quotidiana, justaposição de objectos e comportamentos díspares. Acrescentaríamos ainda a importação/descontextualização/reciclagem de imagens‑símbolo, o permanente jogo de “fronteira” entre a crítica social e o puro gozo narcísico; entre o suporte auditivo e o suporte visual (onde se encaixa a própria imagem e apresentação dos artistas), bem como o sentimento de efémero, próprio da performance e do happening. Note‑se igualmente, no caso dos Mind da Gap, a apropriação do vernáculo.

Todas estas características, correlativas de uma crescente fragmentação em subgéneros artísticos (produtos de fronteira e de cruzamentos vários) estimulam a tendência, optimizada pelos grupos juvenis, de diferenciação em estilos de vida e práticas quotidianas. Por isso, a moda é para eles uma forma privilegiada de auto‑expressão, embora sem perder as suas funções de regulação/controle social e de manifestação de distâncias várias.

 

3.2. Espaço, competências e modelos simbólicos dos públicos.

 

Se observarmos agora o quadro XLIV referente ao cruzamento entre o espaço e o capital escolar dos inquiridos, concluímos que, sob este ponto de vista, existe uma assinalável homogeneidade entre os vários espaços estudados. De facto, estes caracterizam‑se por uma fortíssima sobrerepresentação de indivíduos com um alto capital escolar e por uma consequente subrepresentação dos inquiridos em que esse capital é baixo[960]. Estamos em presença, por isso, de públicos restritos, na maior parte dos casos “herdeiros” de uma posição privilegiada, já que 41.9% dos inquiridos são oriundos de um agregado familiar em que o capital é igualmente elevado (por isso incluídos na categoria “alto capital escolar tradicional”), com especial destaque para a Praia da Luz, onde predominam de forma clara (62.0%) as situações de reprodução social.

 

 

 

 

 

 

 

Quadro XLIV - Trajectória escolar por espaço

 

Espaço

 

Trajectória Escolar

B Flat

N=122

(27,6%)

Praia da Luz

N=79

(17,9)

Rivoli

N=241

(54,5%)

Baixo Capital Escolar Tradicional (=)

N=9

(2,0%)

 

0,8

 

1,3

 

2,9

Médio Capital Escolar Tradicional (=)

N=30

(6,8%)

 

5,7

 

12,7

 

5,4

Alto Capital Escolar Tradicional (=)

N=185

(41,9%)

 

41,8

 

48,1

 

39,8

 

Baixo Capital Escolar Moderno (‑)

N=2

(0,5%)

 

 

 

1,3

 

0,4

Médio Capital Escolar Moderno (‑)

N=27

(6,1%)

 

4,1

 

7,6

 

6,6

Médio Capital Escolar Moderno (+)

N=23

(5,2%)

 

3,3

 

8,9

 

5,0

Alto Capital Escolar Moderno (+)

N=110

(24,9%)

 

32,0

 

13,9

 

 

24,9

Alto Capital Escolar Moderno (+)

N=56

(12,7%)

 

12,3

 

6,3

 

14,9

(=)Situações de reprodução

(‑) Situações de mobilidade decrescente

(+) Situações de mobilidade ascendente

 

 

Nos outros espaços o peso relativo dos indivíduos com “alto capital escolar moderno” é significativo (B Flat: 44.3%; Rivoli: 39.8%). No Rivoli, aliás, “alto capital escolar moderno” e “tradicional”, equivalem‑se. Por outras palavras, na Praia da Luz os inquiridos com um alto capital escolar constituem uma elite tradicional, adquirindo particular importância as formas de transmissão do privilégio. Nos restantes espaços tais inquiridos dividem‑se, também, de forma quase igual (B Flat) ou mesmo equitativa (Rivoli) por uma elite emergente. Não são de negligenciar, por isso, as trajectórias de mobilidade ascendente (Anexo V/Quadro XII), como adiante teremos ocasião de comprovar, o que, à partida, invalida a possibilidade de estarmos em presença do mesmo grupo de status, para utilizar a terminologia weberiana, com reflexos na diversificação dos universos culturais e dos estilos de vida.

Importa, além disso, realçar algumas especificidades. O B Flat é claramente o espaço mais selectivo, o que, aliás, corrobora outros trabalhos, nacionais e estrangeiros, sobre o perfil do público de jazz[961]. A este respeito convém realçar que o jazz conta com uma divulgação muito mais restrita do que a música clássica. João Sedas Nunes fala mesmo, a respeito desta última, de uma relativa dessacralização, assente não apenas na difusão discográfica (de que o jazz também usufrui), mas igualmente na penetração na vida quotidiana, enquanto pano de fundo de publicidade, genéricos televisivos, programas de divulgação e bandas sonoras[962]. Por outro lado, quanto mais um género se revela selectivo, maior será a tendência de a participação do público adquirir um carácter distintivo, reforçando o seu fechamento[963].

A Praia da Luz revela um relativo empolamento dos inquiridos com médio capital escolar, mas isso deve‑se, antes de mais, ao peso dos estudantes adolescentes, que ainda não completaram o seu percurso escolar. De qualquer forma, o seu público é igualmente um círculo restrito, tanto mais que a trajectória virtual desses estudantes virá reforçar ainda mais o peso dos inquiridos com um alto capital escolar.

O Rivoli é dos três espaços o que revela um maior ecletismo, embora mantenha as características dos restantes. Tal facto poderá estar associado à diversidade interna desta instituição (em termos da organização dos subespaços e da estruturação da oferta).

Atentemos agora nos padrões de gosto dominantes. De acordo com o quadro XLV, o público do espaço Rivoli é o que mais se identifica com o espaço da cultura sobrelegitimada, seguindo‑se o B Flat e, por último, a Praia da Luz.

Quadro XLV - Frequência do espaço semi-público por lugar estudado

 

Espaço

 

Espaço Semi‑Público

B Flat

N=139

(28,3%)

Praia da Luz

N=80

(16,3%)

Rivoli

N=272

(55,4%)

 

Frequentemente

N=18

(3,7%)

 

3,6

 

2,5

 

4,0

 

Com Alguma Frequência

N=130

(26,5%)

 

21,6

 

17,5

 

31,6

 

Raramente/Nunca

N=343

(69,9%)

 

74,8

 

80,0

 

64,3

 

 

No entanto, o dado mais importante a realçar centra‑se no facto da esmagadora maioria dos inquiridos ter uma baixíssima frequência desta esfera, o que vem comprovar outros estudos nacionais e locais. Por outras palavras, apenas uma pequena elite dentro da elite revela um grau médio ou alto de participação nas práticas da cultura cultivada. O que nos conduz a uma situação de homologia imperfeita que contradiz em parte as teses de Bourdieu. Ou seja, mesmo sendo verdade que a adesão à cultura sobrelegitimada se associa positivamente a um alto capital escolar, apenas uma pequena parte dos públicos privilegiados que possuem esse alto capital adere ao gosto legítimo, o que significa, necessariamente, uma heterogénea dispersão pelo restantes universos de gosto (“médio” e “popular”).

No entanto, esta ausência de identificação com a cultura sobrelegitimada atenua‑se se somente considerarmos a adesão às práticas receptivas e informativas de públicos cultivados (Quadro XLVI). De facto, os inquiridos que raramente ou mesmo nunca frequentam estas actividades sofrem uma redução significativa. De qualquer forma, mantém‑se a mesma distância relativa entre cada espaço: os públicos do Rivoli são os que mais frequentemente aderem a estas práticas. Segue‑se o B Flat e em último a Praia da Luz, com 75.3% dos inquiridos a declararem o seu afastamento.

 

 

Quadro XLVI - Frequência de práticas receptivas e informativas de públicos cultivados por espaço

 

Espaço

Práticas Receptivas e Informativas de Públicos Cultivados

B Flat

N=142

(28,3%)

Praia da Luz

N=81

(16,2%)

Rivoli

N=278

(55,5%)

 

Frequentemente

N=48

(9,6%)

 

5,6

 

4,9

 

12,9

 

Com Alguma Frequência

N=189

(37,7%)

 

35,2

 

19,8

 

44,2

 

Raramente/Nunca

N=264

(52,7%)

 

59,2

 

75,3

 

42,8

 

 

É curioso analisar a comparação entre o Rivoli e o B Flat. O primeiro, apesar da polivalência em termos de oferta cultural que se orgulha em assumir, está mais fortemente ligado à cultura erudita. O que não é de admirar, já que a maior parte dos espectáculos se pode incluir nesta esfera (a diversidade existe, mas a identidade do espaço afirma‑se preferencialmente através da adesão à cultura consagrada). Por outro lado, a distância dos públicos do B Flat em relação à cultura sobrelegitimada pode‑se eventualmente interpretar como indicador de uma concentração mais exclusiva no jazz sem trânsito assinalável para outros géneros musicais ou diferentes formas de expressão artística “nobre”. Sinal de uma maior coerência/homogeneidade de gostos?

O Quadro XLVII referente ao grau de identificação com os autores musicais classificados como consagrados clássicos mostra idêntica orientação: a média e alta identificação é maioritária entre os inquiridos que frequentam o Rivoli e minoritária nos restantes espaços, com especial ênfase na Praia da Luz o que, uma vez mais, pode ser associado como traço de especificidade de uma cultura juvenil predominante neste espaço. Inversamente, a média e alta identificação com os “consagrados modernos” apenas é superior a 50% na Praia da Luz (Anexo V/Quadro XIII), enquanto que a rejeição dos “não consagrados” é transversal aos vários espaços (Anexo /Quadro XIV).

Quadro XLVII - Grau de identificação com os compositores "consagrados clássicos" por espaço

 

Espaço

Música – Consagrados Clássicos

B Flat

N=103

(26,2%)

Praia da Luz

N=63

(16,0%)

Rivoli

N=227

(57,8%)

 

Nulo Grau de Identificação

N=53

(13,5%)

 

8,7

 

28,6

 

11,5

 

Baixo Grau de Identificação

N=156

(39,7%)

 

41,7

 

46,0

 

37,0

 

Médio Grau de Identificação

N=84

(21,4%)

 

24,3

 

20,6

 

20,3

 

Alto Grau de Identificação

N=100

(25,4%)

 

25,2

 

4,8

 

31,3

 

 

 É curioso constatar que esse perfil juvenil (internamente multifacetado) encontra uma grande correspondência na descrição que Bourdieu faz dos “novos intelectuais”, designadamente quando o autor francês acentua o “repertório de «recursos» da anti‑cultura adolescente” ou o seu “humor anti‑institucional” avesso a hierarquias e a todas as formas de classificação[964]. Se considerarmos, como Featherstone, que os estilos de vida dos “novos intermediários culturais” se generalizaram[965], ou ainda, no seguimento de Inglehart, que os valores das primeiras gerações pós‑materialistas (que terão surgido na década de 70 nos países ocidentais mais desenvolvidos) se tornaram dominantes[966], poderemos compreender melhor a similitude entre o conteúdo da actual tipicidade juvenil e a “nova pequena burguesia”. Tendo em conta o papel dominante que exercem ao nível da produção e difusão de informação (designadamente ao nível de um controle das posições‑chave nas indústrias culturais e nos mass media)[967] parece credível que surjam como os intermediários culturais por excelência da contemporaneidade[968], simbolizando nos seus valores e estilos de vida o espírito do tempo.

Uma das características desses novos estilos de vida, anteriormente referida em várias ocasiões, é a informalização dos padrões de consumo e das relações sociais, marcada pela diluição e flexibilização (para muitos indicador de anomia) de regras outrora precisas, rígidas e consistentes[969]. A adesão à categoria que apelidamos de “práticas expressivas semi‑públicas”, fortemente propiciadoras de redes de sociabilidade em contextos de interacção, constitui, em nossa opinião, um sinal de inserção nessa orientação normativa mais vasta.

Ora, de acordo com o quadro XLVIII, é de novo a Praia da Luz o espaço onde os inquiridos mais aderem a esse conjunto de práticas. Aliás, a própria frequência do lugar constitui uma actividade passível de ser enquadrada na referida categoria. É por aí, aliás, que passa, como já referimos, a sua identidade específica.

 

 

 

 

 

Quadro XLVIII - Frequência de práticas expressivas semi-públicas por espaço

 

Espaço

Práticas Expressivas Semi‑Públicas

B Flat

N=135

(27,7%)

Praia da Luz

N=78

(16,0%)

Rivoli

N=274

(56,3%)

 

Frequentemente

N=43

(8,8%)

 

8,1

 

20,5

 

5,8

 

Com Alguma Frequência

N=324

(66,5%)

 

75,6

 

66,7

 

62,0

 

Raramente/Nunca

N=120

(24,6%)

 

16,3

 

12,8

 

32,1

 

 

No entanto, convém referir que, no que se refere ao cinema e à literatura, as clivagens são muito menos significativas. Vejamos o caso do cinema (Anexo V/Quadros XV, XVI e XVII). É patente a diluição dos pólos “clássico” e “moderno” no que concerne aos filmes “consagrados”. De facto, o grau de identificação é, para ambos os casos, baixíssimo. Mesmo o eixo “consagrado”/”não consagrado” afigura‑se pouco discriminativo     : apenas se verifica uma maior adesão (dentro de índices globalmente muito baixos) por parte dos inquiridos da Praia da Luz.

Quanto à literatura (Anexo V/Quadros XVIII, XIX e XX) os praticantes culturais revelam‑se mais competentes: diminuem os índices de reduzida identificação e a resposta modal centra‑se no médio grau de identificação embora não se registem, uma vez mais, diferenças significativas (exceptuando uma proximidade ligeiramente superior por parte dos inquiridos da Praia da Luz no que concerne aos autores “consagrados modernos”). O melhor indicador da posse de uma competência cultural legítima encontra‑se na clara rejeição, amplamente partilhada, dos autores “não consagrados”. Em suma, a literatura surge como a prática mais distintiva (identificação generalizada com o pólo consagrado), traduzindo, eventualmente, a “nobreza cultural” de quem possui um elevado capital cultural. Na música, não deixando de se registar um distanciamento face aos nomes não consagrados, verifica‑se uma clivagem “clássicos/modernos”. Para além de se ligar à identidade específica de cada espaço e da sua programação cultural, adiantámos a hipótese de se articular, igualmente, com a composição etária dos diferentes públicos. No caso do cinema, a inexistência de qualquer eixo de diferenciação (consagração/não consagração e clássicos/modernos) pode estar relacionado com o seu estatuto menos prestigiante de “arte média”.

Ao observarmos agora a prática de leitura de livros (quadro XLIX) verificamos que ela é, no geral, relativamente elevada já que apenas uma minoria (apenas ultrapassando os 20% na Praia da Luz)[970] declara não ler. Em relação a um estudo de âmbito nacional sobre hábitos de leitura, é visível a sobrepresentação na nossa amostra dos inquiridos que afirmam ler frequentemente ou com alguma frequência, o que sem dúvida estará articulado com o elevado volume global de capital escolar da amostra[971].

 

 

 

 

 

 

Quadro XLIX - Frequência de leitura de livros por espaço

 

Espaço

 

Ler Livros

B Flat

N=143

(26,9%)

Praia da Luz

N=95

(17,9%)

Rivoli

N=294

(55,2%)

 

Frequentemente

N=217

(40,8%)

 

39,2

 

25,3

 

46,6

 

Com Alguma Frequência

N=229

(43,0%)

 

45,5

 

47,4

 

40,5

 

Raramente/Nunca

N=86

(16,2%)

 

15,4

 

27,4

 

12,9

 

 

Há no entanto um aspecto dissonante face ao estudo de âmbito nacional. Os inquiridos da Praia da Luz são quem lê menos. Ora, na referida investigação detecta‑se que a leitura de livros é inversamente proporcional à idade. Por outras palavras, quanto mais jovem se é, mais se lê (apesar de um ligeiro recuo nas classes etárias menos elevadas face a idêntico inquérito de 1988[972]). Necessitaríamos de ter aprofundado esta dimensão no inquérito para podermos construir uma interpretação fundamentada. De qualquer forma ela consolida ainda mais o perfil que temos vindo a traçar sobre o universo simbólico dos inquiridos da Praia da Luz, nomeadamente no que diz respeito a um afastamento dos mecanismos de educação e consagração cultural tradicionais, maxime a escola. Olivier Donnat fala de uma “transformação dos actos de leitura”[973] que privilegia não só suportes alternativos fora da esfera da leitura, nomeadamente o audiovisual e a microinformática (“o lugar cada vez maior que ocupa o audiovisual na formação dos saberes e das representações do mundo induz maneiras de ver, de raciocinar e sentir diferentes; é provável que favoreça o desenvolvimento de faculdades específicas que as «gerações‑TV» utilizam em cada uma das suas actividades”[974]) mas igualmente o recuo do livro face à imprensa escrita (livros, revistas, etc.), correlativo de um dissipar de fronteiras entre as “boas” e “más” leituras. O próprio livro, ao divulgar‑se e banalizar‑se, “deslegitima‑se”, perdendo o seu cariz de prática distintiva. Esta última hipótese explicativa não nos parece porém aplicável ao caso português, marcado por altíssimos níveis de iliteracia e por níveis de escolaridade globais ainda bastante afastados da média europeia.

Existirá, junto dos públicos da Praia da Luz, uma concepção que tende a ver o livro como símbolo do passado e da tradição, já que este sofre “um défice de imagem junto daqueles que são os mais sensíveis aos valores da juventude ou à imagem de modernidade veiculada pela economia mediático‑publicitária”[975]. Esta hipótese interpretativa parece‑nos plausível e aplica‑se aos principais eixos de caracterização do universo simbólico dos utentes desse espaço.

 

3.3. Breve Síntese.

Em suma, podemos delinear da seguinte forma o perfil distintivo de cada um dos espaços em análise (apesar de características transversais, como a acentuada juvenilização dos seus públicos e uma alto nível de credenciação escolar):

 

A) Praia da Luz: constitui, a par do café‑concerto do Rivoli, um espaço marcado pela informalização das relações sociais e da estilização dos modos de apresentação. Tornam‑se especialmente visíveis certos grupos (não só pela disposição cénica do espaço, como pelo cariz restrito dessas “tribos”) que investem fortemente numa indumentária pouco comum, explorando as suas potencialidades distintivas. Existe uma clara identificação destas fracções (diminutas) com a legitimação de franjas emergentes do campo cultural e artístico (moda, design, publicidade, música alternativa) nas quais assenta a programação do local.

 Apesar de, a nível da composição social, se estar em presença de grupos socialmente favorecidos, como de resto sugere o significativo peso relativo do “alto capital escolar tradicional”, podendo mesmo falar‑se de um certo fechamento social, não é automático que esse grupos de apresentação estilizada construam a sua fachada simbólica em termos rigidamente classistas. Eventualmente tal disposição estará mais presente na homogeneidade do estilo “desportivo/informal elegante” que marca a imagem global dos praticantes deste espaço. Já Simmel consagrava numa tipologia a possibilidade de existência de “modas pessoais”, mais efémeras mas igualmente potenciadoras da tensão entre o desejo de distinção e a tendência mimética, neste caso exprimindo‑se pela imitação de si através da “concentração da consciência nesta única forma ou neste único conteúdo”[976].

No que se refere às constelações de gosto, é de referir um maior afastamento face ao pólo “clássico/patrimonial”, com prolongamento numa fraca adesão à cultura cultivada, o que revelará uma orientação “moderna”, virada para canais e conteúdos alternativos de consagração cultural, fenómeno que não deixa de ser curioso tendo em conta o já referido grande peso do “alto capital escolar tradicional”[977].

B) B Flat: Sendo o espaço mais selectivo em termos de capital escolar tem, no entanto, um peso inferior de “herdeiros” em relação à Praia da Luz, sendo permeável a franjas de público cujo alto capital escolar resulta de uma trajectória ascendente (sendo por nós classificado de “moderno”). Os modos de apresentação do seu público, sendo informais, não deixam de obedecer aos cânones da moda, embora aparentemente sem grande investimento simbólico, o que, aliás, é semelhante à forma como os músicos surgem em cena.

O universo de gostos dominante (e que constitui, por assim dizer, a identidade específica do espaço) situa‑se a meio caminho entre o Rivoli e a Praia da Luz (embora mais perto do teatro municipal), ocupando os públicos do primeiro uma posição relativamente próxima do pólo cultivado, consagrado e clássico.

C) Rivoli: Dentro das limites das características globais da amostra apresenta‑se como o espaço mais eclético, tanto no que se refere à diversidade etária, como ainda à composição social (tomando como indicadores o capital escolar de pertença e de origem). Na sua programação misturam‑se, igualmente, referências clássicas e consagradas com conteúdos iconoclastas e não legitimados pelo campo cultural tradicional. Cada subespaço possui, assim, a sua clientela específica. No entanto, a imagem mais ampla do Teatro Municipal associa‑se à identidade do grande auditório, tendencialmente ligado à cultura consagrada clássica, enquanto uma das principais salas de espectáculos da cidade, com toda a carga simbólica que tal circunstância acarreta.

 

 

4. Capital escolar, trajectórias sociais e práticas culturais.

4.1. Estrutura do capital escolar: o peso da origem social e a correcção da trajectória.

Tivemos anteriormente ocasião de realçar o facto de estarmos em presença de uma amostra bastante seleccionada em termos de capital escolar. O Quadro L confirma‑nos essa mesma constatação.

Quadro L - Capital escolar de ego

Capital Escolar de Ego

N

%

Baixo Capital Escolar

30

5,9

Médio Capital Escolar

109

27,2

Alto Capital Escolar

372

72,8

 

 No entanto, antes de tirarmos conclusões apressadas sobre a pretensa homogeneidade de tal elite, convém analisarmos com alguma minúcia a estrutura do capital escolar dos inquiridos, tendo em conta o efeito de trajectória. Nesse sentido, inspiramo‑nos em Bourdieu quando afirma: “a capital escolar equivalente, as diferenças de origem social (cujos efeitos se exprimem já em diferenças de capital escolar) estão associadas a disparidades importantes (...) O peso relativo do capital escolar no sistema dos factores explicativos pode mesmo ser mais fraco que o peso da origem social já que apenas se pede aos inquiridos que exprimam uma familiaridade estatutária com a cultura legítima ou em vias de legitimação, relação paradoxal, feita dessa mistura de segurança e de ignorância (relativa) onde se afirmam os verdadeiros direitos de burguesia, que se medem pela antiguidade”[978]. O autor francês pretende por conseguinte distinguir entre duas estruturas diferentes de capital escolar dentro das classes dominantes: uma marcada pela antiguidade e exprimindo uma precoce e paulatina familiarização com a “cultura nobre” (privilégio do verdadeiro “conhecedor”, capaz de se distanciar dos universos escolares para demonstrar o seu “natural” à vontade[979]); outra mais recente e dependente de uma “aprendizagem institucional”, ou seja, escolar.

No entanto, a tipologia que construímos[980], recolhe também importantes contributos de Olivier Donnat, nomeadamente quando este distingue entre universos culturais “clássicos” e “modernos”. De facto, nas últimas décadas têm ocorrido, não só transformações significativas no campo da oferta, como na composição dos públicos. No primeiro caso, ganha particular relevância a emergência de novos critérios e instâncias de socialização ligadas à ascensão da cultura audiovisual e das indústrias a que nenhum campo artístico escapa. Donnat refere a necessidade dos artistas em gerirem “o equilíbrio instável entre dois registos, o do seu campo de pertença e o da economia mediático‑publicitária (...) cada um deve procurar em permanência conciliar estas duas temporalidades visto que a notoriedade acumulada sobre o terreno mediático funciona como um capital susceptível de ser convertido nos capitais específicos do domínio de origem (...) a grande maioria dos artistas procuram hoje a estratégia ideal que permite acumular o máximo de capital mediático sem perder a consideração do seu meio”[981]. No caso da procura assiste‑se a uma forte recomposição social ligada a uma massificação escolar (muito recente, embora extremamente visível no caso português) e à consequente inflação e desvalorização dos diplomas. Ou seja, para alcançar uma posição social privilegiada torna‑se necessário acumular cada vez mais credenciais escolares. Por outro lado, em especial para as jovens gerações, diversificam‑se as fontes de transmissão e aquisição de capital cultural, quebrando o monopólio do duo família‑escola: os mass media, os grupos de pares e as redes de sociabilidade em geral apresentam‑se como canais de difusão e produção de novas formas culturais. Os aparelhos ideológicos (para utilizar a terminologia althusseriana) apresentam‑se crescentemente de maneira difusa e informal, penetrando com uma intensidade inaudita no próprio espaço privado. Assim, torna‑se fundamental perceber se a estrutura do capital escolar é de índole “clássica” (resultando de uma situação de reprodução da posição social de origem) ou “moderna” (resultando de um processo recente de mobilidade social ascendente ou descendente). Esta distinção permite, para além do que Bourdieu afirmou, compreender situações de quebra de homologia, ou seja, situações em que a um alto capital escolar não corresponde, necessariamente, uma inculcação das predisposições da cultura “legítima” (ela própria em processo de diversificação, dada a pluralidade de instâncias de consagração, muitas vezes alternativas e/ou conflituosas). Tal tenderá a acontecer com os indivíduos portadores de um alto capital escolar de cariz moderno, na medida em que, às condições iniciais de transmissão e inculcação familiar de um certo volume de capital cultural, se sobrepõem os comportamentos e aquisições cognitivas posteriores mercê de um contacto mais prolongado com a escolaridade e, não menos importante, com um outro modelo de escola[982], ameaçada no seu monopólio de agência oficial de educação formal (e de aplicação da violência social legítima: uma violência simbólica, dissimulada), sem as antigas condições de impor arbitrariamente o seu arbítrio cultural, ou seja uma cultura particular apresentada como a única, a universal, a legítima[983]. Estes indivíduos tenderão a ver a cultura legítima tradicional, com as suas hierarquias e sistemas de classificação, como uma das várias divisões da realidade possíveis, aumentando a sua predisposição para o ecletismo e para o que Donnat apelida de universo cultivado moderno[984].

De qualquer forma, as formas de incorporação de capital cultural extra‑familiar tenderão a ser predominantes nas situações em que o cariz “moderno” do capital escolar resulta de trajectórias intergeracionais de mobilidade ascendente (correspondente aos inquiridos com capital escolar “moderno” e alguns casos de médio capital escolar “moderno”[985]). É certo que existirá uma tendência transversal (e de certo modo transclassista) ligada à condição juvenil, pelo que já anteriormente foi explicado: o período formativo das novas gerações coincide com a “explosão” da economia mediático‑publicitária e da cultura audiovisual, com a correspondente superestrutura de valores dominante. Além do mais, dada a clara juvenilidade da amostra, tal facto será ainda mais pesado. No entanto, estamos em crer que a um capital escolar tradicional (resultante de uma lógica de reprodução social) corresponderão universos culturais relativamente mais “clássicos”.

 A centralidade do capital escolar nas estratégias de mobilidade e reprodução social intergeracional da sociedade portuguesa encontra‑se aliás eloquentemente demonstrada por estudo recente: “...quanto mais se moderniza um país semiperiférico, pelas lógicas de classe diferenciadas na relação com a escola, maior será a impermeabilidade das qualificações, isto é, mais decisivo será o facto de se possuir ou não um diploma escolar”[986].

Por outro lado, numa sociedade como a nossa, em que se revelam elevadas taxas brutas de mobilidade social intergeracional, aumenta, como de resto já mencionámos, a necessidade de plasticizar o conceito de habitus e de homologia[987]. De facto, torna‑se cada vez mais frequente a existência de descoincidências entre a origem e a actual posição social, em grande parte devido a um maior investimento no capital escolar. Desta forma, é mais difícil impor pela socialização familiar um conjunto durável de disposições estéticas e de orientações normativas. Mesmo a acção pedagógica escolar vê‑se confrontada com a escola paralela (cultura audiovisual) e com a renovada importância das redes de sociabilidade.

Uma boa parte destas considerações encontra tradução adequada no Quadro LI. Com efeito, verificamos que, globalmente, os níveis de escolaridade do agregado familiar de origem são bastante mais baixos, apesar de quase 50% dos agregados já possuírem um alto capital escolar, o que de alguma forma dá conta da inércia da estrutura social.

Quadro LI - Capital escolar do agregado familiar

Capital Escolar do Agregado Familiar

N

%

Baixo Capital Escolar

90

19,9

Médio Capital Escolar

151

33,3

Alto Capital Escolar

212

46,8

 

De qualquer forma, impõe‑se registar, quando observamos a situação de ego, uma quebra de 2/3 no que respeita ao baixo capital escolar e um aumento superior ao dobro no que toca aos inquiridos com alto capital escolar (?). Assim, comparando o capital escolar com o efeito de trajectória, deparamos com o Quadro LII.

Quadro LII — Trajectória social com base no capital escolar

 

Ego

Agregado Familiar

Baixo

Médio

Alto

Baixo

Baixo capital escolar tradicional (2%)

Médio capital Escolar moderno (5.2%)

Alto capital escolar moderno (12.7%)

Médio

Baixo capital escolar moderno (0.5%)

Médio capital escolar tradicional (6.8%)

Alto capital escolar moderno (24.9%)

Alto

Baixo capital escolar moderno (0.0%)

Médio capital escolar moderno (6.1%)

Alto capital escolar tradicional (41.9%)

 

Aí é marcante o peso do alto capital escolar, quer tradicional (situação de reprodução social: 41.9%), quer moderno (duas situações possíveis: uma de ascensão “brusca”, resultante do cruzamento de um baixo capital escolar de origem com um alto capital escolar de ego, contabilizando 12.7% e outra, mais “suave”, fruto do cruzamento entre um médio capital escolar de origem e um alto capital escolar de ego, com 24.9%).

Por outro lado, é visível a tendência para a mobilidade ascendente ser muito superior aos fluxos descendentes. Com efeito, enquanto que dos inquiridos com baixo capital escolar apenas 0.5% decaem em relação à situação familiar de origem, cujo capital escolar é médio, 17.8% ascendem a patamares mais elevados. No que se refere aos inquiridos provenientes de um agregado familiar com alto capital escolar, somente 6.1% sofrem uma descida para o médio capital escolar e nenhum para o baixo capital escolar. Esta constatação, de resto, encontra‑se bem patente no Quadro LIII, referente à situação na trajectória.

Quadro LIII - Situação na trajectória de ego

Situação na Trajectória

N

%

Trajectórias Ascendentes

189

42,8

Situações de Reprodução

224

50,7

Trajectórias Descendentes

29

6,6

 

Assim, nota‑se uma grande capacidade de retenção por parte das camadas mais privilegiadas em capital escolar (a aposta nas qualificações escolares como factor de reprodução social, o que é consentâneo com as teses de Bourdieu), ao mesmo tempo que se verifica uma enorme porosidade por parte dos grupos com médio e baixo capital escolar de origem para ascenderem a posições privilegiadas, nalguns casos “saltando” mesmo patamares (passando, por exemplo, de um baixo capital escolar de origem para um alto capital escolar de pertença, situação que abrange 12.7% dos inquiridos).

Podemos pois afirmar que a nossa amostra se caracteriza por segmentos sociais extremamente permeáveis ao movimento social, característica que, segundo Jean Viard, é essencial para se compreenderem as novas formas de estruturação social e os conflitos daí decorrentes. Com efeito, este autor considera que a grande fractura social se estabelece em torno da mobilidade, dividindo os grupos sociais “móveis” dos “imóveis”[988]. Importa, no entanto, estabelecer duas ressalvas. A primeira prende‑se com a influência desta mobilidade com base no capital escolar face à mobilidade social global. Apesar da sua importância ser central na sociedade portuguesa, como de resto tivemos ocasião de realçar, outros factores devem ser tidos em conta. A teoria de Erik Olin Wright, por exemplo, confere igualmente relevo aos recursos em meios de produção (propriedade) e aos recursos organizacionais (autoridade)[989]. Outros autores falam ainda da importância das redes de sociabilidade, que analisaremos adiante. A segunda ressalva liga‑se à desvalorização dos títulos escolares, também já referida. De facto, as expectativas em alcançar uma determinada posição social adequada ao capital escolar obtido tornam‑se cada vez mais difíceis de cumprir, dada a inflação dos títulos escolares, a par de uma compressão do mercado de trabalho, em especial nos seus segmentos mais qualificados. Assim, a circunstância de se deter um alto capital escolar não implica, automaticamente, uma inserção privilegiada no mercado das categorias sociais. Bourdieu refere ainda uma dimensão complementar a este fenómeno de inflação dos diplomas: a perda de “qualidade social” dos seus detentores. Por outras palavras, “um título que se torna mais frequente é por essa mesma razão desvalorizado, mas ele perde ainda o seu valor ao tornar‑se acessível a pessoas sem valor social”[990]. No entanto, o autor francês reconhece que a massificação escolar e a democratização dos patamares mais elevados do sistema de ensino modificaram a relação dos agentes sociais com a cultura sem afectar, ainda assim, os mecanismos simbólicos da distinção. Como é possível tal paradoxo? De acordo com Bourdieu, “a elevação do nível da procura determina uma translação da estrutura dos gostos, estrutura hierárquica, que vai do mais raro (...) ao menos raro”[991]. À medida que certos bens ou práticas culturais se vão tornando comuns, as classes dominantes accionam processos simbólicos de “reintrodução da raridade abolida”, passando, muitas vezes, pela maneira, cada vez mais subtil, de os consumir ou frequentar, marcando a sua diferença “natural”. Da mesma forma funcionam as estratégias de “reconversão” destinadas a manter as posições herdadas ou para reproduzir a relação anterior entre o título escolar e o posto de trabalho (procurando, por exemplo, as fileiras menos desvalorizadas do sistema de ensino). Muitas dessas estratégias funcionam, de acordo com Bourdieu, através da manutenção de uma “representação antiga do valor do título que favorece a hysteresis dos habitus”, facilitando, assim, com a cumplicidade objectiva dos aparelhos de estado, a existência de situações subjectivas de mistificação e negação da despromoção social (“hysteresis das categorias de percepção e de apreciação”[992]) e a reprodução aparente da ancestral legitimidade.

No entanto, perante as múltiplas rectificações feitas aos capitais escolares de origem pelos movimentos de trajectória (que, só por si, contrariam o círculo vicioso da reprodução social via escola) somos levados a pensar que haverá mais do que uma alteração de superfície (mera translação, com manutenção das distâncias relativas) na escolha e hierarquização dos gostos e práticas culturais. Por outro lado, a objectivação e incorporação da relação entre o título desvalorizado e o posto afigura‑se incontornável, dada a generalização de tal situação (apesar da capacidade de resistência ser socialmente diferenciada), tornando‑se elemento integrante das condições de existência (“estrutura estruturante”, segundo Bourdieu). Assim, haverá maior probabilidade de complementaridade e/ou choque entre dimensões contraditórias das condições objectivas de existência associadas a uma diversificação das vias e conteúdos de aprendizagem social e, consequentemente, dos percursos de acesso a uma determinada posição na estrutura social. Ou seja, as homologias tenderão a ser menos rígidas e unívocas e aumentará a probabilidade de se cruzarem níveis diferentes de legitimidade cultural. O habitus, princípio gerador das práticas, perde, por isso, poder de unificação.

Podemos evocar aqui o conceito de “pluralização de mundos de vida” que Giddens importa de Berger e que o autor inglês relaciona com a multiplicidade de “ambientes de acção específicos” na ordem pós‑tradicional (menos sujeita ao peso da tradição e da reprodução social)[993], cada vez mais “diversos e fragmentados”[994]. Algo semelhante está presente na conceptualização de Berger e Luckmann quando referem que “cada papel abre uma entrada para um sector específico do acervo total do conhecimento possuído pela sociedade”[995]. Com efeito, altos níveis de mobilidade social (como é o caso da nossa amostra, em que pouco mais de 50% das situações se reproduzem) tenderão a aumentar o leque de práticas rotinizadas disponíveis, incluindo os papéis sociais e os estilos de vida[996]. Estes sem deixarem de remeter para os condicionamentos sociais, oferecem maior resistência a serem classificados e a clarificarem. Os contextos de mediação entre as estruturas de classe e as práticas sociais multiplicam‑se, deixando de depender estritamente da inculcação inicial (familiar) e do percurso escolar. Torna‑se mais opaca, assim, a relação outrora “transparente” entre condição de classe e representações simbólicas. Alguns autores, desejosos de romperem com as mais ténues reminiscências marxistas e/ou weberianas, apesar de identificarem com argúcia alguns epifenómenos (crescente importância do consumo e dos estilos de vida; novo papel da informação e do conhecimento; ascensão do mito individualista; busca de auto‑expressão e pluralização das formas identitárias; visibilidade dos novos movimentos sociais; etc.) procuram restringir o conceito de classe social a uma função meramente descritiva (recusando‑lhe poder explicativo ou a sua existência enquanto entidade autónoma que represente mais do que a soma das suas partes). Outros desistem mesmo de procurar as cumplicidades e interacções entre práticas e estrutura social, proclamando com pompa e circunstância o fim das classes sociais[997]. Não será esse, todavia, o nosso caminho.

Aliás, há que assinalar que estes fluxos de mobilidade social via capital escolar não são independentes de recomposições recentes na estrutura socioprofissional da população portuguesa, designadamente no que se refere às categorias mais exigentes em termos de qualificações escolares, nomeadamente as profissões intelectuais, científicas, técnicas e de enquadramento, pertencentes às novas classes médias urbanas ou à nova pequena burguesia[998]. De acordo com vários autores[999], é precisamente nestes grupos que se tendem a desenvolver novos estilos de vida e modas sociais enquanto especialistas da produção simbólica e privilegiados intermediários culturais. Giddens, aliás, considera as oportunidades de mobilidade social como um dos mais importantes factores de “estruturação mediata das relações sociais de classe”[1000]. Assim, quanto maior for a probabilidade de mobilidade (intergeracional ou no ciclo de vida individual), menos identificável se torna a formação de classes. Esse é o caso, precisamente, da nossa amostra o que obriga a considerar, para além da posição ocupada na divisão social do trabalho e na propriedade dos meios de produção, factores como os modos de vida e os estilos de consumo. Giddens chama a atenção para o funcionamento dos grupos distributivos como um dos elementos de estruturação imediata das relações de classe: “relações sociais que envolvem padrões de consumo de bens económicos, a despeito de os indivíduos terem ou não algum tipo de avaliação consciente da sua honra ou prestígio relativamente a outros”[1001]. Os grupos distributivos funcionam, por isso, como princípio de complexificação e desagregação das principais divisões de classe e podem existir simultaneamente, na nossa perspectiva, como causa e consequência de um diferencial acesso ao mercado dos bens simbólicos, cada vez mais centrais na economia política dado condensarem níveis desiguais de informação, competência e qualificação.

 

4.2. Da insuficiência do capital escolar como princípio explicativo.

 

Ao observarmos o Quadro LIV, referente ao cruzamento entre práticas receptivas e informativas eruditas e capital escolar dos inquiridos, somos levados a reafirmar conclusões de anteriores trabalhos. Com efeito, apesar de o capital escolar fazer sentir a sua influência (os indivíduos com formação superior são os que menos se localizam na categoria “raramente/nunca”), esta revela‑se insuficiente para contrariar a tendência transversal de forte afastamento. Repare‑se, aliás, que não existe qualquer clivagem imposta pelo capital escolar entre os indivíduos que declaram aderir frequentemente a estas práticas. Atente‑se ainda na frequência de idas ao teatro, concertos de música clássica e museus e exposições (Anexo V/Quadros XXI, XXII e XXIII). Com excepção das visitas a museus e exposições, a falta de adesão é massiva.

Quadro LIV - Frequência de práticas receptivas e informativas de públicos cultivados por capital escolar de ego

 

Capital Escolar de Ego

Práticas Receptivas e Informativas de Públicos Cultivados

Baixo

N=29

(6,0%)

Médio

N=98

(20,4%)

Alto

N=353

(73,5%)

 

Frequentemente

N=44

(9,2%)

 

10,3

 

7,1

 

9,6

 

Com Alguma Frequência

N=183

(38,1%)

 

13,8

 

33,7

 

41,4

 

Raramente/Nunca

N=253

(52,7%)

 

75,9

 

59,2

 

49,0

 

 

Vários autores têm reflectido sobre esta questão. João Sedas Nunes e Maria Paula Duarte desmentem, com base nos resultados do inquérito às práticas culturais dos lisboetas, a crença de que “ao aumento de uma «impregnação» escolar corresponderia um acréscimo de apetência pelas obras da «grande cultura»[1002] bem como a ingenuidade de pensar que a escolaridade “se tratará de uma condição simultaneamente necessária e suficiente”. Os autores concluem que ela “é, muito provavelmente, necessária; mas, em contrapartida, certamente insuficiente”[1003]. À mesma conclusão chegam Augusto Santos Silva e Helena Santos, a propósito de um outro estudo sobre práticas culturais, desta feita dirigido à população da área metropolitana do Porto: “a escolarização não representa uma condição suficiente — não chega esperar que a massificação dos níveis relativamente elevados do sistema escolar opere o milagre da democratização cultural”[1004]. Paulo Filipe Monteiro, por seu lado, ao estudar uma série de inquéritos sobre frequentadores de teatro constata que a maior parte tem progenitores com reduzido capital escolar: “é um público que criou ele próprio esse hábito, sobretudo quando frequentou graus mais elevados de escolaridade”[1005].

Olivier Donnat fala, a respeito das práticas culturais dos franceses, de um cenário em tudo idêntico, levando‑o a registar, com cru realismo, o esgotamento das utopias ligadas à emancipação do povo pela educação (designadamente, a proliferação de equipamentos culturais, o mercado assistido — política de baixos preços — a massificação escolar e a disseminação da televisão). No que respeita à escolarização, Donnat assinala que “no final de mais de trinta anos de democratização escolar, constata‑se que o alongamento da escolaridade foi acompanhado de um recuo no conhecimento dos autores ou dos artistas que, ainda há quinze ou vinte anos, figuravam entre os nomes mais prestigiados da cultura escolar, Isso não significa que o «nível baixa», mas sim que a instituição escolar garante cada vez menos uma real intimidade com o património literário e artístico que as elites transmitiam de geração em geração”[1006]. O autor fala, em consequência, de uma profunda recomposição no arcaico modelo unitário e coerente do «homem cultivado». Hoje a cultura erudita vê‑se inserida em processos de hibridização, fragmentação e legitimação de novas formas de expressão cultural, intimamente associadas aos fenómenos da juvenilização e espectacularização trazidos pela economia mediático‑publicitária.

Mas a relação do capital escolar com as práticas culturais pode ser ainda analisada por outros prismas, nomeadamente pela inversão dos critérios que estão na base da classificação “arte média”. Esta resulta, amiúde, da qualidade social dos seus praticantes e do grau de raridade do capital escolar que possuem. No entanto, se atentarmos numas actividade tradicionalmente enquadrada nesta taxinomia na sua relação com o capital escolar dos inquiridos (fazer fotografia com intuitos artísticos — Anexo V/Quadro XXIV) compreendemos a inoperância de tais critérios. Com efeito, no caso da fotografia, a “arte média” nobilita‑se e torna‑se distintiva tal a raridade absoluta dos seus praticantes, mesmo entre os que detêm maior capital escolar[1007]. No que se refere ao cinema (Anexo V/Quadro XXV) a nobilitação dá‑se não pela raridade em termos absolutos dos seus praticantes, mas sim pelo seu público, de acordo com a amostra, ser maioritariamente composto por inquiridos com alto capital escolar.

Há ainda outra espécie de casos “atípicos”. Trata‑se de práticas criativas situadas na esfera erudita (como por exemplo as artes plásticas ou a escrita literária — AnexoV/ Quadros XXVI e XXVII) em que não se nota qualquer discriminação significativa com base no capital escolar. De facto, a raridade gritante de praticantes distribui‑se de forma idêntica pelos níveis de capital escolar. É uma prática generalizadamente escassa. De forma paralela há práticas generalizadamente profusas. Atente‑se no exemplo do televisionamento (Anexo V/Quadro XXVIII). Apesar de uma ténue clivagem entre os detentores de baixo capital escolar e os demais (os primeiros são espectadores mais assíduos) é nítido tratar‑se de uma prática amplamente partilhada.

No caso da leitura (de livros e de jornais, não de revistas), no entanto, existem diferenças (Anexo V/Quadros XXIX e XXX), ainda que não sejam muito significativas. Os inquiridos com alto capital escolar lêem‑nos mais frequentemente. Ainda assim, o valor modal de cada grupo etário situa‑se na mesma categoria (“frequentemente”). E entre o médio e o alto capital escolar não há clivagens a assinalar. Tais dados são, uma vez mais, descoincidentes face ao recente inquérito nacional aos hábitos de leitura onde a relação com o capital escolar apresenta uma “«causalidade nítida»”[1008]. As práticas de leitura tornam‑se mais intensas à medida que sobe quer o capital escolar de origem, quer o capital escolar adquirido dos inquiridos.

Em suma, as análises que se cingem ao estabelecimento de relações entre o capital escolar e um leque de práticas culturais deparam com as limitações intrínsecas a tal procedimento. A correlação apresenta‑se variável ou mesmo inexistente. É difícil atribuir‑lhe a carga de variável explicativa quase universal com que surge em certas pesquisas[1009]. Em particular na “cultura de apartamento hegemónica”[1010] e nos tempos doméstico‑receptivos (“colonizados pela televisão”[1011]). No entanto, mesmo nas “práticas intelectivas”[1012] ligadas à leitura e na “cultura de saídas”, onde o capital escolar impõe distinções, torna‑se difícil considerá‑lo como grande princípio explicativo.

Se é verdade que a selectividade social de certos públicos e práticas continua a ser uma “evidência”, não é menos verdade, como refere Idalina Conde que as barreiras persistem mas de outro modo e com outra complexidade: “perduram com segmentações mais precisas que imbrincam na expansão eclética do «cultural», correspondendo na modernidade a um maior pluralismo de referências com os seus vários centros de legitimidade”[1013]. Mesmo as classes dominantes, detentoras, por tradição, de um poder simbólico que lhes permite apresentar o seu padrão de gostos como universal e o único legítimo, vêem‑se confrontadas com uma crescente segmentação, baseada quer em atitudes receptivas heterogéneas, algumas delas “incompetentes”[1014], quer em especializações ou “«pericialidades» eruditas suficientemente restritivas para retraírem a elite do(s) público(s) artístico(s) no interior do(s) público(s) cultivado(s)”[1015].

No entanto, o cruzamento da situação na trajectória (ascendente, de reprodução, descendente) com o grau de identificação face aos pólos consagrado/não consagrado e moderno/clássico nos domínios do cinema, literatura e música não nos fornece qualquer contributo significativo (Anexo V/ Quadros XXXI a XXXIX). De facto, a principal conclusão a que se chega prende‑se com o grau global de incompetência dos públicos da amostra. O pólo constituído pelo grau nulo e baixo de identificação é sempre superior ao conjunto dos níveis médio e alto (este último quase sempre residual, com excepção dos consagrados musicais clássicos, amplamente banalizados e divulgados pelas indústrias culturais e mass media). Esta constatação, no entanto, não é de somenos importância, já que contribui para derrubar o mito de que o credencialismo escolar é um passaporte seguro para a apropriação distintiva da alta cultura.

 

4.3. Da desertificação do espaço público e suas consequências.

 

Atente‑se nos Quadros LV e LVI. Duas constatações ressaltam com nitidez. Em primeiro lugar, o espaço semi‑público é muito mais frequentado que o espaço público que quase se pode considerar terra de ninguém. Em segundo lugar, a posse de capital escolar encontra‑se associada à frequência do espaço semi‑público (quanto maior é o capital escolar, mais elevada se torna a frequência), não exercendo, porém, qualquer efeito em relação à esfera pública.

Quadro LV - Frequência do espaço semi-público por capital escolar de ego

 

Capital Escolar de Ego

 

Espaço Semi‑Público

Baixo

N=25

(5,5%)

Médio

N=94

(20,5%)

Alto

N=340

(74,0%)

 

Frequentemente

N=151

(32,9%)

 

16,0

 

30,9

 

34,7

 

Com Alguma Frequência

N=245

(53,4%)

 

56,0

 

47,9

 

54,7

 

Raramente/Nunca

N=63

(13,7%)

 

28,0

 

21,3

 

10,6

 

 

Tais distinções ligam‑se, a nosso ver, às características intrínsecas de cada esfera na sua relação com as características sociais dominantes no espaço‑tempo em que vivemos. De facto, a frequência do espaço semi‑público liga‑se a um conjunto de práticas que prolongam, nalguns casos, os quadros de vida do habitat residencial (certos cafés ou cervejarias; ir à missa ou a cerimónias religiosas; fazer compras; etc.) ou que, noutros casos, requerem um investimento em redes de sociabilidade de entes afectivamente próximos (embora em graus diferentes, com vínculos de intensidade distinta). Por outro lado, certos segmentos do espaço semi‑público apresentam um acesso diferencial, quer em termos de crenças (frequentar a Igreja, por exemplo), quer em volume de capital económico (ir almoçar ou jantar fora; ir a bares e discotecas; etc.), quer ainda em recursos culturais (por exemplo, ir ao cinema).

Quadro LVI - Frequência do espaço público por capital escolar de ego

 

Capital Escolar de Ego

 

Espaço Público

Baixo

N=23

(5,3%)

Médio

N=89

(20,4%)

Alto

N=325

(74,4%)

 

Frequentemente

N=2

(0,5%)

 

 

 

 

0,6

 

Com Alguma Frequência

N=73

(16,7%)

 

26,1

 

25,8

 

13,5

 

Raramente/Nunca

N=362

(82,8%)

 

73,9

 

74,2

 

85,8

 

 

Ora, o espaço público, por seu lado, caracteriza‑se por ser, à partida, acessível a qualquer um e indiferente às redes de afinidades electivas (efectivamente, no entanto, quanto mais fechada for uma sociedade e certos recursos forem monopólio de grupos, classes, etnias ou sexo, mais o espaço público tenderá a restringir‑se ou, no limite, a desaparecer). Como faz notar Habermas, a origem clássica deste conceito remete‑nos para o sujeito público, portador da opinião pública e garante de uma esfera comum a todos os cidadãos livres (categoria que na antiguidade greco‑latina era, ela própria, extremamente selectiva...)[1016]. Através da conversação (lexis) e da prática comunitária (praxis), desenvolve‑se a identidade específica do espaço público: “tudo se torna visível a todos”[1017]. Mas, mais do que isso, os fundamentos da ordem social são discutidos e analisados, longe dos “gabinetes dos príncipes”, exercendo o público um verdadeiro poder de supervisão: “a totalidade do público constitui um tribunal que vale mais do que todos os tribunais reunidos”.

Mas o que acontece, hoje em dia, para tamanha desvitalização do espaço público?

Antes de mais, devemos enfatizar o carácter relacional deste conceito. O público só existe em função do privado e vice‑versa. Ora, o que tende a verificar‑se actualmente é a omnipresença do privado, com a destruição do equilíbrio e da tensão que entre ambos existia. Como refere Sennett, “tornamos o facto de estarmos em privado, a sós connosco próprios e com a família e amigos íntimos, um fim em si mesmo”[1018]. Do mesmo modo, o privado torna‑se o padrão de tudo: não só o auto‑conhecimento se tornou uma obsessão, como a preocupação principal reside nas pessoas, na sua psique e não nas suas acções ou projectos (veja‑se o que se passa na esfera política, em que a natureza de classe do poder é mistificado pela crença nas qualidades pessoais dos actores políticos, doravante o principal critério de avaliação das suas acções). De certa forma, estamos a assistir a uma obliteração do carácter social da existência humana. Tudo se torna um assunto de âmbito pessoal e de resolução íntima. A vida social e os assuntos públicos passam a ser tratados como sentimentos e emoções pessoais. O espaço privado, em suma, deixa de estar confinado a barreiras precisas. A “tirania da intimidade” resulta, por isso, da redução da complexidade da realidade social (e da sua divisão em classes...) a um só princípio subjectivo: a autenticidade dos sentimentos de cada um. A grande “armadilha” reside no aumento de expectativas face às recompensas pessoais. De facto, na medida em que o self se encontra num processo de auto‑absorção narcísica, aumenta a ansiedade e a desordem emotiva; na medida em que o outro perde o seu significado social e a sua própria especificidade, a interacção desvaloriza‑se. Mais do que a sua identidade, procuramos saber o que o interlocutor íntimo significa para nós. Este processo impede‑nos de “compreender o que pertence ao domínio do self e da auto‑gratificação e o que lhe é exterior”[1019]. O mundo torna‑se “um espelho de mim”[1020], superfície onde se reflectem os contornos de um eu omnipresente. No fundo, perdemo‑nos na busca perpétua de “quem somos”, negligenciando o significado social dos encontros na esfera pública, por definição propiciadora de cruzamentos mais ou menos aleatórios com estranhos; pessoas que avaliaríamos pelas suas acções (gestos, posturas, discurso) através da “objectividade dos signos expressivos”[1021] e não mediante a sua personalidade. O “mercado de troca de auto‑revelações”[1022] acaba, assim, por destruir o espaço público. Toda a apresentação no espaço público (a começar pela indumentária) acaba por ter um significado associado às características humanas, psicologizando‑se. Desta forma, a sociedade íntima torna‑se uma ameaça. Qualquer pormenor pode revelar a estranhos as nossas idiossincrasias mais pessoais. O espaço público passa a ser um lugar de passagem e não de encontro; de silêncio e não de diálogo; de “sentimentos congelados” e não de expressividade; de observação e voyeurismo e não de participação activa. A casa e a família emergem como refúgios moralmente seguros e tornam‑se um claro contraponto à ordem pública. A sociedade íntima condiz, afinal, ao isolamento.

Compare‑se o quadro anterior com os que em seguida apresentamos, referentes às práticas domésticas receptivas, de consumo e/ou fruição (Quadro LVII), essencialmente baseadas na cultura audiovisual, e às práticas domésticas expressivas, de interacção e sociabilidade (Quadro LVIII) como ir a casa de amigos e familiares ou recebê‑los em sua casa.

Quadro LVII - Práticas domésticas receptivas de consumo e/ou fruição por capital escolar de ego

 

Capital Escolar de Ego

Práticas Domésticas Receptivas, de Consumo e/ou Fruição

Baixo

N=28

(6,2%)

Médio

N=94

(20,7%)

Alto

N=332

(73,1%)

 

Frequentemente

N=331

(72,9%)

 

71,4

 

63,8

 

75,6

 

Com Alguma Frequência

N=117

(25,8%)

 

28,6

 

36,2

 

22,6

 

Raramente/Nunca

N=6

(1,3%)

 

 

 

1,8

 

 

Ao contrário do espaço público, desertificado, o espaço doméstico, locus por excelência do espaço privado, revela‑se hiperpovoado, características transversal aos três níveis de capital escolar e que se reflecte com especial incidência nas práticas receptivas. Por outras palavras, para além do retraimento na esfera do “lar”, nota‑se um maior centramento nas actividades que não requerem, por si sós, o exercício da sociabilidade. Duplo retraimento, portanto.

Quadro LVIII - Práticas domésticas expressivas, de interacção e sociabilidade por capital escolar de ego

 

Capital Escolar de Ego

Práticas Domésticas Expressivas, de Interacção e Sociabilidade

Baixo

N=27

(5,7%)

Médio

N=101

(21,3%)

Alto

N=346

(73,0%)

 

Frequentemente

N=187

(39,5%)

 

37,0

 

37,6

 

40,2

 

Com Alguma Frequência

N=216

(45,6%)

 

48,1

 

45,5

 

45,4

 

Raramente/Nunca

N=71

(15,0%)

 

14,8

 

16,8

 

14,5

 

 

 A análise das entrevistas torna esta constatação ainda mais clara. Como se pode observar pelo Quadro LIX, as referências positivas sobre o espaço doméstico (79.5%) suplantam largamente as negativas (20.5%). A casa surge como um manancial de imagens que sugerem uma idealização; uma “âncora” que funciona como “bastidor” de uma “região de fachada” (para utilizarmos conceitos caros a Goffman). Um local que permite o desvendamento, a autenticidade, a segurança afectiva e o relaxamento, ao contrário do controlo social e da vigilância presentes nas “regiões frontais” ou “fachadas”.

 

 

Quadro LIX — Imagens associadas à casa e a “estar em casa

 

Positivas

Nº *

Negativas

Nº *

.As pessoas/a família

.”O meu espaço”

.”O meu quarto”

.Refúgio

.Relaxamento/descanso

.Isolamento e introspecção

.Conforto

.Privacidade

.Paz e tranquilidade

.O local ideal

.”Onde nos sentimos bem”

“O ninho”

16

13

13

12

10

9

9

6

6

3

3

2

.Um aborrecimento

.Uma obrigação

.Local de passagem

.Solidão

.Não fazer nada

.O sítio onde se dorme

9

5

4

3

3

3

Total

105

Total

27

* Número de ocorrências

 

Mas repare‑se que a casa é, antes de mais, a célula familiar que, contra os discursos sobre o seu “fim” iminente, persiste em revelar a sua centralidade. Perante a “selva” exterior, a casa familiar assemelha‑se a um “baluarte” afectivo, embora nada nos permita concluir da generalização de uma representação que a tende a ver como um domínio “moralmente superior” em regime de autarcia. Aliás, a oposição dominante afasta casa e trabalho/estudo (“o mundo de fora”); tempo de desgaste e tempo de recuperação e repouso (“o mundo de dentro”), mostrando, uma vez mais, a sua estreita ligação, e não directamente espaço público e privado. Habermas acentua essa relação entre uma esfera profissional que se autonomiza e a família que “se recolhe a si mesma”[1023]. De facto, parecem ser extemporâneos os Requiems pelo fim do trabalho e do seu carácter estruturador das rotinas diárias, o que não impede que a habitação surja como “ponto fixo” (o “pivot” das sociedades‑arquipélago[1024]) em contextos de acentuada distância casa/trabalho e de crescente mobilidade sócio‑profissional[1025]:

“Ficar em casa é uma oportunidade de ficar com a família. Normalmente passo o dia fora de casa e regresso à noite, por isso só estamos juntos ao fim do dia. A casa é um refúgio”; “Ficar em casa é mais para descansar e conviver com a família”; “A casa é o sítio onde nasci, cresci e espero envelhecer e ficar em casa é passar uma noite agradável na companhia de familiares ou de amigos”; “é uma forma de refúgio, conforto, de esquecer o mundo cá fora e os problemas”.

Graham Allan refere a este propósito a importância de que a casa se reveste para as novas classes médias, enquanto local preferencial de sociabilidade e espaço privilegiado onde se recebem os amigos. Desta forma, a casa torna‑se “um meio efectivo de descontextualizar e alargar os parâmetros da sociabilidade”[1026], libertando as amizades dos constrangimentos do círculo social onde nasceram. Assim, a habitação surge como uma confortável arena privada e uma expressão da identidade pessoal e social do seu proprietário[1027]. Transforma‑se em signo e local de apresentação e representação (Allan analisa a este respeito o papel ritual dos jantares de cerimónia[1028], enquanto ocasião de dar a conhecer a versão pública do espaço privado), ou, de acordo com a terminologia bourdiana, um exemplo de capital cultural objectivado.

No entanto, por vezes a dicotomia interior (casa)/exterior (cidade) remete‑nos para as questões da (in)segurança e das patologias urbanas. Neste sentido, Sennett fala de uma “sociedade incivilizada” em que apenas uma minoria de favorecidos, morando em zonas recatadas e seguras, pode usufruir da urbanidade.

“A casa é um refúgio do dia, do dia‑a‑dia, da selva que é a cidade”; “Ficar em casa é um porto seguro”; “A casa é o abrigo, o refúgio onde nos sentimos mesmo à vontade, é o reino”.

No entanto, importa relativizar o papel de âncora da família. Existe uma hierarquia interna que tende a privilegiar o quarto e a possibilidade de total recolhimento e privacidade. Dentro do “lar”, as zonas comuns são muitas vezes preteridas pelo espaço que mais directamente prolonga a intimidade, o que de certa forma confirma tanto as análises de Sennet como as de Giddens e Featherstone quando estes autores identificam, apesar de daí retirarem ilações antagónicas, a busca de auto‑identidade enquanto traço característico da contemporaneidade. Repare‑se na utilização recorrente do determinante possessivo:

 “Em casa estou mais no quarto, é onde tenho mais privacidade”; “A casa...entendo isso como o meu canto...o meu canto privado...mas também pode ser o meu quarto”; “Apesar de viver com a minha namorada eu tenho um espaço meu, o meu quarto, onde gosto muito de estar, sinto‑me lá bem...as minhas coisas pessoais, as minhas brincadeiras...ouvir música, brincar com a viola”; “na casa gosto do meu quarto, é o meu território (...) está tudo à minha medida, é o meu espaço”, “ficar em casa é como encontrar um lugar para mim, para estar sozinha”.

Habermas realça esta modificação em que a casa se torna menos um espaço familiar e mais um espaço feito à medida do indivíduo, deixando de ser o prolongamento privado do espaço colectivo: “Caso olhemos para o interior de nossas moradias, então descobre‑se que o «espaço familiar», o lugar de permanência em comum (...) tornou‑se cada vez menor ou desapareceu por completo. Em compensação, os quartos privados de cada um dos membros da família tornaram‑se cada vez mais numerosos, sendo decorados de modo característico”[1029]. Um dos entrevistados não podia ser mais explícito: “quando estou em casa estou comigo”. Esta ênfase no recolhimento no interior do espaço doméstico parece dar razão a Senett quando este autor refere a necessidade de haver barreiras que protejam a intimidade das pessoas e impeçam a vigilância e o controlo permanentes: “As pessoas são tanto mais sociáveis quanto mais existam barreiras tangíveis entre elas (...) Os seres humanos necessitam de alguma distância em relação à observação íntima por parte dos outros, de forma a sentirem‑se sociáveis”[1030]. Esta necessidade de protecção e de isolamento em relação ao “clã” familiar será ainda maior no caso dos jovens que, devido ao prolongamento do período de moratória, são obrigados a permanecer na dependência dos pais. Eles, mais do que as outras categorias sociais, são os especialistas da construção de micro‑casas: a casa dentro da casa.

Existem situações, inclusivamente, em que a casa se dissocia da família e em que os modos de habitabilidade traduzem a necessidade de mobilidade associada a uma vida independente, sem vínculos afectivos associados ao espaço residencial. Quebra‑se, por isso, a imagem da casa como lugar identitário:

“Felizmente “barra” infelizmente vivo acompanhado ... mas é engraçado ... é tipo uma comunidade franciscana...em que as pessoas como têm horários completamente diferentes, praticamente nunca se vêem...o que se passa é uma coisa extremamente cómoda...mas pronto, quando é preciso pagar as contas ao fim do mês está toda a gente lá reunida para o bem e para o mal. As pessoas lá de casa...um colega meu dedica‑se a orçamentar estruturas móveis...aeroportos, estações de comboios. É engenheiro, um tipo porreiro, mas é engenheiro...tenho outro colega meu que é de medicina dentária...por isso tem o quarto extremamente bem decorado...tem lá nos frascos umas dentaduras, umas coisas do género...uma mala cheia de brocas, parafusos horríveis. Aquilo parece a tortura inquisitória. É um tipo agradável, para contactar de quinze em quinze dias. Eu lá estou, de vez em quando...Estou em casa sem ter casa” (Sexo masculino, 22 anos, gestor)

Mas o significado da casa não deixa de ser ambivalente. Para uma minoria ela é sinónimo de prisão e de tédio, de sociabilidades amorfas. A única função da casa parece ser a de assegurar a passagem entre o dia que acaba e o que começa:

“A casa é o pousio, mas depende das idades, a certa altura é só para comer e dormir”; “ficar em casa é uma monotonia”; “eu fico em casa quando estou cansado, quando não estou saio (...) a casa é para dormir”, “ficar em casa é pastar...”, “a casa hoje em dia é mais um local de passagem, é um dormitório”

Esta minoria constrói, igualmente, uma representação muito favorável das saídas nocturnas e de todo o espaço‑tempo exterior à casa. Coincide, muitas vezes, com pessoas que vivem sós ou fora do local onde habita a família.

Em síntese, apesar da instituição familiar aparecer como núcleo‑duro da afectividade, parece extremamente precipitado concluir que é em seu redor que se estruturam os espaços‑tempos domésticos. A fuga para o quarto, a procura de introspecção e recolhimento, têm necessariamente efeitos de diluição de uma pretensa omnipresença familiar. Neste sentido, somos levados a reforçar a ideia já anteriormente avançada de que os contextos de reprodução social extra‑familiares têm vindo a ganhar importância, a par do desenvolvimento de uma cultura auto‑centrada que, ao contrário do que muitos propagam, não se deve a motivos de índole estritamente psíquica, encontrando‑se pelo contrário radicada nas transformações sócio‑culturais mais amplas das sociedades contemporâneas. Em suma, não se confirma uma desestruturação da família, tão‑pouco o seu fim, mas também não existe uma reprodução inerte dos velhos modelos familiares. François Ascher refere, neste âmbito, que “o reforço dos laços familiares opera‑se igualmente num quadro de autonomia crescente de cada um dos membros, o que exprime, também a este nível, o processo de individualização, contribuindo para fazer dos parentescos sistemas cada vez mais complexos”[1031].

O espaço privado tende, aliás, a ser penetrado por influências cada vez mais distantes, criando‑se uma espécie de “lugar fantasmagórico”, segundo a expressão de Giddens, promovendo relações com interlocutores ausentes, “distantes de qualquer situação de interacção face‑a‑face”[1032]. Os mass media contribuem intensamente para este esvaziamento do espaço e para a perda das relações de proximidade, aumentando a “indiferença possível” perante os outros que partilham a mesma unidade residencial. Como refere Ascher, “os verdadeiros vizinhos metapolitanos ignoram‑se”[1033], contrariando a “mitologia comunitária” do bairro da cidade industrial.

Atente‑se no Quadro LX referente às actividades predominantes no espaço doméstico, de acordo com as declarações dos entrevistados.

Quadro LX ‑Actividades Predominantes no Espaço Doméstico

 

Dos entrevistados

*

Dos familiares

*

.Ver TV

.Ouvir música

.Ler

.Trabalhar/estudar

.Ver programas em vídeo

.Dormir

.Jogar no computador

.Conversar

.Tocar um instrumento

.Jogar

.Escrever

.Lides domésticas

.Falar ao telefone

58

44

30

18

17

14

13

11

8

5

3

3

2

.Ver TV

.Conversar

.Ler

.Sair com amigos

.Ouvir música

.Lides Domésticas

.Trabalhar

.Jogar no computador

.Ver programas em vídeo

.Ir ao café

37

18

8

8

7

4

4

4

3

2

* Número de ocorrências

 

Ver TV é sem sombra de dúvidas a actividade hegemónica. Podemos mesmo afirmar que existe um nítido domínio da cultura audiovisual e da dupla som/imagem (ouvir música, assistir a programas em vídeo, jogar no computador). Esse domínio é mais visível nas práticas referentes aos próprios entrevistados, o que não será de estranhar dada a grande juvenilidade (comprovada pelo inquérito) dos utentes dos espaços em estudo. No entanto, não podemos deixar de realçar a importância relativa das práticas de leitura, nem tão‑pouco a diversidade de actividades mencionadas. O espaço doméstico não é atravessado por uma lógica unidimensional de apropriação cultural, apesar do claro domínio televisivo. Mesmo os usos que se fazem da televisão podem conduzir a práticas interactivas, através de processos complexos de recepção cultural que contribuem para interpretações social e culturalmente diferenciadas (ou mesmo divergentes) sobre as mensagens transmitidas.

Habermas tem, a este respeito, uma perspectiva claramente pessimista. Ao falar dos modos de socialização “imediatos” que se imiscuem no espaço privado, desafiando o papel tradicional da família, o autor alemão fala de consumismo e da constituição de uma pseudo‑esfera pública (mass media) que se assemelha a uma “espécie de superfamília”: “Mesmo ao se ir junto ao cinema, ao se escutar conjuntamente rádio ou a olhar televisão, dissolveu‑se a relação característica da privacidade correlata a um público”[1034]. O resultado é a transformação do que seria um público numa massa, fenómeno agravado pela dissolução dos contextos de comunicação pública “em actos estereotipados de recepção isolada”[1035]. A família deixa de ser uma “esfera privada protectora e sustentadora”[1036] e o indivíduo, perante uma cultura que serve meramente como integração, “torna‑se um número no programa dos astros da rádio e da televisão”[1037]. Algumas afirmações dos entrevistados parecem dar razão à análise de Habermas, segundo a qual o esvaziamento da função socializadora da família, entre outros factores, contribui para uma mudança de paradigma do “homem pensador de cultura” para o “homem consumidor de cultura”:

“Se der um bom filme na TV vejo, senão posso alugar um filme ou então vou para a cama”; “Quando fico em casa vejo TV, ouço música, pode ainda ser o computador, o telefone para pôr a conversa em dia e jogar cartas. Às vezes, mesmo tendo gente em casa procuro estar sozinha, nem sempre convivemos”; “ficar em casa é deitar no sofá e ouvir música o dia todo”; “Trabalhar e dormir. Ao fim de semana descansar ou passear pelos arredores”; “Os meus familiares vêem muita televisão. Só se conversa à hora das refeições”; “Os meus familiares estão em casa a dormir ou a ver televisão”; “A minha mãe vê televisão ou está na lida da casa, o meu pai ou está com os comboios dele ou está a ver televisão”.

Mas muitos outros excertos demonstram a preocupação em diversificar os espaços‑tempos domésticos, dotando‑os de um conteúdo convivial, expressivo e mesmo criativo. Há também posicionamentos críticos em relação à programação televisiva, o que vai contra a figura do consumidor passivo e adormecido (próprias do sistema do “don't talk back”) e da descrição que Habermas faz do público telespectador, sem a distância necessária ao exercício das capacidades emancipadoras e sem a “oportunidade de poder dizer e contradizer”[1038]. Alguns entrevistados denotam ainda uma tendência para uma certa especialização de gostos e escolhas:

“Vejo filmes vídeo, a televisão não presta...ler, muitas vezes ler, basicamente é isso”; “Ouço música, gosto de ler, vejo às vezes filmes”; “Ouço música, vejo filmes, converso com os amigos. A música é escolhida por mim”; “televisão vejo cada vez menos, por exemplo ao Sábado à noite há o Big Show Sic e coisas do género...”; “Fico em casa e vejo um filme, convivo com os amigos, leio e escrevo”; “Costumo ler e pintar”.

Não faltam igualmente referências às saídas nocturnas: “Os meus pais só ficam em casa para trabalhar, senão saem”; “Os meus pais saem à noite, conversam, lêem...”.

Em síntese, somos de opinião que, mesmo tendo em conta situações de potencial reprodução de uma “ordem social negativa” em que “integração e inanição deixam de se distinguir com nitidez”, propiciando situações de “anomia implosiva”[1039], não se pode falar, em relação a este conjunto específico de entrevistados (seleccionados em situações de saída cultural nocturna, com uma probabilidade eventualmente elevada de serem praticantes culturais assíduos) de uma total subjugação a uma lógica unidimensional de consumo.

O que, bem entendido, não invalida a constatação de hipertrofia do espaço público urbano e de desvitalização dos valores de uma certa mundanidade e cosmopolitismo.

 No entanto, importa salientar a inadequação da teoria habermasiana da esfera pública às novas condições da cultura, designadamente no que se refere à compressão do espaço‑tempo, tornada possível, entre outros factores, pela globalização da informação e pelos novos meios electrónicos de comunicação[1040]. Ao contrário da concepção de esfera pública do autor alemão, baseada na interacção face‑a‑face, as nossas sociedades são, cada vez mais, “sociedades‑arquipélago”, marcadas por um maior conhecimento do longínquo face ao geograficamente próximo: “Lá onde o camponês conhecia cada detalhe de alguns hectares, nós, nós conhecemos alguns detalhes do planeta inteiro”[1041]. O vizinho passa a ser o desconhecido próximo de nós, ou, nas palavras de Viard, “o longínquo pode estar mais próximo do que o próximo e o próximo mais longínquo que o longínquo”[1042]. Neste sentido, modifica‑se, em especial para os agentes “multipolares e multi‑informados”, socialmente minoritários, mas com reflexos em todo o tecido social, a representação do território e das escalas de intervenção. Seguindo Giddens, a actividade social e as relações sociais são “arrancadas” dos “contextos locais de interacção” e reestruturadas “através de extensões indefinidas de espaço‑tempo”[1043]. Consequentemente, o território torna‑se descontínuo, fragmentário, baseado em redes e fluxos. Em suma, “um imenso patchwork” que resulta da montagem que cada um faz das suas deslocações na “cidade invisível”[1044] que em muito ultrapassa os velhos limites materiais e administrativos da urbe. François Ascher, a propósito da sua “Metapolis”, conceito de urbanidade que substitui a metrópole, fala das “combinações múltiplas, flutuantes e relativamente diluídas” dos modos de vida e das mentalidades urbanas.

Todos estes contributos, no entanto, não nos devem fazer esquecer a necessidade de preservação das condições de comunicação face‑a‑face. Se é verdade que o distante e o próximo se interligam de forma complexa e que a mobilidade está no centro das estratégias dos actores sociais (diferentemente mobilizável consoante a distribuição de poder), não é menos verdade que a dissolução dos encontros e cenários de co‑presença contribui para um enfraquecimento da imaginação social e dos processos sociais de comunicação. Desenraizados face aos contextos físicos de interacção, envoltos em sociabilidades e redes virtuais ou intermutáveis, imbuídos da lógica das transacções distantes no espaço‑tempo, os agentes perdem toda a riqueza da comunicação não‑verbal e das suas componentes extralinguísticas. A gama possível de sinais expressivos e de variações de estilo[1045] reduzem‑se a um conjunto de procedimentos e linguagens minimais (como o Basic English da informática ou as abreviações e ícones da comunicação/conversa via Internet) que não exploram as características de um ambiente específico rico em pormenores que dignificam a comunicação, processo inserido numa “complexa trama histórica e social”[1046].

Outra dimensão criticada em Habermas é o seu alegado elitismo, a lembrar o retrato dos “intelectuais apocalípticos” traçado por Eco. A relação que estabelece com a cultura de massas enquadra‑se na descrição que DiMaggio tece sobre certas perspectivas teóricas que fazem a síntese das “preocupações liberais sobre a cidadania na era pós‑fascista com as noções marxistas de alienação e um desprezo elitista pela cultura popular”[1047]. Nesta linha, Jim McGuigan propõe que não se trate a esfera pública como uma entidade abstracta e universal, mas sim como “uma referência normativa assente nas suas formas plurais enquadradas em contextos específicos”[1048], sem deixar de lado a arte, os media e as modalidades afectivas e quotidianas de construção de sentido e de identidade. Em suma, uma esfera pública adequada a uma realidade sócio‑cultural multidimensional.

 

4.4. Cultura e redes sociais.

 

Paul DiMaggio é um dos autores que mais tem tentado relacionar a estruturação dos campos culturais (ele apelida‑os de “sistemas de classificação artísticos”) com a existência de redes de sociabilidade, enquanto elemento fundamental de circulação de informação utilizada nos processos sociais de construção do gosto e de reposicionamento social. A sua proposta centra‑se na análise das “formas através das quais as pessoas utilizam a cultura para estabelecerem contactos entre si”[1049]. Por outras palavras, o gosto cultural é simultaneamente causa e consequência de interacção social e de mobilização de redes sociais relativamente extensas. Se os bens culturais são signos, sistemas comunicantes que exprimem categorias e classificações, o acto de os consumir, pelo seu carácter efémero e evanescente, tornam‑se um “meio portátil e por conseguinte potente, de troca interaccional”[1050]. Os interesses culturais são, em suma, um tema de conversa que permite, nos contactos com estranhos que se estabelecem na esfera pública e semi‑pública, seleccionar os elementos que desejamos integrar nas nossas redes de sociabilidade. Além do mais, a sua análise enquanto “sistema relacional” que estabelece uma mediação entre os contextos e círculos sociais e o espaço pessoal permite, como referem tanto Claire Bidart como Félix Requena Santos, estabelecer um olhar transversal aos vários domínios do social (empresa, família, amigos, saídas culturais, vida associativa, etc.) bem como articular variáveis macrossociológicas (estrutura social, padrões culturais, variáveis ecológicas como a densidade e dispersão da população, etc.) com análises microssociológicas (personalidade, relações de amizade, estilos de vida, etc.)[1051].

No inquérito e entrevistas que aplicámos, procurámos testar a validade e o potencial heurístico da proposta de DiMaggio para os contextos em estudo. Atente‑se por conseguinte no Quadro LXI. Os amigos constituem os companheiros mais frequentes das saídas nocturnas em qualquer dos espaços em análise, seguido do namorado(a) no B Flat e Praia da Luz e do cônjuge no Rivoli. Apenas nesta última instituição têm algum relevo as modalidades de aparecer acompanhado por familiares ou sozinho.

Quadro LXI - Modalidade em que costuma aparecer por espaço

 

Espaço

Costuma Frequentar este Espaço

B Flat

N=135

(30,3%)

Praia da Luz

N=80

(17,9%)

Rivoli

N=231

(51,8%)

 

N=26

(5,8%)

 

4,4

 

1,3

 

8,2

 

Acompanhado por Amigos

N=272

(61,0%)

 

71,9

 

65,0

 

53,2

 

Acompanhado por Familiares, Cônjuge/Namorado

N=148

(33,2%)

 

23,7

 

33,8

 

38,5

 

 

 Claro que esta centralidade dos amigos está ligada à juvenilidade da amostra e ao facto associado da existência de um grande número de solteiros. Claire Bidart[1052] e François Héran[1053] salientam o facto de a sociabilidade decrescer claramente com o aumento da idade e com determinadas etapas do ciclo de vida, em particular o casamento e o nascimento do primeiro filho. Aliás, o facto de ser celibatário retarda o retraimento na disposição de estabelecer contactos com outros que se verifica com a idade. Mas, mais importante ainda, a idade e o estado civil relacionam‑se intimamente com a orientação das práticas sociabilidade. Com efeito, os novos e solteiros possuem uma mais intensa sociabilidade externa, intimamente ligada à cultura de saídas. Pelo contrário, a orientação endo‑domiciliar é reforçada com o casamento (instituição que marca verdadeiramente o “fim da juventude”) aumentando com a idade até um certo ponto, onde o grau do decréscimo depende essencialmente da posição social[1054].

O “efeito idade” na estruturação das saídas culturais encontra‑se bem visível no Quadro LXII. Repare‑se que o item “costuma aparecer acompanhado por amigos”, apesar de ser extremamente expressivo em todos os grupos etários, decresce com a idade.

Quadro LXII - Modalidade em que costuma aparecer por escalão etário

 

Escalões Etários

 

Costuma aparecer

Até 20

N=61

(14,4%)

21‑30

N=219

(51,5%)

31‑40

N=73

(17,2%)

Mais de 40

N=72

(16,9%)

 

N=23

(5,4%)

 

9,8

 

3,2

 

5,5

 

8,3

 

Acompanhado por Amigos

N=263

(61,9%)

 

67,2

 

66,7

 

58,9

 

45,8

 

Acompanhado por Familiares, Cônjuge/Namorado

N=139

(32,7%)

 

23,0

 

30,1

 

35,6

 

45,8

 

 

Quando esta sobe, a partir dos 31 anos, aumentam também os inquiridos que se fazem acompanhar pelo cônjuge:

“Geralmente vou com a minha namorada... há certos casais com quem também nos damos, mas especialmente saímos muito os dois” (Praia da Luz; sexo masculino; 32 anos).

“Digamos que saio cinquenta por cento sozinho, cinquenta por cento com grupos de amigos...é ao acaso...par hasard” (B Flat; sexo masculino; 38 anos; director financeiro).

Importa, por conseguinte, distinguir a amizade das relações familiares ou de parentesco. À partida a amizade tem quatro características fundamentais: autonomia (carácter voluntário da escolha de amigos — eleição mútua), informalidade, pessoalização e vínculo emocional (não instrumental)[1055]. No entanto, importa relativizar o significado destas dimensões. Sendo do domínio do íntimo, do privado e da escolha pessoal, a amizade (assim como a sociabilidade em geral) não deixa de estar situada em espaços sociais e imersa em constelações de valores, símbolos, esquemas perceptivos, expectativas, modelos culturais, etc. Mesmo o seu cariz mais elementar — a relação pessoal — é uma fonte de aprendizagem social: “É no encontro e na interacção com o outro que o indivíduo apreende as diferenciações sociais, aprendendo a situar‑se, a filiar‑se, a negociar o seu lugar na sociedade”[1056]. Assim, ao contrário da aura “romântica” da amizade pairando acima das vicissitudes e constrangimentos terrenos (que, não raras vezes, se associa a uma psicologização reducionista da pesquisa), somos confrontados com um fenómeno eminentemente cultural. Ao contrário de Simmel que concebia a sociabilidade e a amizade como “sentimento puro” ou “forma lúdica”, entendem‑se aqui esses processos relacionais como práticas culturais, formas de mediação entre o social e o individual, intimamente associadas aos quadros de interacção (ou “círculos sociais”, para utilizar a terminologia de Bidart[1057]) por sua vez inseridos em contextos sociais mais vastos (profissionais, residenciais, institucionais, etc.). Graham Allan defende a mesma ideia ao referir que a sociabilidade deve ser analisada através de uma articulação entre as regularidades do “ambiente social imediato” e as convenções culturais dominantes. Por outras palavras, exige‑se ao investigador que analise as relações informais em relação com os aspectos estruturais da vida em sociedade[1058], salientando a inclusão das escolhas pessoais num campo mais ou menos restrito de possibilidades. Neste sentido, a sociabilidade é aqui entendida, retomando o seu significado primeiro, ou seja, enquanto “capacidade de estabelecer relações sociais” em círculos e contextos determinados[1059].

 No entanto, é preciso que fique claro que não encaramos o capital relacional como mera variável dependente, desprovida de qualquer autonomia e incapaz de produzir efeitos na distribuição do volume global de capital. Pelo contrário, a proposta de DiMaggio salienta a utilização instrumental da cultura através das redes de sociabilidade. Os usos sociais da cultura não são neutrais e os seus veículos e suportes — as redes sociais — também não. Assim sendo, importa considerar a “economia afectiva do intercâmbio recíproco”[1060] presente nas relações de amizade e a sua combinação de aspectos expressivos (os mais salientes em termos de senso comum) e instrumentais (revelados pela análise social, mas igualmente explícitos em situações de conflito ou quebra de vínculo). Como refere Graham Allan, sendo uma relação de igualdade (por oposição às relações de mercado) a amizade exige uma equivalência de transacções, tanto no plano material como emocional (mesmo não existindo um cálculo explícito nem tão‑pouco uma obrigação de reciprocidade imediata). Embora não visando o “lucro” ou a procura de vantagem, o equilíbrio relacional requer um regular “give and take”[1061].

O carácter distintivo da amizade reside ainda no carácter relativamente voluntário da sociabilidade (em especial por oposição ao parentesco, mais rígido e formal), no seu cariz não hierárquico (ao contrário, igualmente, do que se passa na família, em que existe sempre uma distribuição diferencial da autoridade e do poder) e menos ligado ao contexto do que o mero colega (de trabalho ou de estudo) ou vizinho. Desta forma, funciona como uma relação potencialmente mobilizadora da acção em conjunto, tanto mais que geralmente se partilham códigos, valores e condutas. Esta mesma característica reflecte‑se na organização das saídas culturais. Tínhamos já observado que a indisponibilidade dos amigos para sair é um dos principais obstáculos ao deslocamento para o exterior do espaço doméstico. Se analisarmos o Quadro LXIII constatamos precisamente que as redes de amigos funcionam como circuitos privilegiados de informação e mobilização para a frequência de locais e práticas culturais.

Quadro LXIII - Fonte através da qual tomou conhecimento do espaço frequentado

 

Espaço

Como tomou conhecimento do Espaço Frequentado

B Flat

N=119

(34,2%)

Praia da Luz

N=76

(21,8%)

Rivoli

N=153

(44,0%)

 

Através das Redes de Sociabilidade

N=255

(73,3%)

 

84,0

 

93,4

 

54,9

 

Através dos Meios de Comunicação Social

N=93

(26,7%)

 

16,0

 

6,6

 

45,1

 

 

O Rivoli parece ser a excepção, com uma maior fragmentação das respostas e uma valorização relativamente superior dos mass media, o que não é de admirar, já que é a única instituição a utilizar esses veículos de divulgação. No entanto, se somarmos os índices respeitantes aos vários tipos de relações de sociabilidade (amigos, colegas, familiares, namorado, cônjuge) atingimos valores elevados.

De igual modo, ao observarmos o Quadro LXIV concluímos que o principal factor que motiva os inquiridos a estarem presentes para assistirem a um determinado espectáculo, novamente com a excepção do Rivoli, radica nas referências e convites oriundos das suas redes de sociabilidade. No caso do Teatro Municipal o destaque vai para a familiaridade com os artistas e suas obras. Recordemos o que anteriormente referimos sobre o perfil cultural dos seus públicos: apesar da sua diversidade e ecletismo, dominava a imagem de uma ligação privilegiada à cultura consagrada.

Quadro LXIV - Motivos para estar presente por espaço

 

Espaço

Motivos para estar presente no Espaço Frequentado

B Flat

N=86

(25,2%)

Praia da Luz

N=51

(14,9%)

Rivoli

N=205

(59,9%)

 

Referências através dos Meios de Comunicação Social

N=62

(18,1%)

 

7,0

 

5,9

 

25,9

 

Referências através das Redes de Sociabilidade

N=168

(49,1%)

 

76,7

 

70,6

 

32,2

 

Familiaridade com os Artistas e a sua Obra

N=112

(32,7%)

 

16,3

 

23,5

 

42,0

 

 

 Este novo indicador reforça a ideia de um maior à‑vontade nos códigos e circuitos do campo artístico por parte de uma fracção significativa desses públicos. Ou seja, na constituição do seu universo simbólico continua a ser importante a aquisição de competências específicas na esfera da alta cultura. Atentando agora num dos indicadores que foram agregados na categoria “familiaridade com os artistas e sua obra”, neste caso o “conhecimento do percurso e da obra do artista” (Quadro LXV), identificamos, precisamente, o cluster de inquiridos do Rivoli (representando 32%) que possivelmente constrói o seu gosto pela relação de proximidade (se não mesmo de homologia) com a cultura “nobre” e que denota a incorporação de uma disposição cultivada. No que se refere à idade (Quadro LXVI) confirma‑se uma vez mais a tendência para a identificação ao pólo consagrado aumentar com a idade.

 

Quadro LXV - Conhecimento do percurso/obra do artista por espaço

 

Espaço

Conhecimento do Percurso / Obra do Artista ou Executante

B Flat

N=142

(28,0%)

Praia da Luz

N=84

(16,6%)

Rivoli

N=281

(55,4%)

 

Sim

N=102

(20,1%)

 

8,5

 

 

 

32,0

 

Não

N=405

(79,9%)

 

91,5

 

100,0

 

68,0

 

 

Quadro LXVI - Conhecimento do percurso/obra do artista por escalão etário

 

Escalões Etários

Conhecimento do Percurso / Obra do Artista ou Executante

Até 20

N=73

(15,0%)

21‑30

N=243

(50,0%)

31‑40

N=84

(17,3%)

Mais de 40

N=87

(17,7%)

 

Sim

N=99

(20,3%)

 

5,5

 

18,5

 

26,2

 

32,2

 

Não

N=388

(79,7%)

 

94,5

 

81,5

 

73,8

 

67,8

 

 

No entanto, a imensa maioria, ainda mais esmagadora nos restantes espaços, confirma a tese de DiMaggio segundo a qual a participação e o interesse pela “alta cultura” não se associa necessariamente a um elevado conhecimento da mesma. Já anteriormente tínhamos concluído pela disseminação de uma atitude de falta de identificação com referências cruciais (autores e obras) da “alta cultura”. Desta forma, o autor americano defende que as referências simbólicas e culturais funcionam como recursos importantes nas situações de interacção em redes sociais difusas. De facto, a maior complexidade social (traduzida por uma diversidade na estrutura de papéis) requer repertórios alargados. Ou seja, a móvel e novel classe média, necessita de manipular com habilidade (embora não necessariamente com profundidade) uma gama vasta de referências culturais. Assim se compreende que DiMaggio refira com acutilância que essa classe média utiliza “interruptores” para ligar ou desligar um determinado discurso de acordo com o círculo social a que se dirige. Ora, como refere François Héran, o vínculo emocional dessas redes difusas sugere “laços fracos”, mas com um grande raio de acção. Este tipo de redes são característicos das grandes cidades onde a proliferação de subculturas se liga à grande diferenciação estrutural (em grande parte derivada da especialização económica e espacial) patente na diversidade de estatutos ocupacionais, de situações de classe, de estilos de vida, etc.[1062]. Exigem, por isso, uma acentuada multiplicidade de laços, tanto mais que tende a aumentar a incongruência entre os papéis oriundos de diferentes contextos sociais (a categoria ocupacional, por exemplo, pode não encontrar correspondência no stock disponível de recursos e competências culturais e um elevado capital cultural institucionalizado — capital escolar —, como de resto observámos, pode não se traduzir em capital cultural incorporado). Daqui resulta, por sua vez, uma maior diferenciação nos géneros artísticos, mas igualmente um maior conhecimento e cruzamento de géneros diferentes, a par de um esbatimento das classificações rituais, fronteiras e hierarquias, com o desenvolvimento de justaposições e combinações ecléticas. Aliás, o alargamento do acesso aos patamares superiores do ensino, em curso na sociedade portuguesa, contribui para consolidar esta tendência aventada por DiMaggio, na medida em que reduz substancialmente o valor de raridade do capital cultural, contribuindo para “uma mútua validação da legitimidade dos diferentes gostos”[1063].

Fischer corrobora de certa maneira esta tendência para a des‑classificação cultural e o ecletismo simbólico ao considerar que a diversidade subcultural urbana aumenta a probabilidade de normas e gostos heterogéneos e desviantes face a um padrão geral, ao mesmo tempo que a diversificação de fontes de difusão de informação possibilitará “a adopção por parte dos membros de uma subcultura das crenças e comportamentos de outra”[1064]. O contraste entre os vários círculos sociais, resultante da sua multiplicidade, origina não só fenómenos de interdependência como também de competição e de conflito. Neste contexto, mantém toda a pertinência a análise dos consumos culturais como marcadores de status e de identificação/diferenciação identitária.

 No entanto, esta tendência não nos parece poder ser alargada a toda a estrutura social. Ela aplica‑se essencialmente às novas classes médias em movimento, cuja posição social não é facilmente assinalável de acordo com parâmetros clássicos e cujo destino social virtual não se encontra nitidamente definido. Nos grupos menos móveis manter‑se‑ão, assim o pensamos, padrões clássicos de familiarização ou distanciamento face a classificações culturais mais tradicionais, embora nos pareça, dada a proliferação de obras e consumos de fronteira, que a dicotomia bourdiana distinção/destituição deva ser substituída por um continuum que melhor ilustre a especificidade dos posicionamentos face à cultura. Nesse aspecto, não queremos nem podemos ir muito mais longe, dada a relativa homogeneidade sócio‑demográfica da amostra em análise, que nos impossibilita a comparação entre comportamentos e atitudes culturais representativos da globalidade da estrutura social.

 Importa compreender um pouco melhor a especificidade destas redes. Em primeiro lugar, são redes caracterizadas por uma homofilia[1065] apenas relativa, dada a incongruência das várias dimensões de posicionamento social. DiMaggio salienta a sua abertura a trajectos sociais ascensionais, como é o caso de segmentos privilegiados de minorias étnicas ou das classes trabalhadoras. Graham Allan refere a este propósito, as características distintivas da nova classe operária, desenraizada das suas comunidades de origem, habitando grandes conjuntos residenciais onde não se desenvolvem fortes laços de pertença e se proporcionam contactos mais heterogéneos e diversificados, em detrimento dos modelos tradicionais de sociabilidade centrados na vizinhança e na família[1066]. Jan C. Rupp salienta, igualmente, na sua teoria de um espaço social a duas dimensões (económica e cultural), a existência de uma “fracção cultural das classes populares” com investimentos em certos tipos de arte e em determinados estilos de vida[1067]. Nestes casos, as altas expectativas de mobilidade social suscitam uma participação em círculos sociais onde os recursos culturais interaccionais são centrais. Claro está que nas redes sociais difusas, próprias das novas classes médias urbanas os “laços fracos” são “laços ricos”. Pretendemos ilustrar com esta expressão a constatação de François Héran segundo a qual os circuitos de interlocutores diversificados e distantes associam‑se, todavia, a relações socialmente mais “rentáveis”, fora dos círculos de parentesco e vizinhança, permitindo aumentar o repertório cultural e informacional dos agentes neles inseridos. Por outras palavras, redes sociais muito densas, com vínculos emocionais intensos, estão associadas a um maior fechamento social e a uma elevada “estreiteza de relações”: “A densidade das trocas no seio de um meio social não reside na densidade das redes interpessoais mas sim, pelo contrário, na sua dilatação. As duas densidades variam em sentido inverso”[1068]. Estas redes funcionam com base nos contactos de “segunda ordem”, de acordo com a terminologia utilizada por Barnes e retomada por Félix Requena Santos[1069], ou seja, interacções accionadas na rede extensa, formada pelos conhecimentos dos elementos que constituem a nossa rede efectiva, a qual é constituída por um círculo de pessoas estreitamente ligadas entre si. Ora, os agentes com um elevado capital cultural e relacional caracterizam‑se pela vastidão da sua rede extensa, pouco densa, heterogénea, mas com ramificações em domínios sociais cruciais. A este propósito alguns antropólogos falam do multiculturalismo presente na vida quotidiana das sociedades hodiernas, extremamente ligado à crescente especialização profissional que se desenvolve nessas sociedades. Assim, aumenta a competência subcultural dos agentes, na medida em que apenas podemos generalizar determinadas expectativas face a conjuntos limitados de outros. As expectativas multiplicam‑se em ritmo paralelo à diversidade de situações, papéis e relações sociais. Claro está que a profundidade dessa competência multicultural depende do grau de poder desigual dos agentes. Existe, desta forma, um acesso diferencial à variedade subcultural[1070].

Esta multiplicação dos laços de sociabilidade e dos repertórios culturais (cada novo conhecimento abre‑nos os seus pequenos mundos) está bem patente no discurso de alguns entrevistados:

“Hoje vim assistir a este espectáculo com os meus pais, mas podia ter vindo com um grupo de amigos que gostassem de música clássica. Depende um pouco: se for com amigos que gostem de outro género de música de que eu também goste, acabarei por ir também a concertos de música brasileira, rock, sei lá, de tudo um pouco, música portuguesa também, porque não, se houverem bons concertos...” (Rivoli; sexo masculino; estudante do ensino superior).

“Quando é para o teatro há pessoas que gostam mesmo, ou quando é para ir a um bar de jazz tem de se gostar mesmo, senão acham uma seca, enquanto que para um bar alinham todos” (Rivoli; sexo feminino; 23 anos; estudante de um curso de tinturaria).

“Saio com a namorada ou com os amigos. Mas também organizamos programas para sair no grupo da faculdade” (Praia da Luz; sexo masculino; 22 anos; estudante do ensino superior).

Convém no entanto frisar que as saídas nocturnas a lugares de consumo cultural parece basear‑se mais no grupo de amigos relativamente próximos (na rede efectiva) e não tanto nos circuitos difusos com interlocutores mais distanciados (rede extensa):

“A importância dos amigos é grande, a pessoa só vai a um certo sítio se souber que estão lá amigos” (Praia da Luz; sexo masculino; 25 anos; arqueólogo).

“Nós temos sempre o nosso grupo de amigos, combinamos sempre e quando temos que sair, saímos sempre juntos. Eu só consigo curtir a noite se estiver com os meus amigos” (Rivoli; sexo masculino; estudante do ensino superior)

“A escolha do local depende dos amigos. Por exemplo, sozinha não saio. Sou capaz apenas de ir ao teatro ou ao cinema sozinha, mas com os amigos saio mais” (B Flat; sexo feminino; professora de educação física).

Aliás, esta constatação obriga‑nos a relativizar o papel das redes difusas de sociabilidade. De facto, em redes de amigos relativamente homogéneas (a nível etário, étnico, de status social e mesmo de género, como múltiplos estudos comprovam[1071]) a informação circulará ainda mais facilmente e a uma velocidade maior, dada a probabilidade de existir um forte consenso sobre os pressupostos da comunicação evitando‑se “ruídos” e facilitando‑se a comunicação. Por conseguinte, e apesar do “acréscimo da «mobilidade de sociabilidade»”[1072] não se pode generalizar a ideia de uma permeabilidade interclassista isenta de obstáculos. O estudo recente de Elísio Estanque e José Manuel Mendes indica, precisamente, que as qualificações, na ligação ao capital cultural, são a dimensão menos permeável das fronteiras de classe nas redes de amizade, chegando mesmo a introduzir uma distância simbólica acentuada entre posições de classe estruturalmente próximas. Concluem por isso os autores que “estamos perante uma estrutura social relativamente rígida também na constituição de amizades, sendo as qualificações a dimensão estruturadora das relações sociais de amizade”[1073]. Graham Allan realça, com base em vários trabalhos anteriores, que a pressão dos círculos sociais vai no sentido de se “defender” um determinado estatuto social através do recrutamento de amigos com uma afinidade de habitus: “Claramente, é mais fácil tratar como iguais aqueles que realmente são iguais”[1074]. Nos nossos dados encontramos igualmente indícios de um certo fechamento nas redes sociais. De acordo com o Quadro LXVII são em valor residual os inquiridos que consideram que “conhecer pessoas novas” é um dos motivos que os levam a frequentar espaços de vocação cultural. O que contribui para a ideia de que as saídas culturais se enquadram em redes de sociabilidade já estabelecidas e não funcionam como uma esfera propícia à sua dilatação.

Quadro LXVII - Possibilidade de conhecer pessoas novas por espaço

 

Espaço

É a possibilidade de conhecer pessoas novas que o leva a frequentar este local?

B Flat

N=145

(26,5%)

Praia da Luz

N=98

(17,9,%)

Rivoli

N=304

(55,6%)

 

Sim

N=18

(3,3%)

 

5,5

 

2,0

 

2,6

 

Não

N=529

(96,7%)

 

94,5

 

98,0

 

97,4

 

 

 

De qualquer forma, as ressalvas anteriores não desmentem nem são incompatíveis com os múltiplos estudos que apontam para uma cumulatividade por parte das classes médias e superiores nas diferentes modalidades de sociabilidade. Estas não só possuem redes mais vastas como, simultaneamente, desenvolvem ao máximo relações de intimidade. Importante, ainda, é o facto dessas redes não consistirem em contactos redundantes. Pelo contrário, fornecem uma renovação intensa do capital informacional, e uma maior electividade. Na medida em que os circuitos sociais são heterogéneos e assentes em várias esferas da actividade social, diminui a evidência da pressão social, dando lugar ao desenvolvimento de relações pessoalizadas. É de supor, por isso, que as saídas culturais não se organizem sempre com os mesmos amigos já que, ao contrário das classes populares, os encontros, embora diversificados, afiguram‑se pouco frequentes e os amigos conhecem‑se menos entre si, ao mesmo tempo que cada agente apenas revela uma parte do seu self, aumentando por isso a sua privacidade. Em suma, as classes privilegiadas ganham em vários tabuleiros: “possuem mais laços fracos, mas igualmente mais laços reforçados, e mais amigos e relações electivas não limitadas a um meio ou quadro de inscrição”[1075]. Dito por François Héran, de uma forma bem mais expressiva, “em matéria de relações sociais o capital atrai capital” (“Le capital va au capital”)[1076]. Esta maior independência face aos contextos e quadros de interacção liga‑se intimamente à noção de rede, distanciando‑se do conceito de “comunidade”, próprio de segmentos tradicionais e doravante minoritários das classes operárias[1077]. Esta vivência em mundos sociais supra‑locais articula‑se, por sua vez, com a importância de que se reveste a mobilidade social, em especial para as novas classes médias urbanas: “As relações, tal como os lugares de residência, constituem signos sociais”[1078], indicadores de trajectos, referências e aspirações, portadoras de sentido e geradoras de representações subjectivas, embora inscritas objectivamente no espaço social.

Finalmente, importa precisar um pouco melhor o alcance (e os limites) das propostas de DiMaggio para uma nova conceptualização das relações entre cultura e estrutura social. O autor americano nunca o referiu com exactidão, mas as suas teses aplicam‑se nitidamente (e essa é uma das suas limitações, como adiante explicaremos) aos chamados “novos intermediários culturais” ou à fracção que Bourdieu apelidou de nova pequena burguesia e que nós temos vindo a designar, talvez com excesso de conforto, por novas classes médias urbanas. No entanto, ao contrário de Bourdieu, que vê na relativa indeterminação social desta fracção de classe o resultado de uma “trajectória interrompida”[1079], quer porque não se conseguiram conservar as elevadas posições de origem (indivíduos em trajectória descendente, oriundos da burguesia — “pequeno‑burgueses desclassificados, pretendentes à reclassificação”[1080]), quer porque se pretende rentabilizar o diploma obtido através de um processo ascensional, pensamos que ela representa hoje em dia o pleno do capital cultural. O autor francês associa os seus comportamentos culturais à tensa “pretensão à distinção”, muitas vezes exercida através do bluff cultural (em especial na sub‑fracção caracterizada por trajectórias descendentes). No entanto, ao definir os seus domínios profissionais (“apresentação e representação”; “venda de bens e serviços simbólicos”; “produção e animação cultural” e profissões artísticas[1081]) Bourdieu salientou, sem lhes reconhecer a devida importância, os poderosos recursos de que esta fracção actualmente dispõe, em íntima associação com a “nova burguesia”[1082] e que lhe conferem um estatuto central na reprodução social global.. O seu estilo de vida obedece, a nosso ver, a um padrão comum, definido, precisamente, pela sua posição face quer à produção, quer ao consumo simbólicos. Sem constituir uma surpresa, a argúcia analítica do autor francês capta o essencial dos seus modos de vida: “A nova burguesia é a iniciadora da conversão ética exigida pela nova economia da qual retira a sua força e os seus lucros e cujo funcionamento depende tanto da produção de necessidades e de consumidores, como da produção dos próprios produtos. A nova lógica da economia substitui a moral ascética da produção e da acumulação, fundada na abstinência, na sobriedade, na poupança, no cálculo, por uma moral hedonista do consumo baseada no crédito, no gasto, na fruição. Esta economia pretende um mundo social que julgue os homens de acordo com as suas capacidades de consumo, o seu standing, o seu estilo de vida, assim como pelas suas capacidades de produção”[1083]. O que os pós‑modernos vêem como a desarticulação dos modelos fordistas[1084] em direcção a uma pluralidade, dispersão e fragmentação libertadoras (causa e consequência da novas formas de acumulação do capital, ditas flexíveis) e demarcadas de lógicas classistas (estilização das experiências de vida; exploração lúdica do quotidiano, ligação das posturas corporais e modos de apresentação à expressão do self; diluição de hierarquias e classificações; maior importância dos códigos simbólicos do que do estatuto social e das pertenças de classe; aumento do espaço pessoal e dos repertórios de gosto; etc.) é analisado por Bourdieu como mera eufemização do habitus e simulacro de descontracção, de forma a tornar a dominação mais doce e dissimulada: “Apenas os ingénuos podem ignorar, depois de tantos trabalhos históricos sobre a simbólica do poder, que os modos vestimentários e cosméticos são um elemento capital do modo de dominação”[1085]. A questão reside, uma vez mais, na unidimensionalidade da perspectiva do autor francês ao colocar‑se no extremo oposto da “ingenuidade”. Desta forma, apenas vê criticamente dominação e imposição arbitrária onde podem existir dimensões existenciais não negligenciáveis (autoexpressão, autorealização, projectos de vida) e lógicas sociais mais complexas. Voltaremos a este ponto nas conclusões e reflexões finais.

A nossa amostra fornece‑nos informação limitada, indirecta e parcial, a respeito da preponderância destas novas classes sociais nos públicos de certas instituições culturais urbanas. De facto, como já foi referido, escasseiam os dados sobre a profissão e a situação na profissão dos inquiridos, por ausência de resposta. As nossas afirmações têm essencialmente em conta os dados sobre a mobilidade social com base no capital escolar[1086], bem como o volume de que este se reveste. Realçamos, em particular, a intensidade das trajectórias de mobilidade social ascendente em direcção a situações de posse de grande volume de capital escolar como um indicador significativo. No entanto, um inquérito realizado pela direcção do B Flat (e por nós tratado) fornece‑nos alguma informação que em parte complementa a lacuna antes referida. Atentemos no quadro seguinte:

Quadro LXVIII — Composição profissional

dos públicos do B Flat

 

Grupos Profissionais

N

%

Dirigentes e quadros superiores

24

5

Profissões intelectuais e científicas

231

47.8

Profissões técnicas intermédias

66

13.7

Empregados e outros assalariados do terciário

45

9.3

Trabalhadores da agricultura e pescas

1

0.2

Operários qualificados

8

1.7

Desempregados, reformados e domésticas

2

0.4

Estudantes

106

21.9

TOTAL

483

100

 

De acordo com estes dados, e se somarmos o peso relativo dos dirigentes e quadros superiores ao das profissões intelectuais e científicas, obtemos 52.8%. Necessitaríamos de desagregações mais finas, mas muito provavelmente estaremos em presença do que Bourdieu apelidou de nova burguesia e nova pequena burguesia e que outros simplesmente apelidam de novos intermediários culturais[1087] (designação também presente em Bourdieu). Muitos dos estudantes presentes nesta amostra irão certamente engrossar o peso desta categoria. Aliás, pela análise da composição etária, a sua grande maioria frequenta o ensino superior. São estas as camadas sociais que mais concentram as suas energias rotineiras na obtenção de capital simbólico, mediante a produção, difusão e consumo de bens e serviços que assentam o seu cariz distintivo na sua estrutura igualmente simbólica. Os seus estilos de vida encontram‑se em íntima conexão com as tendências mais “avançadas” do chamado capitalismo tardio”: “A flexibilidade pós‑moderna, por seu turno, é dominada pela ficção, pela fantasia, pelo imaterial (particularmente do dinheiro), pelo capital fictício, pelas imagens, pela efemeridade, pelo acaso e pela flexibilidade em técnicas de produção, mercados de trabalho e nichos de consumo”[1088]. A “economia vodu” e as tendências culturais mais visíveis e marcantes da contemporaneidade não estão, por conseguinte, em dissociação. A dominância do estético e das dimensões ontológicas encontram correspondências materiais e objectivas nos processos sociais globais, embora fora de lógicas de determinação unilinear.

A questão afigura‑se, por isso, bastante diferente do que habitualmente é proposto. Sem negarmos a existência de amplos movimentos, ritmos e tempos culturais contraditórios e assincrónicos (por exemplo a coexistência conflitual da modernidade, da modernidade tardia e da pós‑modernidade em vez da sua sucessiva superação e incompatibilidade) e sublinhando a ambivalência de que se revestem, urge aceitar, simultaneamente, a multiplicidade de factores que estão associados (embora seja por vezes extremamente difícil saber em que medida funcionam numa relação directa de causa e/ou efeito) à emergência e consolidação (por mais paradoxal que possa parecer este termo, em tempos de ávida circulação/substituição de referências) de novos modos de vida. Só assim conseguiremos localizar nos planos social e espácio‑temporal, o grau de generalização e/ou localização de significativas mudanças sócio‑culturais que aqui foram sendo assinaladas. Nenhum conjunto de mudanças, por mais profundo e revolucionário que seja, se furta à história e à geografia de uma dada formação social.

CAPÍTULO XII

 

DA RECEPÇÃO CULTURAL

 

            A Activista Cultural

 

            O passo decidido não acerta com o cismar do

                                                                        palácio

            O ouvido não ouve a flauta da penumbra

            Nem reconhece o silêncio

            O pensamento nada sabe dos labirintos do tempo

            O olhar toma nota e não vê

 

               Sophia de Mello Breyner Andresen in O Búzio de Cós e Outros Poemas

 

 

1.   A recepção, o corpo e os seus contextos.

 

As formas de ocupação dos cenários de interacção pelos agentes sociais e as posturas corporais que lhes estão associadas traduzem uma determinada atitude receptiva face ao ambiente social circundante. A análise das expressões transmitidas mas sobretudos emitidas (“de tipo mais teatral e contextual, de tipo preferencialmente não verbal e aparentemente não intencional”[1089], como Goffman sublinha) fornece importantes indícios de como os indivíduos percepcionam, a um nível nem sempre consciente, por vezes mesmo quase inconsciente[1090], as linguagens dos espectáculos que presenciam. Trata‑se, por assim dizer, de um espectáculo dentro do espectáculo, uma representação de segunda ordem a que o investigador acede pela sua grelha de análise. Como refere Serge Collet, “o espectador é «actor» no seu corpo no próprio lugar do espectáculo”[1091].

Muitos desses indícios (que são efectivamente formas de comunicação) conseguem ser captados pelos produtores e programadores culturais mais atentos às reacções e performances dos públicos:

            P‑ Através de que indicadores é que captas a adesão dos públicos?

            R‑ Normalmente através das reacções que se observam nos intervalos ou no final dos espectáculos. Em alguns casos só mesmo por observação, porque não conheço as pessoas e elas não se dirigem a mim. Noutros casos conheço as pessoas e falo com elas e há ainda outras que vêm ter comigo porque percebem que estou ligada ao teatro e gostam de expor a sua opinião” (programadora cultural do Rivoli).

            Podemos seguir os modelos interaccionistas e afirmar que grande parte dos significados não verbais captados pelo investigador no decurso de um processo de observação directa fazem parte de uma intenção mais vasta de desempenho, por forma a alcançar, face aos interlocutores e à audiência, um consenso operacional sobre a situação de interacção[1092]. No entanto, assistir a um espectáculo cultural constitui uma ocasião de relativa fuga à rotina, considerando não só a raridade relativa das saídas culturais, como o grau de ritualização e poder simbólico que exprimem, em particular em locais como os que se encontram em estudo. Nesse sentido, a incorporação corporal de hierarquias e sistemas de classificação, ou, pelo contrário, a sua transgressão mais ou menos intencional, traduzem o processo mais vasto de socialização das posturas e performances corporais. Assim, apropriarmo‑nos analiticamente da apropriação social presente na corporalidade, conduz‑nos à multiplicidade de actos perceptivos em contextos de recepção cultural. Tal démarche, por sua vez, obriga‑nos à abdicação de qualquer ponto de vista soberano, patente nas versões mais etnocêntricas e logocênticas de um objectivismo que “constitui o mundo social como um espectáculo que se oferece a um observador que adopta «um ponto de vista» sobre a acção, retirando‑se para a observar”[1093]. É dessa visão “quase‑corporal” do mundo, “que não supõe nenhuma representação nem do corpo nem do mundo”[1094] que nos propomos em seguida falar, assumindo as posturas corporais e sensitivas como plenas práticas culturais. No entanto, ao considerarmos a corporalidade como conceito integrante do habitus, não pretendemos reduzi‑la a uma mera representação interna de um mundo social exterior. Ou seja, se é verdade que o “corpo socialmente informado” não escapa “à acção estruturante dos determinismos sociais”[1095] não é menos verdade que ele transcende a mera exteriorização das aprendizagens sociais e das estruturas simbólicas. Dito de outra forma, o corpo não será o produto de uma simples domesticação social; ao tornar‑se, também ele, fonte e veículo dos vínculos relacionais, intersubjectivos, produz e experimenta continuamente o mundo. Ora, se não analisamos apenas as representações mentais e cognitivas; se não nos quedamos somente pelos conceitos que os agentes produzem enquanto lay sociologists; se não nos contentamos com o estudo da verbalidade e da escrita (as “práticas de inscrição”[1096]) somos obrigados não só a relacionar o corpo com o corpo social (lugar de memória social permanentemente actualizada) mas igualmente a entendê‑lo como disposição afectiva. Como refere Vale de Almeida: “A experiência corporizada não pode ser entendida só pelo cognitivismo e pelo modelo de significação linguística, reduzindo o corpo ao estatuto de símbolo. O significado não pode ser reduzido a um símbolo que existe num nível separado, exterior às acções do corpo (...) ao cultivarmos o hábito é o nosso corpo que compreende”[1097]. Além do mais, a emoção é também um estado cognitivo, uma forma de conhecimento e de mobilização de atitudes[1098].

            Pretendemos em seguida, de acordo com vários exemplos extraídos das nossas incursões etnográficas, problematizar e ilustrar o que anteriormente defendemos.

           

1.1. As palmas ou a ambivalência dos comportamentos.

 

“Bernard Dort escreveu um dia que os aplausos são o fim de tudo. É, igualmente, o último momento do confronto entre actores e público, o fim do seu diálogo silencioso”.

Cláudia de Oliveira, A Vida em Silêncios Comunicantes[1099]

 

Algumas das situações que presenciamos traduzem com acutilância a ligação das posturas corporais ao conjunto de convenções interiorizadas de forma socialmente diferenciada de acordo com os meios sociais dos agentes. O bater de palmas fornece‑nos, a esse respeito, interessantes pistas.

De facto, bater palmas em diferentes momentos de um espectáculo é considerado uma das formas mais visíveis (audíveis...) e socialmente reconhecidas de demonstrar o (des)gosto e o grau de apreço pelo desempenho dos artistas. Ao mesmo tempo, torna‑se um indicador precioso do carácter efémero, único e irrepetível, de cada concerto, peça de teatro ou performance, evidenciando a base instável e evanescente de transmissão de significados das artes vivas.

Assistimos a um momento em que convenções sócio‑culturais estabelecidas e sedimentadas (institucionalizadas) foram subvertidas, não sem ambivalência, por fracções significativas do público que assistia a um concerto em que Maria João Pires interpretava Schubert, intercalada pela leitura de Eunice Muñoz de fragmentos de O Viajante Magnífico. Ora, ao sentarem‑se nos seus lugares, os espectadores eram confrontados com um folheto onde se pedia expressamente para apenas se aplaudir no final do concerto‑récita, excluindo‑se mesmo o momento de interrupção para intervalo. No entanto, ao contrário de tal solicitação, as palmas irromperam não só no final da primeira tarde, como depois da leitura particularmente expressiva de alguns textos ou ainda posteriormente a cada andamento. Tal comportamento suscitou interpretações ambivalentes por parte dos próprios espectadores. Houve quem assumisse uma atitude iconoclasta de afronta a um pedido tido como impertinente ou quase ofensivo (qualificando o folheto de “ridículo” e “desnecessário”. Weber e Bourdieu certamente que não deixariam de descobrir aqui um efeito de “defesa de honra” que caracteriza certos grupos de status. O autor francês quiçá iria mais longe e aventaria a hipótese de uma reacção ao ultraje dos pergaminhos culturais de certas classes sociais. Afinal, ensina‑se o padre‑nosso a quem tão bem sabe rezar e se movimenta com sobejo à‑vontade nas liturgias culturais... Outras pessoas com quem conversámos salientaram, pelo contrário, a incompetência cultural de boa parte do público, pouco familiarizado, apesar da presença de várias figuras ilustres do mundo da política e dos negócios, com os rituais e competências deste tipo de espectáculo. Aliás, uma senhora não deixou escapar uma crítica implícita ao aggiornamento da etiqueta da “cultura nobre”: “Aquelas pessoas que batem palmas antes do tempo... Eu também fazia isso quando era criança e envergonhava muito o meu pai”.

Alguns registos de observação abonam a favor desta hipótese interpretativa que enfatiza a relativa disjunção entre capital económico e cultural. Com efeito, o cenário da ocasião afigurava‑se diferente das habituais soirées do Rivoli. Casacos de peles, penteados cuidados, gravatas e laços surgiam com profusão, confirmando a aparência sofisticada das formas de apresentação em cena. No espaço de entrada, multiplicavam‑se os sinais de inter‑reconhecimento, como que a confirmar o carácter restrito de um círculo social relativamente homogéneo, onde destoavam fortemente alguns grupos minoritários de jovens com traje informal ou “pormenores” provocadores (cabelos multicoloridos). As conversas que conseguimos captar e registar remetiam para universos exteriores à cultura cultivada, reenviando‑nos para um pequeno mundo mundano: os brinquedos que o filho recebeu no Natal; a situação económica de uma determinada empresa, o falar de alguém ausente que ainda no dia anterior foi reconhecido na missa. Um comentário dissonante ficou ainda registado no diário de campo : “Hoje cheira muito a naftalina”.

Moral da história: as palmas podem ter vários significados. No caso presente, oscilaram entre a incompetência cultural de uma burguesia incapaz de converter eficazmente o seu capital económico em capital cultural (o que mais uma vez nos alerta para a heterogeneidade dos comportamentos das classes dominantes), pouco socializada em saídas culturais frequentes e atraída pelo valor simbólico do “nome” de Maria João Pires e Eunice Muñoz e a subversão momentânea das regras por quem se sentiu ofendido pelo implícito questionamento da sua competência cultural.

Um outro caso relacionado com a exteriorização do gosto através do bater de palmas ocorreu com a representação da peça de teatro Hotel Orpheu de Gabriel Gbadamosi. No final, e perante o pequeno auditório dividido entre um grupo de jovens oriundo de escolas secundárias e um outro de idosos, provenientes de instituições públicas, era nítido o agrado dos primeiros, traduzido em palmas, e o embaraço dos segundos, denunciado pelo silêncio. De facto, se tivermos em conta o realismo cru da peça, e em particular de determinadas passagens, compreenderemos melhor esta recepção diferencial. De facto, só para mencionar o exemplo talvez mais elucidativo, a um dado momento, numa atmosfera algo claustrofóbica de um pequeno quarto de uma pensão lisboeta, assiste‑se à preparação de uma dose injectável de estupefacientes, com todos os utensílios que lhe estão associados: a colher, o isqueiro, a seringa. Nada, como fazia notar uma das programadoras do Rivoli que entrevistámos, que não caiba no universo de possíveis do jovem público. No entanto, um quadro suficientemente afastado das categorias cognitivas dos idosos para lhes causar estranheza, perplexidade, eventualmente repulsa. Dito de outra forma, os códigos (sistemas de signos) transmitidos não se integravam no seu “modo habitual de percepção”[1100].

Um último exemplo. Numa espectáculo de jazz “experimental”, com um forte grau de improvisação, a desatenção selectiva do público generalizava‑se a grande parte da sala. Apenas uma minoria activa, situada em frente ao palco (se é que se pode ainda falar de palco quando existe, como é o caso do B Flat, uma total continuidade com a sala) aplaudia no fim de cada “melodia”, trocando sorrisos cúmplices com os artistas durante as actuações e escutando muitas as vezes a música de olhos fechados, em estado de aparente sintonia receptiva. Se fizéssemos um travelling etnográfico pelo resto do espaço, depararíamos com muita gente de pé, perto do balcão, a beber e a conversar, em especial homens, totalmente abstraídos do espectáculo, sem sequer bater palmas. Numa mesa um grupo de homens fala de negócios que envolvem “para cima de 700 contos”. Noutra mesa, um casal disserta igualmente sobre dinheiro: “Para que queres o dinheiro? Para gastar em coisas que te digam alguma coisa. Se calhar, noutra altura da tua vida, tens filhos, uma casa. Agora não!”[1101]. Não deixa de ser curioso constatar que, de facto, a maior parte dos presentes, naquela actuação marcada “pela improvisação colectiva”, pelo “risco e a urgência”, conforme consta do folheto que publicita o espectáculo, não se encontra sintonizado e sincronizado com os tempos da mesma. Enquanto que a “selectividade perceptiva” da minoria de espectadores familiarizados com as regras sem regra da improvisação jazzística os leva a evidenciar sinais corporais de atenção, distensão e prazer, a maioria da clientela exibe desconhecimento, desinteresse, fuga (para locais distantes do palco ou para temas de conversa totalmente dissonantes com a actuação). Não se trata sequer da falta de inteligibilidade dos “melómanos profanos”, que os conduz a atitudes de desorientação e perplexidade perceptiva, nem tão pouco de sentimentos de “agressão auditiva” de que nos fala Pierre‑Michel Menger[1102] e que Robert Francès também regista em situações em que se rompe o equilíbrio entre os códigos habituais da oferta e as competências treinadas do público homólogo[1103]. O que observámos foram indícios de uma completa desatenção perceptiva, uma forma de recepção pela não‑recepção, possível em espaços informais e conviviais como o B Flat e a Praia da Luz, mas incompatível com a “rigidez” do teatro municipal.

 

1.2. Theatrum mundi ou o palco do público.

 

Cláudia de Oliveira retoma Bernard Dort para defender a ideia de uma delimitação de fronteiras entre espaços de representação distintos: o dos artistas e o dos espectadores: “De facto, verificamos que os espectadores têm no foyer o espaço de representação para um público imaginário. Se a sala os “bane” da cena, eles encontram nesse recanto do teatro a sua própria cena, onde se “representa” a peça do público (...) através das observações desenvolvidas, tornou‑se explícito que o intervalo retirava ao público o anonimato da sala, devolvendo‑lhe a possibilidade de usar o seu corpo e a palavra”[1104]. Não poderíamos estar mais de acordo, com excepção de um aspecto fundamental: o público‑alvo desta representação “secundária” não é meramente imaginário. É um público real, visível, quase palpável e sujeito a uma avaliação pragmática no contexto de interacção. Os actores que são também o público do seu próprio espectáculo, accionam uma panóplia de rituais e de competências avaliativas, assentes em convenções culturais de apresentação em cena, que lhes permitem, mediante a utilização desses sistemas codificados (linguísticos, gestuais, corporais no sentido mais vasto), fazer referência a signos e valores ausentes da percepção imediata (carácter simbólico da interacção)[1105], que remetem para diferentes posições nos processos de construção social da realidade. Por isso, sem deixar de compartilhar com a representação “primeira” qualidades “lúdicas, ficcionais e ilusórias” o jogo social acarreta, igualmente, consequências reais e objectivas.

As regras de cortesia tradicionais atingem nos intervalos de determinados espectáculos do Rivoli que se realizam no grande auditório (em especial na música e bailado clássicos) a sua expressão mais visível. Nos restantes espaços do teatro municipal, na Praia da Luz e no B Flat a informalidade reinante (embora por vezes estudada) permite a interacção entre artistas e público, aliás muito próximos fisicamente. Há espectáculos no B Flat, em especial quando se toca um tipo de jazz dançável, que levam o público a uma grande exuberância de sinais, batendo palmas sincopadamente com o ritmo. Esta constitui uma forma frequente de recepção activa, apesar de não se manifestar verbalmente, de forma intelectual ou analítica, modalidade frequente através dos comentários e das conversas em comum, em que se desconstrói a pluralidade de conteúdos e de mensagens do espectáculo a que se assistiu, de forma a integrá‑las, depois de “trabalhadas” de acordo com o horizonte de expectativa de cada agente, em modos de percepção estabelecidos que são, eles próprios, objectos de uma acumulação de repertórios e de capital informacional sujeitos a uma constante reprodução interpretativa[1106], de acordo com as novas apropriações perceptivas. De facto, não há mimesis na recepção das obras, tão pouco mera interiorização indiferenciada e mecânica dos seus significados. Tudo depende, a nosso ver, de uma tríade fundamental: a estrutura da obra, o sistema de referências e o projecto cultural do receptor (ou a sua ausência) e o cenário de interacção onde se desenrola a apreensão da mesma. Frequentemente, esta cadeia de interrelações e negociações, traduz‑se corporalmente em estados receptivos exteriorizados e captados pelas grelhas analíticas do investigador. Um cantor de um grupo de blues que salta repentinamente para uma mesa, contaminando a assistência com a sua espontaneidade (calculada?), quebrando e desmistificando (ainda que para a reforçar...) a fronteira que divide artistas e audiência, teria grande probabilidade de ser recebido com entusiasmo no B Flat, como de facto aconteceu, ou no café concerto do Rivoli, mas encontraria barreiras físicas e cognitivas no grande auditório do teatro municipal, onde o próprio conforto reinante convida a uma agradável posição de espectador calmo e corporalmente menos activo.

Esta questão leva‑nos a exprimir uma discordância face às teses ultrapessimistas da teoria crítica de Richard Sennett sobre os comportamentos na esfera pública e semi‑pública. De acordo com este autor, a sociedade íntima destruiu a expressividade na arena pública, já que a moral da autenticidade desenvolve uma relação hostil com a teatralidade dos papéis sociais. Dito de outra forma, as máscaras, as convenções e as regras de relacionamento são consideradas obstáculos ao processo mútuo de auto‑ desvendamento de que nos fala Giddens[1107]. Perde‑se, ainda segundo Sennett, a criatividade existente na distância que existia entre a representação e o self, outrora mais resguardado. Sennett interpreta toda a teoria da interacção desenvolvida por Goffman como um sinal de que os papéis sociais se tornaram meramente acomodativos face à situação[1108]. Todavia, todo o nosso trabalho de observação directa metódica e sistemática permitiu‑nos registar uma grande variedade comportamental associada à componente contextual da representação de papéis em que se mantêm distâncias significativas entre a apresentação em cena e os domínios recônditos do self, bem como uma diversidade assinalável de reacções face à definição da situação.

Serge Collet defende que o espectador é ainda um actor “no momento de circulação das impressões e de julgamentos, de um espectador a outro, de um espectador a um futuro espectador”[1109]. Reencontramos, nesta afirmação, a ênfase que DiMaggio coloca na cultura como motivação para a mobilização grupal e para a interacção colectiva, mesmo que tal se faça com sacrifício dos seus significados intencionais. De facto, registamos centenas de pequenas conversas que ocorriam no intervalo das actuações, ou após o seu fim, transmitindo uma sensação que a nosso ver se aproxima do significado que Eco pretendia com o conceito de “obra aberta”.

 No entanto, as conversas direccionadas para o debate e apreciação do espectáculo são apenas maioritárias no pequeno e grande auditório do Rivoli, reenviando‑nos para um tipo de recepção mais analítica e reflexiva, em que o receptor integra e relaciona várias dimensões, desenvolvendo mesmo a competência de pensar sobre a sua própria percepção[1110]. Geralmente são os espectadores mais familiarizados com o género artístico em questão, que conhecem o percurso dos artistas e que acumulam informação de várias fontes, em particular através da crítica especializada[1111]. No outro oposto do continuum, temos a recepção feita corpo, ao nível da consciência prática e dos juízos estéticos implícitos e não formulados discursivamente: “o espectador está preso ao que percepciona (...) estabelece uma relação mais sentida que conceptualizada entre os diferentes significantes do espectáculo e os seus significados”[1112]. De certa maneira fora deste eixo está a não‑recepção que é, paradoxalmente, um tipo específico de recepção (constitui um registo cognitivo, uma atitude) e que encontra expressão adequada nas várias dezenas de registos de situações de interacção em que os temas de conversa se desviavam totalmente do campo semântico da representação, versando desde as insinuações sexuais mais ou menos subtis (público adolescente da Praia da Luz); os comentários cosmopolitas e mundanos sobre destinos de viagens (jovens adultos quer do B Flat, quer da Praia da Luz[1113]); futebol (Praia da Luz, adolescentes); percursos escolares (estudantes universitários, comum aos três espaços); gastronomia requintada (adultos, B Flat); avaliações do grau de diversão da noite anterior (Praia da Luz, adolescentes e jovens adultos); apreciações sobre pessoas ausentes (comum aos três espaços e a todas as faixas etárias); etc.

Em suma, nos “palcos” em que os espectadores se tornam actores, antes mesmo de analisar o tipo de recepção em eixos que podem ir da percepção imediata/espontânea, à percepção analítica ou percepção do “esteta” ou do “sábio” à da “gente comum”[1114], ou ainda da percepção intelectual à percepção corporal/sensual[1115], importa considerar o projecto cultural dos agentes em questão. Dito de outra forma, urge conhecer a constelação e hierarquia de motivos que os levam a estar presentes num determinado local para assistir a um determinado espectáculo: razões intrínsecas ao mesmo (qualidade, curiosidade, familiarização preexistente, etc.)?; impulso convivial, no quadro de uma ética de diversão?; desejo de distinção e reconhecimento social?; vontade de “aprender” com o contacto com a obra e os artistas, compensando um défice de formação cultural?; querer estar na moda e manter‑se actualizado?; atracção pelo cenário onde decorre o espectáculo; combinações entre estes e outros possíveis motivos?

O Quadro LXX fornece‑nos algumas pistas a esse respeito. Com efeito, a escolha de um dos três locais em análise, como se pode constatar, obedece, antes de mais (22.2%, se não contarmos com os inquiridos que assinalam vários elementos) a factores extrínsecos ao próprio lugar e que têm a ver com as redes de sociabilidade, o que confirma pistas interpretativas lançadas em capítulos anteriores. Seguem‑se as dimensões intrínsecas ao espaço em questão e apenas em terceiro lugar as motivações ligadas à aprendizagem e fruição culturais. Ou seja, muitas das pessoas que frequentam os locais de espectáculo fazem‑no também por outras razões que não as directamente ligadas à sua vocação principal (com excepção da Praia da Luz, onde as apresentações culturais aparecem como reforço da função principal de bar/restaurante/esplanada). Podemos mesmo considerar que o peso relativo dos “activistas culturais” é reduzido e minoritário. Por outras palavras, os usos dos locais de cultura não se cingem às utilizações culturais no seu sentido mais estrito e denunciam, igualmente, uma recomposição profunda do campo cultural e das suas práticas.

Quadro LXX - Factores predominantes para a presença no local por capital escolar de ego

 

Capital Escolar de Ego

Factores Predominantes para a presença no local

Baixo

N=24

(5,4%)

Médio

N=99

(22,5%)

Alto

N=318

(72,1%)

 

Factores Intrínsecos

N=82

(18,6%)

 

8,3

 

15,2

 

20,4

 

Factores Extrínsecos de Sociabilidade

N=98

(22,2%)

 

12,5

 

38,4

 

17,9

 

Factores Extrínsecos de Cultura de Saídas

N=57

(12,9%)

 

25,0

 

13,1

 

11,9

 

Factores Extrínsecos de Aprendizagem e Fruição Cultural

N=69

(15,6%)

 

29,2

 

12,1

 

15,7

 

Factores Vários

N=135

(30,6%)

 

25,0

 

21,2

 

34,0

 

 

 

2. Recepção cultural e horizonte de expectativa.

 

Se analisarmos o Quadro LXXI constatamos que o espectáculo a que os inquiridos acabaram de assistir apenas frustrou as expectativas para uma minoria. Para a maior parte dos indivíduos que possuem um médio ou alto capital escolar, as expectativas foram correspondidas e para um número significativo, ainda que menor, a exibição excedeu as expectativas. Aliás, o mesmo aconteceu para a maioria dos inquiridos com um baixo capital escolar.

Algumas ilações podem ser retiradas a partir destes resultados. Por um lado, a relativa adequação mútua entre o espectáculo e as expectativas criadas a seu respeito. Tal poderá indicar um grau elevado de familiarização com o género em questão, os códigos utilizados, a interpretação dos artistas ou o seu percurso. Não há grande margem de manobra para surpresas, sejam elas agradáveis ou decepcionantes. A recepção actua no horizonte de uma certa previsibilidade.

Quadro LXXI - Opinião sobre o espectáculo por capital escolar de ego

 

Capital Escolar de Ego

 

Opinião sobre o Espectáculo

Baixo

N=20

(5,1%)

Médio

N=84

(21,4%)

Alto

N=289

(73,5%)

 

Excedeu Expectativas

N=139

(35,4%)

 

70,0

 

35,7

 

32,9

 

Correspondeu às Expectativas

N=199

(50,6%)

 

25,0

 

47,6

 

53,3

 

Frustrou as Expectativas

N=40

(10,2%)

 

5,0

 

15,5

 

9,0

 

Outra Resposta

N=15

(3,8%)

 

 

1,2

 

4,8

 

 

Como o próprio Jauss refere, a recepção está em boa parte inscrita na própria obra e na relação que o receptor estabelece com as obras antecedentes. Starobinski acentua este aspecto, ao sublinhar que “que uma obra (...) não se apresenta como uma novidade absoluta surgindo num deserto de informação (...) o novo texto evoca para o leitor (ou auditor) o horizonte de expectativas e de regras do jogo com o qual os textos anteriores o familiarizaram”[1116]. Esta, no entanto, não esgota o campo de possíveis da recepção. Repare‑se que, para a maior parte dos inquiridos com baixo capital escolar, as expectativas foram ultrapassadas pela positiva. Provavelmente estes inquiridos “usufruem” de uma maior liberdade e indeterminação interpretativas na medida em que foram menos colonizados e socializados pelas regras legítimas do jogo receptivo. Estas hipóteses compreensivas não invalidam, bem entendido, que no conjunto dos que não foram “surpreendidos” pela representação não coexistam atitudes receptivas heterogéneas. O julgamento estético e a apropriação activa da obra, mesmo actuando num sistema de referências ou guião preestabelecidos relativamente rígido, não são isentos de novidade e modificação.

Conhece‑se a este respeito o critério de qualidade estabelecido por Jauss. Sempre que a obra confirma um determinado horizonte de expectativa, ela aproxima‑se da “arte culinária”, que preenche essencialmente funções de “simples divertimento”[1117]. Pelo contrário, existindo um desvio ou hiato entre o horizonte de expectativa do receptor e a obra, abre‑se o espaço à inovação e à “mudança de horizonte”, característica seminal do artístico.

Ora, seguindo à letra estes critérios, poderíamos um tanto ou quanto apressadamente pensar que a maior parte dos inquiridos com médio e alto capital escolar se confronta com um tipo de arte que cumpre perfeitamente “a expectativa suscitada pelas orientações do gosto dominante, satisfaz o desejo de ver o belo reproduzido sob formas familiares, confirma a sensibilidade nos seus hábitos”[1118]. E no entanto Jauss pensa fundamentalmente na sociedade do espectáculo, aquela que “serve o «sensacional» sob a forma de experiências estranhas à vida quotidiana (...) ou então levanta problemas morais — mas apenas para os «resolver» no sentido mais edificante”[1119].

Se aqui levantamos este paradoxo foi com a intenção de colocarmos em evidência algumas das ambiguidades que a proposta de Jauss acarreta. Não só a dicotomia “arte culinária”/”verdadeira arte”[1120] se revela reducionista como, para fazer sentido, deve ser aplicada às formas de recepção competente da “arte legítima”, por parte de “públicos legítimos”. Por outras palavras, se estes vêem mais ou menos confortavelmente (re)confirmado o seu “horizonte de expectativa”, então estamos em presença de uma atitude receptiva que aponta para a presença de uma “arte culinária”, mesmo que se trate de uma obra que joga com as disposições cultivadas (herdadas e/ou adquiridas em diferentes níveis de aprendizagem e socialização) de determinadas audiências. Neste mesmo sentido, os inquiridos que são surpreendidos pelo espectáculo (e que são maioritários, convém não esquecê‑lo, entre os que possuem apenas um baixo capital escolar) constituem supostamente o núcleo que experimentou novas experiências estéticas, reconfigurando o seu sistema de referências.

A grande vantagem da teoria da recepção de Jauss reside, a nosso ver, na síntese que efectua entre as correntes que defendem a irredutibilidade do estético a qualquer coordenada político‑ideológica ou histórico‑social (defendendo que as questões estéticas essenciais são de todos os tempos e espaços) e as que recusam a existência do valor estético em absoluto, apoiando‑se no relativismo cultural e sociológico. De facto, o conceito de horizonte de expectativa reconcilia a história da arte com as histórias de vida dos agentes sociais mas, ao mesmo tempo, postula um critério de validade artística, ao distanciar a Arte “com maiúscula” da frugal e banal “arte culinária”. E se é verdade que as apreciações estéticas (do especialista ou do leigo mais ou menos “competente”) são histórica e culturalmente contigentes, não podemos expulsar o problema do valor do campo da discussão (voltaremos a esta questão no último capítulo).

De qualquer forma, em termos de eficácia da pesquisa científica, somos levados a concordar com Nathalie Heinich quando a autora refere que a questão crucial em termos de análise da percepção estética é: “O que vê quem? O que vêem aqueles que vão ver, e em que condições o que eles vêem (o que entendem, ou sentem, ou tocam) é por eles apreendido em termos de beleza ou ausência de beleza?”[1121]. Neste âmbito, nesta aproximação à percepção estética da gente comum, não pode haver qualquer cedência a critérios ou julgamentos de valor sobre a qualidade das obras. Tão pouco podemos aferir da qualidade das obras pela qualidade dos públicos e vice‑versa.

 

3. Representações sociais da recepção.

 

Atente‑se no Quadro LXXII. Aparentemente ao contrário do que anteriormente constatámos (veja‑se, por exemplo, o Quadro LXX e os comentários que tecemos a seu respeito), a esmagadora maioria dos inquiridos declara que as principais ideias e impressões que lhes foram transmitidas pelo espectáculo a que assistiram se relacionam com características intrínsecas ao espectáculo[1122], próprias de uma apreciação mais cuidada, intelectual e analítica, ao contrário da primeira categoria que se associa claramente a uma dimensão emocional e vivida.

Como explicar tal disparidade? A nosso ver, ela pode residir numa definição “defensiva” de identidade face ao objecto “legítimo” de recolha de informação que é o inquérito por questionário. Ou seja, tendo subjacente ou presente a imagem ideal de si projectada pelas suas representações sobre o espectáculo, poderá ter havido uma crença amplamente partilhada, ainda que a níveis pouco conscientes da acção, de que a revelação de estados emotivos totalmente subjectivos (“fez‑me sentir bem”; “causou‑me incómodo e terror”, etc.) seria um “atestado” de incompetência receptiva que a si mesmos passariam; por outras palavras, constituiria uma confissão involuntária de actos receptivos pouco elaborados, ingénuos, rudes. E se a incompetência cultural destes públicos, como anteriormente registámos, é, em termos dos códigos e referências da “cultura legítima”, relativamente baixa, nada nos garante que ignorem o seu nível de ignorância. Ou seja, enquanto frequentadores de espaços de fruição de cultura, inseridos em redes vastas de sociabilidade, é‑lhes exigido o domínio de um mínimo denominador comum cultural que sustente repertórios suficientemente ágeis, ainda que superficiais.

Quadro LXXII - Ideias e impressões do espectáculo por capital escolar de ego

 

Capital Escolar de Ego

 

Ideias/Impressões do Espectáculo

Baixo

N=13

(5,1%)

Médio

N=46

(18,0%)

Alto

N=197

(76,9%)

 

Apropriação Pessoal do Espectáculo

N=63

(24,6%)

 

7,7

 

6,5

 

29,9

 

Características Intrínsecas ao Espectáculo

N=193

(75,4%)

 

92,3

 

95,5

 

70,1

 

 

Estaremos assim eventualmente em presença de processos sócio‑cognitivos de auto‑categorização social em que o domínio, ainda que aparente, de competências culturais se revela central na reflexividade associada à definição de uma identidade real e/ou imaginária. Como sustenta Jorge Vala, “a identidade social pode ser concebida como decorrendo da resposta que os indivíduos se dão à interrogação seguinte: «Quem sou eu?» (...) é provável que uma parte da resposta a esta questão provenha de uma associação entre o eu e diversas categorias sociais. Este processo de associação do eu a uma categoria social (...) e a identidade que dele decorre são determinados tanto por factores sócio‑estruturais como por fenómenos de comunicação, de aprendizagem e de reflexividade”[1123].

É certo que, para alguns, um público não chega a ser um grupo social[1124], mas em “situação de comunicação” falam uma “linguagem comum” e é essa linguagem que faz dele “uma estrutura social, ainda que muito amorfa”[1125]. Veja‑se o Quadro LXXIII.

Quadro LXXIII - Razões de sustentação  da opinião sobre o espectáculo por capital escolar de ego

 

Capital Escolar de Ego

Razões de sustentação da opinião sobre o espectáculo

Baixo

N=15

(5,6%)

Médio

N=54

(20,1%)

Alto

N=200

(74,3%)

 

Conhecimento pessoal da obra/género

N=59

(21,9%)

 

20,0

 

22,2

 

22,0

 

Qualidade do Espectáculo

N=124

(46,1%)

 

66,7

 

53,7

 

42,5

 

Qualidade da Interpretação/Execução

N=82

(30,5%)

 

13,3

 

24,1

 

33,5

 

Apropriação Pessoal do Espectáculo e da Interpretação

N=4

(1,5%)

 

 

 

2,0

 

 

Uma vez mais os inquiridos respondem maioritariamente (e com um peso relativo que se torna mais elevado em razão inversa ao capital escolar) que o essencial para justificarem o grau de adequação do espectáculo a que assistiram face às suas expectativas é a qualidade intrínseca do próprio espectáculo. As razões relativas à qualidade da interpretação e execução da obra (uma dimensão particular da qualidade global da representação) aparecem a seguir. A apropriação pessoal do espectáculo tem um valor insignificante. Ou seja, somos levados a pensar que a apropriação dominante é de tipo estético, embora possamos falar desta categoria em sentido amplo. Com efeito, como refere Russell Belk, opondo a recepção estética à recepção propriamente artística, “a apreciação estética de um obra não requer nem o conhecimento do seu contexto histórico, nem informações sobre outras obras, enquanto que uma apreciação artística ou própria da história de arte se funda sobre um tal saber, em vez de se referir unicamente às características físicas, intrínsecas da obra”[1126]. Esta concepção permite‑nos, uma vez mais, aproximar a análise das atitudes perceptivas “leigas”, rejeitando qualquer tipo de etnocentrismo epistemológico. O que nos causa perplexidade, no entanto, levando‑nos a falar de um efeito de construção de imagem com intuitos comunicativos é a tão fraca ênfase colocada nos estilos cognitivos, ou seja, nas capacidades individuais de tratamento da informação[1127], em favor de uma aparente descodificação da estrutura da obra, o que, para além de se desligar de uma componente afectiva, nos remete para processos de familiarização com a educação artística. O que, aliás, surge contraditoriamente face a outras respostas, em que as motivações ligadas à sociabilidade apareciam, com excepção de um segmento minoritário, como a dimensão mais significativa de organização das saídas culturais.

As teses de DiMaggio podem, de novo, fornecer‑nos esclarecimentos adicionais. Se o interesse pela “alta cultura”, enquanto tema de conversa, favorece as interacções em grupos de status privilegiados, canalizando, inclusivamente, aspirações de mobilidade social, uma vez mais a construção de uma fachada relativamente frágil de adesão a essas expressões culturais se coaduna com tais expectativas.

Em suma, a aproximação a um conjunto de representações sociais da recepção contribui para a elaboração reflexiva de um conceito de self (simultaneamente real, ideal e social[1128]), ao mesmo tempo orientado para si (auto‑identificação) e para os outros (componente relacional). Os usos da recepção não são por isso neutros, obedecem ao valor de signo dos consumos culturais e aos interesses do e no jogo social. O mais curioso nestas representações consiste no afastamento face aos estereótipos da doxa pós‑moderna de um consumo socialmente descentrado e desinteressado, puramente hedonista, fragmentado, por vezes esquizofrénico, assente numa desordem de significantes e sustentado pela emoção e afectividade efémeras de quem pretende unir arte e vida. A recepção dominante revela, pelo contrário, um entendimento surpreendentemente “estável” e coerente das produções culturais, tomando‑as como objectos analisados intrinsecamente e não a partir de estados flutuantes de espírito.

 

4.   Televisão e fast thinking.

 

Vários correntes e autores têm vindo a alertar para a necessidade de não analisarmos a exposição aos mass media e em particular à televisão sem considerar o efeito de filtragem de instâncias mediadoras, como a família, os amigos e outros círculos sociais. A própria noção de horizonte de expectativa pode ser aplicada a este domínio, de forma a realçar a importância do património cultural, vivencial e cognitivo dos receptores como variáveis activamente implicadas nos processos de recepção e descodificação da mensagem televisiva. Esta perspectiva contraria a visão largamente difundida que atribui aos mass media um impacto directo sobre a forma como as pessoas fabricam e imaginam o mundo social. Pierre Bourdieu resvala para esta posição dramático‑fatalista ao considerar, por exemplo, que “a televisão tem uma espécie de monopólio de facto sobre a formação dos cérebros de uma parte muito importante da população”[1129], acentuando o seu potencial de “opressão simbólica” que preenche “o tempo raro com vazio, com nada ou quase‑nada”[1130], Bourdieu sugere a universos orwellianos “em que o mundo social é descrito‑prescrito pela televisão, em que esta se transforma no árbitro do acesso à existência social e política”[1131].

 

Observemos, no entanto, o Quadro LXXIV.

 

Quadro LXXIV - Comenta programas de TV por capital escolar de ego

 

 

Capital Escolar de Ego

Comenta Programas de TV com Colegas ou Amigos?

Baixo

N=29

(5,8%)

Médio

N=105

(21,1%)

Alto

N=364

(73,1%)

 

Sim

N=452

(90,8%)

 

96,6

 

93,3

 

89,6

 

Não

N=46

(9,2%)

 

3,4

 

6,7

 

10,4

 

 

 

 A esmagadora maioria dos inquiridos comenta habitualmente os programas televisivos com colegas ou amigos, independentemente do nível de capital escolar que possui. Quais as razões que justificam, segundo os inquiridos, este comportamento tão claramente registado? De acordo com o Quadro LXXV, a resposta reside na capacidade de criticar os conteúdos da programação, sujeita igualmente a debate e troca de impressões.

Quadro LXXV - Razões por que comenta programas de TV por capital escolar de ego

 

Capital Escolar de Ego

Razões da Resposta à questão: Comenta Programas de TV com Colegas ou Amigos?

Baixo

N=6

(2,2%)

Médio

N=56

(20,9%)

Alto

N=206

(76,9%)

 

Troca de Impressões Sobre Programas

N=14

(5,2%)

 

16,7

 

3,6

 

5,3

 

Atenção à Vida Política e Económica

N=4

(1,5%)

 

 

 

 

1,9

 

Crítica dos Programas

N=66

(24,6%)

 

 

26,8

 

24,8

 

Dialogar/Trocar Opiniões

N=31

(11,6%)

 

 

14,3

 

11,2

 

Não Sabe/Não Responde

N=104

(38,8%)

 

83,3

 

41,1

 

36,9

 

Outras Respostas

N=49

(18,3%)

 

 

14,3

 

19,9

 

 

 

            O ofício de recepção prolonga‑se, assim, para além do momento imediato de apropriação, (re)trabalhando a mensagem inicial, corrigindo‑a, acrescentando‑lhe novos contornos, assimilando selectivamente conteúdos. Certamente que a hipótese de uma reprodução acrítica e passiva não pode ser posta de lado, em particular se pensarmos nos mais desapossados de capital cultural e socialmente isolados. A nossa amostra, convém uma vez mais referi‑lo, é extremamente singular, contendo uma notória sobrerepresentação das camadas sociais mais favorecidas. Contudo, não podemos negligenciar os mecanismos micro‑sociais de influência, de índole intragrupal, em particular quando as mensagens não são unívocas, transmitindo vários significados possíveis. Como refere Robert Francès, “a passagem a uma situação de grupo acarreta pouco a pouco um aumento importante do número de respostas dos indivíduos, suscitando interpretações que superam a banalidade”[1132]. O mesmo autor acrescenta, mostrando a importância das redes de sociabilidade que “a influência micro‑social sobre a percepção é mais intensa quando a vida em grupo é feita de trocas e de interacções entre os seus membros”[1133]. Aliás, ao verificarmos, com mais pormenor, o significado das categorias contidas no quadro anterior, deparamos com respostas como “crítica à programação”, “crítica à falta de qualidade”, “debate/troca de ideias/discussão/comentários”, “atenção à vida política e económica”, etc., sugerindo uma atitude activa de negociação de significados.

Claro que isto não significa que sejamos ingénuos ao ponto de negarmos um efectivo poder de manipulação e “opressão simbólica”, através de um trabalho técnico‑político de bastidores que selecciona conteúdos (implicando mecanismos mais ou menos voluntários de censura) e constrói realidades fictícias e fantasiosas. Diana Crane, por exemplo, fala de uma subrepresentação dos trabalhadores manuais nos programas televisivos e de uma sobrerepresentação das profissões liberais e empresariais, a par de uma forte tendência para a produção de conteúdos reconfortantes e uma fraca inclinação à promoção do risco e da novidade[1134]. No entanto, a mesma autora salienta as diferentes formas de “ver” televisão, ao mesmo tempo que sublinha as dificuldades das grandes sistemas organizacionais ligados à comunicação de massas em percepcionar correctamente as suas audiências, factor que os leva frequentemente a errar o “alvo” quanto ao perfil‑tipo dos potenciais destinatários. Além do mais, contrariamente à visão extremamente negativa que Bourdieu revela sobre os novos intermediários culturais, em particular sobre os profissionais da comunicação, importa reintroduzir uma perspectiva conflitual que exprima os conflitos de interesses e a ambivalência do campo mediático (e as diferenças internas às novas classes), onde se confrontam e cruzam lógicas diferentes, não se podendo erradicar, a priori a possibilidade de expressão de mundividências emancipadoras.

O grande contributo do estudo dos usos da cultura e das formas da recepção é, precisamente, o de restituir a um objecto a sua multiplicidade, o seu cariz plurívoco e conflitual, a sua íntima associação às novas formas mediadoras de pensar e dizer o social.

CAPÍTULO XIII

DOZE CONCLUSÕES PARA UMA TESE

 

Gatinho Cheshire começou Alice, timidamente (...) Diga‑me, por favor, a partir daqui, que caminho é que devo seguir?

Isso depende bastante do sítio para onde queres ir respondeu o Gato.

Pouco me importa para onde — disse Alice.

Então não tem importância para que lado vais disse o Gato.

Contanto que vá dar a qualquer parte acrescentou Alice, explicando‑se melhor.

Ah, isso é que vais, de certeza disse o Gato , se andares o suficiente...”

Lewis Carroll, Alice no País das Maravilhas

 

            1. Doze conclusões.

 

            1.1. Uma das conclusões mais marcantes tem a ver com o alto grau de juvenilidade da amostra, intimamente associada a grupos etários que, usufruindo também de um estado civil liberto de compromissos familiares, possuem objectivamente maior disponibilidade temporal para uma cultura de saídas relativamente intensa. Prolongamento da escolaridade, dificuldade de ingresso no mercado de trabalho, multiplicação dos estatutos híbridos, intermitentes e precários, adiamento da formalização do laço conjugal, constituem peças interligadas de um mosaico em que sobressai a dilatação do período de moratória que torna os jovens de certa forma prisioneiros de um eterno estado de passagem. A gestão do provisório passa, assim, por investimentos preferenciais no domínio do lazer, com importantes consequências na configuração das identidades tendencialmente desligadas da esfera do trabalho, da vizinhança e do parentesco e orientadas para a fruição da vida quotidiana, em estilos que se traduzem por graus diferenciados de informalização, altos níveis de consumo e por um individualismo de tipo relacional, convivial ou mesmo festivo. São igualmente constituídos por jovens os grupos relativamente restritos que demonstram, pela sua adesão a um consumo ostentatório e a uma ética corporal de apresentação em cena, a vontade de transgredir as fronteiras entre vida e arte, através de um novo projecto de dandismo, assente em estilos de consumo distintivos. Dissimulando o valor de uso dos bens, transformados em signos, a especificidade destes estilos juvenis seria jogada numa espécie de “racionalidade expressiva” que aposta tudo na comunicação[1135] e na complexificação simbólica, mediantes processos de “colagem”, “importação‑exportação”, descontextualização e recontextualização de estilos e mestiçagens várias. Perante o argumento de que a estilização da vida (ou mesmo, segundo alguns, o triunfo da arte sobre a vida) e a implantação de uma ordem artificial baseada no consumo são fenómenos historicamente recorrentes, contrapõe‑se a generalização actual de tais atitudes e comportamentos.

            Todavia, não foi esse o grau de difusão que encontrámos. Com efeito, tais grupos, como já referimos, não só se revelaram numericamente restritos, como dominavam apenas pequenas regiões no interior dos espaços que analisámos. Era notória, em várias ocasiões, a sua proximidade e familiaridade com os artistas, o que nos leva a dizer que se trataria, de acordo com a terminologia de Diana Crane (inspirada em Becker) de um tipo particular de Culture World: um trabalho artístico orientado em rede, dotado de um relativo fechamento (Network‑oriented/isolated network[1136]), caracterizado, precisamente, por uma grande familiaridade entre artistas e consumidores, com a assimilação comum de convenções culturais iconoclastas, experimentais ou emergentes, tal como aconteceu na Praia da Luz e no Café‑Concerto do Rivoli, formando um estilo singular.

            Na maior parte dos casos, porém, a presença juvenil orienta‑se, em termos de apresentação pública, por uma certa uniformidade informal, ligada à própria estrutura do consumo cultural nos cenários de interacção, num descomprometimento aparente face a qualquer narrativa da vida quotidiana de contornos excepcionais ou extraordinários, como de certa forma se verificava nos pequenos grupos anteriormente referidos. Dominam, assim, as imagens próprias de rotinas conviviais reproduzidas no dia‑a‑dia, em vez da heroicização dos aventureiros de espírito e de estilo das anti‑narrativas pós‑modernas[1137].

 

            1.2. Verifica‑se a existência de uma especificidade ou tipicidade juvenil, embora internamente diferenciada entre públicos adolescentes e pós‑adolescentes. Os primeiros aderem tendencialmente mais às práticas de abandono, ligadas, de novo, a um quotidiano de pequenas narrativas aparentemente sem história, mas enunciadoras de um espaço‑tempo difuso e distanciado de enquadramentos institucionais. São igualmente praticantes assíduos do espaço semi‑público, em particular na sua vertente convivial e expressiva, enquanto eventual possibilidade de “fuga” ao controle endodomiciliar (acentuado pelo seu estatuto de grande dependência económica face à família) e de experimentação de novos cenários de interacção, num processo paralelo (e de mútuo reforço) ao aumento da oferta urbana de lazer. Por outro lado, os segundos aderem mais às práticas receptivas semi‑públicas, bem como às iniciativas eruditas de cariz informativo, o que sublinha a existência de um patamar etário mínimo de recrutamento para actividades que exigem a acumulação de um certo volume de capital informacional e cultural. Da mesma forma, exigem ritmos desiguais de envelhecimento cultural. Este afigura‑se mais precoce no campo das práticas criativas, favorecidas quando existe uma maior disponibilidade de tempo, como é o caso dos adolescentes. Poder‑se‑á ainda pensar que tais actividades serão enquadradas e/ou motivadas por actividades paraescolares (como as que a autarquia tem vindo a desenvolver nas áreas da criação e formação de públicos) e ainda por uma necessidade de expressão de todo o trabalho de construção das identidades e de conquista de autonomia, factor central para quem se encontra envolvido em prolongados rituais de passagem.

 

            1.3. Essa tipicidade juvenil encontra ainda prolongamento numa particular estruturação e orientação dos universos e mapas simbólicos. De facto, as faixas mais jovens demonstram uma menor adesão às referências “clássicas” ou “patrimoniais”, fruto de um mínimo denominador comum “oficial”, prescrito e difundido pelas instâncias formais de ensino, com alianças mais ou menos espúrias na globalidade dos discursos e aparelhos ideológicos tradicionais. Esta tendência, tantas vezes associada a uma representação mortificadora do “declínio cultural e civilizacional”, não significa tanto um “nivelamento por baixo”, mas muito mais uma profunda mutação sócio‑cultural, ligada à mercantilização (em grau diferencial) das várias franjas do campo cultural e artístico (doravante colocado no centro da economia política do capitalismo tardio da ordem mundial pós‑fordista) e à emergência nesse campo de novas expressões que seguem vias alternativas de consagração e legitimação, algumas estreitamente ligadas à cultura audiovisual e ao que Donnat apelida de economia mediático‑publicitária. Por outro lado, a própria instituição escolar não escapa ao cerne da discussão, na medida em que os novos universos culturais se distanciam visivelmente (não de forma meramente dissimulada, tão‑pouco com a consciência minoritária de um qualquer movimento contra‑cultural) da norma escolar, colocando em cheque currículos, práticas pedagógicas e políticas educativas. Além do mais, não parece desprovido de sentido falar de um efeito‑família, já que, numa sociedade como a portuguesa, em que o processo de massificação escolar é tardio e ainda incompleto, boa parte das aquisições obtidas em sede escolar correm o risco de se diluir em meios sociais distantes e pouco confiantes face à validade e utilidade da cultura escolar. Finalmente, importa ter em consideração a importância das redes de sociabilidade e dos grupos de pares, em boa parte responsáveis pela relativa invasão juvenil do espaço semi‑público não erudito, enquanto agentes de rápida circulação de valores e informação exterior à família e à escola, amortizando a acção pedagógica dos grupos de pertença, das instituições e das organizações associativas e propagando uma normativa e uma simbólica do informal, do difuso, do individual relacional, da autoexpressão, da autorealização e da multiplicação/fragmentação de referências.

 

            1.4. A diferença de possibilidades de acção consoante o género encontra‑se bem patente no desigual acesso ao espaço público e ao espaço semi‑público organizado. De facto, as mulheres encontram‑se relativamente mais arredadas da esfera onde a opinião pública se forma, se veicula e se controla, bem como da acção colectiva organizada, própria do movimento associativo. Dito de outra forma, as mulheres sofrem um défice de cidadania e de participação nos quadros de mediação e regulamentação normativa, o que significa, igualmente, um défice na utilização dos mecanismos comunicacionais que permitem a representação dos seus interesses específicos e a discussão e o questionamento da ordem oficial. Ultrapassada a barreira da escolaridade, vencido o desafio da entrada no mercado de trabalho, resta ainda o muro que impede a expressão legítima de uma identidade de género e de uma pluralidade de estilos de vida que lhe estão associados. A política da vida, sugerida por Giddens, símbolo da superestrutura de valores da modernidade tardia, necessita do complemento activo das políticas emancipadoras, estandarte de uma modernidade inacabada.

 

            1.5. Existe uma certa homologia entre o perfil dos espaços que estudamos e o tipo de públicos que os frequentam. Contudo, sob essa relação de correspondência, afirmam‑se lógicas de transgressão de fronteiras e hierarquias simbólicas. Os espaços possuem um cariz híbrido e multifuncional, ora na estrutura da sua programação cultural; ora na sua configuração física, enquanto cenários de interacção internamente regionalizados; ora ainda pela pluralidade de funções que desempenham. Especifiquemos: o B Flat, apesar de se dedicar a um género musical consagrado (o jazz), procura diversificar a sua oferta através da exploração criativa de cruzamentos com outros géneros musicais (os ritmos latino‑americanos, o rock, o techno, etc.), ao mesmo tempo que funciona como sala de espectáculos e bar; o Rivoli, espaço plurifacetado, oferece desde repertórios clássicos até projectos iconoclastas de contracultura, assegurando igualmente funções de representação simbólica, lazer e diversão; a Praia da Luz, finalmente, é esplanada, bar e restaurante e consolida a sua clientela com expressões de novas tendências no campo cultural.

            Todavia, a homologia relativa existe. A identidade específica do B Flat remete‑nos para públicos predominante adultos que gerem a sua apresentação em cena de forma intencionalmente informal e desprovida de signos de consumo ostentatório, como que a reforçar a sua concentração na percepção intelectual do espectáculo. O seu perfil liga‑se de igual forma a uma elevada selectividade social, traduzida por altos níveis de capital escolar.

            O Rivoli, dada a sua assumida pluralidade, é um compósito de subidentidades e de subculturas. No entanto, não exageraremos se afirmarmos que sobressai a ligação à cultura “erudita”, quer de feição clássica e consagrada, quer de referências contemporâneas estabilizadas, quer ainda de tipo experimental, em vias de consagração. Ressalta, ainda, o aparato simbólico necessário a um campo cultural local em vias de expansão, bem como o cerimonial e a ritualização de uma instituição ligada ao poder.

            A Praia da Luz, por fim, é o reino dos adolescentes privilegiados, muitos deles acumulando “heranças”, outros recém‑chegados, o que nos leva a falar de um fechamento social relativo. Esta jeunesse dorée afastada dos referenciais clássicos e atenta à celebração de novas formas de expressão, apresenta‑se predominantemente dentro de estilos informais e desportivos, embora “elegantes”, o que de certa forma traduz disposições de uma ética hedonista relativamente contida. Destacam‑se algumas “tribos” que fazem da transformação da vida numa obra de arte o seu passaporte simbólico de entrada num universo que em nada se identifica com as disposições ascéticas descritas por Weber e que, de uma forma difusa e provavelmente inconsequente, traduzem o desejo de inverter o desencantamento de um mundo secularizado, racionalizado e burocratizado.

 

            1.6. Uma homologia imperfeita está subjacente na diversidade das trajectórias da amostra analisada, reflectindo combinações díspares da “componente clássica” e “moderna” do capital escolar, complexificando as relações outrora mais transparentes entre classes sociais e classes simbólicas, ou, se preferirmos, entre condições objectivas inscritas na posição ocupada e práticas sociais. Dito de outra forma, a alta mobilidade intergeracional revelada em particular através de trajectórias ascendentes que partem de estratos baixos e médios, contribui, apesar de uma alta capacidade de retenção das classes privilegiadas, para a coexistência, entre os detentores do capital cultural institucionalizado, de relações relativamente desordenadas e dispersas com os universos de gosto.

            Prova disso é o alto grau de incompetência cultural no sentido estrito, bourdiano do termo. De facto, com a excepção de uma elite dentro da elite que mantém uma postura de “familiaridade estatutária” com a “alta cultura”, revelam‑se, de forma quase transversal, elevados níveis de desconhecimento e/ou falta de identificação com os cânones da cultura clássica consagrada. O título não só não se transforma em posto, como, pelo estudo que nos ocupa, não assegura, através de qualquer quase‑automatismo, um estatuto de nobreza cultural. Caído o pano sob o mito da escolaridade como condição suficiente para o acesso à cultura cultivada, talvez se compreenda, com acréscimo de lucidez, que, entretanto, essa cultura, tal como era concebida, deixou de existir para uma grande maioria dos diplomados, ou então tornou‑se apenas uma de muitas possibilidades de fruição cultural, num alargamento efectivo do mercado cultural. Transcrevendo o que anteriormente escrevemos, “haverá maior probabilidade de complementaridade e/ou choque entre dimensões contraditórias das condições objectivas de existência, associadas a uma diversificação das vias e conteúdos de aprendizagem social e, consequentemente, dos percursos de acesso a uma determinada posição na estrutura social. Ou seja, as homologias tenderão a ser menos rígidas e unívocas e haverá a probabilidade de se cruzarem níveis diferentes de legitimidade cultural”. O que, bem entendido, se nos permite falar da necessidade de plasticização do conceito de habitus, complementando‑o com a pluralização dos papéis sociais e dos códigos e repertórios que lhes estão associados, não nos confere, de forma alguma, o direito de defender o fim da estrutura social e a morte das classes, apesar da sua recomposição e mutação.

 

            1.7. As redes de sociabilidade extensas, densas nas interacções que proporcionam, apesar de se basearem em laços pouco intensos, são características de agentes sociais com posicionamentos privilegiados na estrutura social, como é o caso de boa parte da nossa amostra. Desta forma, consolidam‑se como instâncias de mediação entre o “espaço pessoal” ou “ambiente social imediato” dos agentes, os seus círculos sociais e os contextos estruturais mais vastos onde se movimentam, permitindo‑lhes, através das regras de uma economia afectiva de intercâmbio, uma rápida circulação e actualização da informação. Assim, a probabilidade de modernização permanente do seu capital cultural afigura‑se elevada, facilitando, deste modo, o alargamento de repertórios e o contacto com teias complexas de papéis sociais, extremamente diversificados, inclusivamente para a mesma pessoa.

            De facto, sai‑se principalmente à noite com amigos e a seu convite, em especial quando se é jovem e solteiro. O compromisso conjugal significa, a maior parte das vezes, uma enorme restrição na disponibilidade para sair, sendo encarado por muitos autores como o “fim da juventude”. De igual modo, o divórcio, quando não é imediatamente seguido de uma recomposição familiar, possibilita a recuperação mais ou menos provisória da condição juvenil que, desta forma, cada vez se associa menos a uma idade particular. Aliás, as representações da noite estruturam‑se em torno do eixo amigos/diversão, o que acentua a dimensão mundana e convivial da fruição cultural, e a sua importância como núcleo de mobilização e consolidação de redes sociais que se expandem tentacularmente a diversos contextos de interacção, obtendo‑se, dessa forma, inúmeras vantagens e benefícios sociais que reforçam e motivam trajectórias sociais ascendentes (os “laços sociais fracos” em termos de intensidade do vínculo, são os laços mais “ricos” em termos de recursos e capitais).

            Assim, apenas uma minoria relativamente escassa organiza as suas saídas culturais em função da familiaridade com as referências e os conteúdos intrínsecos de um determinado campo cultural. A centralidade das redes de sociabilidade na definição dos modelos dominantes de consumo cultural propicia uma legitimação de vários universos de gosto e das múltiplas formas pelas quais se cruzam, permitindo que ancestrais fronteiras se des‑sacralizem e des‑ritualizem. Ao mesmo tempo, e dado não existir uma concentração exclusiva num único género, esfera ou nível cultural, aumenta a tendência para um conhecimento superficial, embora ágil, de cada sistema de referências. Na mesma linha, poderemos falar de uma cultura self‑service, de combinações plurais, em que o repertório dominante depende, em boa parte, do contexto social onde foram recrutados os amigos com quem se sai. Há amigos para assistir a uma peça de teatro; amigos para passar a noite numa discoteca; amigos para ver um filme; etc.

 

            1.8. Este modelo cultural está, no entanto, longe de se encontrar generalizado ou democratizado a toda a estrutura social. A sintonia de referências e a sincronização de rotinas que estão subjacentes à eficácia comunicacional das redes de sociabilidade requerem um certo nível de homogeneidade social, uma certa afinidade de habitus. Por outro lado, esta orientação e disponibilidade para o consumo e fruição culturais encontram certamente correspondência no significativo acréscimo dos contigentes das novas elites urbanas, localizadas em grupos socioprofissionais de perfil dirigente, intelectual e científico, ligados à administração pública e ao terciário superior e à franca, ainda que recente, expansão dos níveis mais elevados de ensino. Estas classes sociais encontram‑se, aliás, intimamente ligadas a funções de produção e intermediação cultural, ao mesmo tempo que difundem estilos de vida baseados em padrões relativamente altos de consumo cultural. Em suma, urge não perder de vista a localização específica no espaço social destas novas tendências dos mundos da cultura. O seu carácter frequentemente fragmentário, evanescente e efémero contribui para dissipar a relação de mútuo reforço que estabelecem com os processos emergentes de recomposição social e reestruturação económica.

 

            1.9. A diversidade inerente às práticas culturais pode ainda ser analisada de um ângulo substantivamente diferente, se partirmos dos usos da cultura patentes nas actividades de percepção e recepção cultural. O enfoque na relação entre as obras e os públicos leva‑nos a abordagens mais finas e de pendor qualitativo, de forma a captar o que os públicos fazem das obras que fazem os públicos. Dito de outra maneira, importa superar a visão/ilusão de que os produtos culturais contêm em si mesmos características objectivas suficientes e unívocas para a compreensão dos universos simbólicos dos seus consumidores. Mais ainda, urge compreender que, com a passagem do conceito de consumo (níveis de posse, de frequência, etc.) para o de percepção/recepção, se opera uma mudança de paradigma que sublinha as poderosas interacções estabelecidas entre a intenção do autor, a estrutura da obra, o sistema de referências do receptor e o projecto cultural que o anima.

 

            1.10. O agente cultural revela‑se um “actor no seu próprio corpo”, o qual supera, na sua expressividade e nas impressões que a partir dele se captam, a interiorização passiva e mecânica de um conjunto limitado de condições objectivas de existência. De facto, ao recusarmos um logocentrismo arrogante, somos levados a compreender como, dentro de contextos específicos e delimitados, o corpo se assume enquanto veículo e produtor de modos particulares de percepção. O corpo em acção sublinha as dimensões cognitivas, afectivas e existenciais de um self activo e performativo.

            Bater palmas, por exemplo, além de se traduzir por diferentes modalidades consoante os cenários de interacção, tem implícitas plurais imbricações com a praxis social. Pode querer afirmar uma atitude iconoclasta e provocadora; assumir formas celebratórias mais ou menos ritualizadas; exprimir graus diferenciais de competência cultural e poder simbólico ou ainda níveis díspares de selectividade perceptiva.

            Através do corpo, o processo de reprodução interpretativa da obra em interacção, não se esgota em mimesis empobrecedora, acrescentando significados ao significado, ou, se preferirmos, adicionando história à obra. Da mesma maneira, os papéis sociais não se cingem a uma simples acomodação a ordens normativas preexistentes ou previamente codificadas. Cada papel social é também uma porta de entrada num mundo novo.

 

            1.11. Os modos dominantes de recepção apresentam características aparentemente contraditórias. Se é verdade que a eleição de um local de fruição cultural se associa, antes de mais, a motivações conviviais ou pelo menos assentes nas redes de sociabilidade, a apropriação das obras apresentadas é relacionada com características que lhes são intrínsecas, nomeadamente critérios de qualidade. Perante o contraste que se estabelece entre uma panóplia de discursos (incluindo os corporais) que salientam a apropriação pessoal e idiossincrática e uma recepção aparentemente artística (ou estética no sentido restrito), analítica, intelectualizada (a referência a significados intrínsecos às obras) e confirmadora do horizonte de expectativas (ausência de surpresa, novidade e choque) dos públicos, e tendo em conta ainda os elevados níveis de “incompetência cultural” anteriormente registados, somos levados a enfatizar a existência de um eventual efeito ou reacção de prestígio. De facto, os públicos, apesar da dispersão e ecletismo dos seus universos de gosto, continuam maioritariamente a imaginar a cultura em volta de esquemas, classificações e hierarquias tradicionais. Por outras palavras, se as suas práticas nos remetem para universos aparentemente desordenados (ecléticos, feitos de cruzamentos e combinatórias várias, por vezes esquizofrénicos), as representações continuam a fabricar um mundo de uma harmonia antiga, em que sobressai, precisamente, o respeito por formas de legitimidade que julgávamos ultrapassadas. Inquietante paradoxo.

 

            1.12. Espaço público e espaço semi‑público organizado (associativo): duas terras de ninguém, dois desertos que ferem de morte as crenças emancipatórias no poder reflexivo da esfera colectiva. Desterritorialização e descontextualização da acção social, fantasmagoria, compressão do espaço‑tempo, mediatização da comunicação, são factores habitualmente associados a este fenómeno. A desvitalização de ambos denuncia, igualmente, um mal‑estar profundamente enraizado nas vivências urbanas. Ao contrário do que o discurso neo‑liberal propaga, considerar a cultura no âmbito estrito do “marketing de cidade” não é suficiente para criar dinâmicas de envolvimento colectivo. Os processos em curso de “enobrecimento e regeneração urbanos”, se é verdade que investem culturalmente para uma modificação profunda da imagem de cidade, apostando no estético como estratégia de atracção de capitais e “massa crítica”, nem sempre respeitam a especificidade e autonomia de tal esfera. A cidade do Porto não é excepção. Ao lado de tentativas de reanimação do velho centro da cidade, com a reabertura de espaços culturais renovados, agudizam‑se tendências de privatização crescente das sociabilidades, com o aumento em flecha da lógica segregacionista dos condomínios privados (os ghettos dos ricos) e a abundância dos mundos artificiais, selectivos e vigiados dos centros comerciais. Os impulsos regeneradores da economia baseada na sociedade de informação dos serviços e alta finança têm feito esquecer, sob a aparência da explosão do simbólico e do consumo, os vastos “interesses materiais envolvidos na reconstrução da vida urbana na época pós‑industrial”[1138]. A gentrificação é amiúde sinónimo de yuppificação e contribui para reificar as lógicas especulativas do mercado.

            As tendências de crescente dissolução e privatização dos espaços públicos tem efeitos corrosivos no ideal romântico da cidade errática, onde, por mero acaso, estranhos se cruzam e se conhecem; onde a conversação e a acção comunicativa transformam o público em sujeito de discurso; onde a representação e a linguagem se politizam e a palavra se desprivatiza[1139]. Ora, o que está em causa é, não só a despolitização, neutralização e esvaziamento da esfera pública, mas igualmente “o esgotamento das energias utópicas” numa situação de opacidade em que “o futuro é ocupado negativamente”[1140], não se vislumbrando as condições para uma “praxis comunicativa do quotidiano”[1141]. A tirania da intimidade, que Sennett anuncia, com a sua obsessão pelo privado e pelo ego e a sua espiral de auto‑revelações, acaba por nos fazer perder a ideia da singularidade do Outro.

            Em sociedades de intensa mobilidade, em que os lugares públicos se atravessam de um só fôlego, com a energia do transitório e da mera passagem, a casa surge como o único lugar habitado, uma espécie de baluarte afectivo contra a pressão exterior e a vigilância; um prolongamento da pessoa e da sua segurança ontológica e não tanto um espaço comum do clã familiar; uma recusa da teatralidade pública e da ordem representativa, com o seu jogo de papéis que oscila entre o secreto e o manifesto[1142].

            No entanto, ao contrário de Sennett, não resvalamos para o pensar fatalista que considera o voyeurismo e a banalidade como únicas alternativas à ordem representacional da esfera pública. Os usos da casa e as lógicas expressivas patentes na organização do espaço doméstico desmentem a hegemonia absoluta de um real artificial e estereotipado. Da mesma forma, o povoamento do espaço semi‑público, apesar da sua lógica selectiva, legitima algum optimismo.

 

 

 

                  2. Uma tese: a (pós)modernidade num continuum.

 

            “(...) para os jovens e os ricos, para os educados e privilegiados, as coisas não podiam ter sido melhores. O mundo dos imóveis, das finanças e dos serviços cresceu, bem como a “massa cultural” dedicada à produção de imagens, de conhecimento e de formas estéticas e culturais. A base político‑económica e, com ela, toda a cultura das cidades foram transformadas.”

               David Harvey, Condição Pós‑Moderna

 

            “Imagine por um momento que está num satélite, a grande distância para além dos actuais satélites; você pode ver o “planeta Terra” a partir de um ponto distante e, invulgarmente para alguém que apenas tem intenções pacíficas, você está equipado com o tipo de tecnologia que lhe permite ver as cores dos olhos das pessoas e os números das matrículas. Você pode ver todo o movimento e sintonizar todas as comunicações que estão a decorrer. A maior distância estão os satélites, depois os aviões, o longo caminho entre Londres e Tokyo e o salto de S. Salvador à cidade da Guatemala. Uma parte desta paisagem são pessoas a movimentarem‑se, outra é negócio interpessoal, outra ainda publicidade mediática. Existem fax, e‑mails, redes de distribuição de filmes, fluxos financeiros e transacções. Vendo de mais perto, lá estão os barcos e comboios, comboios a vapor subindo laboriosamente uma colina algures na Ásia. Vendo ainda de mais perto existem camiões e autocarros, e aproximando‑se mais do chão, algures na África sub‑sahariana, uma mulher — entre muitas outras — descalça, que passa ainda horas a fio a recolher água”.

               Doreen Massey[1143]

 

            Fomos confrontados, ao longo deste trabalho, com a persistência de atitudes e conceitos ambivalentes e propiciadores de uma multiplicidade de interpretações.

            Para alguns autores, a época em que vivemos pode, do ponto de vista cultural, ser correctamente apreendida por uma ampla transformação societal que dá pelo nome de pós‑modernismo, termo inicialmente circunscrito a uma elite de ensaístas (mormente na crítica literária) e a áreas artísticas delimitadas (música, literatura, arquitectura), mas rapidamente alargado ao debate sobre a mudança social contemporânea. Fala‑se, então, da imaterialização e estetização da vida quotidiana e do conjunto das transacções, incluindo as económicas; da morte de uma sociedade baseada em classes sociais; da ascensão dos estilos de vida fluídos e plurais como base da estratificação social; do fim da ideia de originalidade e de vanguarda (já se disse tudo, já de tudo se viu e experimentou); do culto do corpo, das sensações, do prazer e do irracional; da subversão das narrativas e da linearidade pelo caos e pela desordem; da emergência do glocal, expressão de uma geografia imaginária de cruzamento do global e do local; da negação da história ou pelo menos de uma direcção ou teleologia; do colapso do público e do privado; do fim dos monopólios simbólicos; da compressão do passado e do futuro num presente contínuo (nem origens, nem utopia, apenas nomadismo); da negação dos heróis singularizados e das suas façanhas épicas em favor do encantamento do anónimo e do quotidiano; da inversão da ética ascética em ética hedonista e de uma reorientação da produção para o consumo, da ética para estética; etc.; etc.[1144].

            Outros autores, apesar de acentuarem e valorizarem as mesmas tendências, adoptam aqui e ali uma atitude mais prudente, considerando que a ideia de superação, subjacente ao conceito de pós‑modernidade, é um paradoxo evidente (como falar em superação, se é colocada a ênfase na negação de qualquer evolução ou direcção histórica?), preferindo defini‑la como o conjunto de “possíveis transformações para além das instituições da modernidade”[1145] e tirando ilações políticas das novas configurações societais, em particular no que se refere ao papel central da auto‑identidade reflexiva[1146], cerne do que Giddens apelida de modernidade tardia ou modernidade radicalizada.

            Os críticos da pós‑modernidade, como Habermas, vêem neste movimento uma expressão neoconservadora que dá prioridade ao mercado em detrimento do Estado social e aposta num retorno “ao romantismo social do capitalismo”, sem compreender que as formas de vida se encontram “ameaçadas por uma colonização interna”[1147]. Perante tal cenário, de desintegração de domínios como a escola, a família e a esfera pública, Habermas apoia‑se na “modernidade cultural” como “único fundo ao qual poderíamos ir beber”[1148].

            Sennett, já o sabemos, fala com pessimismo no fim do homem público e da cidade, em favor de uma idolatria intimista em que a auto‑absorção narcísica surge como o único princípio válido, em prejuízo da civilidade que consiste na manutenção de uma ordem teatral através da qual a “máscara” e as convenções nos protegem da “obrigação” de nos desvendarmos, bem como da vigilância dos outros, condições necessárias para uma salutar sociabilidade[1149].

            Lash, por seu lado, insiste igualmente na presença do ego, mas distanciando‑se tanto das críticas ao excesso de narcisismo ou egoísmo da cultura contemporânea (muitas vezes fundada em princípios morais duvidosos), como das correntes que glorificam a concentração no self como fonte de auto‑realização e auto‑descoberta (linha em que Giddens se situa). O autor caracteriza o estado actual do ego como o de uma dependência face ao mundo imaterial do consumo degradado, representando “a outra face” de um quotidiano laboral igualmente degradado. De facto, a sobrevivência torna‑se o principal motivo da existência, assente na gestão das impressões transmitidas, num mundo em que tudo se transforma em imagens. Desenvolve‑se, assim, sob uma pretensa possibilidade ilimitada de escolha (definida por Lash como “ideologia pluralista”[1150]), uma “dissolução do mundo das coisas substanciais”[1151]. Desta forma, o narcismo representa, afinal, uma estratégia de sobrevivência, fundada numa “tecnologia do ego” como única possibilidade de escapar à desintegração e ao vazio. Ao contrário da procura reflexiva de identidade, defendida por Giddens, verificar‑se‑ia uma nítida perda de identidade, em que o “eu” se vê cercado e desprovido de referências estáveis.

 

            Perante este breve esboço de uma complexa polémica que traduz, afinal, as múltiplas formas de interpretar o “espírito da época” e a dificuldade de obter um consenso sobre os eixos significativos pelos quais se pauta a mudança social, somos levados a não rejeitar, a priori, qualquer das linhas de interpretação aqui traçadas. Não se trata, por conseguinte, de delinear uma qualquer síntese (as famosas “terceiras” ou “quartas” vias), nem tão‑pouco de rejeitar o esforço subjacente a uma opção nítida entre as alternativas em presença. A nossa perspectiva analítica rejeita, pois, tanto a opção de enfileirar por uma das correntes já existentes como a de criar ex abrupto uma nova linha teórica. Em que consiste, então?

            Antes de mais, em defender que existe um continuum e não uma dicotomia redutora entre modernidade e pós‑modernidade. O que, desde logo, nos permite escapar a posicionamentos por vezes essencialistas, que definem uma ou outra como intrinsecamente positivas ou negativas, em função de determinados critérios e juízos, nem sempre explicitados.

            Existe, em nosso entender, uma realidade sócio‑cultural tensa e contraditória, composta por ritmos espácio‑temporais desiguais. O passado ainda não acabou e o futuro já começou. Por outras palavras, há realidades em que se cruzam temporalidades distintas, numa coexistência de assincronismos. Por outro lado, importa não renunciar à localização dos factos sócio‑culturais no espaço e na estrutura social. É uma ilusão pensar, sob a aparência de uma glorificação quotidiana da estética, que tal processo significa o mesmo em todos os lugares, em todas as épocas e para todos os grupos sociais. Não nos repugna, por isso, retomar a afirmação de David Harvey segundo a qual “o grau de fordismo e modernismo, ou de flexibilidade e pós‑modernismo, varia de época para época e de lugar para lugar”[1152]. Acrescentamos: e de grupo social para grupo social, no interior de uma mesma classe. Há que, por isso, reconstituir essa totalidade em interrelação, provisória e situada, em cujos esferas e domínios específicos podem ter validade os sistemas teóricos há pouco esboçados, sem que se auto‑excluam previamente.

            O estudo de públicos e das suas práticas que levamos a cabo, permite, precisamente, reforçar esta tese. A população estudada reflecte posicionamentos sociais privilegiados, com uma identidade comum (que não pode, de forma alguma, ser alargada artificialmente a toda a estrutura social) mas igualmente com pontos de divergência e heterogeneidade internas. Há uma minoria que segue esquemas consagrados de familiarização com a “alta cultura”, mas, para a maioria, altera‑se o significado de legitimidade cultural, diluído em combinações eventualmente menos sólidas mas mais ágeis, na medida em que se adaptam com facilidade à “pluralidade dos mundos de vida” e ao complexo sistema de papéis sociais dos grupos urbanos favorecidos. Traduzem, por isso, universos culturais relativamente actualizados (modernos), embora superficiais. No entanto, o discurso, um passo atrás das práticas, assenta ainda em representações de uma ordem cultural anterior.

            Abandona‑se o espaço público, habita‑se a casa, mas sai‑se à noite para fruir cultura em locais específicos. O espaço semi‑público não morreu, está activo e recomenda‑se. Ele torna‑se essencial para o accionar de complexas redes de sociabilidade, fornece um “terreno comum” de entendimento, embora restrito e selectivo. E um palco, uma cena, onde a apresentação de si, sob o signo da “máscara” ou da “autenticidade” cumpre funções simbólicas de expressão de uma condição social que reproduz heranças ou investe em trajectórias ascendentes.

            Estes elementos constituem a dimensão dominante dos universos culturais dos grupos sociais que estudamos e que podemos enquadrar no que Bourdieu apelida de nova burguesia e nova pequena burguesia e que, pela sua constituição, desmentem quer a lógica de uma total autonomização da esfera cultural, porquanto se associam a poderosas transformações económicas (peso crescente dos serviços; elevado grau de imaterialidade da estrutura económica actual; associação entre crescimento económico e circulação de informação; importância da “destruição criativa” de bens e recursos tendo em vista a implantação de novas necessidades, desejos e aspirações; reprodução da lógica capitalista através da constante produção de novidade; etc.) quer a teoria dos “espelhos” de um economicismo redutor e automático, já que as suas práticas culturais, valores e estilos de vida são dificilmente enquadráveis em categorias tradicionais, revelando igualmente um papel activo do sujeito na apropriação, recepção e transformação das obras culturais. Para além de se verificarem outras clivagens, baseadas na idade e no género, não menos interessantes e que não podem ser reduzidas à mesma base material.

            Admitir a possibilidade de graus diferenciais de modernismo e pós‑modernismo, consoante o segmento geográfico, histórico e social — eis a nossa proposta. O que permite, como faz Harvey, crítico marxista da condição pós‑moderna, resgatar do cerne distintivo dessa condição, elementos emancipadores: “um modo de pensamento anti‑autoritário e iconoclasta, que insiste na autenticidade de outras vozes, que celebra a diferença, a descentralização e a democratização do gosto, bem como o poder da imaginação sobre a materialidade, tem de ser radical, mesmo quando usado indiscriminadamente. Nas mãos dos seus praticantes mais responsáveis, toda a bagagem de ideias associadas com o pós‑modernismo podia ser empregue para fins radicais”[1153].

            Na mesma linha, Jameson, outro crítico marxista a manter uma relação simultaneamente crítica e ambivalente com o pós‑modernismo, fala, em vários momentos, de “sobredeterminação”, “sobreposição de modos de produção”, “interacção recíproca”; “descontinuidade histórica”, etc.

            Tudo depende, por isso, do ponto de onde parte a análise e da escala de observação. Visto de outro planeta, a Terra é uma unidade e podemos cair em generalizações fáceis e abusivas, como falar de uma pós‑modernidade generalizada a todas as classes sociais e a todos os espaços. Ou insistir na mobilidade e na compressão do espaço‑tempo como traços distintivos do “novo mundo”, esquecendo a sua variação de acordo com níveis de desigual acesso ao poder. Mas, mudando de súbito o ângulo e a escala de análise, não nos admiremos se encontrarmos uma impaciente fila de espera numa paragem de autocarros (nada que se compare à circulação dos cibernautas ou ao tráfego do ciberespaço...) ou aquela mulher que caminha há horas, na aridez sub‑sahariana, à procura de umas gotas de água.

 

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ANEXOS

 

ANEXO I

Indicadores Demográficos por NUTS I, II e III em 1996

 

 

 

 

 

 

 

 

 

NUTS I, II e III

Saldo

Natural

Saldo Migratório

Acréscimo Populacional

Taxa

Crescimento

Natural

Taxa

Crescimento

Migratório

Taxa

Crescimento

Efectivo

Taxa

Natalidade

Taxa

Mortalidade

Taxa

Mortalidade

Infantil

 

(milhares)

 

 

(percentagem)

 

 

(permilagem)

 

 

 PORTUGAL

3,36 

10,00 

13,35 

0,03 

0,10 

0,13 

11,1 

10,8 

6,9 

 CONTINENTE

2,20 

9,27 

11,47 

0,02 

0,10 

0,12 

11,0 

10,8 

6,6 

 Norte

10,96 

3,02 

13,98 

0,31 

0,09 

0,40 

12,2 

9,1 

7,8 

 Minho Lima

-0,65 

0,80 

0,15 

-0,26 

0,32 

0,06 

9,6 

12,2 

5,9 

 Cávado

2,28 

1,21 

3,49 

0,62 

0,33 

0,95 

13,9 

7,8 

8,6 

 Ave

2,84 

0,34 

3,18 

0,60 

0,07 

0,67 

13,4 

7,5 

8,4 

 Grande Porto

3,39 

0,54 

3,93 

0,28 

0,05 

0,33 

11,8 

9,0 

8,2 

 Tâmega

3,42 

-0,60 

2,82 

0,64 

-0,11 

0,53 

14,6 

8,1 

7,2 

 Entre Douro Vouga

1,26 

0,87 

2,13 

0,48 

0,33 

0,81 

12,4 

7,6 

6,2 

 Douro

-0,54 

0,05 

-0,49 

-0,23 

0,02 

-0,21 

9,4 

11,7 

5,9 

 Alto Trás Montes

-1,03 

-0,20 

-1,23 

-0,45 

-0,09 

-0,54 

8,5 

13,0 

11,0 

 Centro

-3,66 

2,33 

-1,32 

-0,21 

0,14 

-0,08 

10,0 

12,1 

5,3 

 Baixo Vouga

0,65 

1,46 

2,11 

0,18 

0,41 

0,59 

11,8 

10,0 

4,9 

 Baixo Mondego

-0,55 

0,06 

-0,49 

-0,17 

0,02 

-0,15 

9,8 

11,4 

6,0 

 Pinhal Litoral

0,31 

0,89 

1,20 

0,13 

0,39 

0,53 

11,3 

9,9 

3,5 

 Pinhal Interior Norte

-0,79 

-0,12 

-0,91  

-0,59 

-0,09 

-0,68 

9,4 

15,3 

4,0 

 Pinhal Interior Sul

-0,50 

-0,38 

-0,88 

-1,07 

-0,82 

-1,89 

7,0 

17,7 

3,1 

 Dão Lafões

-0,68 

0,74 

0,06 

-0,24 

0,26 

0,02 

9,8 

12,2 

5,8 

 Serra Estrela

-0,34 

0,02 

-0,32 

-0,64 

0,03 

-0,61 

7,6 

14,0 

7,6 

 Beira Interior Norte

-0,68 

-0,27 

-0,95 

-0,60 

-0,24 

-0,84 

8,2 

14,2 

7,5 

 Beira Interior Sul

-0,66 

0,14 

-0,52 

-0,84 

0,18 

-0,66 

7,3 

15,7 

3,5 

 Cova Beira

-0,42 

-0,20 

-0,62 

-0,47 

-0,22 

-0,69 

9,3 

14,0 

8,3 

 Lisboa E Vale Do Tejo

-0,70 

3,68 

2,98 

-0,02 

0,11 

0,09 

10,7 

10,9 

6,0 

 Oeste

-0,67 

1,46 

0,79 

-0,19 

0,40 

0,22 

10,4 

12,3 

6,4 

 Grande Lisboa

1,24 

-2,17 

-0,93 

0,07 

-0,12 

-0,05 

11,0 

10,4 

6,6 

 Península Setúbal

0,66 

3,40 

4,06 

0,10 

0,51 

0,61 

11,0 

10,0 

5,7 

 Médio Tejo

-1,05 

0,54 

-0,51 

-0,47 

0,24 

-0,23 

9,0 

13,7 

2,0 

 Lezíria Tejo

-0,89 

0,46 

-0,43 

-0,38 

0,20 

-0,19 

9,3 

13,2 

4,6 

 Alentejo

-3,47 

-1,50 

-4,97 

-0,67 

-0,29 

-0,95 

8,4 

15,0 

5,3 

 Alentejo Litoral

-0,58 

-0,35 

-0,93 

-0,62 

-0,37 

-0,98 

7,8 

14,0 

9,4 

 Alto Alentejo

-0,95 

-0,39 

-1,34 

-0,78 

-0,31 

-1,09 

8,2 

15,9 

2,0 

 Alentejo Central

-0,75 

-0,22 

-0,96 

-0,44 

-0,13 

-0,57 

8,9 

13,3 

5,3 

 Baixo Alentejo

-1,19 

-0,55 

-1,74 

-0,88 

-0,41 

-1,29 

8,2 

17,0 

5,4 

 Algarve

-0,93 

1,73 

0,80 

-0,27 

0,50 

0,23 

10,7 

13,4 

5,4 

 Algarve

-0,93  

1,73 

0,80 

-0,27 

0,50 

0,23 

10,7 

13,4 

5,4 

 R. AUTÓNOMA AÇORES

0,84 

0,29 

1,13 

0,35 

0,12 

0,47 

14,7 

11,2 

7,9 

 R. AUTÓNOMA MADEIRA

0,32 

0,43 

0,75 

0,13 

0,17 

0,29 

11,7 

10,5 

11,9 

 Fonte: INE, Estimativas de População Residente, nº24.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

ANEXO II

 

 

ANEXO III

 

 

ANEXO IV

 

                               GUIÃO DE ENTREVISTA PARA INFORMANTES PRIVILEGIADOS

 

               1ª Parte - Representações e opiniões sobre a "noite" em geral

 

               1. Tipos de actividades nocturnas que desempenha.

               2. Significado pessoal da "noite" e das saídas nocturnas.

               3. Carácter distintivo da "noite" face aos outros espaços-tempos quotidianos, em especial os de cariz doméstico.

               4. Especificidade da "noite" portuense.

               5. Opinião sobre o binómio "noite como profissão"/"noite como lazer".

 

               2ª Parte - Representações e opiniões sobre os públicos da "noite"

 

               1. Opinião sobre a eventual especificidade das pessoas que frequentam assiduamente os espaços-tempos nocturnos.

               2. Opinião sobre a eventual diversidade desses públicos e os seus critérios diferenciadores:

                              . de cariz social

                              . de cariz sexual

                              . de cariz etário

                              . de cariz étnico

                              . de cariz estilístico (modos de apresentação pública, por exemplo)

                              . outros critérios

               3. Relação entre espaços diferenciados e tipos de públicos.

               4. Posição sobre uma eventual evolução ao longo do tempo dos públicos nocturnos.

               5. Práticas desses públicos ("o que se faz à noite").

               6. Traços que distinguem "os que saem à noite" dos que "ficam em casa".          

 

 

 

                        GUIÃO DE ENTREVISTA AOS "PRATICANTES CULTURAIS" NOCTURNOS

 

               1ª Parte

               1. Frequência/regularidade com que costuma sair à noite *

               2. Locais habitualmente escolhidos **

               3. Companhia(s) habitual(ais)/importância dos amigos na estruturação das "saídas nocturnas"

               4. Significado (s) de "sair à noite" e da "cidade à noite"

 

               2ª Parte

               1. Quando se escolhe ficar em casa, quais as actividades mais frequentes e os equipamentos *** mais utilizados

               2. Actividades mais frequentes dos familiares que compartilham a residência

               3. Significado de "ficar em casa" e da "casa"

 

               3ª Parte

               1. Obstáculos a uma maior intensidade das "saídas", em especial as nocturnas

               2. Vantagens e desvantagens de "sair" versus "ficar em casa"

 

               * Todos os dias, algumas vezes por semana, ao fim de semana, algumas vezes por mês, etc.         ** Captar, para além do polo restaurantes/cafés/bares/ discotecas, a frequência de espectáculos musicais, teatro, cinema, etc.

               *** Televisão, vídeo, rádio, Hi Fi, etc.

 

ANEXO V

 

Quadro I

 

Escalões Etários

 

Não Fazer Nada

Até 20

N=75

(15,9%)

21-30

N=243

(51,4%)

31-40

N=80

(16,9%)

Mais de 40

N=75

(15,9%)

 

Frequentemente

N=120

(23,0%)

 

41,3

 

30,5

 

22,5

 

22,7

 

Com alguma frequência

N=361

(69,3%)

 

1,3

 

2,9

 

3,8

 

4,0

 

Raramente/Nunca

N=21

(4,0%)

 

57,3

 

66,7

 

73,8

 

73,3

 

 

Quadro II

 

Escalões Etários

 

 

Ouvir Música

Até 20

N=77

(15,1%)

21-30

N=257

(50,4%)

31-40

N=87

(17,1%)

Mais de 40

N=89

(17,4%)

Frequentemente

N=490

(96,1%)

 

96,1

 

96,9

 

95,4

 

94,4

Com alguma frequência

N=10

(2,0%)

 

3,9

 

1,2

 

3,4

 

1,1

Raramente/Nunca

N=10

(2,0%)

 

 

 

1,9

 

1,1

 

4,5

 

Quadro III

 

Escalões Etários

 

 

Ir a Bares

Até 20

N=76

(15,2%)

21-30

N=254

(50,7%)

31-40

N=85

(17,0%)

Mais de 40

N=86

(17,1%)

Frequentemente

N=243

(48,5%)

 

57,9

 

60,6

 

35,3

 

17,4

Com alguma frequência

N=112

(22,4%)

 

13,2

 

23,2

 

27,1

 

23,3

Raramente/Nunca

N=146

(29,1%)

 

28,9

 

16,1

 

37,6

 

59,3

 

Quadro IV

 

Escalões Etários

 

 

Ir a Discotecas

Até 20

N=76

(15,1%)

21-30

N=253

(50,3%)

31-40

N=87

(17,3%)

Mais de 40

N=87

(17,3%)

Frequentemente

N=111

(22,1%)

 

36,8

 

25,3

 

12,6

 

9,2

Com alguma frequência

N=110

(21,9%)

 

21,1

 

24,5

 

18,4

 

18,4

Raramente/Nunca

N=282

(56,1%)

 

42,1

 

50,2

 

69,0

 

72,4

 

Quadro V

 

Escalões Etários

 

Escrever Poemas, Contos, etc.

Até 20

N=76

(15,3%)

21-30

N=250

(50,2%)

31-40

N=86

(17,3%)

Mais de 40

N=86

(17,3%)

Frequentemente

N=70

(14,1%)

 

23,7

 

14,8

 

10,5

 

7,0

Com alguma frequência

N=42

(8,4%)

 

14,5

 

6,8

 

8,1

 

8,1

Raramente/Nunca

N=386

(77,5%)

 

61,8

 

78,4

 

81,4

 

84,9

 

 

 

Quadro VI

 

Escalões Etários

 

Visitar Museus, Exposições, etc.

Até 20

N=76

(15,1%)

21-30

N=252

(50,2%)

31-40

N=87

(17,3%)

Mais de 40

N=87

(17,3%)

Frequentemente

N=117

(23,3%)

 

18,4

 

21,8

 

29,9

 

25,3

Com alguma frequência

N=210

(41,8%)

 

38,2

 

44,0

 

32,2

 

48,3

Raramente/Nunca

N=175

(34,9%)

 

43,4

 

34,1

 

37,9

 

26,4

 

Quadro VII

 

Escalões Etários

 

 

Ver Televisão

Até 20

N=77

(15,2%)

21-30

N=256

(50,4%)

31-40

N=89

(17,5%)

Mais de 40

N=86

(16,9%)

Frequentemente

N=422

(83,1%)

 

87,0

 

80,9

 

83,1

 

86,0

Com alguma frequência

N=5

(1,0%)

 

1,3

 

1,2

 

1,1

 

 

Raramente/Nunca

N=81

(15,9%)

 

11,7

 

18,0

 

15,7

 

14,0

 

 

Quadro VIII

 

Escalões Etários

 

 

Ler Livros

Até 20

N=77

(15,4%)

21-30

N=251

(50,1%)

31-40

N=86

(17,2%)

Mais de 40

N=87

(17,4%)

Frequentemente

N=342

(68,3%)

 

58,4

 

70,5

 

72,1

 

66,7

Com alguma frequência

N=78

(15,6%)

 

22,1

 

15,1

 

8,1

 

18,4

Raramente/Nunca

N=81

(16,2%)

 

19,5

 

14,3

 

19,8

 

14,9

 

Quadro IX

 

Escalões Etários

 

 

Ler Jornais

Até 20

N=76

(15,1%)

21-30

N=255

(50,6%)

31-40

N=86

(17,1%)

Mais de 40

N=87

(17,3%)

Frequentemente

N=396

(78,6%)

 

53,9

 

79,6

 

86,0

 

89,7

Com alguma frequência

N=38

(7,5%)

 

17,1

 

7,1

 

3,5

 

4,6

Raramente/Nunca

N=70

(13,5%)

 

28,9

 

13,3

 

10,5

 

5,7

 

 

Quadro X

 

Escalões Etários

 

 

Ler Revistas

Até 20

N=77

(15,5%)

21-30

N=252

(50,7%)

31-40

N=85

(17,1%)

Mais de 40

N=83

(16,7%)

Frequentemente

N=396

(78,6%)

 

70,1

 

69,8

 

64,7

 

66,3

Com alguma frequência

N=38

(7,5%)

 

16,9

 

20,6

 

28,2

 

20,5

Raramente/Nunca

N=70

(13,5%)

 

13,0

 

9,5

 

7,1

 

13,3

 

 

Quadro XI

 

Sexo

 

Ler Revistas

Masculino

N=182

(46,0%)

Feminino

N=214

(54,0%)

 

Frequentemente

N=18

(4,5%)

 

5,5

 

3,7

 

Com alguma frequência

N=265

(66,9%)

 

68,1

 

65,9

 

Raramente/Nunca

N=113

(28,5%)

 

26,4

 

30,4

 

 

 

Quadro XII

 

Situação na Trajectória

 

Espaço Frequentado

Trajectórias Ascendentes

N=189

(42,8%)

Situações de Reprodução

N=224

(50,7%)

Trajectórias Descendentes

N=29

(6,6%)

 

B Flat

N=122

(27,6%)

 

30,7

 

26,3

 

17,2

 

Praia da Luz

N=79

(17,9%)

 

12,2

 

21,9

 

24,1

 

Rivoli

N=241

(54,5%)

 

57,1

 

51,8

 

58,6

 

 

 

Quadro XIII

 

Espaço Frequentado

Música – Consagrados Modernos

B Flat

N=103

(26,2%)

Praia da Luz

N=63

(16,0%)

Rivoli

N=227

(57,8%)

 

Nulo Grau de Identificação

N=43

(10,9%)

 

12,6

 

4,8

 

11,9

 

Baixo Grau de Identificação

N=242

(61,6%)

 

66,0

 

54,0

 

61,7

 

Médio Grau de identificação

N=77

(19,6%)

 

16,5

 

28,6

 

18,5

 

Alto Grau de Identificação

N=31

(7,9%)

 

4,9

 

12,7

 

7,9

 

 

Quadro XIV

 

Espaço Frequentado

 

Música – Não Consagrados

B Flat

N=103

(26,2%)

Praia da Luz

N=63

(16,0%)

Rivoli

N=227

(57,8%)

 

Nulo Grau de Identificação

N=180

(45,8%)

 

49,5

 

22,2

 

50,7

 

Baixo Grau de Identificação

N=190

(48,3%)

 

45,6

 

65,1

 

44,9

 

Médio Grau de identificação

N=22

(5,6%)

 

3,9

 

12,7

 

4,4

 

Alto Grau de Identificação

N=1

(0,3%)

 

1,0

 

 

 

 

Quadro XV

 

Espaço Frequentado

Cinema – Consagrados Clássicos

B Flat

N=64

(22,9%)

Praia da Luz

N=53

(18,0%)

Rivoli

N=162

(58,1%)

 

Nulo Grau de Identificação

N=49

(17,6%)

 

15,6

 

24,5

 

16,0

 

Baixo Grau de Identificação

N=95

(34,1%)

 

28,1

 

41,5

 

34,0

 

Médio Grau de identificação

N=92

(33,0%)

 

37,5

 

24,5

 

34,0

 

Alto Grau de Identificação

N=43

(15,4%)

 

18,8

 

9,4

 

16,0

 

 

Quadro XVI

 

Espaço Frequentado

Cinema – Consagrados Modernos

B Flat

N=64

(22,9%)

Praia da Luz

N=53

(18,0%)

Rivoli

N=162

(58,1%)

 

Nulo Grau de Identificação

N=53

(19,0%)

 

9,4

 

22,6

 

21,6

 

Baixo Grau de Identificação

N=157

(56,3%)

 

65,6

 

62,3

 

50,6

 

Médio Grau de identificação

N=50

(17,9%)

 

18,8

 

11,3

 

19,8

 

Alto Grau de Identificação

N=19

(6,8%)

 

6,3

 

3,8

 

8,0

 

Quadro XVII

 

Espaço Frequentado

Cinema – Não Consagrados

B Flat

N=64

(22,9%)

Praia da Luz

N=53

(18,0%)

Rivoli

N=162

(58,1%)

 

Nulo Grau de Identificação

N=67

(24,0%)

 

25,0

 

17,0

 

25,9

 

Baixo Grau de Identificação

N=140

(50,2%)

 

56,3

 

50,9

 

47,5

 

Médio Grau de identificação

N=45

(16,1%)

 

15,6

 

18,9

 

15,4

 

Alto Grau de Identificação

N=27

(9,7%)

 

3,1

 

13,2

 

11,1

 

 

Quadro XVIII

 

Espaço Frequentado

Literatura – Consagrados Clássicos

B Flat

N=67

(22,4%)

Praia da Luz

N=50

(16,7%)

Rivoli

N=182

(60,9%)

 

Nulo Grau de Identificação

N=14

(4,7%)

 

4,5

 

8,0

 

3,8

 

Baixo Grau de Identificação

N=159

(53,2%)

 

49,3

 

60,0

 

52,7

 

Médio Grau de identificação

N=79

(26,4%)

 

31,3

 

18,0

 

26,9

 

Alto Grau de Identificação

N=47

(15,7%)

 

14,9

 

14,0

 

16,5

 

 

Quadro XIX

 

Espaço Frequentado

Literatura – Consagrados Modernos

B Flat

N=67

(22,4%)

Praia da Luz

N=50

(16,7%)

Rivoli

N=182

(60,9%)

 

Nulo Grau de Identificação

N=13

(4,3%)

 

6,0

 

4,0

 

 

3,8

 

Baixo Grau de Identificação

N=164

(54,8%)

 

53,7

 

56,0

 

54,9

 

Médio Grau de identificação

N=97

(32,4%)

 

34,3

 

32,0

 

31,9

 

Alto Grau de Identificação

N=25

(8,4%)

 

6,0

 

8,0

 

9,3

 

 

 

Quadro XX

 

Espaço Frequentado

 

Literatura – Não Consagrados

B Flat

N=67

(22,4%)

Praia da Luz

N=50

(16,7%)

Rivoli

N=182

(60,9%)

 

Nulo Grau de Identificação

N=189

(63,2%)

 

65,7

 

58,0

 

63,7

 

Baixo Grau de Identificação

N=89

(29,8%)

 

31,3

 

32,0

 

28,6

 

Médio Grau de identificação

N=18

(6,0%)

 

3,0

 

 

8,0

 

6,6

 

Alto Grau de Identificação

N=3

(1,0%)

 

 

2,0

 

1,1

 

 

Quadro XXI

 

Capital Escolar de Ego

 

Ir ao Teatro

Baixo

N=30

(6,1%)

Médio

N=100

(20,4%)

Alto

N=360

(73,5%)

 

Frequentemente

N=79

(16,1%)

 

13,3

 

17,0

 

16,1

 

Com alguma frequência

N=128

(26,1%)

 

20,0

 

22,0

 

27,8

 

Raramente/Nunca

N=283

(57,8%)

 

66,7

 

61,0

 

56,1

 

 

Quadro XXII

 

Capital Escolar de Ego

Ir a Concertos de Música Clássica

Baixo

N=29

(5,9%)

Médio

N=103

(20,9%)

Alto

N=362

(73,3%)

 

Frequentemente

N=48

(9,7%)

 

6,9

 

7,8

 

10,5

 

Com alguma frequência

N=108

(21,9%)

 

17,2

 

18,4

 

23,2

 

Raramente/Nunca

N=338

(68,4%)

 

75,9

 

73,8

 

66,3

 

 

Quadro XXIII

 

Capital Escolar de Ego

 

Visitar Museus, Exposições

Baixo

N=29

(5,9%)

Médio

N=104

(21,1%)

Alto

N=361

(73,1%)

 

Frequentemente

N=118

(23,9%)

 

20,7

 

19,2

 

25,5

 

Com alguma frequência

N=204

(41,3%)

 

24,1

 

34,6

 

44,6

 

Raramente/Nunca

N=172

(34,8%)

 

55,2

 

46,2

 

29,9

 

Quadro XXIV

 

Capital Escolar de Ego

Fazer Fotografia (sem ser em festas ou férias)

Baixo

N=29

(5,9%)

Médio

N=104

(21,0%)

Alto

N=363

(73,2%)

 

Frequentemente

N=77

(15,5%)

 

 

 

17,3

 

16,3

 

Com alguma frequência

N=78

(15,7%)

 

20,7

 

9,6

 

17,1

 

Raramente/Nunca

N=341

(68,8%)

 

79,3

 

73,1

 

66,7

 

 

Quadro XXV

 

Capital Escolar de Ego

 

Ir ao Cinema

Baixo

N=28

(5,7%)

Médio

N=103

(20,9%)

Alto

N=363

(73,5%)

 

Frequentemente

N=265

(53,6%)

 

25,0

 

38,8

 

60,1

 

Com alguma frequência

N=155

(31,4%)

 

53,6

 

41,7

 

26,7

 

Raramente/Nunca

N=74

(15,0%)

 

21,4

 

19,4

 

13,2

 

 

Quadro XXVI

 

Capital Escolar de Ego

Artes Plásticas

(Pintar, Desenhar)

Baixo

N=28

(5,7%)

Médio

N=105

(21,3%)

Alto

N=361

(73,1%)

 

Frequentemente

N=97

(19,6%)

 

10,7

 

21,0

 

19,9

 

Com alguma frequência

N=39

(7,9%)

 

21,4

 

2,9

 

8,3

 

Raramente/Nunca

N=358

(72,5%)

 

67,9

 

76,2

 

71,7

 

 

 

Quadro XXVII

 

Capital Escolar de Ego

 

Escrever Poemas, Contos

Baixo

N=29

(5,9%)

Médio

N=103

(21,0%)

Alto

N=361

(73,1%)

 

Frequentemente

N=68

(13,8%)

 

24,1

 

14,6

 

12,8

 

Com alguma frequência

N=42

(8,6%)

 

10,3

 

9,7

 

8,1

 

Raramente/Nunca

N=381

(77,6%)

 

65,5

 

75,7

 

79,1

 

 

Quadro XXVIII

 

Capital Escolar de Ego

 

Ver Televisão

Baixo

N=29

(5,8%)

Médio

N=105

(21,1%)

Alto

N=364

(73,1%)

 

Frequentemente

N=413

(82,9%)

 

93,1

 

82,9

 

82,1

 

Com alguma frequência

N=5

(1,0%)

 

3,4

 

1,0

 

0,8

 

Raramente/Nunca

N=80

(16,1%)

 

3,4

 

16,2

 

17,0

 

 

Quadro XXIX

 

Capital Escolar de Ego

 

Ler Livros

Baixo

N=29

(5,9%)

Médio

N=102

(20,7%)

Alto

N=361

(73,4%)

 

Frequentemente

N=338

(68,7%)

 

62,1

 

56,9

 

72,6

 

Com alguma frequência

N=77

(15,7%)

 

17,2

 

22,5

 

13,6

 

Raramente/Nunca

N=77

(15,7%)

 

20,7

 

20,6

 

13,9

 

 

 

 

 

Quadro XXX

 

Capital Escolar de Ego

 

Ler Jornais

Baixo

N=28

(5,7%)

Médio

N=105

(21,2%)

Alto

N=362

(73,1%)

 

Frequentemente

N=390

(78,8%)

 

67,9

 

69,5

 

82,3

 

Com alguma frequência

N=36

(7,3%)

 

7,1

 

11,4

 

6,1

 

Raramente/Nunca

N=69

(13,9%)

 

25,0

 

19,0

 

11,6

 

 

Quadro XXXI

 

Situação na Trajectória

 

Cinema – Consagrados Clássicos

Trajectórias Ascendentes

N=98

(41,7%)

Situações de Reprodução

N=117

(49,8%)

Trajectórias Descendentes

N=20

(8,5%)

 

Nulo Grau de Identificação

N=39

(16,6%)

 

15,3

 

17,1

 

20,0

 

Baixo Grau de Identificação

N=77

(32,8%)

 

31,6

 

29,1

 

60,0

 

Médio Grau de identificação

N=80

(34,0%)

 

32,7

 

38,5

 

15,0

 

Alto Grau de Identificação

N=39

(16,6%)

 

20,4

 

15,4

 

5,0

 

 

Quadro XXXII

 

Situação na Trajectória

 

Cinema – Consagrados Modernos

Trajectórias Ascendentes

N=98

(41,7%)

Situações de Reprodução

N=117

(49,8%)

Trajectórias Descendentes

N=20

(8,5%)

 

Nulo Grau de Identificação

N=45

(19,1%)

 

21,4

 

20,5

 

 

 

Baixo Grau de Identificação

N=126

(53,6%)

 

50,0

 

53,0

 

75,0

 

Médio Grau de identificação

N=46

(19,6%)

 

19,4

 

20,5

 

15,0

 

Alto Grau de Identificação

N=18

(7,7%)

 

9,2

 

6,0

 

10,0

 

Quadro XXXIII

 

Situação na Trajectória

 

Cinema – Não Consagrados

Trajectórias Ascendentes

N=98

(41,7%)

Situações de Reprodução

N=117

(49,8%)

Trajectórias Descendentes

N=20

(8,5%)

 

Nulo Grau de Identificação

N=64

(27,2%)

 

30,6

 

25,6

 

20,0

 

Baixo Grau de Identificação

N=117

(49,8%)

 

44,9

 

53,0

 

55,0

 

Médio Grau de identificação

N=34

(14,5%)

 

16,3

 

 

11,1

 

25,0

 

Alto Grau de Identificação

N=20

(8,5%)

 

8,2

 

10,3

 

 

Quadro XXXIV

 

Situação na Trajectória

 

Literatura – Consagrados Clássicos

Trajectórias Ascendentes

N=113

(43,5%)

Situações de Reprodução

N=132

(50,8%)

Trajectórias Descendentes

N=15

(5,8%)

 

Nulo Grau de Identificação

N=11

(4,2%)

 

3,5

 

5,3

 

 

 

Baixo Grau de Identificação

N=143

(55,0%)

 

59,3

 

50,8

 

60,0

 

 

Médio Grau de identificação

N=71

(27,3%)

 

24,8

 

31,1

 

13,3

 

Alto Grau de Identificação

N=35

(13,5%)

 

12,4

 

12,9

 

26,7

 

Quadro XXXV

 

Situação na Trajectória

 

Literatura – Consagrados Modernos

Trajectórias Ascendentes

N=113

(43,5%)

Situações de Reprodução

N=132

(50,8%)

Trajectórias Descendentes

N=15

(5,8%)

 

Nulo Grau de Identificação

N=13

(5,0%)

 

2,7

 

5,3

 

20,0

 

Baixo Grau de Identificação

N=138

(53,1%)

 

52,2

 

53,8

 

53,3

 

Médio Grau de identificação

N=71

(32,3%)

 

31,9

 

33,3

 

26,7

 

Alto Grau de Identificação

N=35

(9,6%)

 

13,3

 

7,6

 

 

Quadro XXXVI

 

Situação na Trajectória

 

Literatura – Não Consagrados

Trajectórias Ascendentes

N=113

(43,5%)

Situações de Reprodução

N=132

(50,8%)

Trajectórias Descendentes

N=15

(5,8%)

 

Nulo Grau de Identificação

N=161

(61,9%)

 

59,3

 

65,9

 

46,7

 

Baixo Grau de Identificação

N=83

(31,9%)

 

31,9

 

29,5

 

53,3

 

Médio Grau de identificação

N=15

(5,8%)

 

8,0

 

4,5

 

 

Alto Grau de Identificação

N=1

(0,4%)

 

0,9

 

 

 

Quadro XXXVII

 

Situação na Trajectória

 

Música – Consagrados Clássicos

Trajectórias Ascendentes

N=142

(42,9%)

Situações de Reprodução

N=165

(49,8%)

Trajectórias Descendentes

N=24

(7,3%)

 

Nulo Grau de Identificação

N=44

(13,3%)

 

16,9

 

 

10,3

 

12,5

 

Baixo Grau de Identificação

N=133

(40,2%)

 

43,0

 

38,2

 

37,5

 

Médio Grau de identificação

N=71

(21,5%)

 

16,9

 

24,8

 

25,0

 

Alto Grau de Identificação

N=83

(25,1%)

 

23,2

 

26,7

 

25,0

 

 

 

Quadro XXXVIII

 

Situação na Trajectória

 

Música – Consagrados Modernos

Trajectórias Ascendentes

N=142

(42,9%)

Situações de Reprodução

N=165

(49,8%)

Trajectórias Descendentes

N=24

(7,3%)

 

Nulo Grau de Identificação

N=33

(10,0%)

 

10,6

 

10,3

 

4,2

 

Baixo Grau de Identificação

N=201

(60,7%)

 

58,5

 

61,8

 

66,7

 

Médio Grau de identificação

N=69

(20,8%)

 

22,5

 

19,4

 

20,8

 

Alto Grau de Identificação

N=28

(8,5%)

 

8,5

 

8,5

 

8,3

 

Quadro XXXIX

 

Situação na Trajectória

 

Música – Não Consagrados

Trajectórias Ascendentes

N=142

(42,9%)

Situações de Reprodução

N=165

(49,8%)

Trajectórias Descendentes

N=24

(7,3%)

 

Nulo Grau de Identificação

N=159

(48,0%)

 

46,5

 

49,7

 

45,8

 

Baixo Grau de Identificação

N=152

(45,9%)

 

43,7

 

47,3

 

50,0

 

Médio Grau de identificação

N=19

(5,7%)

 

9,2

 

3,0

 

4,2

 

Alto Grau de Identificação

N=1

(0,3%)

 

0,7

 

 

 

 

 

 

 

 

          ÍNDICE

 

INTRODUÇÃO - FUGA E PARTITURA OU UMA METÁFORA PARA UMA DISSERTAÇÃO

CAPÍTULO I - ITINERÁRIO TEÓRICO EM TORNO DA PRODUÇÃO DOS FENÓMENOS SIMBÓLICOS

Ponto de partida: a trilogia dos fundadores...................................................p.  14

1.1.  Karl marx e o materialismo histórico.............................................................p.  14

1.2.  Émile Durkheim e a tendência para a reificação da sociedade...................p.  20

1.3.  Max Weber e a produção de sentido..............................................................p.  28

1.4.  Breve balanço.....................................................................................................p. 33

2.     Tendências actuais da sociologia no estudo da cultura..................................p. 35

2.1. A análise da vida quotidiana: fenomenologia social, etnometodologia e interaccionismo simbólico

            2.2. A sociedade como totalidade: funcionalismo, estruturalismo e pós-estruturalismo

            2.3. Breve balanço e reencaminhamento em direcção à complexidade..............p. 51

            2.4. Algumas "teorias de síntese"............................................................................p. 57

            2.4.1. Clifford Geertz e a concepção semiótica de cultura....................................p. 58

            2.4.2. Peter Berger e Thomas Luckmann - a construção social da realidade

            2.4.3. Pierre Bourdieu e o conhecimento prático do mundo................................p. 63

            2.4.4. Anthony Giddens e a teoria da estruturação...............................................p. 68

3. Novo ponto de partida em direcção a uma análise pluriperspectivada dos fenómenos culturais

CAPÍTULO II - O LUGAR DOS PÚBLICOS......................................................p. 80

2.1. De um modelo estático e hierarquizado dos níveis de cultura a um modelo dinâmico e plural

            2.2. Diferentes olhares sobre o lugar dos públicos e os gostos culturais............p.  92

            2.2.1. A lógica das homologias..................................................................................p. 92

            2.2.2. Perspectivas complementares e/ou alternativas - a questão pós-moderna

3.     Transformações na esfera das identidades....................................................p. 111

CAPÍTULO III - Os públicos em acção ou o ofício de receptor........................p. 114

1.     Análise da recepção cultural como prática social.........................................p. 114

2. A resistência cultural e as classes populares....................................................p. 127

3. Diferentes tipos de recepção cultural e o papel da animação sócio-cultural

4. Os contextos da recepção....................................................................................p. 138

5. O estético no quotidiano e a dupla função da moda

CAPÍTULO IV - A CULTURA N(D)A CIDADE

1. A cidade e os comportamentos humanos: diferentes perspectivas

2. A cidade e a apropriação do espaço

3. Redução semântica versus explosão do simbólico

4. Intervenção cultural em espaço urbano

CAPÍTULO V - POLÍTICAS E PRÁTICAS CULTURAIS EM PORTUGAL: PONTO DE SITUAÇÃO E GRANDES TENDÊNCIAS

1.Uma visão de conjunto

1.1.  A domesticidade e a sedentarização cultural

1.2.  O peso do capital escolar

1.3. A juvenilidade das práticas culturais

1.4. Distinções segundo o género

2. Uma exclusão amplamente partilhada

3. Uma política cultural inexistente?

CAPÍTULO VI - BREVE RETRATO DA SOCIEDADE PORTUGUESA NOS ANOS 90

1. Da necessidade de contextualizar as práticas culturais

2. Evolução demográfica e reordenamento do território

3. Reordenamento do território e assimetrias regionais: retrato de um país a várias velocidades

3.1.  A sociedade dualista

3.2.  A complexificação do xadrez territorial

3.3.  O modelo de desenvolvimento português: rupturas e permanência

CAPÍTULO VII - O PORTO DOS ANOS 90

1. O Norte no conjunto do país

2. A área metropolitana do Porto no conjunto do Norte

3. O Porto no conjunto da área metropolitana

4. Novo ponto de partida

CAPÍTULO VIII - DO PORTO ROMÂNTICO À CIDADE DOS CENTROS COMERCIAIS. BREVE VIAGEM PELO TEMPO

 

I. O Porto de Oitocentos

1. A burguesia triunfante

2. Vida cultural, sociabilidades e estilos de vida da «boa sociedade»

3. O reverso da «boa sociedade»

            II. O novo século

1. As novidades

2. Uma nova realidade: a metrópole

3. Um período de discrição e semiclandestinidade

4. Uma nova fase: a aplicação de uma política cultural autárquica

5. As novas faces da cidade

CAPÍTULO IX - ESTRATÉGIAS DE PESQUISA

1. Elogio do ecletismo metodológico

2. Breve reflexão sobre as técnicas utilizadas

            2.1. Análise documental de fontes estatísticas

            2.2. Entrevistas exploratórias

            2.3. O inquérito por questionário

            2.4. As entrevistas semi-directivas

            2.5. A observação directa

3. Um estudo de casos comparativo

4. Uma nova grelha de classificação das práticas culturais

CAPÍTULO X - ESPAÇOS E TEMPOS DE UMA INVESTIGAÇÃO

1.Rivoli: a fénix renascida

1.1. Breve historial

 

1.2.Um novo modelo organizacional e de programação cultural

 

1.3.  As expectativas do campo cultural portuense

2. A esplanada da Praia da Luz

            2.1. Uma certa cultura mundana

2.2. A programação: uma ilustração da expansão do campo cultural

3. B Flat: um clube de jazz?

3.1. Um francês em Portugal

4. As «vozes» da noite

 

4.1.  Os lugares da noite

4.2.  A noite e os seus paradoxos

CAPÍTULO XI - DOS PÚBLICOS, DA CULTURA E DAS SUAS PRÁTICAS

1. Caracterização genérica

1.1. Uma «cultura jovem»

2. Género: o fim do «duplo padrão» de comportamento?

            3.1. Espaços, perfis de públicos e formas de apresentação

            3.1.1. Praia da Luz ou a cidade e a moda: em direcção a um habitus plasticizado?

            3.1.2. B Flat: ecletismo, mas

            3.1.3. Rivoli

            3.2. Espaço, competências e modelos simbólicos dos públicos

3.4.  Breve síntese8

A)   Praia da Luz

B)    B Flat

C)    Rivoli

4.     Capital escolar, trajectórias sociais e práticas culturais

4.1. Estrutura do capital escolar: o peso da origem social e a correcção da trajectória

4.2. Da insuficiência do capital escolar como princípio explicativo

4.3. Da desertificação do espaço público e suas consequências

4.4. Cultura e redes sociais

CAPÍTULO XII - DA RECEPÇÃO CULTURAL

1.     A recepção, o corpo e os seus contextos

1.1.  As palmas ou a ambivalência dos comportamentos

1.2.  Theatrum mundi ou o palco do público

2.     Recepção cultural e horizonte de expectativa

3.     Representações sociais da recepção

4.     Televisão e fast thinkin

CAPÍTULO XIII - DOZE CONCLUSÕES PARA UMA TESE

1.     Doze conclusões

2.     Uma tese: a (pós)modernidade num continuum

BIBLIOGRAFIA

1.     Livros

2.     Artigos

ANEXOS

Anexo I

Anexo II

Anexo III

Anexo IV

Anexo V



[1] AGRADECIMENTOS

Esta dissertação de doutoramento não teria sido possível sem a prontidão com que a Drª Isabel Barbosa e o Professor Ivo Carneiro de Sousa diligenciaram no sentido de apresentarem a minha candidatura aos apoios do PRODEP. Da mesma forma guardo como excelente lembrança o incentivo com que, sem hesitação, o Professor António Teixeira Fernandes me motivou a prosseguir, bem como a cooperação por si constantemente reiterada.

               Ao meu orientador e amigo José Madureira Pinto, exemplo de honestidade e rigor, devo a sagacidade e a oportunidade dos seus comentários críticos (que muito frequentemente acertaram no alvo...) assim como a inesquecível lição de que "mais importante do que salvar a teoria é salvar a realidade" (espero não o ter desiludido...).

               Da mesma forma, saliento os preciosos contributos informais, "recolhidos" em inúmeras conversas e sessões de trabalho, dos meus colegas do Observatório das Actividades Culturais, em particular Maria de Lourdes Lima dos Santos, António Firmino da Costa, Eduardo de Freitas, Idalina Conde e João Sedas Nunes.

               Do ponto de vista institucional não posso igualmente deixar de referir a preciosa ajuda que o suporte bibliográfico do GEDES (Gabinete de Estudos de Desenvolvimento do Território) me prestou.

               Uma especial palavra de agradecimento a todos os que colaboraram directamente neste trabalho, nomeadamente André Aleixo, Helena Gradim, João Mata, Nuno Almeida Alves, Paula Pechincha, Rosa Carvalho, Rui Pinto e Sofia Alexandra Cruz.

               À família Pinho (Srª D. Madalena, Sr Jorge, Madalena Sofia e Sara) agradeço a generosa cedência da sua casa de praia, onde preparei e redigi uma parte significativa desta dissertação e ao Filipe, por me ter prontamente disponibilizado um precioso computador portátil.

               À minha família e aos amigos, pela insubstituível e incontornável raiz dos afectos. À minha Avó Maria Julieta, em particular, por ter lidado de mais perto com os aspectos desagradáveis do convívio com um doutorando.

               À Helena, por tudo ter suportado sem nunca perder o ânimo e a confiança.

 

[2] Este conceito inspira-se no modelo utilizado por Fredric Jameson. De acordo com Ana Lúcia A. Gazolla, “Jameson e os seus defensores argumentam (...) que seu modelo rejeita os esquemas redutores do modelo ortodoxo de base e estrutura (...) para conectar as várias esferas da existência social, tais como a economia, o estado e a cultura, sem estabelecer dependências mecanicistas. A utilização da categoria dialéctica da mediação permite relacionar essas diversas esferas sem reduzir uma à outra”, vd. “Fredric Jameson: uma epistemologia ativista” in F. Jameson, Espaço e Imagem. Teorias do Pós-Moderno e outros Ensaios”, Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1995, p. 12.

[3] Cf. a este respeito o artigo de Jorge Vala sobre as orientações paradigmáticas em psicologia social, “As representações sociais no quadro dos paradigmas e metáforas da psicologia social” in Análise Social, nº 123-124, 1993, em particular pp. 890 e 895. Apesar de se situar num campo disciplinar diferente do nosso, a reflexão sobre o seu carácter de interface e mediação ajudou-nos a sedimentar a nossa perspectiva.

[4] Tal é a proposta, reducionista a nosso ver, de Jeffrey C. Alexander, vd. “Cultural sociology or sociology of culture (Toward a strong program)”, American Sociological Association, www.art.cult2.htm.

[5] Varela, citado por Jorge Vala, vd. art. cit., p. 907.

[6] Vd. Clifford Geertz, A Interpretação das Culturas, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1978, p. 227.

[7] Karl Marx, “Misère de la philosophie: réponse à la philosophie de la misère de M. Proudhon” in Oeuvres, Paris, Gallimard, 1969, p. 79.

[8] Vd. K. Marx e F. Engels, A Ideologia Alemã, Lisboa, Editorial Presença/Livraria Martins Fontes, 1974, Volume I, p. 17.

[9] Idem, ibidem, pp. 24‑25.

[10] Idem, ibidem, p. 26.

[11] Idem, ibidem, p. 26.

[12] Idem, ibidem, p. 56.

[13] Giddens refere mesmo que o ponto crucial em Marx é “a afirmação de ordem geral de que a consciência é determinada pela actividade humana em sociedade”; cf. A. Giddens, Capitalismo e Moderna Teoria Social, Lisboa, Presença, 1984, p. 76.

         Berger e Luckmann seguem na mesma linha, ao dissociarem as teses neo‑marxistas do marxismo original: “O que interessava a Marx é que o pensamento humano funda‑se na actividade humana («trabalho» no sentido mais amplo da palavra) e nas relações sociais produzidas por esta actividade. O melhor modo de compreender as expressões «infraestrutura» e «superestrutura» é considerá‑las respectivamente como actividade humana e mundo produzido por essa actividade” in A Construção Social da Realidade, Petrópolis, Vozes, 1985, p. 18.

[14] Karl Marx, “Misère de la Philosophie...”, op. cit., pp. 83‑84.

[15] Carta de Engels a Bloch, onde se refere, a dado passo, que a superestrutura exerce “igualmente a sua acção nas lutas históricas, e em muitos casos, determinando de forma preponderante a sua forma”. Ver a este respeito a abordagem de José Madureira Pinto in Ideologias: Inventário Crítico de um Conceito, Lisboa, Presença/GIS, 1978. O mesmo autor faz ainda notar as referências de Marx às “razões extra‑económicas” que contribuem para a alienação do trabalhador.

[16] A Ideologia Alemã, ed. cit., p. 49.

[17] Vd. Louis Althusser, Pour Marx, Paris, La Découverte, 1996 (em especial o pequeno ensaio “Contradiction et surdétermination (notes pour une recherche)”.

[18] Idem, ibidem, p. 104.

[19] Idem, ibidem, p. 111, sublinhados do autor.

[20] Já para não falar de uma concepção antitética sobre a divisão social do trabalho, tida para Marx como fonte de alienação e para Durkheim como força integradora.

[21] No caso de Marx o social funde‑se com o económico.

[22] José Machado Pais, “Durkheim: das Regras do Método aos métodos desregrados” in Análise Social, nº 131‑132, p. 245.

[23]‑ Vd. Émile Durkheim, De la Division du Travail Social, Paris, PUF, 1996.

[24] Durkheim defende, aliás, que as categorias que servem de base à organização do moderno pensamento abstracto, assentam na lógica dos sistemas primitivos de classificação, já que o conhecimento e as suas coordenadas espácio‑temporais são extraídas da sociedade.

[25] A. Giddens, op. cit., p. 168.

[26] É. Durkheim, As Regras do Método Sociológico, Lisboa, Presença, 1984, p. 18.

[27] É. Durkheim, Les Formes Élementaires de la Vie Religieuse. Le Systéme Totémique en Australie, Paris, P.U.F., 1979.

[28] Vd. Augusto Santos Silva, Entre a Razão e o Sentido, Porto, Edições Afrontamento, 1988, pp. 35‑36.

[29] Vd. A. Teixeira Fernandes, O Conhecimento Sociológico, Porto, Brasília Editora, 1983, p. 21.

[30] José Machado Pais, art. cit., p. 254.

[31] Idem, ibidem, p. 253.

[32] Vd É. Durkheim, As Regras..., p. 24.

[33] José Machado Pais, art. cit., p. 244.

[34] Vd. Franco Crespi, Manual de Sociologia da Cultura, Lisboa, Editorial Estampa, 1997, p. 44.

[35] Idem, ibidem, p. 82.

[36] Ainda segundo Crespi, “O facto de haver concebido a natureza do indivíduo como essencialmente a‑social (...) leva Durkheim a descurar a dimensão que, no indivíduo, deriva da necessidade de determinação, isto é, da busca de uma confirmação da própria identidade (...) os indivíduos são ao mesmo tempo, potencialmente a‑sociais, pela sua capacidade de negação das objectivações, e potencialmente sociais, devido à sua necessidade de identificação”, ibidem, p. 85.

[37] Vd. Max Weber, Economia y Sociedad, Mexico, Fondo de Cultura Economica, 1944, p. 4.

 [38] Idem, ibidem.

 [39] Vd. Frank Parkin, Max Weber, Oeiras, Celta Editora, 1996, p. 2.

 [40] Idem, ibidem, p. 12.

 [41] Vd. “Nota da edição inglesa” in Frank Parkin, op. cit., p. viii.

 [42] Vd. Max Weber, Essais sur la Théorie de la Science, Paris, Plon, 1965, p. 258.

 [43] É clara a influência em Weber do historicismo alemão e, em particular, de Wilhelm Dilthey, nomeadamente, quando este defende a especificidade dos objectos histórico‑sociais e a irredutível singularidade de cada tempo histórico. De igual forma, a importância da compreensão, do papel cognitivo do sujeito culturalmente motivado e da empatia entre observador e actor surgem já com grande evidência na obra deste autor.

 [44] A. Teixeira Fernandes, O Social em Construção, Porto, Figueirinhas, 1983, p. 92.

 [45] Vd. Max Weber, Essais..., op. cit., p. 267.

 [46] Frank Parkin, op. cit., p. 4.

 [47] Idem, ibidem.

 [48] A. Santos Silva, Entre a Razão..., p. 49.

 [49] Max Weber citado por Augusto Santos Silva, op. cit., pp. 50‑51.

 [50] Frank Parkin, op. cit., p. 2.

 [51] Durkheim, a propósito do suicídio, refere a impossibilidade de o analisar cientificamente a partir das pré‑noções do senso comum: “as palavras da língua corrente, como os conceitos que exprimem, são sempre ambíguos e o estudioso que os explorasse tal como os recebe na utilização que deles é feita diariamente, haveria necessariamente de incorrer em graves confusões”, vd. O Suicídio, Lisboa, Editorial Presença, 1977, p. 7.

 [52] Max Weber, Sobre a Teoria das Ciências Sociais, p. 22.

 [53] Idem, ibidem, p. 54.

 [54] Idem, ibidem, p. 89.

 [55] Vd. Frank Parkin, op. cit., p. 15.

 [56] O mesmo autor acrescenta: “Contudo, na realidade, Weber tinha uma inclinação materialista bastante forte. Nos seus escritos políticos, em particular, desvaloriza geralmente a possibilidade de que os valores ou a ideologia possam deixar marcas de modo decisivo nas realidades duras da estrutura social”, ibidem, p. 23.

 [57] Vd. Max Weber, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, Lisboa, Presença, 1983, p. 32.

 [58] Idem, ibidem, p. 137.

 [59] Peter Hamilton, “Nota da edição inglesa” in Frank Parkin, op. cit., p. vii.

 [60] Peter Hamilton, “Nota da edição inglesa” in F. Parkin, op. cit., p. ix.

 [61] Vd. Alfred Schutz, The Structures of the Life‑World, Evanston, Northwestern University Press, 1973, p. 3.

 [62] Idem, ibidem, p. 6.

 [63] Idem, ibidem, p. 15.

 [64] José Madureira Pinto interpreta desta forma a centralidade do estudo das performances corporais em Schutz: “(o corpo) é o centro ou origem de toda a percepção, onde se inscreve o sistema de condições de possibilidade da acção e de apreensão do mundo”; vd. “Questões de metodologia sociológica (II)” in Cadernos de Ciências Sociais, nº 2, p. 122.

 [65] Vd. Peter Berger e Thomas Luckmann, A Construção Social da Realidade, Petrópolis, Vozes, 1985, pp 43.

 [66] Definidos por Schutz como “um estilo particular de experiência de vida” in The Structures..., p.23.

 [67] Vd. Giddens, Novas Regras do Método Sociológico, Lisboa, Gradiva, 1996.

 [68] Como refere Franco Crespi, a propósito de Schutz, “no mundo social a relação com o outro é sempre mediada por modelos de significado já codificados, isto é, por tipificações do agir (...) que, como conjunto de vivências típicas, surgem assimiladas através da comunicação social, ou seja, da linguagem, dos exemplos práticos, do ensino, da leitura, etc.” in op. cit., p. 120.

 [69] Expressão utilizada por G. Poujol e R. Labourie in Les Cultures Populaires, Toulouse, Edouard Privat Éditeur, 1979.

 [70] Anthony Giddens, Novas Regras..., p. 34.

 [71] Idem, ibidem.

 [72] “O objecto da nova forma de análise é o património de conhecimentos de senso comum (etno)usados (método) pelos indivíduos para definir e determinar praticamente a sua realidade social”; vd. F. Crespi, op. cit., p. 124.

 [73] Vd. Harold Garfinkel, “What is ethnomethodology?” in AAVV, The polity Reader in Social Theory, Cambridge, Polity Press, 1994, p. 62.

 [74] Vd. Nicolas Herpin, A Sociologia Americana, Porto, Edições Afrontamento, 1982, pp. 90‑91.

 [75] Vd. F. Crespi, op. cit., p. 126.

 [76] O que, em última análise, como refere Crespi, inviabiliza o próprio exercício das ciências sociais, já que “parece impedir qualquer possibilidade de desenvolver generalizações cognitivas relativamente aos fenómenos sociais no seu conjunto”, ibidem, p. 127.

 [77] H. Garfinkel in Nicolas Herpin, op. cit., p. 92.

 [78] Erving Goffman, A Apresentação do Eu na Vida de Todos os Dias, Lisboa, Relógio d'Água, 1993, p. 9.

 [79] Idem, ibidem.

 [80] Op. cit., p. 80.

 [81] Vd. Erving Goffman, op. cit., p. 131.

 [82] Cf. F. Crespi, op. cit., pp. 113‑116.

 [83] Crespi nota neste aspecto a influência de Parsons.

 [84] Vd. a esse respeito o nosso artigo “As escolas urbanas como cenários de interacção” in Sociologia. Revista da Faculdade de Letras, I Série, vol V, 1995, pp. 91‑150.

 [85] Vd. João Arriscado Nunes, “Erving Goffman, a análise de quadros e a sociologia da vida quotidiana” in Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 37, 1993, p. 45.

 [86] Idem, ibidem.

 [87] Ainda a propósito de Goffman e da sua “perspectiva ecológica” vd. Randall Collins, “Erving Goffman on ritual and solidarity in social life” in AAVV, The Polity Reader in Social Theory, op. cit., pp. 71‑78.

 [88] Um outro ponto significativo em comum prende‑se com o privilegiar das interacções e formas de comunicação não‑verbal, com particular insistência nas performances corporais e gestuais (no caso de Goffman o estudo da face reveste‑se de uma importância particular). Goffman refere claramente que o seu objecto de estudo são principalmente as “expressões emitidas” (e não as “expressões (discursivamente) transmitidas” (Vd. op. cit., pp 15‑19).

 [89] Vd. José Madureira Pinto, Ideologias: Inventário Crítico dum Conceito, Lisboa, Presença/Gabinete de Investigações Sociais, 1978, p. 17.

 [90] Idem, ibidem, p. 25.

 [91] Idem, ibidem, p. 26.

 [92] Anthony Giddens, Novas Regras..., p. 35.

 [93] O princípio da “equivalência funcional” constitui já uma actualização crítica do funcionalismo mais clássico, na medida em que considera que “uma mesma necessidade biológica ou mesmo um imperativo do sistema social poderão encontrar satisfação em formas culturais diversas, enquanto necessidades ou imperativos sociais diversos poderão encontrar satisfação numa mesma forma cultural”, F. Crespi, op. cit., p. 87.

 [94] Saussure citado in A. Giddens, Social Theory and Modern Sociology, Cambridge, Polity Press, 1990, p. 75.

 [95] A propósito da análise sistémica e estrutural, Vd. ainda A. Teixeira Fernandes, O Conhecimento Sociológico. A Espiral Teórica, Porto, Brasília Editora, 1983, pp. 37‑104.

 [96] Vd. Gilles Deleuze, “Como reconhecer o estruturalismo” in François Châtelet (dir.), A Filosofia do Século XX, Lisboa, Publicações D. Quixote, 1981, p. 278.

 [97] Vd. Michel Foucault, O que é um Autor?, Lisboa, Vega, 1992, p.36.

 [98] Aqui em sentido lato, pretendendo englobar igualmente a abordagem etnometodológica e interaccionista.

 [99] Pense‑se nas trocas de sentido, nas transferências semânticas, nos jogos de palavras, na montagem de indícios que conduzem a interpretações erradas, etc., já para não se falar nas ocasiões em que intencionalmente se transmitem falsas informações.

 [100] Como refere José Machado Pais, “no «conhecimento prático» ou «quotidiano» (...) a rotina aparece como uma espécie de «cunha» entre as acções «inconscientes» (tomada a expressão no seu corrente sentido psicológico) e aquelas que são levadas a cabo de uma forma deliberadamente consciente”, vd. “Nas rotas do quotidiano” in Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 37, 1993, p.109.

 [101] A este propósito, Adriano Duarte Rodrigues, ele próprio um adepto das abordagens fenomenológicas, refere o seguinte:”... os indivíduos inseridos na multiplicidade de quadros que definem a vida quotidiana nunca esgotam, nas suas manifestações, a totalidade dos papéis que desempenham nem dão, por conseguinte, a ver totalmente a sua identidade”, vd. “Para uma sociologia fenomenológica da experiência quotidiana” in Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 37, 1993, pp. 123‑124.

 [102] Idem, ibidem, p. 118.

 [103] Vd. “The micro‑sociological challenge of macro‑sociology: towards a reconstruction of social theory and methodology” in knorr-Cetina e A.V. Cicourel (orgs.) Advances in Social Theory and Methodology - Toward an Integration of Micro and Macro-Sociologies, Routledge and Kegan Paul, 1981.

 [104] Anthony Giddens, Novas Regras..., p. 34.

 [105] Vd. Social Theory..., op. cit.

 [106] Idem, ibidem, pp. 79‑80

 [107] Atente‑se no caso paradigmático da entrevista e de todos os problemas levantados pela influência de factores como os estatutos e papéis sociais do entrevistador e do entrevistado e da forma como mutuamente se percepcionam e avaliam durante a situação interaccional que a entrevista representa.

 [108] Vd. José Madureira Pinto, Propostas para o Ensino das Ciências Sociais, Porto, Ed. Afrontamento, 1994, em especial pp. 197‑200.

 [109] Expressão de autoria de José Madureira Pinto, vd. op. cit.

 [110] Expressão de Pierre Bourdieu, vd. Réponses, Paris, Éditions du Seuil, 1992.

 [111] Vd. Clifford Geertz, A Interpretação das Culturas, Rio de Janeiro, Zahar editores, 1978, p. 15.

 [112] Idem, ibidem, p. 20.

 [113] Vd. Clifford Geertz, op. cit., p. 21.

 [114] Idem, ibidem, p.30.

 [115] Idem, ibidem, p. 34.

 [116] Uma vez mais é notória a aproximação a Weber.

 [117] Idem, ibidem, p. 36.

 [118] De Karl Mannheim retiram a defesa do «relacionismo», enquanto “sóbrio reconhecimento de que o conhecimento tem sempre de ser conhecimento a partir de uma certa posição”, vd. A Construção Social da Realidade, Petrópolis, Vozes, 1985, p. 23.

 [119] Berger e Luckmann, A Construção Social da Realidade, Petrópolis, Editora Vozes, 1985, p. 34.

 [120] Definidas como “tipificação recíproca de acções habituais por tipos de actores”, op. cit., p. 79.

 [121] Idem, ibidem, p. 84.

 [122] Idem, ibidem, p. 87.

 [123] Da mesma forma, não concordamos com a crítica formulada por Moisés de Lemos Martins a Berger e Luckmann, designadamente quando refere que a sua proposta se reduz “à experiência ou intenção do sujeito”. De facto, os nossos autores são muito claros na rejeição de um subjectivismo simplista, conferindo uma grande importância aos processos de institucionalização e de socialização que condicionam os agentes (Vd. Moisés de Lemos Martins, “A epistemologia do saber quotidiano” in Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 37, 1993, pp. 79‑100).

 [124] Veja‑se como esta proposta se aproxima do conceito de habitus de Bourdieu, designadamente enquanto processo de interiorização da exterioridade e de exteriorização da interioridade.

 [125] Pensemos, por exemplo, nas tipificações associadas aos diversos papéis sociais.

 [126] P. Berger e T. Luckmann, op. cit., p. 87.

 [127] Cf. J. D. Wacquant, in Pierre Bourdieu, Réponses..., op. cit, pp. 16‑20.

 [128] Bourdieu critica ao objectivismo estruturalista o ponto de vista “soberano” sobre a acção social em que as práticas sociais aparecem como meras execuções de agentes passivos, bem como a reificação das estruturas, tidas como entidades autónomas que se substituem à vontade dos agentes. Por outro lado, distancia‑se das correntes fenomenológicas e hermenêuticas, ao impor o princípio de recusa da “ilusão da transparência” e assumindo o primado do sistema de relações sociais. Desta forma, consegue conciliar o interesse pelas actuações interpretativas dos agentes, sem resvalar para um conceito minimalista de estrutura social, tida pelas correntes hermenêuticas como mero resultado ou agregado das acções conscientes dos indivíduos.

 [129] Vd. Pierre Bourdieu, Raisons Pratiques, Paris, Éditions du Seuil,1994, p. 9.

 [130] Cd. Pierre Bourdieu, “Le Sens Pratique” in Actes de la Recherche en Sciences Sociales, nº 1, 1976, p. 43.

 [131] Sistema estruturado de posições em concorrência pela definição legítima das regras do jogo e dos limites do próprio campo, regido por interesses não totalmente redutíveis às outras esferas (ou campos) da acção social.

 [132] J. D. Wacquant in Pierre Bourdieu, op. cit., p. 22.

 [133] Conciliando, por isso, as abordagens durkheimianas e weberianas.

 [134] Pierre Bourdieu, Questions de Sociologie, Paris, Les Éditions de Minuit, 1984, p. 134.

 [135] Idem, ibidem, pp. 134‑135.

 [136] Vd. Paulo Filipe Monteiro, “Bourdieu e as críticas que cairam ao chão” in Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 37, 1993, pp. 101‑103.

 [137] Além do mais, Bourdieu refere explicitamente que não há dois habitus iguais, assim como não há duas pessoas iguais, apesar de haver, pela existência de um habitus de classe, maior ou menor probabilidade de realização de determinadas acções (vd. José Madureira Pinto, Ideologias..., pp 108‑115). O habitus reproduz de uma “forma transformada” as condições objectivas de que é produto.

 [138] Vd. Pierre Bourdieu, Le Sens..., p. 85.

 [139] Vd. Pierre Bourdieu, Lição sobre a Lição, V. N. de Gaia, Estratégias Criativas, s/ data, pp. 45‑46.

 [140] Idem, ibidem, pp. 46‑47.

 [141] Idem, ibidem, p. 48.

 [142] Vd. Anthony Giddens, Novas Regras do Método Sociológico, Lisboa, Gradiva, 1996, p. 7.

 [143] Vd. a este respeito, Fernando J. García Selgas, Teoría Social e Metateoría hoy ‑ El Caso de Anthony Giddens, Madrid, Siglo XXI Editores, 1994, em especial pp. 104‑113.

 [144] Como refere Fernando J. García Selgas, op. cit., existe uma constelação de factores históricos que influencia fortemente a produção teórica de Giddens, nomeadamente a recessão económica e o fim do optimismo ocidental, o desabar dos regimes “comunistas”, o subdesenvolvimento de grande parte do globo e as novas desigualdades no seio das sociedades “desenvolvidas”.

 [145] Do marxismo, Giddens retira a noção de praxis e a defesa do carácter descontínuo da modernidade.

 [146] Ou, se preferirmos, conciliando produção e reprodução, mudança e estabilidade, diacronia e sincronia.

 [147] A. Giddens, “Elements of the theory of structuration” in AAVV, The Polity Reader in Social Theory, Cambridge, Polity Press, 1994, p. 81.

 [148] Em inglês, Agency. Refere‑se à capacidade de fazer coisas, ou seja, ao poder. Liga‑se, por isso, às principais características da acção: capacidade, cognoscibilidade e continuidade espácio‑temporal, vd. F. J. García Selgas, op. cit., p. 128.

 [149] “Vêem os seres humanos como agentes decididos, conscientes de si próprios, enquanto agentes e encontrando razões para aquilo que fazem, mas têm poucos meios para lidarem com assuntos que assentam largamente em perspectivas funcionalistas e estruturais – problemas de constrangimento, poder e organização social em larga escala”, vd. Novas Regras..., p. 12.

 [150] “Os agentes são tratados como inertes e incapazes – marionetas de poderes mais fortes do que eles”, idem, ibidem.

 [151] Vd. J. García Selgas, op. cit., p. 80.

 [152] Vd. Anthony Giddens, Novas Regras..., p. 14.

 [153] Idem, ibidem, p. 141.

 [154] Idem, ibidem, p. 23.

 [155] Idem, ibidem, p. 21.

 [156] Idem, ibidem, p. 119.

 [157] Idem, ibidem, p. 134.

 [158] Uma vez mais torna‑se fundamental atender à linguagem do corpo nos contextos de co‑presença.

 [159] Vd. Anthony Giddens, Novas Regras..., p. 122.

 [160] Idem, ibidem, p. 121.

 [161] Daí a linguagem só poder ser entendida enquanto um conjunto de significados enraízados nos cenários de interacção da vida quotidiana.

 [162] Vd. A. Giddens, Social Theory and Modern Sociology, Cambridge, Polity Press, 1990, p. 99.

 [163] Segundo Giddens, constrangimentos de competências e de ligação, isto é, referentes a actividades levadas a cabo com outras pessoas, vd. A. Giddens, “Time, space and regionalisation” in Derek Gregory e John Urry (eds), Social Relations and Social Structures, London, MacMillan, 1985.

 [164] Ou mesmo uma metateoria, enquanto um conjunto de “esquemas interpretativos de carácter filosófico com o intuito de entender esses esquemas interpretativos da realidade que chamamos teorias científicas”, U. Moulines in Fernando J. García Selgas, op. cit., p. 20.

 [165] É a este respeito bastante clara a sua afirmação de que “todos os sistemas sociais de larga escala dependem, de facto, dos padrões da interacção social” in Sociology, Cambridge, Polity Press, 1993, p. 91.

 [166] Expressão de Augusto Santos Silva, vd. Tempos Cruzados — Um Estudo Interpretativo da Cultura Popular, Porto, Ed. Afrontamento, 1994, em especial os primeiros capítulos.

 [167] Vd. Tristes Escolas — Um Estudo Sobre Práticas Culturais Estudantis no Espaço Escolar Urbano, Porto, Ed. Afrontamento, 1997.

 [168] Vd. F. J. García Selgas, op. cit., em especial a introdução.

 [169] Daniel Roche critica o modelo de hierarquização da “cave ao sotão”, baseado numa grelha que ordena “os factos do económico ao social, do social ao cultural, em níveis sucessivos”, vd. “Uma declinação das Luzes” in Jean‑Pierre Rioux e Jean‑François Sirinelli (coords.), Para Uma História Cultural, Lisboa, Editorial Estampa, 1998.

[170] Utilizando a argumentação de Paulo Filipe Monteiro face à relação arte/sociedade, poderemos afirmar que a dimensão simbólico‑cultural não está de fora, nem tão‑pouco perante a sociedade; ela está na sociedade, dela fazendo parte integrante, vd. Os Outros da Arte, Celta, Oeiras, 1996, p. 19.

 [171] Vd. M. de L. Lima dos Santos, “Deambulação pelos novos mundos da arte e da cultura” in Análise Social, n.º 125‑126, 1994, p. 424.

 [172] Becker dá o exemplo do desenvolvimento do romance, que apenas se tornou possível devido a um novo conceito de ficção assente na difusão generalizada da literacia junto dos trabalhadores e das classes médias, que não tinham, todavia, os conteúdos de uma educação “clássica” necessários para a apreciação de géneros mais formais, vd. Art Worlds, Berkeley, University of California Press, 1982.

 [173] Conceito que desenvolveremos adiante.

 [174] Vd. Paul DiMaggio, “Classification in Art” in American Sociological Review, vol. 52, 1987, pp. 440‑455.

 [175] Louis Dollot, Culture Individuelle et Culture de Masse, Paris, P.U.F., 1993, p. 51.

 [176] Vd. a este respeito a obra de Augusto Santos Silva, Tempos Cruzados. Um Estudo Interpretativo da Cultura Popular, Porto, Ed. Afrontamento, 1994, em especial o capítulo IV.

 [177] Data desta altura o fenómeno que Jacques Leenhardt caracterizou como o da confiscação da produção artística por determinadas classes e grupos sociais. Este período opõe‑se a um outro, anterior, em que a indiferenciação dos públicos era a pedra de toque, e em que não se pode sequer falar da existência do subcampo da arte erudita. Apenas existe “uma arte que fala a toda a gente da mesma maneira, em função de um código recebido e interiorizado por todos”, vd. “Recepção da obra de arte” in Mikel Dufrenne (org.), A Estética e as Ciências da Arte, Amadora, Bertrand, 1982, p. 63.

 [178] Vd. Maria de Lourdes Lima dos Santos, “Questionamento à volta de três noções (a grande cultura, a cultura popular, a cultura de massas)” in Análise Social, nº 101‑102, 1988, p. 690 ou então na obra colectiva organizada por Alexandre de Melo, Arte e Dinheiro Lisboa, Assírio e Alvim, 1994, p. 102.

 [179] Vd. Theodor Adorno e Max Horkheimer, Dialectic of Enlightenment, New York, Continuum, 1993. Originalmente publicado em 1944 sob o título Dialektik der Aufklarung.

 [180] Vd. Theodor Adorno, “Culture industry reconsidered” in The Culture Industry: Selected Essays on Mass Culture, London, Routledge, 1991.

 [181] Vd. Walter Benjamin, “A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica” in Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, Lisboa, Relógio d'Água, 1992, p. 79.

 [182] Idem, ibidem, p. 74.

 [183] Idem, ibidem, p. 98.

 [184] Idem, ibidem, p. 110.

 [185] Vd. Herbert Marcuse, Eros e Civilização, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1968.

 [186] Idem, ibidem, p. 141.

 [187] Idem, ibidem, p. 60.

 [188] Vd. Jurgen Habermas, Mudança Estrutural da Esfera Pública, Rio de Janeiro, Edições Tempo Brasileiro, 1984, p. 16.

 [189] Nas palavras de C. W. Mills: “Num público (...) virtualmente tantas pessoas expressam opiniões quantos as recebem. As comunicações são organizadas de tal modo que há uma chance imediata e efectiva de responder a qualquer opinião expressa em público” in J. Habermas, op. cit., p. 289.

 [190] Ainda nas palavras de C. W. Mills: “Numa massa, muito menos gente expressa opiniões do que as recebe, pois a comunidade do público torna‑se uma colecção abstracta de indivíduos que recebem impressões dos meios de comunicação de massa” in Idem, ibidem.

 [191] Vd C. Lalive d'Épinay et al., Temps Libre. Culture de Masse et Culture de Classes Aujourd'Hui, Lausanne, Pierre‑Marcel Favre, 1982, p. 147.

 [192] Vd. Paul DiMaggio, op. cit., p. 440.

 [193] Vd. U. Eco, “Alto, médio, baixo” in Apocalípticos e Integrados, Lisboa, Difel, 1991, p. 53.

 [194] Vd. U. Eco, op. cit., pp. 61‑62.

 [195] Idem, ibidem, p. 69.

 [196] Assim se compreendendo as análises que Eco elaborou a partir da matéria‑prima constituída pelos cartoons, banda desenhada, música ligeira, romances policiais, programas televisivos, etc. Mesmo neste ponto, é clara a reabilitação da cultura de massas enquanto objecto legítimo de estudo académico.

 [197] Diana Crane define esta tendência como uma “busca desesperada de novidade ou de aparência de novidade”, vd. The Production of Culture. Media and the Urban Arts, Newbary Park, Sage, 1992, p. 10.

 [198] Vd. M. L. Lima dos Santos, art. cit., p. 130.

 [199] Vd. Paulo Filipe Monteiro, Os Outros da Arte, Oeiras, Celta, 1996, pp. 122‑123.

 [200] Vd. Howard Becker, op. cit., p. 34.

 [201] Vd. a este respeito a análise da arte comtemporânea como sistema in Alexandre Melo, O Que é Arte, Lisboa, Difusão Cultural, 1994, em especial pp. 13‑31.

 [202] Vd. Diana Crane, op. cit.

 [203] Verifica‑se que os mais poderosos mass media, em especial a TV, subrepresentam, nos seus programas, os trabalhadores manuais, ao contrário do que acontece com as profissões liberais e empresariais.

 [204] U. Eco, op. cit., p. 75.

 [205] Vd. Paulo Filipe Monteiro, op. cit., p. 126.

 [206] Vd. Pierre Bourdieu, Questions de Sociologie, Paris, Les Éditions de Minuit, 1984, p. 61.

 [207] Vd. Pierre Bourdieu, Les Règles de l'Art, Paris, Éditions du Seuil, 1992, p. 300.

 [208] Neste sentido e como refere Augusto Santos Silva, “a sociologia da cultura é, em grande parte, a história da formação da cultura, ou seja, da formação e do funcionamento de campos culturais” in Tempos Cruzados. Um estudo Interpretativo da Cultura Popular, Porto, Edições Afrontamento, 1994, p. 33.

 [209] A autonomia do campo cultural e dos subcampos artísticos varia segundo o grau de subordinação aos princípios da hierarquização externa. Quanto maior for essa dependência, menor é a margem de autonomia.

 [210] Desta forma, Bourdieu recusa “o angelismo do interesse puro pela forma pura” in Les Régles..., p. 15.

 [211] Idem, ibidem, p. 298.

 [212] “(...) estrutura da distribuição das espécies de capital (ou de poder) cuja posse comanda a obtenção de lucros específicos (...) colocados em jogo no campo”, Idem, ibidem, p. 321.

 [213] Idem, ibidem, p.325.

 [214] Vd. a este respeito as distinções entre capital cultural incorporado, capital cultural objectivado e capital cultural institucionalizado; Pierre Bourdieu, “Les trois états du capital culturel” in Actes de la Recherche en Sciences Sociales, nº 30, 1979, pp. 3‑6.

 [215] Vd. Pierre Bourdieu, Les Règles..., p. 356.

 [216] Como Bourdieu refere, descobrir um gosto é sempre uma forma de autodescoberta.

 [217] Cf. Paulo Filipe Monteiro, op. cit., p. 151. Deixamos de lado as referências críticas que o autor de Os Outros da Arte enumera e que nos parecem menores ou mesmo destituídas de pertinência, como a que importa de Hennion e que reduz o elaborado esquema de Bourdieu a uma espécie de sistematização habilidosa da “hipersensibilidade de certas camadas médias ao jogo subtil da diferenciação social”.

 [218] Vd. José Luís Casanova, “Uma avaliação conceptual do habitus” in Sociologia Problemas e Práticas, nº 18, 1995, p. 60.

 [219] Vd. Michel de Certeau, L'Invention du Quotidien 1 Arts de Faire, Paris, Éd. Gallimard, 1990, p. 90.

 [220] Idem, ibidem, p. 92.

 [221] O habitus é concebido em termos de uma improvisação estruturada. Desta forma, as práticas sociais não podem ser mecanicamente deduzidas das suas condições estruturais. Ainda que dentro de limites relativamente estreitos, o habitus possui uma certa margem de manobra.

 [222] Vd. art. cit.

 [223] Bourdieu é claro ao afirmar que “(...) os agentes, por mais estritas que sejam as necessidades inscritas na sua posição, dispõem sempre de uma margem objectiva de liberdade” in Les Règles..., p. 332.

 [224] Vd. Craig Calhoun, Edward LiPuma e Mishe Postone (eds), Bourdieu. Critical Perspectives, Cambridge, Polity Press, 1995.

 [225] Yves Evrard considera que o paradima teórico de Bourdieu acaba por privilegiar, de forma monolítica, uma variável de descrição do consumidor (a classe social) e uma função do consumo (a distinção), esquecendo todas as dimensões “intrínsecas” da experiência cultural, ligadas ao imaginário, à emoção, à fantasia e a uma crescente vertente de fruição hedonista (voltaremos mais adiante a este ponto), cf. “Les déterminants des consommations culturelles” in AAVV, Économie et Culture, Paris, La Documentation Française, 1987.

[226] Vd. Pierre‑Michel Menger, “L'oreille spéculative. Consommation et perception de la musique contemporaine” in Revue Française de Sociologie, vol. XXVII, 1986, p. 447.

 [227] Encontram‑se neste caso os engenheiros, sobrerepresentados no público da música contemporânea e destituídos, na sua maioria, de uma cultura musical aprofundada.

 [228] Idem, ibidem, p. 461.

 [229] Idem, ibidem, p. 466.

 [230] Vd. Patrick Parmentier, “Les genres et leurs lecteurs” in Revue française de Sociologie, XXVII, 1986, pp. 397‑430.

 [231] Idem, ibidem, p. 404.

 [232] Idem, ibidem, p. 404.

 [233] Por exemplo, certas “constelações de interesses” ignoram a clivagem ficção/documentário.

 [234] O estilo de vida é considerado por Mitchell como um modo de vida único baseado em “valores, crenças, necessidades, sonhos e pontos de vista particulares” in Diana Crane, op. cit., p. 39.

 [235] Vd. Diana Crane, op. cit., p. 37.

 [236] Vd. Jean‑François Lyotard, “Apostila às narrativas” in O Pós‑Moderno Explicado às Crianças, Lisboa, Publicações D. Quixote, 1987, pp .31‑34.

 [237] Vd. Zygmunt Bauman, “Modernity and ambivalence” in AAVV, The Polity Reader in Social Theory, Cambridge, Polity Pres, 1994, pp. 351‑361.

 [238] Vd. Jean Baudrillard, “De la marchandise absolue” in A. Melo (org.), Arte e Dinheiro, Lisboa, Assírio e Alvim, 1994, p. 36.

 [239] Jean‑François Lyotard, “Resposta à pergunta: o que é o pós‑moderno?” in op. cit., p. 19.

 [240] Esta posição é defendida, entre outros, por Gillo Dorfles, vd. Modas e Modos, Lisboa, Edições 70, 1990, em especial pp. 59‑64.

 [241] Alguns falam mesmo do regresso do social. Mas como falar do regresso de algo que nunca nos deixou?

 [242] Vd. Robert Castel, “L Ávènement d'un individualisme négatif in Magazine Littéraire, 1996.

 [243] Christian Lalive d'Epinay et al., Temps Libre..., ed. cit.

 [244] “Enquanto que o indivíduo era antes de tudo concebido como produtor, sendo o consumo privilégio de uma minoria, na fase da sociedade industrial ascendente, ele é doravante redefinido como produtor e como consumidor, como trabalhador e como usuário”, Idem, ibidem, p. 43.

 [245] Definido como “conjuntos de trabalhos artísticos classificados na base de similaridades apreensíveis”, vd. “Classification in Art” in American Sociological Review, vol. 52, 1987, p. 441.

 [246] Idem, ibidem, p. 441.

 [247] Idem, ibidem, p. 442.

 [248] Idem, ibidem, p. 443.

 [249] Vd. Augustin Girard, “As investigações sobre as práticas culturais” in Jean‑Pierre Rioux e Jean‑François Sirinelli (coords.), Para uma História Cultural, Lisboa, Editorial Estampa, 1998, pp. 281‑292.

 [250] Sinómino para os americanos de cultura de massas.

 [251] Vd. Paul DiMaggio, art. cit., p. 445.

 [252] Vd. P. F. Monteiro, op. cit., p. 167.

 [253] Vd. Jan C. C. Rupp, “Les classes populaires dans um espace social à deux dimensions” in Actes de La Recherche en Sciences Sociales, nº 109, 1995.

 [254] Vd. José Luís Casanova, art. cit., em especial pp. 61‑67.

 [255] “Sair muito significa associar vários tipos de saídas e de visitas, sair frequentemente e solicitar um conjunto de familiares e de amigos”, vd. “L'évolution des pratiques culturelles des français” in Cahiers Français Culture et Societé, Paris, La Documentation Française, nº 260, s/ data, p. 106.

 [256] Scott Lash e John Urry utilizam esta expressão por oposição ao conceito de “capitalismo organizado”, defendido por Jurgen Kocka. Este último caracteriza‑se, entre outros factores, pela concentração e centralização industrial, pelo incremento da racionalização e burocratização das sociedades segundo o modelo weberiano, pelo crescimento urbano e, no plano ideológico, pela glorificação da ciência e da técnica. Pelo contrário, o paradigma do “capitalismo desorganizado” defende a integração à escala mundial das economias, com o consequente declínio das actividades e empresas nacionais, pelo incremento dos serviços e das profissões liberais, ligados a maiores investimentos pessoais na formação, pelo declínio em termos absolutos e relativos da classe trabalhadora, pelos novos movimentos sociais que cada vez mais actuam fora da esfera política institucionalizada, pelo declínio do volume de emprego, e, no plano ideológico, pela fragmentação e pluralismo conceptuais, vd. Scott Lash e Johen Urry, “The end of organized capitalism” in AAVV, The Polity Reader..., pp. 267‑275.

 [257] Vd. Jorge Vala, “Identidade, estruturas cognitivas e transformações culturais” in AAVV, Dinâmicas Multiculturais Novas Faces Outros Olhares, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 1996, p. 26.

 [258] Vd. Diana Crane, op. cit., p. 13.

 [259] Vd. Anthony Giddens, As Consequências da Modernidade, Oeiras, Celta, 1992.

 [260] Vd. José Azevedo, “Perspectivas psicossociais no estudo da identidade” in Sociologia, Faculdade de Letras do Porto, Vol.II, 1992, p. 115.

[261] Vd. Augusto Santos Silva, “Identidades sociais: continuidade e mudança” in AAVV, Dinâmicas Multiculturais..., ed. cit., pp. 33‑34.

 [262] Idem, ibidem.

[263] Vd. Jorge Vala, art. cit., p. 28.

[264] Vd. Otávio Velho, “Valores sociais, modernidade e movimentos sociais, vistos da perspectiva dos processos de globalização” in AAVV, Dinâmicas Multiculturais..., ed. cit., p. 60.

[265] Idem, ibidem, p. 59.

 [266] Vd. Augusto Santos Silva, Tempos Cruzados ‑ Um Estudo Interpretativo da Cultura Popular, Porto, Edições Afrontamento, 1994.

 [267] Vd. “Alguns contributos para o (re)pensar da noção de recepção cultural” in Cadernos de Ciências Sociais, nº 15‑16, 1996, pp. 121‑131 e ainda “A experiência estética como prática social” in Cadernos de Ciências Sociais, nº 18, 1998, pp. 110‑113.

 [268] Umberto Eco, Apocalípticos e Integrados, Lisboa, Difel, 1991.

 [269] Idem, ibidem, p. 85.

 [270] Vd. Umberto Eco e o Texto Aberto, Lisboa, Difel, 1998, p. 45.

 [271] Vd. Os Outros da Arte, Oeiras, Celta, 1996.

 [272] Vd. Pour une Esthétique de la Recéption, Paris, Gallimard, 1978. A sua proposta dirige‑se à literatura. No entanto, dado o aprofundamento e o grau de abstracção da sua abordagem, pensamos que pode ser aplicada a qualquer forma de expressão artística e cultural.

 [273] “A obra que tinha o dever de conferir a imortalidade passou a ter o direito de matar, de ser a assassina do seu autor”, vd. Michel Foucault, O Que é um Autor?, Lisboa, Vega, 1992, p. 36. Ou ainda António Hespanha: “Se o sujeito deixou de estar na génese dos textos (...) o autor saiu daqui. Saiu daqui e ficou estilhaçado”, vd. “Nota sobre algumas perspectivas recentes sobre questões tradicionais da história dos saberes” in AAVV, Dinâmicas Multiculturais. Novas Faces. Outros Olhares, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, 1996, p. 49, volume I.

 [274] Vd. a este respeito Jean‑Christophe Marcel, “L'évolution des pratiques culturelles des français” in Yves Léonard (dir.), Culture et Societé. Cahiers Français, Paris, La Documentation Française, n.º 260, s/ data, pp. 102‑108.

 [275] Vd. H. Robert Jauss, op. cit., p. 45.

 [276] Definido por Jauss como um “sistema de referências objectivamente formulável” in op. cit., p. 49.

 [277] Proporcionando uma “fusão de horizontes” (noção herdada de Gadamer) baseada na tensão entre a historicidade do texto (diacronia) e o tempo presente da sua apropriação (sincronia).

 [278] Op. cit., p. 43.

 [279] Vd. Prefácio à obra citada de Hans Robert Jauss.

 [280] Vd. Andrea L. Press, “The sociology of cultural reception: notes toward an emerging paradigm” in Diane Crane, The Sociology of Culture, Cambridge, Basil Blacwell, 1994, pp. 221‑245.

 [281] Vd. Maria de Lourdes Lima dos Santos, “«Cultura dos ócios» e utopia” in M. L. L. dos Santos (coord.), Cultura e Economia, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, 1995, p. 166.

 [282] Vd. capítulo II.

 [283] Vd. Peter Bondanella, op. cit., p. 141. No limite, como Eco sagazmente refere, resvala‑se para uma forma contemporânea de gnosticismo (supostamente “pós‑moderna”, mas segundo Eco, muito próxima do hermetismo antigo...) que recusa qualquer possibilidade de interpretação: “Para salvar o texto (...) o leitor tem que suspeitar de que cada linha sua esconde um outro sentido secreto; as palavras, em vez de dizerem, escondem o não dito; a glória do leitor é descobrir que os textos podem significar tudo, excepto aquilo que o seu autor queria que significassem (...) os derrotados são os que terminam o processo dizendo: «compreendi»”, vd. “Interpretação e História” in Stefan Collini (dir.), Interpretação e Sobreinterpretação, Lisboa, Editorial Presença, 1993, p. 41.

 [284] Vd. Umberto Eco, art. cit., p. 29.

 [285] Idem, ibidem, p. 30.

 [286] Vd. U. Eco, “Entre autor e texto” in S. Collini (dir.), op. cit., p. 69.

 [287] Por “tesouro social” Eco entende “não só uma dada língua enquanto conjunto de regras gramaticais mas também toda a enciclopédia que as realizações dessa língua promoveram, nomeadamente as convenções culturais que a língua produziu e a própria história das interpretações anteriores de numerosos textos, compreendendo o texto que o leitor está a ler”, vd. “Entre autor e texto” in S. Collini (dir.), op. cit., p. 63.

 [288] Vd. R. Rorty, “O progresso do pragmatista” in S. Collini (dir.), op. cit., p. 94.

 [289] Idem, ibidem, p. 94.

 [290] Idem, ibidem, p. 96.

 [291] Jauss considera que a obra que se limita a confirmar ou “reconfortar” o horizonte de expectativa do receptor pertence à categoria da “arte culinária”, isenta de inquietação e sentido crítico.

 [292] Vd. Fernando Cascais, art. cit., p. 84.

 [293] Louis Quéré citado por Fernando Cascais, ibidem, p. 85.

 [294] Citado por P. Filipe Monteiro, op. cit., p. 62.

 [295] Intervenção oral registada em Augusto Santos Silva e Vítor oliveira Jorge (orgs.), Existe uma Cultura Portuguesa?, Porto, Edições Afrontamento, 1993, pp. 121‑122. Na mesma linha, e falando do teatro, Jean‑Marie Piemme refere que o espectador‑ideal ocupa o lugar do Outro na dialéctica do imaginário: “Na cabeça daqueles que fazem teatro não há um espectador ideal: há cem. Há mil. Há tantos quantos os seus desejos” in AAVV, Le Rôle du Spectateur. Théâtre Public, nº 55, 1984, p. 51.

 [296] Vd. Pio Ricci Bitti e Bruna Zani, A Comunicação como Processo Social, Lisboa, Editorial Estampa, 1993, p. 39.

 [297] Idem, ibidem, p. 40.

 [298] Poderíamos mencionar aqui o conceito de máximo de consciência possível de Lucien Goldmann. Nas suas palavras, “existem efectivamente informações cuja transmissão é incompatível com as características fundamentais de um determinado grupo social. É o caso em que as informações ultrapassam o máximo de consciência possível do grupo (...) Para além desse limite as informações apenas podem passar se se conseguir transformar a estrutura do grupo” in A Criação Cultural na Sociedade Moderna, Lisboa, Editorial Presença, 1976, pp. 14‑15.

 [299] Pio Ricci e Bruna Zani, op. cit., p. 257.

 [300] Vd. Tempos Cruzados. Um Estudo Interpretativo da Cultura Popular, Porto, Edições Afrontamento, 1994, p. 113.

 [301] Idem, ibidem, p. 121.

 [302] Vd. Michel de Certeau, La Culture au Pluriel, Paris, Éd. du Minuit, 1993, p. 147.

 [303] Vd. Michel de Certeau, L'Invention du Quotidien, 1. Arts de Faire, Paris, Éditions Gallimard, 1990, pp. I‑LIII.

 [304] Definidas por Certeau como “cálculo das relações de força que se torna possível a partir do momento em que um sujeito de querer e de poder é isolável de um «ambiente» (...) lugar susceptível de ser circunscrito como um lugar próprio e de servir de base, por isso, a uma gestão das suas relações com uma exterioridade distinta”, ibidem, p. XLVI.

 [305] A este respeito, refere Maria de Lourdes Lima dos Santos o seguinte: “(...) pode perguntar‑se se determinados contributos da teoria da cultura (Jameson, Giddens, Certeau, etc.) não pecam por excesso de optimismo quando afirmam a presença, implícita ou explícita, da dimensão mediático‑publicitária, ou quando sublinham o papel activo e inovador dos que a consomem, mesmo nos casos social e culturalmente mais desfavorecidos”, vd. “«Cultura dos ócios» e utopia” in Cultura e Economia, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, 1995, p. 165.

 [306] Vd. Idalina Conde, “O sentido do desentendimento nas Bienais de Cerveira: arte, artistas e público” in Sociologia ‑ Problemas e Práticas, nº 2, 1987.

 [307] Uma escultora entrevistada pela autora, chega mesmo a afirmar: “Só não incendiamos a casa porque não nos apeteceu”, vd. art. cit., p. 55.

 [308] Idem, ibidem, p. 60.

 [309] Vd. Diana Crane, The Production of Culture. Media and the Urban Arts, Newbury Park, Sage Publications, 1992, em especial o capítulo V, “Approaches to the analysis of meaning in media culture”, pp. 77‑108.

 [310] De acordo com Bourdieu, o capital cultural pode assumir as formas de capital incorporado, objectivado e institucionalizado, vd. “Les trois états du capital culturel” in Actes de la Recherche en Sciences Sociales, nº 30, 1979, pp. 3‑6.

 [311] Veja‑se, a este respeito, um importante trabalho sobre as capacidades perceptivas, com as suas implicações psicológicas e sociais, de Robert Francès, La Perception, Paris, Presses Universitaires de France, 1992, em especial os capítulos II, V e VI.

 [312] Op. cit., p. 53.

 [313] Idem, ibidem.

 [314] Eco refere‑se a esta antinomia como a luta de uma «cultura de proposta» contra uma «cultura de entretenimento», cf. o capítulo anterior onde se explicita mais pormenorizadamente o pensamento do autor.

 [315] Vd. “«Cultura dos ócios» e utopia” in op. cit., p. 159.

 [316] Op. cit., p. 79.

 [317] Idem, ibidem.

 [318] Veja‑se a este respeito o ressurgimento do iconoclasmo face a obras de arte contemporâneas, em que as populações não reconhecem o carácter propriamente estético dessas obras: Dario Gamboni, “L'iconoclasme contemporain: agressions physiques contre des oeuvres d'art et perception esthétique” in Idalina Conde (coord.), Percepção Estética e Públicos da Cultura, Lisboa, Acarte/Fundação Calouste Gulbenkian, 1992, pp. 35‑43, bem como o artigo já citado desta autora.

 [319] Vd. Jacques Leenhardt, “Recepção da obra de arte” in Mikel Dufrenne (org), A Estética e as Ciências da Arte, Amadora, Bertrand, 1982, p. 78.

 [320] Definida por Anne‑Marie Gourdon nos seguintes termos: “Julgamentos implícitos que não atingem o nível da consciência clara (...) o espectador está preso ao que se percepciona (...) estabelece uma relação mais sentida que conceptualizada entre os diferentes significantes do espectáculo e os seus significados”. Pelo contrário, a recepção de tipo analítico é definida pela capacidade do receptor em se analisar a si próprio como sujeito perceptivo, ao mesmo tempo que reflecte sobre o que é percepcionado, vd. Anne‑Marie Gourdon, “Le public du théâtre et sa perception” in Théâtre Public, nº 55, s/data, p. 9.

 [321] Vd. Wolfgang Welsch, “Aestheticization processes. Phenomena, distinctions and prospects” in Theory, Culture & Society, vol. 13(1), 1996, pp. 1‑24.

 [322] Vd. Pierre Bourdieu, “Éléments d'une théorie sociologique de la perception artistique” in Revue Internationale des Sciences Sociales, nº 4, 1968, p. 645.

 [323] Yves Evrard critica igualmente em Bourdieu uma concepção normativa e “educativa” da relação com a cultura, já que sobrevaloriza os aspectos cognitivos de apropriação dos códigos culturais, negligenciando as dimensões hedonistas, ligadas à emoção e à afectividade, vd. “Les Déterminants des consommations culturelles” in AAVV, Économie et Culture, Paris, La Documentation Française, 1987.

 [324] Vd. art. cit., p. 9.

 [325] Vd. Robert Francès, op. cit., p. 114.

 [326] Dario Gamboni constata a existência de um duplo sentimento de exclusão experimentado pelos habitantes de uma cidade escolhida para uma exposição de escultura em que as obras se encontravam espalhadas pelas ruas e espaços públicos: “(...) exclusão das práticas (estéticas) que esta presença manifestava e exclusão do espaço momentaneamente consagrado a estas práticas”, art. cit., p. 40.

 [327] Vd. “Du jugement de gout la perception esthétique” in Idalina Conde, op. cit.

 [328] Vd “Apprentissage et liberté” in Le Rôle du Spectateur, p. 29.

 [329] Vd. José Madureira Pinto, “História da produção cultural e percepção estética (Comentário ao texto de Bernardo Pinto de Almeida “História da arte e estética da recepção)” in Cadernos de Ciências Sociais, n.º18, 1998, p. 117.

 [330] Vd. E. Prado Coelho, “Os conteúdos das indústrias” in Público. Leituras, 5 de Julho de 1997, p. 8.

 [331] Vd. A. Duarte Rodrigues, op. cit., pp. 108‑109.

 [332] Idem, ibidem, p. 109.

 [333] Paul Ricouer citado por Adriano D. Rodrigues, op. cit., p. 113.

 [334] Como refere Anne Ubersfeld, “desde o momento em que uma pessoa se senta numa sala de espectáculos, esta impõe‑lhe, de imediato, uma configuração que corresponde a certos códigos. De seguida, há uma determinada forma teatral que se conhece, porque já se assistiu a representações utilizando um sistema de códigos semelhante, e uma outra que não se conhece”, vd. “Apprentissage et liberté” in Le Rôle du Spectateur, op. cit., p. 29.

 [335] Vd. “Percepção estética e públicos da cultura: perplexidade e redundância” in Idalina Conde (coord.), Percepção Estética e Públicos da Cultura, Lisboa, Acarte/Fundação Calouste Gulbenkian, 1992, pp. 143‑167.

 [336] Idem, ibidem, p. 160.

 [337] Vd. “Estruturas espaciais e práticas sociais ‑ a inexistente opção entre o local e o global” in Sociologia, I série, volume IV, 1994, pp. 219‑229 e ainda “As escolas urbanas como cenários de interacção” in Sociologia, I Série, volume V, 1995, em especial pp. 91‑107.

 [338] Vd. A. Giddens, Social Theory and Modern Sociology, Cambridge, Polity Press, 1990.

 [339] Tipologia proposta por Brown e Fraser in Pio Ricci Bitti e Bruna Zani, op. cit.

 [340] Pio Ricci Bitti e Bruna Zani, op. cit., p. 52.

 [341] “(...) ângulo em que as pessoas se situam no espaço em relação uma à outra (...) As duas principais orientações que duas pessoas assumem no decurso de uma interacção são as de «cara a cara” e de «lado a lado»” in Pio Ricci Bitti e Bruna Zani, op. cit., pp. 142‑143.

 [342] Vd. Denis Bablet, “Le lieu, la scénographie et le spectateur” in Le Rôle du Spectateur, op. cit., p. 17.

 [343] Vd. Maria de Lourdes Lima dos Santos, art. cit. e ainda “Deambulação pelos novos mundos da arte e da cultura” in Análise Social, nº 125‑126, 1994, em especial pp. 428‑433.

 [344] “Deambulação...”, art. cit., p. 430.

 [345] Vd. Arnold Hauser, A Arte e a Sociedade, Lisboa, Editorial Presença, 1984, p. 48.

 [346] Idem, ibidem.

 [347] Como refere Adriano Duarte Rodrigues “O ideal moderno da arte prosseguiu sempre um constante ideal de ruptura (...) Ao atingir a sua aceleração máxima, este processo de ruptura acaba hoje por se apresentar sob a forma de dissuasão das próprias obras, para se dar a ver de maneira evanescente como sugestão do gesto criador, nos justamente designados happenings, realizações efémeras que se apagam no próprio instante em que se produzem”, vd. Comunicação e Cultura, op. cit., p. 74.

 [348] Idem, ibidem, p. 104.

 [349] W. Welsch refere a este propósito: “O estético não mais pertence meramente à superestrutura, mas sim à base”, art. cit., p. 4.

 [350] Idem, ibidem.

 [351] Ver, a este respeito, para além do artigo já citado de Yves Evrard, os seguintes textos, publicados no mesmo volume (Économie et Culture): Russell W. Belk, “La consommation symbolique d'art et de culture” e Luisa Uusitalo, “Sur la consommation de peinture”.

 [352] Adriano Duarte Rodrigues insiste na diferenciação entre objecto artístico e objecto estético, este fundado na experiência estética que se encontra “de maneira difusa e fragmentária, em todos os domínios da experiência do mundo”, mas realça, igualmente, a aproximação contemporânea que tende a diluir as suas fronteiras, vd. op. cit., pp. 111‑113.

 [353] Vd. art. cit.

 [354] Vd. Georg Simmel, “La mode” in La Tragédie de la Culture, Paris, Éditions Rivages, 1988, p. 92.

 [355] Vd. a este respeito José Machado Pais, “Éticas e estéticas do quotidiano” in Maria de Lourdes Lima dos Santos (coord.) Cultura e Economia, op. cit., pp. 129‑152.

 [356] José Machado Pais, art. cit., p. 130.

 [357] Dossier Público sobre a Conferência do Cairo. Vd. igualmente J. Manuel Nazareth, Princípios e Métodos de Análise da Demografia Portuguesa, Lisboa, Editorial Presença, 1988, em especial a segunda parte.

 [358] 40% nas áreas metropolitanas de Lisboa (25%) e do Porto (15%).

 [359] Vd. Marcel Roncayolo, La Ville et ses Territoires, Paris, Gallimard, 1990, p. 73.

 [360] Vd. “Nota de abertura” in AAVV, Viver (n)a Cidade, Lisboa, Grupo de Ecologia Social (LNEC) e Centro de Estudos Territoriais (ISCTE), 1990, p. 1.

 [361] Nuno Portas define esse quadro semântico a partir de um continuum delimitado pelos seguintes pólos: “concentração e dispersão, artifício e natureza, ruído e calma, mistura e separação, padronização e identidade, ordem e flexibilidade, mundialização e regionalismo, telecomunicação e encontro directo, produtividade e festa, programação e invenção (ou anarquia), infra‑estrutura e cosmética, e como pano de fundo disto tudo, um permanente conflito entre a pressão para satisfazer necessidades quantitativas e as novas aspirações qualitativas” in idem, ibidem, p. 7.

 [362] A esse respeito, Carlos Fortuna cita um aforismo da Alemanha pré‑moderna: Os ares da cidade libertam!; vd. “As cidades e as identidades: patrimónios, memórias e narrativas sociais” in Maria de Lourdes Lima dos Santos (coord.), Cultura e Economia, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, 1995, p. 209.

 [363] Luís Soczka remonta a visão pessimista do urbano “às análises oitocentistas subsequentes ao movimento populacional maciço dos campos para as cidades, em consequência da revolução industrial”, vd. “Ecologia social do risco psicológico em meio urbano” in Viver (n)a Cidade Psicologia. Revista da Associação Portuguesa de Psicologia, Vol. VI, nº 3, 1988, p. 310.

 [364] Vd. “Urbanism as a Way of life” in American Journal of Sociology, nº 44, 1938.

[365] Vd. Georg Simmel, “A metrópole e a vida do espírito” in Carlos Fortuna (org.), Cidade, Cultura e Globalização, Oeiras, Celta, 1997.

 [366] Simmel defende o seu estilo analítico, quando refere: “...sejamos nós adeptos ou opositores dos modos particulares sob que as metrópoles se expressam, estas continuam acima e para além da mais acertada das nossas avaliações (...) a nossa missão não é a de as condenarmos ou aceitarmos, mas tão‑só a de as compreendermos”, vd. art. cit., pp. 42‑43.

 [367] Idem, ibidem, p. 34.

 [368] Idem, ibidem, p. 33.

 [369] O próprio Simmel o afirma: “a metrópole é a sede desta cultura, que eliminou todas as características da pessoa (...) por todo o lado deparamos com impressionantes formas de cristalização e despersonalização dos empreendimentos culturais, perante as quais a personalidade dos homens, por assim dizer, só muito dificilmente pode ser conservada”, vd. art. cit., p. 41.

 [370] Idem, ibidem, p. 36.

 [371] Idem, ibidem, p. 35.

 [372] Questão que Simmel analisa com argúcia a propósito do fenómeno da moda, vd. “La mode” in G. Simmel, La Tragédie de la Culture, Paris, Editions Rivages, 1988.

 [373] G. Simmel, “A metrópole e a vida do espírito” in op. cit., p. 40.

 [374] Como refere Walter Benjamin, “a questão decisiva em Baudelaire é o substrato social, moderno, do «idílio mortal» da cidade. A modernidade é a tónica essencial na sua poesia. É a modernidade que, com o spleen, estilhaça o ideal”, vd. W. Benjamin, “Paris, capital do século XIX” in Carlos Fortuna (org.), op. cit., pp. 74‑75.

 [375] Vd. art. cit., p. 313.

 [376] Segundo exemplo de Soczka, as comunidades chinesas de Hong Kong, apesar de possuírem elevadíssimos níveis de densidade populacional não apresentam a intensidade de manifestações de desregulação social anteriormente referidas.

 [377] Os autores fornecem o exemplo do ruído, defendendo que a sensibilidade aos efeitos que ele provoca dependem, também, da estrutura social e dos modelos culturais: “A diferença vem, não da intensidade do ruído, mas da sensação de harmonia ou de caos, ligada à identificação ou não identificação cultural dos sons.”, vd. La Ville et l'Urbanisation..., p. 32.

 [378] Vd. Jean Rémy e Liliane Voyé, A Cidade: Rumo a uma Nova Definição?, Porto, Edições Afrontamento, 1994, p. 13.

 [379] Vd. Claude S. Fischer, “Toward a subcultural theory of urbanism” in Mark Baldassare (ed.), Cities and Urban Living, New York, 1983, pp. 84‑114.

 [380] Idem, ibidem, p. 89.

 [381] Idem, ibidem, p. 94.

 [382] Vd. Michel de Certeau, L'Invention du Quotidien. 1. Arts de Faire, Paris, Éditions Gallimard, 1990, em particular o capítulo VII.

 [383] Definidos como “estrutura linguística que manifesta sobre o plano simbólico (...) a maneira de estar no mundo fundamental de um homem” in op. cit., p. 151.

 [384] Entendidos como “o fenómeno social através do qual um sistema de comunicação se manifesta de facto” in Idem, ibidem.

 [385] Vd. Susan Sontag, “Sob o signo de Saturno”, Prefácio às obras de Walter Benjamin, Rua de Sentido Único e Infância em Berlim por volta de 1900, Lisboa, Relógio d'Água, 1992, pp. 14‑15.

 [386] Vd. Pierre Pellegrino in AAVV, Viver (n)a Cidade, op. cit., p. 11.

 [387] Categorias de Warren utilizadas por Maria João Freitas, “Redes sociais em meio urbano. Dois bairros sociais da cidade de Lisboa em análise” in AAVV, Viver (n)a Cidade”, op. cit., p. 35.

 [388] Neste aspecto, a abordagem de Rémy e Voyé é bem mais pessimista do que a de Fischer: “Estes pequenos grupos constituem uns tantos ilhéus de solidariedade, ganhando forma num fundo de individuação” in op. cit., p. 89.

 [389] J. Rémy e L. Voyé, op. cit., p. 80.

 [390] Idem, ibidem, p. 85.

 [391] No entanto, Rémy e Voyé não afastam a possibilidade de existência de conflitos. De facto, actores sociais diferentemente posicionados na matriz das hierarquias sociais possuem projectos e interesses distintos (por exemplo, os proprietários de imóveis onde habitam populações desfavorecidas podem ter interesse em despejá‑las, gerando uma situação de antagonismo). De qualquer forma, os actores, apesar de ocasionais movimentos colectivos, encontram‑se atomizados no que se refere à apropriação do espaço, o que pode favorecer lógicas de produção do espaço altamente concentradas e centralizadas.

 [392] Vd. Filomena Silvano e João Neves, “Enraizamento e cosmopolitismo: contributo para uma análise da recomposição urbana” in AAVV, Viver (n)a Cidade, op. cit., p. 119.

 [393] Idem, ibidem.

 [394] Vd. Kevin Lynch, A Imagem da Cidade, Lisboa, Edições 70, 1990, p. 14.

 [395] Idem, ibidem, pp. 11‑12.

 [396] Conceito que nos lembra o horizonte de expectativa de Jauss.

 [397] “Na realidade, um meio ambiente característico e legível não oferece apenas segurança mas também intensifica a profundidade e a intensidade da experiência humana (...) A cidade é potencialmente o símbolo poderoso de uma sociedade complexa. Se for bem desenvolvida do ponto de vista óptico, pode ter um forte significado expressivo” in idem, ibidem, p. 15.

 [398] Vd. A. Teixeira Fernandes, “Espaço social e suas representações” in Sociologia, vol. II, 1992, p. 71. Ver igualmente, na mesma publicação, o artigo de Paula Guerra, “Tecido urbano actual: continuidade ou descontinuidade?”, pp. 145‑175.

 [399] Jean Rémy e Liliane Voyé, op. cit., p. 16.

 [400] Noção de Henri Lefebvre retomada por A. Teixeira Fernandes, art. cit., p. 94.

 [401] Vd. Carlos Fortuna, art. cit., p. 210.

 [402] Joanathan Raban in David Harvey, Condição Pós‑Moderna, São Paulo, Edições Loyola, 1992, p. 17.

 [403] David Harvey, op. cit., p. 293.

 [404] Termo que surge do inglês “gentrification”, com origem na palavra “gentry”, pequena nobreza (Vd. Walter Rodrigues, «Gentrification» e emergência de novos estilos de vida na cidade” in AAVV, Viver (n)a Cidade, op. cit., p. 50). O conceito teve origem nos anos 60, em Inglaterra, com fortes repercussões nos Estados Unidos e rápida institucionalização no vocabulário das ciências sociais.

 [405] “O consumo, como esfera de actividade económica, reconverte a estrutura económica das cidades (...) reconvertendo progressivamente a imagem da cidade que faz substituir a chaminé da fábrica como símbolo da cidade do século passado, pelo espaço de grandes dimensões para o desempenho de actividades de consumo” in Walter Rodrigues, “Urbanidade e novos estilos de vida” in Sociologia Problemas e Práticas, nº 12, 1992, p. 94.

 [406] Vd. Os artigos de Neil Smith e Peter Williams, “Alternatives to orthodoxy: invitation to a debate” e de Robert Beauregard, “The chaos and complexity of gentrification” in N. Smith e P. Williams (eds.), Gentrification of the city; London, Allen e Unwin, 1986.

 [407] Como refere Peter Williams, “Para muitos, a gentrificação na idade adulta segue‑se a uma infância suburbana”, vd. P. Williams, “Class constitution through spacial reconstruction? A re‑evaluation of gentrification in Australia, Britain and the United States” in N. Smith et al., op. cit., p. 68.

 [408] Vd. M. Jager, “Class definition and the esthetics of gentrification: Victoriana in Melbourne” in N. Smith e P. Williams, op. cit., p. 84.

 [409] Jager retoma de Elias o conceito de luta em duas frentes: “Por um lado, as classes médias têm de se defender das pressões das classes dominantes, por outro lado, devem continuar a demarcar‑se das classes mais baixas”, idem, ibidem, p. 80.

 [410] A perspectiva funcionalista da cidade, relacionada com uma racionalidade de tipo burocrático, liga‑se intimamente a uma necessidade de previsibilidade dos comportamentos humanos. A cidade era vista como uma “máquina económica”, defendendo‑se uma visão global sobre a cidade, o que gerava, inevitavelmente, um um planeamento centralizado e rígido de onde resultava uma uniformidade monótona, vd. Jean‑Pierre Gaudin, Les Nouvelles politiques Urbaines, Paris, Presses Universitaires de France, 1993.

 [411] David Harvey, op. cit., p. 95.

 [412] Esta orientação das políticas culturais não é isenta de contornos ideológicos: “Há uma representação ideológica do espaço, porque ele possui também uma dimensão política e estratégica. Alguns grupos sociais apropriam‑no para o explorar e gerir.” in art. cit., p. 87.???

 [413] Vd. Jean‑Pierre Gaudin, op. cit., p. 68.

 [414] Vd. David Harvey, op. cit., p. 299.

 [415] David Harvey define assim esse modelo: “Uma arquitectura do espectáculo, com sua sensação de brilho superficial e de prazer participativo transitório, de exibição e de efemeridade, de joissance, se tornou essencial para o sucesso de um projecto dessa espécie” in op. cit., p. 91.

 [416] Vd. David Harvey, op. cit., capítulo 4.

 [417] “Produtos quase personalizado” nas palavras de Harvey in ibidem, p. 77.

 [418] Vd. Augusto Santos Silva, Elisa Babo, Helena Santos e Paula Guerra, “Agentes culturais e públicos para a cultura: alguns casos ilustrativos de uma difícil relação” in Cadernos de Ciências Sociais, nº 18, 1998.

 [419] Idem, ibidem, pp. 71‑72.

 [420] Idem, ibidem, p. 89.

 [421] Idem, ibidem, p. 92.

 [422] Vd. Augusto Santos Silva, “Políticas culturais municipais e animação do espaço urbano. Uma análise de seis cidades portuguesas” in Maria de Lourdes Lima dos Santos, op. cit., p. 262.

 [423] Vd. José Madureira Pinto, “Uma reflexão sobre políticas culturais” in AAVV, Dinâmicas Culturais, Cidadania e Desenvolvimento Local, Lisboa, Associação Portuguesa de Sociologia, 1994, p. 770.

 [424] Neste campo, como realça Augusto Santos Silva (“O jogo indeciso entre símbolos, práticas e políticas culturais” in AAVV, Dinâmicas..., pp. 683‑721) não importa apenas construir novos equipamentos. A sua gestão deve ser cuidadosamente planeada e executada, de forma a permitir uma real acessibilidade social.

 [425] Idem, ibidem, p. 773.

 [426] Vd. Ignacio Quintana, “Políticas culturales en las grandes ciudades” in Jordi Borja, Manuel Castells et al., Las Grandes Ciudades en la Decada de los Noventa, Madrid, Editorial Sistema, 1990, p. 524.

 [427] Vd. “Intervenção cultural em espaços públicos” in Maria de Lourdes Lima dos Santos (coord.), op. cit., pp. 191‑207.

 [428] Idem, ibidem, p. 199.

 [429] Art. cit., p. 719.

 [430] Para esse efeito e segundo Marielle C. Gros, torna‑se essencial “que os diversos tipos de profissionais renunciem a analisar a “pobreza” exclusiva, ou mesmo, principalmente em termos de deficiências ou outras “faltas” próprias dos agentes que, assim, são reificados numa situação de inferioridade sociológica” in AAVV, Dinâmicas..., p. 474.

 [431] “Políticas culturais municipais...”, art. cit., p. 265.

 [432] Sobre as “artes menores”, ver o artigo de Helena Santos, “Dinamizações a partir das margens? Observações sobre participação sócio‑cultural a partir de algumas «produções culturais»” in AAVV, Dinâmicas..., pp. 677‑682.

 [433] Vd. Jean‑Pierre Gaudin, op. cit., p. 79.

 [434] Segundo David Pratley, a exportação de produtos artísticos representa já para a Grã‑Bretanha cerca de 3% do volume total de exportações, sendo responsável por 23% de novos empregos entre 1981 e 1986. Além do mais, cada novo emprego nas indústrias culturais representa um acréscimo de 1.8 a 2.8 de empregos adicionais na economia regional.

[435] Ruy Vieira Nery, “A esquerda democrática e o princípio do serviço público cultural” in AAVV, O que é Governar à Esquerda?, Lisboa, Gradiva, 1997.

[436] O primeiro estudo de âmbito nacional foi coordenado por Jorge Gaspar, Práticas Culturais dos Portugueses, Lisboa, Direcção‑Geral de Acção Cultural/Centro de Estudos Geográficos, 1986/87.

[437] Vd. José Machado Pais (coord.), Práticas Culturais dos Lisboetas, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, 1994 e ainda Augusto Santos Silva e Helena Santos, Prática e Representação das Culturas: um Inquérito na Área Metropolitana do Porto, Porto, Centro Regional de Artes Tradicionais, 1995.

[438] Vd. Luísa Schmidt, A Procura e a Oferta Cultural e os Jovens, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais/Instituto da Juventude, 1993. Já na década de 80 encontramos estudos centrados na juventude, vd. José Machado Pais, Juventude Portuguesa. Situações. Problemas. Aspirações. V Uso do Tempo e Espaços de Lazer, Instituto de Ciências Sociais/Instituto da Juventude, sem data.

[439] Vd., por exemplo, Eduardo de Freitas e Maria de Lourdes Lima dos Santos, Hábitos de Leitura em Portugal. Inquérito Sociológico, Lisboa, D. Quixote, 1992. Ou ainda Maria de Lourdes Lima dos Santos (coord.), 10 Anos de Mecenato Cultural em Portugal, Lisboa, Observatório das Actividades Culturais, 1998.

[440] Um magnífico exemplo, na área da sociologia da juventude encontra‑se em José Machado Pais, Culturas Juvenis, Lisboa, Imprensa Nacional, 1993.

[441] São eles “Cenários de Práticas Culturais em Portugal” in Sociologia. Problemas e Práticas, nº 23, 1997 e “Contextos, culturas, identidades” in José Manuel Leite Viegas e António Firmino da Costa (orgs.), Portugal, que Modernidade?, Oeiras, Celta, 1998.

[442] Termo de uma tipologia utilizada por Christian Lalive d'Epinay e outros, Temps Libre. Culture de Masse et Cultures de Classes Aujourd'Hui, Lausanne, Pierre‑Marcel Favre éditeur, 1983.

[443] José Machado Pais (coord.), op. cit., pp. 69‑85 e 92‑93.

[444] Jorge Gaspar (coord.), op. cit., p. 17.

[445] A. Santos Silva Santos e Helena santos, op. cit., p. 18.

[446] Os homens, os jovens e os jovens adultos e os membros dos estratos alto e médio são quem mais possui recursos de dilatação dos seus tempos livre, vd. Idalina Conde, “Cenários de práticas culturais em Portugal”, op. cit.

[447] João Sedas Nunes, “Usos do tempo e gostos culturais” in J. Machado Pais (coord.), op. cit., p. 73.

[448] Vd. “Café com que?!. Uma análise sobre práticas semi‑públicas de sociabilidade em espaços /tempos “intermediários” da Baixa portuense” in Sociologia, I Série, Volume V, 1995, pp. 151‑176.

[449] Como salienta Idalina Conde: “a comparência na mesma categoria de referências tradicionais e triviais no quotidiano contemporâneo tem consequências interpretativas (…) Extensão ou retracção da «variável» sociabilidade local pode dever‑se a tendências internas dissemelhantes(…) O cenário dos números passa a ter de jogar (também hesitar) com combinatórias de princípios explicativos para produzir consistência, conduzindo a demasiada sinuosidade interpretativa, vd. op. cit., p. 146.

[450] De qualquer forma, o número de espectadores é ainda extremamente reduzido (menos de 1 milhão).

[451] António Barreto, “Três décadas de mudança social” in A Situação Social em Portugal (1960‑1995), Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, 1996, p. 52.

[452] Idem, ibidem, p. 51.

[453] Segundo os dados do estudo de A. Santos Silva e H. Santos, 58.8% dos inquiridos não lê um jornal diário, percentagem que aumenta para 73.7% no que se refere aos jornais semanários. 85.2% não lê romances e 86.9% não vai a concertos (op. cit., p. 19). Os dados do inquérito coordenado por Jorge Gaspar são ainda mais contundentes: apenas 19.2% lêem um jornal, semanalmente ou por mês. Somente 26.8% vão ao cinema uma vez por mês, percentagem que se reduz para 12.2% no caso do teatro (op. cit., p. 17). De acordo com o estudo dirigido por José Machado Pais, os tempos espectaculares informativos (ir ao cinema, ir ao teatro, ir a concertos, visitar museus e exposições) motivam não mais do que 29.6% dos inquiridos (op. cit., p. 73).

[454] Vd. Olivier Donnat, Les Français Face à la Culture. De l'Exclusion à l'Écletisme, Paris, Éditions la Découverte, 1994.

[455] Definidos por Donnat como “um conjunto de conhecimentos, de comportamentos e de gostos suficientemente estáveis para se distinguirem do resto da população” in op. cit., p. 339.

[456] Idem, ibidem, p. 147.

[457] Idem, ibidem, p. 146.

[458] Idem, ibidem, p. 147.

[459] Idem, ibidem, p. 149.

[460] Vd. Idalina Conde, “Contextos, culturas, identidades” in José M. L. Viegas e António F. da Costa, Portugal, que Modernidade?, Oeiras, Celta, 1998, p. 83.

[461] Vd. Maria de L. Lima dos Santos, “«Cultura dos ócios» e utopia” in M.L.L.S. (coord.), Cultura e Economia, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, 1995, p. 164.

[462] Com valores máximos na Região Autónoma da Madeira (97.8%) e Lisboa e Vale do Tejo (97.6%) e valores mínimos na região Centro (93.8%) ‑ Fonte: INE, Indicadores de Conforto das Famílias (1995).

[463] Com valores máximos em Lisboa e Vale do Tejo (57.4%) e valores mínimos de novo na região Centro (30.8%) Fonte: INE, Indicadores de Conforto das Famílias (1995).

[464] Com valores máximos de 18.9% em Lisboa e Vale do Tejo e valores mínimos no Alentejo (5.7%) Fonte: INE, Indicadores de Conforto das Famílias (1995).

[465] Com valores máximos de 11.5% em Lisboa e Vale do Tejo e valores mínimos de 0.1% na Região Autónoma da Madeira Fonte: Idem, ibidem.

[466] Op. cit., p. 108.

[467] Vd. Idalina Conde, “Cenários...”, art. cit., p. 136.

[468] Fenómeno que encontra correspondência numa certa demissão do papel regulador do Estado, que se limita, quando o faz, a estabelecer para o serviço público de televisão quotas de difusão de programas culturais, norma que é interpretada como um constrangimento ou uma mera formalidade.

[469] Vd. a este propósito os comentários elaborados sobre o audiovisual pela comissão francesa para a refundação das políticas culturais, Jacques Rigaud (coord.), Orientations Générales pour une Réfondation, Paris, La Documentation Française, 1996, em especial pp. 69‑73.

[470] José Machado Pais, op. cit., p. 108.

[471] Op. cit., p. 22.

[472] Conjunto bastante heterogéneo e unificado apenas por preguiça analítica e por uma necessidade pragmática de representação de um vasto conjunto de grupos intermédios no sistema de estratificação social. A propósito das dificuldades de operacionalização desta imagem sincrética, confessa, em tom coloquial, Augusto Santos Silva: “Começo por não saber identificar‑te. Sei delimitar, com algum rigor, a partir das condições socioprofissionais, um conjunto de fracções intermédias. Mas, justamente, devo designá‑las no plural. Retiro, de um lado, os empresários, os quadros dirigentes e os profissionais liberais; do outro, os operários industriais e agrícolas e os trabalhadores indiferenciados: consigo, assim, reter um leque relevante de grupos sociais intermédios. Mas, entre estes, devo distinguir, pelo menos, os pequenos comerciantes, artífices e agricultores, das classes assalariadas do terciário. E, se ficar só por estas últimas, não será de elementar bom senso separar, para uma banda, os empregados subalternos e, para a outra, os quadros técnicos e as profissões intelectuais?” in Textos Datados com Motivo e Causa, Matosinhos, Contemporânea/Jornal “Público”, 1996, p. 92.

[473] Vd. Idalina Conde, “Contextos, culturas, identidades” in J.M. L. Viegas e A.F. da Costa, op. cit., p. 96.

[474] Op. cit., p. 151.

[475] A. S. Silva e H. Santos, op. cit., p. 21.

[476] Vd. Idalina Conde, “Cenários...”, art. cit., em particular pp. 174‑175.

[477] O. Donnat, op. cit., p. 124.

[478] Idem, ibidem, p. 9.

[479] Paulo Filipe Monteiro, “Os públicos do teatro de Lisboa: primeiras hipóteses” in Análise Social, nº 129, 1994, p. 1237.

[480] Fonte: INE, Inquérito ao Emprego.

[481] Vd. António Teixeira Fernandes, “Etnicização e racização no processo de exclusão social” in Sociologia, I Série, Vol. V, 1995, p. 12.

[482] Vd. Ana Benavente (coord.) et al., Estudo Nacional de Literacia, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, 1995 (relatório preliminar). Entretanto publicado, em 1997, pela Fundação Calouste Gulbenkian.

[483] Idem, ibidem, p. 11.

[484] Vd. António Teixeira Fernandes, “Ensino e participação democrática” in Saber Educar, nº 1, 1996, p. 23.

[485] Vd. Alain Touraine, Carta aos Socialistas, Lisboa, Terramar, 1996, p. 86.

[486] Vd. José Madureira Pinto, “Lados encobertos da iliteracia (1)” in Jornal de Notícias, 23/1/96.

[487] Idem, “Os lados encobertos da iliteracia (2)”in Jornal de Notícias, 24/1/96.

[488] Vd. M. L. L. dos Santos, Práticas Culturais dos Portugueses: Configurações do Presente e Prefigurações do Futuro, p. 6, policopiado.

[489] Vd. Augusto Santos Silva, “Agentes culturais e públicos para a cultura”, art. cit., em especial pp. 88‑93.

[490] Vd. Olivier Donnat, op. cit., p. 342.

[491] Vd. Louis Porcher, A Escola Paralela, Lisboa, Livros Horizonte, 1977.

[492] Vd. Philippe Forest, “Le concept contemporain de culture” in Cahiers Français. Culture et Société Paris, La Documentation Française, 1993, p. 8.

[493] Vd. Eduardo de Freitas e Maria de Lourdes Lima dos Santos, Hábitos de Leitura em Portugal. Inquérito Sociológico, Lisboa, D. Quixote, 1992.

[494] Vd. A Procura e Oferta..., op. cit., p. 185.

[495] Vd. Práticas Culturais dos Lisboetas..., op. cit., pp. 275‑276.

[496] Vd. Práticas Culturais dos Portugueses..., op. cit., p. 11.

[497] Definido no trabalho de Donnat como o “número global de artistas conhecidos utilizados como indicador do grau de familiaridade de cada indivíduo com o mundo das artes e da cultura” in op. cit., p. 72.

[498] Vd. texto de apresentação de A Procura e Oferta Cultural e os Jovens..., op. cit.

[499] A propósito da crítica dos conceitos de “geração” e “geração social”, vd. o nosso trabalho Tristes Escolas..., op. cit., capítulo II.

[500] “A televisão não alterou o seu capital de conhecimentos, mesmo se abrandou as suas práticas culturais (menos saídas ao teatro e ao cinema)”, “Uma geração rasa” in Jornal Público, 25/5/94.

[501] Vd. art. cit.

[502] O. Donnat, op. cit., pp. 124‑125.

[503] Defendemos, aliás, em trabalho anterior, que a escola, ou melhor, o campo escolar, perdeu grande parte das características que asseguravam a sua reprodução. As instâncias de consagração mudaram, os enjeux também e a violência simbólica que assegura a perpetuação do sistema exerce‑se agora em terrenos mais difusos e informais. Esta transformação, que coloca os grupos de pares no centro das atenções, confere uma força inaudita ao capital de sociabilidade e prende‑se com a perda da crença nos mecanismos institucionais “clássicos”. Desta forma, e face a um amplo movimento de recusa da escola e dos seus espaços‑tempos lectivos, assiste‑se a um notório falhanço da função socializadora que esta instituição seria suposto exercer, vd. Tristes Escolas. Práticas Culturais Estudantis no Espaço Escolar Urbano, op. cit.

[504] O. Donnat, op. cit., p. 115.

[505] Vd. Texto de Apresentação de A Procura e Oferta..., op. cit.

[506] Op. cit., pp. 128‑129.

[507] Idem, ibidem, p. 183.

[508] Vd. Jorge Gaspar (coord.), op. cit., p. 19.

[509] Idem, ibidem, p. 23.

[510] Vd. A. Giddens, “Gender and sexuality” in Sociology, Cambridge, Polity Press, 1993, pp. 160‑207.

[511] Idem, ibidem, p. 205.

[512] Vd. Sylvia Walby, “Post‑postmodernism? Theorizing gender” in The Polity Reader in Social Theory, Cambridge, Polity Press, 1994, pp. 225‑236.

[513] Vd. Eduardo de Freitas, José Luís Casanova e Nuno Alves, Hábitos de Leitura. Um Inquérito à População Portuguesa, Lisboa, Publicações D. Quixote, 1998, p. 53.

[514] De acordo com Maria de Lourdes Lima dos Santos, “o nosso défice cultural torna‑se mais patente quando cotejamos os valores para Portugal com os existentes para esses outros países, ao aferir, por exemplo, a importância do aumento da oferta de bens e serviços culturais, da implementação de infra‑estruturas, do desenvolvimento dos esforços de descentralização ou da própria extensão das indústrias culturais”, vd. “E a cultura como vai?...” in AAVV, Portugal Hoje, Lisboa, Instituto Nacional de Administração, 1995, pp. 215‑216.

[515] Vd. Robert Wangermee, Évaluation des Politiques Culturelles Nationales, Conseil de la Coopération Culturelle, 1992, p. 3.

[516] Vd. António Barreto, op. cit., pp. 50‑51.

[517] Idem, ibidem, p. 51.

[518] Vd. Eduarda Dionísio, “As práticas culturais” in António Reis, (coord.), Portugal Vinte Anos de Democracia, Lisboa, Círculo de Leitores, p. 444.

[519] Vd. Idalina Conde, “Cenários...”, art. cit., p. 175.

[520] Maria de Lourdes Lima dos Santos, art. cit., p. 215.

[521] Vd. P. Urfalino, “A história da política cultural” in Jean‑Pierre Rioux e Jean‑François Sirinelli (dir.), Para uma História Cultural, Lisboa, Editorial Estampa, 1998, p. 295.

[522] Vd. P. Urfalino, L'Invention de la Politique Culturelle, Paris, La Documentation Française, 1996.

[523] Vd. Eduarda Dionísio, “As práticas culturais”, art. Cit., p. ???.

[524] Vd. Maria de Lourdes Lima dos Santos (coord.), As Políticas Culturais em Portugal (1985‑1995), Lisboa, Observatório das Actividades Culturais, 1998.

[525] Veja‑se, a este respeito, o interessante artigo de Rui Vieira Nery, que combina uma análise de longa duração, com a situação conjuntural da cultura em Portugal, no final dos anos 90. De acordo com este autor, que assumiu responsabilidades governamentais na área da cultura, o défice cultural português resulta da acumulação de vários atrasos, em muito enraizados na visão limitada da sociedade civil burguesa do século XIX (“Do século XIX recebemos um património histórico‑cultural em ruínas, os escassos arquivos e bibliotecas públicas deixados cair num verdadeiro caos, os museus quase inexistentes (...) nem um só teatro nacional, declamado ou lírico, nem uma só orquestra, nem uma só companhia de bailado”) mas com raízes mais profundas, ancoradas na “nossa tradição intelectual anterior, em particular o peso castrador de três séculos de repressão inquisitorial” e com um prolongamento severo durante o Estado Novo, vd. “A esquerda democrática e o princípio do serviço público cultural” in AAVV, O que é Governar à Esquerda?, Lisboa, Gradiva, 1997, pp. 286‑287.

[526] Verifica‑se, na realidade, um cruzamento entre dois tipos de assimetrias. Por um lado, as clivagens sociais e a hiperselectividade dos públicos ligados à maior parte das modalidades da cultura de saídas, por outro, a concentração da oferta cultural na Grande Lisboa, seguida do Grande Porto, em detrimento de grande parte do resto do país, vd. Idalina Conde, “Cenários de práticas culturais”, art. cit. e Augusto Santos Silva et al., “Agentes culturais e públicos para a cultura”, art. cit.

[527] Vd. Augusto Santos Silva, “Cultura: das obrigações do Estado à participação civil”, in Sociologia – Problemas e Práticas, n.º 23, 1997, p. 41.

[528] Vd. Jean‑Michel Djian, La Politique Culturelle, Paris, Le Monde Éditions, 1996, p. 16.

[529] Vd. A. S. Silva, “Cultura: das obrigações do Estado à participação civil”, art. cit., p. 41.

[530] Vd. José Madureira Pinto, “Uma reflexão sobre políticas culturais” in AAVV, Dinâmicas Culturais, Cidadania e Desenvolvimento Local, Lisboa, Associação Portuguesa de Sociologia, 1994.

[531] Na mesma linha, Santos Silva realça a importância deste “terceiro sector”, enquanto potencial parceiro privilegiado do Estado, num quadro que pretende ser alternativo quer à lógica estatal da cultura, quer aos objectivos de rentabilidade económica das indústrias culturais inseridas no movimento de globalização, quer ainda à incipiente acção mecenática do sector privado.

[532] O mesmo autor salienta: “Quando se defende a expansão e democratização do acesso às formas culturais mais elaboradas (e por isso mais exigentes no plano da descodificação), corre‑se o risco de parecer querer ratificar critérios dominantes e restritivos da excelência cultural, quando não mesmo a superioridade intrínseca dos padrões de gosto das elites cultas”, vd. Art. cit., p. 774.

[533] Vd. Jean‑Michel Djian, op. cit., p. 264.

[534] Vd. art. cit., p. 293.

[535] Vd. “Processos de uma modernidade inacabadamudanças estruturais e mobilidade social” in José Manuel Leite Viegas e António Firmino da Costa (orgs.), Portugal, que Modernidade?, Oeiras, Celta, 1998, p. 17.

[536] Vd. Augusto Santos Silva, Tempos Cruzados: um Estudo Interpretativo da Cultura Popular, Porto, Edições Afrontamento, p. 80.

[537] Idem, ibidem.

[538] Idem, ibidem, p. 49.

[539] Vd. António Barreto, “Três décadas de mudança social” in A Situação Social em Portugal (1960‑1995), Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, 1996, p. 35.

[540] Vd. João Ferrão, “Três décadas de consolidação do Portugal demográfico «moderno»” in A. Barreto (org.), op. cit., pp. 165‑190.

[541] Vd. A. Barreto , op. cit., p. 40.

[542] Embora seja possível distinguir, dentro da própria década de 70, movimentos distintos. De 1970 a 1974 o crescimento é quase nulo, devido aos saldos migratórios marcadamente negativos. O segundo sub‑período, de 74 a 76, caracteriza‑se por um aumento muito significativo da população, devido ao retorno em força dos portugueses que habitavam nas ex‑colónias e, em menor escala, devido ao retorno de emigrantes provenientes da Europa. A terceira fase, até ao final da década, revela um crescimento anual médio cada vez mais reduzido, numa clara aproximação à tendência predominante na década de 80.

[543] Maria Luís Rocha Pinto, “As tendências demográficas” in A. Reis (coord.), op. cit., p. 297.

[544] Idem, ibidem.

[545] “Em 1981, os homens casavam‑se pela primeira vez com 25.4 anos e as mulheres com 23.3 anos; desde 1984 que a idade média ao primeiro casamento não cessa de aumentar, coincidindo com o período em que se acentuou a diminuição dos nascimentos: o seu valor atinge, em 1992, os 26.4 anos para os homens e os 24.5 para as mulheres”, vd. Maria José Carrilho e João Peixoto, “A evolução demográfica em Portugal entre 1981 e 1992” in Estudos Demográficos, INE, nº 31, 1993, p. 9.

[546] Vd. M. J. Carrilho e J. Peixoto, art. cit., p. 15.

[547] Fonte: INE, Infoline. Estimativas de População Residente.

[548] Ou seja, para cada 100 elementos entre os 15‑64 anos, existiam 25.5 jovens (índice de dependência de jovens) e 21.9 idosos (índice de dependência de idosos).

[549] Vd. F. L. Machado e A. F. da Costa , “Processos de uma modernidade inacabada. Mudanças estruturais e mobilidade social” in José M. L. Viegas e António F. da Costa (orgs.), Portugal, que Modernidade? Oeiras, Celta, 1998, p. 21.

[550] Vd. João Ferrão, art. cit., p. 165.

[551] Vd. João Ferreira de Almeida, António Firmino da Costa e Fernando Luís Machado in A. Reis (coord.), Portugal, Vinte Anos de Democracia, Lisboa, Círculo de Leitores, p. 319.

[552] Fonte: INE, Inquérito ao Emprego, 1997.

[553] Vd. F. Luís Machado e A F. da Costa, art. cit., pp. 30‑33. Ainda assim e “apesar desta evolução rápida, os níveis de terciarização em Portugal são os mais baixos da União Europeia, longe dos registados nos países economicamente mais avançados. Para ter uma ideia desse desfasamento basta dizer que a actual taxa portuguesa de emprego nos serviços é igual, ou até mais baixa, da que apresentavam, nos anos 70, países como a Holanda, a Dinamarca, a Bélgica ou o Reino unido (...) No fim dos anos 80, quando o terciário ainda não se tornara maioritário em Portugal, aqueles países tinham taxas de terciarização que rondavam já os 70% (...) Em contrapartida (...) os mais de 10% de activos agrícolas de meados da década de 90 constituem um efectivo três ou quatro vezes superior, em termos relativos, aos desses países”, vd. F. Luís Machado e A. F. Da Costa, art. cit., p. 33.

[554] João Ferreira de Almeida et al., p. 320.

[555] Vd. Ana Benavente et al., A Literacia em Portugal. Resultados de uma Pesquisa Extensiva e Monográfica, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1996, pp. 36‑40. Encontram‑se desenvolvimentos em Fernando Luís Machado e António Firmino da Costa, art. cit., pp. 38‑43.

[556] Vd. F. L. Machado e A. F. da Costa, art. cit., p. 41.

[557] Ana Benavente et al., op. cit., pp. 31‑32.

[558] Conceito utilizado por Giddens e que constitui um dos três critérios de “estruturação imediata das relações de classe” (os restantes são a divisão do trabalho e as relações de autoridade, vd. Anthony Giddens, The Class Structure of the Advanced Societies, London, Hutchinson, 1983.

[559] Vd. Elísio Estanque e José Manuel Mendes, Classes e Desigualdades Sociais em PortugalUm Estudo comparativo, Porto, Edições Afrontamento, 1998.

[560] Idem, ibidem, p. 107.

[561] Idem, ibidem, p. 108.

[562] Baseada na aferição das “probabilidades relativas de deslocação na estrutura social” por parte das diferentes categorias de classe, vd. idem, ibidem.

[563] Idem, ibidem, p. 110.

[564] Idem, ibidem, p. 111.

[565] Vd. Carlos Farinha Rodrigues, “Medição e decomposição da desigualdade em Portugal (1980/811989/90)” in INE, InfolineEstudos (originalmente publicado in Revista de Estatística, nº 3, 1996).

[566] Vd. J. Ferreira de Almeida et al., art. cit., p. 317.

[567] Não se confirmando, assim, a estimativa, referida, entre outros, por António Barreto, de que em 1996 a participação feminina na população activa superasse a masculina.

[568] Vd. J. F. de Almeida et al., art. cit., p. 317.

[569] Vd. Art. cit., pp. 28‑31.

[570] Vd. E. Estanque e J. M. Mendes, op. cit., p. 210.

[571]“(...) em Portugal a proporção de activas entre as mulheres dos 15 aos 64 anos (62.6%) estava, em 1991, claramente acima da média da União Europeia (55.8%). Portugal apresenta nesse ano a Quinta taxa mais alta, apenas ultrapassado por países do Norte da Europa (...) Os países que, tanto em termos culturais como de estrutura social, estão mais próximos de Portugal (...) são justamente os que ficam neste ponto a maior distância, com taxas de actividade feminina muito mais baixas”, vd. F. L. Machado e A. Firmino da Costa, art. cit., pp. 30‑31.

[572] Os anos de crescimento mais significativo foram os de 1973‑74 (+1.29%) e 1974‑75 (+4.4%). O crescimento médio anual da década 1970‑80 situou‑se em +1.29%, vd. J. Manuel Nazareth, Princípios e Métodos de Análise da Demografia Portuguesa, Lisboa, Presença, 1988, p. 120.

[573] Apesar de a desertificação penetrar “até ao litoral em algumas regiões” in M. L. Rocha Pinto, art. cit., p. 299.

[574] João Ferrão, art. cit., p. 181.

[575] Idem, ibidem, p. 183.

[576] Vd. François Guichard, Atlas Demográfico de Portugal, Lisboa, Livros Horizonte, 1981, p. 23.

[577] Vd. Adérito Sedas Nunes, “Portugal, sociedade dualista em evolução” in Sociologia e Ideologia do Desenvolvimento, Lisboa, Moraes Editores, 1968, p. 203.

[578] De acordo com dados de 1960, “apenas 1.8% dos nossos operários especializados da indústria dispunham (...) dum curso técnico completo (não tendo ido 94% além do ensino primário) (...) cerca de 64% dos alunos cessam os seus estudos na 4ª classe (...) dos alunos entrados no ensino secundário, mais de 70% não atingem o final dos respectivos cursos (...) o número de diplomados em fundamentais cursos científicos e técnicos tende a estagnar e mesmo a retroceder”, Idem, ibidem, p. 270.

[579] Idem, ibidem, pp. 216‑217.

[580] Art. cit., p. 176.

[581] Vd. A. Sedas Nunes, art. cit., p. 203.

[582] Idem, ibidem, p. 214.

[583] Idem, ibidem,p. 256.

[584] Art. cit., p. 183.

[585] Em 1996, analisando os principais indicadores demográficos por Nuts I, II e III, constatamos, claramente, uma quase estagnação do Grande Porto (com taxas de crescimento migratório e crescimento efectivo quase nulas0.05% e 0.33% respectivamente), enquanto que sub‑regiões como o Cávado, o Ave e o Entre Douro Vouga registam acréscimos relativamente superiores. Da mesma forma, a Grande Lisboa regista mesmo um crescimento migratório e um crescimento efectivo negativos: ‑0.12% e‑0.05%. Ver Anexo I Quadro I.

[586] Art. cit., p. 187.

[587] Idem, ibidem.

[588] Álvaro Domingues, intervenção nas “Noites de Sociologia do Porto II” in Sociologia. Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, I Série, Vol. II, 1992, p. 187.

[589] Vd. Augusto Santos Silva, “Os lugares vazios do mapa português” in Textos Datados com Motivo e Causa, Matosinhos, Contemporânea/Jornal “Público”, s/data, pp. 12‑14.

[590] Idem, ibidem, p. 12.

[591] Vd. Mário Leston Bandeira, “Teorias da população e modernidade: o caso português” in Análise Social, nº 135, 1996, pp. 7‑43.

[592] Idem, ibidem, p. 39.

[593] Vd. F. L. Machado e A. Firmino da Costa, art. cit., p. 24.

[594] Vd. A. Barreto, “Três décadas de mudança social” in op. cit., p. 49.

[595] Vd. A. Barreto, “Portugal na periferia do centro: mudança social, 1960 a 1995” in Análise Social, nº 134, 1995, p. 843.

[596] Art. cit., p. 843.

[597] A. Barreto, “Três décadas de mudança social”, art. cit., p. 46.

[598] Vd. Art. cit., p. 26.

[599] Infelizmente não estão disponíveis, para 1995, dados sobre a composição sexual da população universitária.

[600] Idem, ibidem, p. 27.

[601] No entanto, persistem nesta área graves problemas de cariz estrutural, nomeadamente um notório desequilíbrio na distribuição territorial dos médicos e técnicos de saúde, hiperconcentrados em Lisboa, Porto e Coimbra. Por outro lado, as deficiências do Serviço Nacional de Saúde conduzem as populações para a utilização de serviços privados, o que acarreta custos acrescidos.

[602] A. Barreto, “Três décadas de...”, art. cit., p. 55.

[603] Fonte: INE, Inquérito aos Orçamentos Familiares, 1994/95.

[604] “(...) avanço da industrialização; o recuo da importância proporcional das actividades agrícolas; o rápido desenvolvimento do sector dos serviços; a maior abertura ao exterior; a forte expansão dos maiores grupos económicos; a densificação do tecido de pequenas e médias empresas; o despovoamento rural; a subida dos salários reais; o fortalecimento das classes médias; a melhoria acentuada dos níveis de consumo individual e dos indicadores de bem‑estar social, etc.”, J. da Silva Lopes, “O crescimento económico” in A. Barreto, op. cit., p. 249.

[605] Vd. Fernando Medeiros, “A formação do espaço social português: entre a «sociedade‑providência» e uma CEE providencial” in Análise Social, nº 118‑119, 1992, pp. 919‑941.

[606] Crescimento que, no entanto, em termos de convergência real, foi, como já mencionámos, de acordo com Silva Lopes, mais intenso entre 1960 e 1973. Nesse espaço, “Portugal passou, em termos grosseiros, de à volta de três quartos da média mundial em 1960 para cerca de 110% da mesma média em 1973”, vd. art. cit., p. 248. Ainda segundo o mesmo autor, “a redução do diferencial entre o nível de desenvolvimento económico de Portugal e a média comunitária prosseguiu após 1973, mas passou a ser bastante mais lenta e mais irregular”, Idem, ibidem.

[607] Vd. José Pereirinha, “Social exclusion in Portugal” in José da Silva Lopes (ed.), Portugal and EC Membership Evaluated, London, Pinter Publishers, 1993.

[608] Vd., por exemplo, João Ferreira de Almeida et al., Exclusão SocialFactores e Tipos de Pobreza em Portugal, Oeiras, Celta Editora, 1994.

[609] Vd. Fernando Ribeiro Mendes, “Por onde vai a segurança social portuguesa” in Análise Social, nº 131‑132, p. 415.

[610] Vd. Carlos Farinha Rodrigues, art. cit., p. 8

[611] Idem, ibidem, p. 17.

[612] Art. cit., p. 929.

[613] Vd. E. Estanque e J. M. Mendes, op. cit.

[614] Vd. Henrique M. Carreira., “O Estado e a Educação” in A. Barreto, op. cit., p. 462.

[615] Vd. Graça Franco, “Os limites do Estado social” in Público, 1/4/96.

[616] Aumento esse muito superior ao do crescimento médio anual do produto (4.45 entre 1960 e 1992).

[617] O que pode significar, também, alguma ineficiência na aplicação dos dinheiros públicos.

[618] Joaquim Azevedo citado em Graça Franco, art. cit.

[619] Vd. Ana Benavente et al., op. cit., p. 122.

[620] Adiantámos algumas possíveis explicações para este fenómeno no capítulo anterior.

[621] Vd. F. L. Machado e A. F. da Costa, art. cit., p. 17.

[622] Idem, ibidem, pp. 33‑38.

[623] Vd. E. Marçal Grilo, “Ensino formal e suas condições” in AAVV, Portugal Hoje, Lisboa, Instituto Nacional de Administração, 1995, p. 182.

[624] Marçal Grilo indica algumas dessas limitações: “insuficiente cobertura do sistema de educação pré‑escolar”; pouca prioridade concedida à acção social escolar, factor que alimenta desigualdades; “falta de relacionamento da escola com o exterior”; insuficiência e falta de diversidade de opções do ensino profissional; incipiente administração educativa; etc., vd. art. cit., p. 89.

[625] Art. cit., p. 187.

[626] Art. cit., p. 251.

[627] Vd. Fernando Medeiros, art. cit., em especial da p. 935 em diante.

[628] Idem, ibidem, p. 937.

[629] Vd. Boaventura de Sousa Santos, “O Estado e a Sociedade em Portugal (1974‑1988)”, Porto, Edições Afrontamento, 1990, p. 109.

[630]  Idem, ibidem, p. 118.

[631] “Entendo por sociedade‑providência as redes de relações de interconhecimento, de inter‑reconhecimento e de ajuda mútua baseadas em laços de parentesco, de vizinhança e comunitários, através dos quais pequenos grupos sociais trocam bens e serviços numa base não mercantil e segundo uma lógica de reciprocidade” in B. S. Santos, “Pela Mão de Alice. O Social e o Político na Pós‑Modernidade”, Porto, Edições Afrontamento, 1996, p. 64.

[632] Augusto mateus, art. cit., p. 661.

[633] Vd. Elisa Ferreira, “Economia Portuguesa Hoje: Mitos e Realidades”, Matosinhos, Contemporânea Editora/Câmara Municipal de Matosinhos, s/data, em especial pp. 7‑21.

[634] De acordo com Elisa Ferreira, o peso relativo da indústria de vestuário passou de 10.5% para 15.2% (sendo, igualmente, o segmento onde se criaram mais empresas), enquanto o calçado, no que se refere às exportações, passou de 3.6% para 8.9%. No entanto, o principal problema reside no facto de serem estas as indústrias em que mais se degradaram as taxas de cobertura. Segundo o World Competitiveness Report, também citado pela autora, Portugal ocupa um lugar nada lisonjeiro entre os 41 países analisados: “ocupa sempre lugares abaixo do 35º no que respeita ao espírito de iniciativa e inovação, utilização de tecnologias de informação, compreensão das diferenças inter‑culturais, capacidade de delegar, organização do espaço de trabalho, responsabilidade social, etc.” in op. cit., p. 19.

[635] No entanto, A. Barreto complexifica a sua tese ao considerar também a existência de um paradoxo: apesar dos níveis de aspirações e de expectativas dos portugueses serem em tudo semelhantes aos dos outros habitantes dos países centrais, persistem fortes debilidades no sistema produtivo.

[636] Vd. “Pela Mão de Alice...”, op. cit., p. 58.

[637] Idem, ibidem, p. 65.

[638] Vd. Idalina Conde, “Contextos, culturas, identidades” in José Manuel Leite Viegas e António Firmino da Costa (orgs.), op. cit., pp. 80‑81.

[639] B. S. Santos, “Pela Mão de Alice...”,op. cit., p. 61.

[640] Vd. João Ferreira de Almeida, “Evoluções recentes e valores na sociedade” in AAVV, Portugal Hoje, Lisboa, Instituto Nacional de Administração, 1995, pp. 57‑70.

[641] Art. cit., pp. 69‑70.

[642] Vd. Leonor Coutinho, “Novas tendências do processo de urbanização” in AAVV, Portugal Hoje, Lisboa, Instituto Nacional de Administração, 1995, p. 125. O estudo em causa foi elaborado pela Direcção‑geral do Desenvolvimento.

[643] Vd. Carla Melo e Emília Saleiro, “A Região Norte segundo alguns indicadores das contas regionais portuguesas” in INE, Infoline Estudos, p. 4 (originalmente publicado in Estatísticas e Estudos Regionais, nº 12, 1996).

[644] Idem, ibidem, p. 6.

[645] A produtividade industrial da Região Norte representa apenas 85% da média nacional.

[646] Idem, ibidem, p. 2.

[647] Idem, ibidem, p. 7.

[648] Vd. António Eduardo Pereira, “Estudo sobre o poder de compra concelhio” in INE. Infoline Estudos, p. 2 (originalmente publicado in Estatísticas e Estudos Regionais, nº 9, 1995).

[649] Fonte: INE, Infoline. Estudo sobre o Poder de Compra Concelhio, Número III, 1997.

[650] Idem, ibidem.

[651] Incluem‑se, neste caso, a aparelhagem de alta fidelidade (Norte: 27.84%, Lisboa e Vale do Tejo: 40.69%); o leitor de “compact‑disco” (Norte: 17.44%, Lisboa e Vale do Tejo: 24.80%); o vídeo (Norte: 37.95%; Lisboa e Vale do Tejo: 52.49%); a câmara de vídeo (Norte: 6.43%; Lisboa e Vale do Tejo: 9.55%); o computador pessoal (Norte: 8.33%, Lisboa e Vale do Tejo: 14.45%). Fonte: INE, Infoline Distribuição Percentual dos Agregados por Alguns Bens de Equipamento, Meios de Transporte e Outros Bens segundo o Tipo de Agregado.

[652] Fonte: INE, Infoline (tendo por referência o Ministério da Educação).

[653] Com uma distribuição interna bastante desigual, já que o grande Porto concentra 69.1% da frequência regional do ensino superior e o concelho do Porto 62.9%, num total de 56.253 estudantes, dado fundamental a ter em conta no estudo das dinâmicas culturais, não só pela alta escolarização deste grupo, mas também pela elevada juvenilização de certas práticas.

[654] Vd. Sónia Torres, “Caracterização sócioprofissional da região Norte” in Estatísticas e Estudos Regionais, nº 7, Janeiro/Abril de 1995, pp. 6‑26.

[655] Idem, ibidem, p. 8.

[656] Elemento a que não será alheio o facto de uma parte significativa dos membros deste grupo se concentrarem na indústria transformadora com especial destaque para a indústria têxtil e no comércio por grosso e a retalho, “actividades onde a ausência de especificidades tecnológicas é compatível com a baixa formação de uma boa parte dos seus empresários e trabalhadores”, art. cit., p. 14.

[657] Vd. João Ferreira de Almeida et al., “Recomposição socioprofissional e novos protagonismos” in António Reis (coord.), Portugal 20 Anos de Democracia, Lisboa, Círculo de Leitores, 1994.

[658] Optámos por agregar dois grupos de profissões, por possuírem características idênticas: o Grupo 7 (trabalhadores da produção industrial e artesãos) e o grupo 8 (operadores de instalações industriais e máquinas fixas, condutores e montadores).

[659] A propósito do modelo industrial predominante no Norte do país, ver o capítulo anterior.

[660] A enorme juvenilização deste grupo é explicada por Sónia Torres pelo abandono precoce do sistema escolar.

[661] Uma tendência recente, aliás, mostra um aumento significativo do sector primário a nível nacional (11.7% durante o segundo trimestre de 1997), a par do crescimento dos isolados, o que se encontra certamente ligado a situações de reactivação das pequenas propriedades domésticas.

[662] Para uma análise mais detalhada destes dados, consultar “Tendências evolutivas da população activa 1981‑1991”, Cadernos Regionais, Porto, INE, nº 2, 1995, pp. 9‑13.

[663] À escala infraregional, contudo, verificam‑se grandes diferenciações, como teremos ocasião de referir mais adiante.

[664] Vd. João Ferreira de Almeida et al., “Recomposição socioprofissional e novos protagonismos” in A. Reis (coord.), op. cit., p. 320.

[665] Como de resto já foi referido no capítulo anterior.

[666] Vd. Sónia Torres, art. cit., pp. 22‑24.

[667] Vd. Maria Filomena Mendes, Amável Calixto Candeias e Alexandra Magalhães, “A evolução recente da família na área metropolitana do Porto” in Estatísticas e Estudos Regionais nº 14, 1997.

[668] Idem, ibidem, p. 7.

[669] Ver Quadro IX.

[670] Vd. António Joaquim Esteves e José Madureira Pinto, “O envelhecimento na área metropolitana do Porto” in Estatísticas e Estudos Regionais, nº 14, 1997, p. 23.

[671] Fonte: INE, Infoline Séries Cronológicas.

[672] Vd. Isabel Martins, “Tendências demográficas na área metropolitana do Porto” in Estatísticas e Estudos Regionais, nº 10, Janeiro/Abril de 1996, pp. 6‑34.

[673] Vd. art. cit., p. 9.

[674] Idem, p. 11.

[675] Fonte: INE, Infoline Séries Cronológicas.

[676] Vd. Isabel Martins, art. cit., p. 34.

[677] Vd. Emília Saleiro e Sónia Torres, “Alguns números para a avaliação do emprego e desemprego na área metropolitana do Porto” in Estatísticas e Estudos Regionais, nº 10, Janeiro/Abril de 1996.

[678] Vd. art. cit., p. 61.

[679] Em 1996 a taxa de desemprego do Grande Porto ascendia a 10.2%, penalizando mais as mulheres (com uma taxa de 10.5% contra 9.9% da taxa de desemprego masculina), vd. Sónia Torres, “Emprego e desemprego na região Norte : análise sub‑regional” in INE, Infoline Estudos, p. 8 (originalmente publicado in Estatísticas e Estudos Regionais, nº 12, 1996).

[680] Vd. Emília Saleiro e Sónia Torres, “Alguns números...”, art. cit., p. 65.

[681] Vd. Sónia Torres, “Emprego e desemprego...”, art. cit., p. 1.

[682] Vd. António Joaquim Esteves, “A área metropolitana do Porto: aspectos do estado recente da escolarização da sua população” in Estatísticas e Estudos Regionais, nº 10, Janeiro/Abril de 1996.

[683] Vd. art. cit., p. 39.

[684] Idem, p. 41.

[685] Fonte: INE, Anuário Estatístico da Região Norte, 1995.

[686] Vd. “Contributo para a definição de uma tipologia socioeconómica da região Norte” in Estatísticas e Estudos Regionais, nº 5, Maio/Agosto de 1994.

[687] Idem, ibidem, p. 12.

[688] Vd. Isabel Martins, “Tendências demográficas na área...”, art. cit., p. 9.

[689] Fonte: INE, Infoline Pesquisa por Unidade Territorial.

[690] Fonte: INE, Infoline Estimativas da população residente.

[691] Vd. António Joaquim Esteves e José Madureira Pinto, “O envelhecimento na área metropolitana do Porto” in Estatísticas e Estudos Regionais, nº 14, 1997, p. 24.

[692] Idem, ibidem, p. 25.

[693] Vd. António Joaquim Esteves, “A área metropolitana do Porto...”, art. cit., p. 39.

[694] Vd. Capítulo anterior.

[695] Vd. Sónia Torres, art. cit., em especial o anexo 2, p. 26.

[696] Vd., por exemplo, Neil Smith e Peter Williams (eds), Gentrification of the City, London, Allen e Unwin, 1986.

[697] 2.1 por mil em 1995. Fonte: INE, Infoline Pesquisa por Unidade Territorial.

[698] Vd. Maria Filomena Mendes, Amável Calixto Candeias e Alexandra Magalhães, “A evolução recente da família na área metropolitana do Porto” in Estatísticas e Estudos Regionais, nº 14, 1997.

[699] Idem, ibidem, p. 7.

[700] Vd. Paulo Gomes, Sérgio Bacelar e Emília Saleiro, art. cit., p. 12.

[701] Idem, ibidem, p. 8. No entanto, convém explicitar que estes grupos estão longe de representar a maioria da população activa concentrada no Porto, apesar de ser este o concelho onde alcançam um maior peso relativo.

[702] Vd. INE, Estudo sobre o Poder de Compra Concelhio, 1995.

[703] Vd. Emília Saleiro e Sónia Torres, art. cit., p. 64.

[704] Ver a este respeito João Ferreira de Almeida et. al., Exclusão Social. Factores e Tipos de Pobreza em Portugal, Oeiras, Celta Editora, 1994, em especial o capítulo I.

[705] Idem, ibidem, p. 9.

[706] Vd. a este respeito A. Teixeira Fernandes, “Etnicização e racização no processo de exclusão social” in Sociologia Revista da Faculdade de Letras, Vol. V, 1995, em especial pp. 7‑12. Ainda de acordo com o autor, “a dualização da sociedade promove uma profunda clivagem entre os que estão dentro e os que estão fora, com a substituição da anterior oposição entre dominantes e dominados. Os excluídos têm uma nula ou fraca participação económica e uma ausência total de relacionamento com os que estão integrados. A clivagem inscreve‑se nos espaços. Uns procuram o habitat mais aprazível, deixando à margem os que perderam a capacidade de inserção no sistema produtivo”, art. cit., p. 12.

 [707] Fonte: INE, Anuário Estatístico, 1995.

[708] Vd. Marc Augé, Não‑Lugares Introdução a uma Antropologia da Sobremodernidade, Lisboa, Bertrand, 1994, em especial pp. 31‑43.

[709] Idem, ibidem, p. 37.

[710] Vd. E. J. Hobsbawm, A Era do Capital, Lisboa, Presença, 1979, p. 322. De referir que esta obra imprescindível deve ser incluída na trilogia composta, igualmente, pela Era das Revoluções e pela Era dos Extremos. Acrescenta o autor (p. 329): “O burguês era, senão uma espécie diferente, pelo menos o membro de uma raça superior, um estádio mais avançado da evolução humana, distinto das ordens inferiores, que se mantinham numa fase histórica e cultural equivalente à infância ou quando muito à adolescência (...) Assim, do senhor à raça de senhores ia só um passo. O direito de dominar, a superioridade indiscutível do burguês como espécie implicava não só a inferioridade, como ainda, idealmente, uma inferioridade reconhecida e aceite pelos próprios inferiores”.

[711] Idem, ibidem, p. 308.

[712] Vd. M. L. Lima dos Santos, “Para uma Sociologia da Cultura Burguesa em Portugal no Século XIX”, Lisboa, Presença/Instituto de Ciências Sociais, 1983, p. 20.

[713] Idem, ibidem, p. 8.

[714] Devendo nós próprios, exercer sobre esses relatos literários, apesar do seu pendor fortemente descritivo (e, por isso, aparentemente “verdadeiros”...), uma prudente desconfiança metódica. Como refere Roland Mousnier, citado por Maria Antonieta Cruz, “os contemporâneos nunca viam exactamente a realidade social do seu tempo. Só têm a experiência directa de uma pequena parte dos grupos sociais e imaginam as coisas mais estranhas sobre os outros”, vd. Os Burgueses do Porto na 2ª Metade do Século XIX, Porto, Ed. de Autor, 1994, p. 14.

[715] Idem, ibidem, p. 14.

[716] Vd. Isabel Pires de Lima (Antologia), Trajectos do Porto na Memória Naturalista, Lisboa, Guimarães Editora, 1989, p. 33.

[717] O primeiro liceu feminino surgirá no Porto em 1888.

[718] Vd. Maria Antonieta Cruz, op. cit., p. 578.

[719] Vd. Gaspar Pereira Martins, Famílias Portuenses na Viragem do Século (1880‑1910), Porto, Edições Afrontamento, 1995, p. 46.

[720] Vd. M. de L. Lima dos Santos, op. cit., p. 54.

[721] Vd. Gaspar Martins Pereira, O Porto de Camilo, policopiado, p. 2.

[722] Martins Pereira nota ainda que, “como as grandes cidades da Europa da época, descontando as diferenças de escala, o Porto oferece a imagem de uma cidade em obras, poeirenta e desventrada”, idem, ibidem.

[723] A cidade prolonga‑se para Ocidente e para Oriente, tornando‑se hábito, para a burguesia, o isolamento em unidades residenciais afastadas do centro (palacetes e chalés arborizados). O crescimento demográfico é também notável (a cidade cresce 75% entre 1878 e 1911,  atraindo população de fora do concelho e mesmo de fora do distrito), a par da aceleração do processo de industrialização.

[724] Vd. G. Martins Pereira, O Porto de Camilo, p. 25.

[725]...o peixe de cebolada no Maneta do Reimão; as tripas na estalagem do Rainha da Praça Nova; o chispe com ervas; a orelheira com feijão; as costeletas de vitela e as ostras na Águia d'Ouro”, vd. Vd. Gaspar M. Pereira, O Porto de Camilo, p. 26.

[726] Excerto de Eusébio Macário in Isabel Pires de Lima, op. cit., p. 42.

[727] O jardim de S. Lázaro era já considerado demasiado acanhado para o crescimento da burguesia portuense.

[728] Firmino Pereira, O Porto d'Outros Tempos, cit. in Hélder Pacheco, Porto, Lisboa, Presença, 1984, p. 178.

[729] José Augusto Vieira, A Divorciada in Isabel Pires de Lima, op. cit., p. 77.

[730] Vd. O Porto de Camilo, op. cit., p. 18.

[731] Vd. Georg Simmel, “La mode” in La Tragédie de la Culture, Paris, Ed. Rivages, 1988. O mesmo autor afirma que o fenómeno da moda “indica uma generalidade que reduz o comportamento de cada um a um puro e simples exemplo. Dito isto, ela satisfaz também a necessidade de distinção, a tendência à diferenciação, à variedade, à demarcação”, op. cit., p. 92.

[732] Vd. Gaspar M. Pereira, O Porto de Camilo, p. 20.

[733] Vd. E. J. Habsbawm, op. cit., p. 313.

[734] Idem, ibidem.

[735] Idem, ibidem.

[736] Júlio Lourenço Pinto, O Bastardo in Isabel Pires de Lima, op. cit., p. 143.

[737] Camilo Castelo Branco in G. M. Pereira, O Porto de Camilo, p. 22.

[738] Idem, ibidem.

[739] Em 1834, um punhado de negociantes e financeiros cria a Assembleia Portuense, que dará origem, por cisão, nos anos 50, ao aristocrático Clube Portuense. Com o reforço da pequena burguesia, e dada a segregação de que era alvo, tem origem a Nova Euterpe (fundada essencialmente por caixeiros), antecessora do Ateneu Comercial do Porto. Este servirá como veículo de ascensão e legitimação das «classes médias» que aspiram a lugares dominantes, sendo posteriormente dominado, na viragem do século, por negociantes, proprietários e financeiros, vd. Gaspar Martins Pereira e Luciano Vilhena Pereira, Álbum de Memórias do Ateneu Comercial do Porto (1869‑1994), Porto, Ateneu Comercial do Porto, 1995.

[740] Júlio Lourenço Pinto, Margarida in Isabel Pires de Lima, op. cit., pp. 130‑131.

[741] Manual de Civilidade citado in M. L. Lima dos Santos, op. cit., p. 42.

[742] Idem, ibidem, p. 43.

[743] Muitas vezes completamente subvertida em ocasiões festivas, como as que se realizavam nos conventos portuenses, aquando da eleição das respectivas abadessas: “Eram três dias de combates poéticos, de galhofa e de doçaria, entre o cerimonial e o profano, em que se ultrapassavam as barreiras da clausura, iniciando‑se, por vezes, ligações íntimas ou platónicas com as freiras ou as criadas”. Os outeiros ou abadessados (assim se chamavam as festividades) eram, segundo Camilo, “concorridos de poetas e senhoras, e muitos perturbadores que da taverna passaram ao outeiro”, in Gaspar. M. Pereira, “O Porto de Camilo”, p. 25.

[744] Idem, ibidem.

[745] Júlio Lourenço Pinto, Margarida, in I. P. de Lima, op. cit., pp. 138‑139.

[746] Vd. Maria do Carmo Serén e Gaspar Martins Pereira, “O Porto Oitocentista” in A. Oliveira Ramos, História do Porto, Porto, Porto Editora, 1994, p. 491. A fotografia é o documento, por excelência, que melhor demonstra a afirmação da nova classe dominante.

[747] De autores como Camilo, Herculano, Garrett, Eça, Ramalho Ortigão, Júlio Dinis, Oliveira Martins, Teófilo Braga, etc.

[748] Vd. Maria Antonieta Cruz, op. cit.

[749] Vd. Manuela Espírito Santo, O Teatro Baquetno Centenário de uma Tragédia, Porto, Círculo de Cultura Teatral, 1988.

[750] Vd. Gaspar M. Pereira, O Porto de Camilo, p. 27.

[751] Idem, ibidem, p. 12.

[752] M. do Carmo Serén e G. M. Pereira, Art. cit., p. 498.

[753] Idem, ibidem, p. 492.

[754] José Augusto Vieira, A Divorciada in Isabel Pires de Lima, op. cit., p. 148.

[755] Idem, ibidem, pp. 151‑152.

[756]No teatro há a vantagem de que se pode mostrar a toillette, namorar, passar noite –, e não se conversa (...) O teatro é a substituição barata do salão. Salão caladoe comprado no bilheteiro. De resto, o teatro favorece o namoro, que é o entretenimento querido do português e da portuguesa correlativa. De facto o teatro é o centro do namoro nacional. O que se passa pois no palco torna‑se secundário (...) Um director de teatro não é pois escrupuloso com o seu espectáculo: alguém bem vestido que fale e dê um pretexto para a luz do lustre – é o que basta. Sobretudo aos domingos. Então o mundo comercial burguês, que repousa e se diverte, enche a sala. Se se der Hamlet, vai, se se der Manuel Mendes Enxúndia, vai. Não é a beleza do espectáculo que o chamaé o tédio da casa que o repele”, Eça de Queirós, Uma Campanha Alegre in M. L. L. Dos Santos, op. cit., p. 41.

[757] Gaspar M. Pereira, O Porto de Camilo, p. 26.

[758] Idem, ibidem, pp. 26‑27.

[759] Vd. M. de L. Lima dos Santos, op. cit., p. 62.

[760]«espaços acanhados onde dormem em pobres leitos, muito juntos os operários das aldeias, ou os aguadeiros e outros serviçais» (...) onde se aluga, por noite ou por semana, uma cama e um prego para pendurar a roupa” in G. M. Pereira, O Porto de Camilo, p. 48.

[761] Vd. Maria do Carmo Serén e Gaspar M. Martins, op. cit., p. 392.

[762] Vd. João Grave, Os FamintosEpisódios da Vida Popular in Isabel Pires de Lima, op. cit., pp. 200‑201.

[763] Gaspar. M. Pereira, O Porto de Camilo, p. 54.

[764] Idem, ibidem, p. 55.

[765] Idem, ibidem, p. 56.

[766] João Grave, Os Famintos in Isabel Pires de Lima, op. cit., pp. 206‑207.

[767] Vd. Hélder Pacheco, op. cit., p. 162.

[768] Vd. Walter Benjamin, “A obra de arte na era da sua reproductibilidade técnica” in Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, Lisboa, Relógio d'Água, 1992.

[769] Vd. Hélder Pacheco, op. cit., p. 162.

[770] Idem, ibidem, p. 178.

[771] José Gomes Bandeira, Rivoli, Teatro Municipal 80 Anos de Espectáculo, Porto, Edição da Câmara Municipal, 1993, p. 5.

[772] Idem, ibidem.

[773] Idem, ibidem, p. 8.

[774] Vd. François Guichard, “O Porto no século XX” in A. Oliveira Ramos, op. cit., p. 534.

[775] Idem, ibidem, p. 535.

[776] Idem, ibidem, p. 575.

[777] Idem, ibidem, p. 580.

[778] Vd. Gaspar M. Pereira e Luciano Vilhena, op. cit.

[779] Vd. “Intervenção de Alexandre Alves Costa” (Noites de Sociologia do Porto‑ II) in SociologiaRevista da Faculdade de Letras, nº 2, 1992, p. 212.

[780] Em crónica recente, Regina Guimarães questionava sarcasticamente, a propósito da ideia de o Porto se candidatar a Capital Europeia da Cultura: “E, aqui entre nós, não acham que o Porto possui um número temível de artistas oficiais?”,  vd. “Sejamos crus como nos compete, foda‑se!” in Hei!, nº 2, Abril de 1997, p. 10.

[781] Vd. Plano de Actividades para 1991, Pelouro de Animação da Cidade da Câmara Municipal do Porto.

[782] Vd. Viver no Porto Património Mundial Guia do Munícipe 1996/97, Porto, Câmara Municipal, 1996, p. 21.

[783] Um bom exemplo é o espectáculo encenado por Ricardo Pais e com direcção musical de Mário Laginha, “Raízes Rurais, Raízes Urbanas”, numa originalíssima miscegenação de fado, jazz e músicas tradicionais.

[784] Cf. José Madureira Pinto, “Uma reflexão sobre políticas culturais” in Dinâmicas Culturais, Cidadania e Desenvolvimento, Lisboa, Associação Portuguesa de Sociologia, 1994, pp. 767‑792. Ainda na mesma obra, vd. “Tempos e espaços da animação sociocultural: o desencontro entre a cidade e a escola”, pp. 643‑658 e ainda, Tristes Escolas Um Estudo sobre Práticas Culturais Estudantis no Espaço Escolar Urbano, Porto, Edições Afrontamento, 1997.

[785] Um recente anúncio, publicado na principal revista de cultura urbana – Hei! – , dava conta desse trabalho: “Ao longo do ano lectivo, dezanove escolas do Porto têm vindo a constituir, com o apoio de um monitor, grupos de trabalho nas áreas do teatro e da dança. O que estes alunos agora pretendem é mostrar o produto desse trabalho e partilhar consigo o prazer de se expressarem artisticamente”, Hei!, Junho de 1997, p. 20.

[786] De notar que, só no ano de 1997, o orçamento municipal para o Rivoli significava um milhão e trezentos mil contos, acima das verbas destinadas à acção social (961.675 contos), Educação (580 mil contos) e projecto‑piloto para a recuperação do bairro da Sé (400 mil contos).

[787] Sobre o recente panorama teatral portuense, vd. Carla Maria de Almeida, “Nunca se fez tanto teatro” in Hei!, nº 2, Abril de 1997, pp. 44‑49.

[788] Segundo inventário da Comissão de Coordenação da Região Norte (1991). Quanto a 1997, quando esta contabilização foi feita, a Grande Lisboa (Lisboa‑cidade, Linha de Sintra, Cascais, Oeiras e Linda‑a‑Velha) possuía em funcionamento 83 salas de cinema. De referir que, posteriormente a esta contagem, encerrou, no Porto, o cinema Pedro Cem (pouco antes tinham encerrado o cinema FOCO e as duas salas Lumière – efeito da conocorrência dos Multiplex?).

[789] Vd. João MacDonald, “Editores à mostra” in Hei!, Junho de 1997, pp. 36‑38.

[790] Em Agosto de 1997 era possível encontrar, em muitos destes espaços, exposições tão variadas como “Paneleiros e PucareirosA Louça Negra em Portugal” (Centro Regional de Artes Tradicionais do Porto); “Perspectiva: Alternativa Zero” (Fundação de Serralves) ou ainda exposições colectivas como “O Porto Reinventado” (Galeria Lóis), vd. “Bússola” in Hei!, nº 6, Agosto de 1997

[791] Vd. P. Le Moigne, “Les politiques cultureles de la culture: du développement culturel au conditionnement public (1977‑1990)”, in AAVV, Jalons pour l'Histoire des Politiques Culturelles Locales, Paris, Ministère de la Culture/La Documentation Française, 1995.

[792] Idem, ibidem, p. 83.

[793] Idem, ibidem, p. 778.

[794] Vd. Eduardo de Oliveira, “Sobre o Porto” in Eugénio de Andrade (org.), Daqui Houve Nome PortugalAntologia de Verso e Prosa sobre o Porto, Porto, O Oiro do Dia, s/ data, p. 225.

[795] Vd. François Guichard, Porto, La Ville Dans sa Région, Paris, Fundação Calouste Gulbenkian/Centro Cultural Português, 1992, vol. II, p. 537.

[796] Idem, ibidem, p. 539. E ainda: “É lá que se encontram à noite os verdadeiros amigos e que se fala, bem melhor do que em sua casa ou nos cafés demasiado abertos, de coisas sérias: política, amores, problemas sociais, questões de honra e de dinheiro”.

[797] Vd. João Luís Pereira, “Ritmos” in Hei!, nº 4, Junho de 1997, p. 10.

[798] Francois Guichard, “O Porto no século XX” in A. Ramos, op. cit., p. 592.

[799] Vd. Anexo II.

 [800] No Grande Porto, num curtíssimo espaço de tempo surgiram, entre outros: o Central Shopping, o Cidade do Porto, o Gaia Shopping, o Via Catarina, o Arrábida Shopping, o Maia Shopping e está em preparação o Norte Shopping. Perante a arrogância e a imponência da sua presença, quase coramos de incredulidade pela novidade que suscitaram, em inícios da década de 80, centros comerciais como o Dallas e o Brasília.

[801] Vd. Michael Sorkin (ed.), Variations on a Theme Park, New York, Hill and Wang, 1992.

[802] Vd. Margaret Crawford, “The world in a shopping mall” in op. cit., p. 9.

[803] Vd. Marc Augé, Não‑LugaresIntrodução a uma Antropologia da Sobremodernidade, Lisboa, Bertrand, 1994. Evocamos, a este propósito, uma ideia de Jean Starobinski que Augé recupera: “Presença do passado no presente que o excede e reivindica” (p. 81). A sobremodernidade, acrescenta Augé, faz do antigo e da história “um espectáculo específicocomo o faz de todos os exotismos e particularismos locais (...) A história e o exotismo têm aqui a mesma função que as «citações» no texto escrito” (p. 115).

[804] No recém‑inaugurado Colombo, em Lisboa, o seu arquitecto fala‑nos do peculiar urbanismo imagético dos centros comerciais. Existe, por exemplo, a Praça do Novo Mundo onde as “fontes se transformam em cascatas, o chão é um mapa da época, os animais que servem de decoração são tucanos e espécies exóticas”. Na Praça do Mundo Antigoo chão tem um padrão geométrico, há uma fonte de inspiração clássica onde surgirá uma escultura de Neptuno, o animal que aparece desenhado é um golfinho”, vd. “O novo templo do ócio”, Expresso, 13/9/97, pp. 16‑17. Ao lado do Colombo, classificado como de importância supra‑regional, com os seus 122 mil metros quadrados, os centros comerciais do Grande Porto são ainda miniaturas. Mas apressa‑se a construção do Norte Shopping, com 73.500 metros quadrados projectos, ainda assim um “mero” empreendimento regional. De referir que, segundo M. Crawford, os cálculos de viabilidade económica destes megaedifícios é feita com um cuidado máximo, prevendo‑se com a maior exactidão possível o número de possíveis clientes e a área de atracção. Desta forma, podem classificar‑se de acordo com as seguintes categorias: centros de vizinhança; centros de comunidade; centros regionais; centros supra‑regionais e, finalmente, no topo da hierarquia centros com capacidade de atracção internacional.

[805] Expressão de Margaret Crawford, art. cit., p. 22.

[806] Cit. in M. Crawford, art. cit., p. 14.

[807] Vd. Marc Augé, op. cit.

[808]Existem espaços nos quais o indivíduo se sente espectador sem, verdadeiramente, se importar com a natureza do espectáculo. Como se a posição de espectador constituísse o essencial do espectáculo ou, em definitivo, como se a posição do espectador em si mesmo fosse, para o espectador, o seu próprio espectáculo”, idem, ibidem, p. 92.

[809] Vd. Marc Augé, op. cit., p. 108.

[810] Idem, ibidem, p. 116.

[811] Idem, ibidem, p. 111.

[812] Vd. M. Crawford, art. cit., pp. 14‑17.

[813] Vd. Norbert Elias, “Sur le concept de vie quotidienne” in Cahiers Internationaux de Sociologie, vol. 99, 1995, p. 239.

[814] José Madureira Pinto define‑as como “conjunto de instrumentos simultaneamente ajustados à especificidade do objecto de análise (e, por essa via, às hipóteses teóricas de referência) e às exigências operatórias da sua tradução empírica” ou ainda como “conjuntos de relações entre conceitos da «teoria principal» (...) e conceitos classificatórios adequados à observação e à medida dos fenómenos sociais”, vd. “Questões de metodologia sociológica (I)” in Cadernos de Ciências Sociais, nº 1, 1984, p. 27.

[815] Vd. José Madureira Pinto, “Questões de metodologia sociológica (II)” in Cadernos de Ciências Sociais, nº 2, 1984, p. 134.

[816] Vd. António Teixeira Fernandes, “Alguns desafios teórico‑metodológicos” in António Joaquim Esteves e José Azevedo (eds), Metodologias Qualitativas, Porto, Instituto de Sociologia da Faculdade de Letras, s/ data.

[817] Idem, ibidem, p. 18.

[818] Idem, ibidem, p. 17.

[819] Idem, ibidem, p. 17.

[820] Vd. José Madureira Pinto, “Questões de metodologia sociológica (I)”, art. cit., p. 35.

[821] Vd. O nosso estudo, “As estatísticas na área da cultura: breve reflexão” in Sociologia Problemas e Práticas, nº 26, 1998. Ver também o artigo de José Madureira Pinto “Questões de metodologia sociológica (III)” in Cadernos de Ciências Sociais, nº 3, 1985, p. 137: “Recorde‑se que, quando provém de sectores bem distanciados dos princípios e práticas do empirismo, a crítica às estatísticas oficiais e às pesquisas sociológicas que a elas decorrem desprevenidamente incide sobretudo no desajustamento (tido com frequência por insanável) entre o conteúdo das nomenclaturas utilizadas pelas instâncias oficiais ou para‑oficiais de recolha padronizada de informação e o conjunto de significações associadas ao aparelho teórico‑conceptual requerido pela pesquisa”.

[822] Esta última expressão é utilizada por Christian Maroy, vd. “A análise qualitativa de entrevistas” in Luc Albarello et al., ??? p. 121‑122.

[823] Idem, ibidem, p. 122.

[824] Vd. Virgínia Ferreira, “O inquérito por questionário” in Augusto Santos Silva e José Madureira Pinto (coords), Metodologia das Ciências Sociais, Porto, Edições Afrontamento, 1987, p. 191.

[825] Vd. João Sedas Nunes, A Terceira Margem do Rio Um Exercício de Reflexividade Sociológica a Partir de um Estudo sobre Práticas Culturais; Lisboa, Prova de Capacidade Científica em Sociologia, 1996, p. 62.

[826] Vd. a este respeito o nosso artigo, “Antropologia e sociologia: duas disciplinas em diálogo” in Vítor Oliveira Jorge e Raúl Iturra, Recuperar o Espanto: O Olhar da Antropologia, Porto, Edições Afrontamento, 1997, em particular pp. 42‑43.

[827] Vd. AAVV, Théâtre Public Le Rôle du Spectateur, nº 55, 1984, p. 13.

[828] Idem, ibidem, p. 13.

[829] Vd. Raymond Quivy e Luc Van Campenhoudt, Manual de Investigação em Ciências Sociais, Lisboa, Gradiva, 1992, p. 197.

[830] Vd. Franco Crespi, Manual de Sociologia da Cultura, Lisboa, Editorial Estampa, 1997, p. 229.

[831] Vd. A. Joaquim Esteves, “Metodologias qualitativas. Perspectivas gerais” in A. J. Esteves e José Azevedo, (eds.), op. cit., p. 5.

[832] Vd. Judith Bell, Como Realizar um Projecto de Investigação, Lisboa, Gradiva, 1997, pp. 22‑24.

[833] Vd. José Madureira Pinto, “Uma reflexão sobre políticas culturais” in AAVV, Dinâmicas Culturais, Cidadania e Desenvolvimento Local, Lisboa, Associação Portuguesa de Sociologia, 1994, p. 768.

[834] Nomeadamente no inquérito às práticas culturais dos lisboetas, vd. José Machado Pais (coord.) et al., Práticas Culturais dos Lisboetas, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, 1994, pp. 70‑72.

[835] Agrega duas actividades que constam da lista de José Machado Pais: ler jornais e ler jornais semanários.

[836] Vd. Christian Lalive D'Epinay et al., Temps Libres Culture de Masse et Culture de Classe Aujourd'Hui , Paris, Favre, 1982.

[837] Vd. Virgílio Borges Pereira, “Os índios e a vida selvagem” in Sociologia. Revista da Faculdade de Letras, Porto, nº 4, 1994, pp. 347‑349.

[838] Vd. Bernardo Pinto de Almeida, “Alguns olhares” in 3+3 Olhares sobre o Rivoli, Porto, Câmara Municipal do Porto, 1997, p. 5.

[839] Vd. a este respeito (questões da “multivocalidade” do espaço”), o nosso texto “Estruturas espaciais e práticas sociais ‑ a inexistente opção entre o local e o global” in Sociologia. Revista da Faculdade de Letras, Vol. IV, 1994.

[840] Vd. “O desafio como método Isabel Alves Costa, directora artística do Rivoli, em entrevista ao JN” in Jornal de Notícias ‑ Suplemento Rivoli, 16 de Outubro de 1997, p. 6.

[841] Excerto de entrevista que nos foi concedida.

[842] O S. João encontrava‑se ainda fechado, devido ao incêndio que o destruiu em 1908, mas encontravam‑se em funcionamento o Salão‑Jardim da Trindade, o Teatro Sá da Bandeira, o Águia d'Ouro, o Salão‑Jardim Passos Manuel , o Olympia e o Carlos Alberto, para além de “um grande número de salas na região do Porto, que passavam sobretudo filmes mudos”, vd. José Gomes Bandeira, “O Teatro Nacional de 1913” in Jornal de Notícias‑  Suplemento, 16 de Outubro de 1997, p. 9. Do mesmo autor, consultar ainda a brochura Rivoli ‑ Teatro Municipal ‑ 80 Anos de Espectáculos, Porto, Câmara Municipal do Porto, 1993.

[843] Citado in Maria Teresa Resende, Inventário ‑ Arquivo do Teatro Rivoli, Porto, Câmara Municipal do Porto, 1997, p. 21.

[844] Vd. José Gomes Bandeira, Rivoli ‑ Teatro Municipal..., ed. cit., p 6.

[845] Idem, “A última palavra em bom gosto” in Jornal de Notícias..., op. cit., p. 10.

[846] Idem, Rivoli ‑ Teatro Municipal..., ed. cit., p. 11.

[847] Marcante para muitos frequentadores, este período traduz‑se por inúmeras histórias. José Gomes Bandeira, através do relato de um desses habitués, dá‑nos conta de um frequente procedimento do projeccionista que “parava o filme num dado momento por causa de uma canção que comovia fortemente a plateia e a sequência voltava ao princípio para ser vista de novo. Depois batiam‑se palmas para agradecer ao projeccionista e para desanuviar”, vd. “O Rivoli de Maria Borges” in Jornal de Notícias..., op. cit., p. 15.

[848] Isabel Alves Costa, directora artística do Rivoli, refere‑se a esta experiência em entrevista ao jornal Expresso: “Com o atraso inicial da obra, pude experimentar alguma programação num espírito diferente depois de o Rivoli ter sido esvaziado do seu conteúdo. Quando se tiraram as cadeiras, transformou‑se num espaço teatral fantástico e que permitiu (até ao início das obras em Junho do ano seguinte) fazer o programa sem orçamento «Rivoli vazio». Desafiei escolas e grupos de teatro a fazerem aqui todo o tipo de experiências. Foi um tempo muito rico, após o qual a obra começou”, vd. Expresso, 11 de Outubro de 1997.

[849] Vd. Maria Teresa Resende, op. cit., p. 72.

[850] A vereadora do Pelouro de Animação da Cidade resume da seguinte forma essas vantagens: “É uma associação de funcionamento do tipo privado: pode planear; pode fazer a selecção de pessoal sem estar sujeita aos limites da função pública; pode tratar da imagem do Teatro sem ter que levar, de cada vez, as propostas para aprovação da Câmara; tem uma gestão financeira que aproveita os melhores preços” in Suplemento do Jornal de Notícias, 16/10/97, p. 19.

[851] Entrevista que nos foi concedida por Isabel Alves Costa.

[852] Vd. Teresa Lima, Centro de formação do Espectador (de Teatro), documento policopiado. Nesse projecto adiantam‑se algumas propostas de inegável potencialidade: o ensaio aberto, a preparação para o espectáculo, o debate após o espectáculo, as cenas formativas, encomendadas com intuitos pedagógicos a grupos de teatro, sessões teórico‑práticas subordinadas à temática “Da ideia ao espectáculo”, conferências e seminários, etc. Recupera‑se uma vez mais a noção de que a “arte de espectador” é, antes de mais, uma aprendizagem em moldes de progressiva familiarização.

[853] Vd. Jornal de Notícias ‑ Suplemento Rivoli, p. 16.

[854] Excerto de entrevista concedida por Isabel Alves Costa. A mesma preocupação com a criação de uma identidade específica que supere a atomização de iniciativas aparece patente num documento utilizado para discussão interna: “um Teatro Municipal não pode ser apenas um receptáculo para todo o tipo de usos, tem de ser um espaço que busque uma identidade própria, baseada na qualidade dinâmica e mesmo conflitual dos projectos (uns excluem por vezes os outros), claramente situados entre a dimensão popular e a experimentação, entre a tradição e a inovação, entre o «grande público» e as «minorias cultas»”, vd. Rivoli Teatro Municipal: um Projecto Cultural, policopiado.

[855] Vd. Jornal de Notícias‑  Suplemento Rivoli, art. cit., p. 5.

[856] Vd. Expresso, art. cit., p. 6

[857] Excerto de uma entrevista que nos foi concedida.

[858] Associado à animação da madrugada, em ambiente festivo.

[859] Programa de tertúlia.

[860] Vd. Jornal de Notícias ‑ Suplemento Rivoli, p. 19.

[861] Vd. entrevista a Isabel Alves Costa, Expresso, art. cit., p. 6.

[862] Vd. o nosso trabalho “As estatísticas na área da cultura: breve reflexão” in Sociologia ‑ Problemas e Práticas, nº 26, 1998, pp. 121‑122.

[863] Vd. A. Giddens, As Consequências da Modernidade, Oeiras, Celta Editora, 1992, em especial pp. 8‑22.

[864] Vd. Marc Augé, Não‑Lugares ‑ Introdução a uma Antropologia da Sobremodernidade, Lisboa, Bertrand Editora, 1994.

[865] Vd. Frederic Jameson, “Transformações da imagem na pós‑modernidade” in F. Jameson, Espaço e Imagem ‑ Teorias do Pós‑Moderno e Outros Ensaios, Rio de Janeiro, Editora Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1995, p. 115.

[866] Idem, ibidem, pp. 119‑120.

[867] Idem, ibidem, p. 120.

[868] Idem, ibidem, p. 136.

[869] Essa mesma associação está presente na lista de patrocinadores: casas de moda (boutiques) e de decoração.

[870] O apresentador foi vestido por uma conhecida marca de roupa e os patrocinadores variaram entre as marcas de café, cerveja, roupas de marca e estabelecimentos de manutenção corporal.

[871] Vd. “Desfile na Praia da Luz” in Jornal de Notícias, 31/5/97.

[872] F. Jameson, op. cit., p. 136.

[873] Esta combinação é metaforicamente definida pelo crítico António Curvelo da seguinte forma: “Quando cuida das raízes sem prender as asas, o jazz continua vivo”, vd. “Bom jazz, má informação”, in Público, 22/2/98.

[874] Uma das colaboradoras do responsável confessou‑nos mesmo que os oito funcionários do B Flat não são muito bem remunerados, justificando o seu apego à casa por amor a uma causa: a divulgação do jazz no Norte de Portugal.

[875] Vd. Anne Cauquelin, La Ville et la Nuit, Paris, P.U.F., 1977, p. 10.

[876] Vd. idem, ibidem, p. 10.

[877] Cf. Capítulo I.

[878] Anne Cauquelin, op. cit., p. 35.

[879] Idem, ibidem, p. 43.

[880] Anne Cauquelin, ibidem, p. 118.

[881] Cf. A. Giddens, As Consequências da Modernidade, Oeiras, Celta Editora, 1992 e ainda Laura Bovone, “Os novos intermediários culturais. Considerações sobre a cultura pós‑moderna” in Carlos Fortuna (org.), Cidade, Cultura e Globalização, Oeiras, Celta Editora, 1997, em particular pp. 105‑111.

[882] Vd. François Ascher, Metapolis ‑ Acerca do Futuro da Cidade, Oeiras, Celta Editora, 1998, p. 80.

[883] Vd. A.Giddens, op. cit., p. 93.

[884] Vd. Georg Simmel, “A metrópole e a vida de espírito” in Carlos Fortuna (org.), Cidade, Cultura e Globalização, Oeiras, Celta Editora, 1998.

[885] Vd. François Ascher, op. cit., p. 79.

[886] Imagem utilizada por François Ascher propósito da “multiplicação dos objectos, das práticas e das referências” na metapolis, vd. op. cit., pp. 79‑80.

[887] Olivier Galland refere‑se mesmo às tentativas do sistema para convencer os que não obtêm sucesso de que “nada está perdido” e que continuam na competição (continuam a ter o estatuto cada vez mais ambíguo de pretendentes a uma credenciação), não havendo sanções definitivas. Desta forma, adoptam‑se nomenclaturas dissimuladas, “progressivas e reversíveis que tentam evitar os efeitos da exclusão”. Daí a proliferação de novas modalidades como a “flexibilidade e alargamento dos conteúdos”, a “progressividade das classificações”, as “unidades capitalizáveis”, etc., vd. “Un statut indéfini et indéfinissable” in Jeunes d'Aujourd' Hui, Paris, La Documentation Française, 1987, pp. 44‑45.

[888] Estas dimensões de autonomia são particularmente visíveis nas formas quotidianas (diferenciadas e condicionadas consoante os contextos sociais) de ocupação dos tempos livres; vd. José Machado Pais, Culturas Juvenis, Lisboa, Imprensa Nacional, 1994 e ainda Usos do Tempo e Espaços de Lazer, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, s/ data. Num outro estudo João Sedas Nunes conclui que “enquanto às idades baixas, à situação estudantil e ao estado civil solteiro corresponde globalmente (…) uma maior abertura dos usos dos tempos livres, com o aumento da idade, a passagem à situação trabalhadora e a neo‑constituição familiar, sobretudo quando a Igreja sela o engajamento, os invólucros dos ditos tempos parecem contrair‑se, quer em quantidade, quer em intensidade”, vd. “Práticas culturais” in AAVV, Jovens de Hoje e de Aqui, Loures, Câmara Municipal de Loures, 1996, p. 135.

[889] Vd. E. Gil Calvo, Los Depredadores Audiovisuales — Juventud Urbana y Cultura de Massas, Madrid, Editorial Tecnos, 1985, p. 16.

[890] Como refere ainda E. Gil Calvo, a juventude é uma “invenção” das sociedades pós‑industriais. De facto, nas sociedades tradicionais “através de qualquer ritual sacramental de transição acedia‑se directamente à categoria social de adulto (…) não existia a juventude como categoria social ou, se quisermos, a juventude apenas durava o que durava essa cerimónia de iniciação à responsabilidade adulta. Pelo contrário, na nossa sociedade plenamente industrializada, esse rito de iniciação, essa cerimónia de transição (…) pode durar décadas”, Idem, ibidem, p. 17.

[891] Vd. Mike Featherstone, Consumer Culture & Postmodernism, London, Sage Publications, 1996, p. 100.

[892] Sucedem‑se os estados “intermitentes” e híbridos muitas vezes como resistência e/ou adaptação a processos de desqualificação (é‑se estudante e trabalhador, perde‑se um emprego e regressa‑se à escola, tentando acumular um volume maior de qualificações, antes de se obterem vínculos contratuais estáveis atravessam‑se experiências de formação profissional, etc.). Como refere Galland, há uma “generalização e banalização dos estatutos provisórios”, vd. art. cit., p. 34.

[893] Crítica proferida por R. G. Hollands, vd. “As identidades juvenis e a cidade” in Carlos Fortuna (org.), Cidade, Cultura e Globalização, Oeiras, Celta Editora, 1998, p. 211.

[894] Idem, ibidem, p. 211.

[895] Nestas práticas incluímos as seguintes actividades: “não fazer nada” e “dormir a sesta”.

[896] Torna‑se imprescindível, a este respeito, o excerto de uma entrevista feita a Pierre Bourdieu publicado sob o título “La jeunesse n’est qu’un mot” in Questions de Sociologie, Paris, Éditions de Minuit, 1984. Aí, Bourdieu fala claramente da idade como “um dado biológico socialmente manipulado e manipulável”, e da definição dos limites etários como uma questão que se prende à transmissão do poder entre gerações.

[897] A expressão pertence a José Machado Pais (Vd. Culturas Juvenis..., op. cit.). Evoluímos neste aspecto face à nossa posição anterior em que reduzíamos o espaço dessa “tipicidade juvenil” ao campo da procura de identidade e de autonomia, processos constitutivos da adolescência e tomados na sua heterogeneidade. De facto, existirão modos especificamente juvenis de construção social da realidade, embora continuamente cruzados por elementos estruturais diversos, desde logo os meios sociais de pertença, vd. O nosso trabalho Tristes Escolas —Práticas Culturais Estudantis no Espaço Escolar Urbano, Porto, Edições Afrontamento, 1997, cap. I.

[898] E. Gil Calvo, op. cit., p. 19.

[899] Idem, ibidem.

[900] Vd. O. Donnat, Les Français Face à la Culture, Paris, Éditions La Découverte, 1994, p. 35.

[901] Idem, ibidem, p. 103.

[902] Vd. O. Donnat, op. cit., pp. 133‑134.

[903] Vd. Tristes Escolas — Práticas Culturais Estudantis no Espaço Escolar Urbano, Porto, Edições Afrontamento, 1997. De salientar, a este respeito, a representação, amplamente generalizada nos múltiplos grupos estudantis, de recusa do modelo de escola‑obrigação, com uma clara desvalorização dos tempos lectivos e dos mecanismos institucionais de consagração e controlo no campo escolar, em favor dos espaços‑tempos de sociabilidade intragrupal.

[904] Vd. José Madureira Pinto, “Notas sobre o sofrimento na sala de aulas e possíveis modos de o atenuar” in Território Educativo, nº 1, 1997.

[905] Vd. O. Donnat, op. cit., p. 141. O autor especifica um pouco mais a génese deste complexo fenómeno, ligando‑o à contracultura dos anos 60 que estabeleceu laços estreitos com as indústrias culturais, às profundas mutações tecnológicas que modificaram o próprio conceito de espectáculo, às novas condições de produção e difusão dos produtos culturais e a uma crescente penetração da lógica financeira e empresarial no campo artístico.

[906] Idem, ibidem, p. 145.

[907] Vd. Laura Bovone, “Os novos intermediários culturais. Considerações sobre a cultura pós‑moderna” in Carlos Fortuna (org.), Cidade, Cultura e Globalização, Oeiras, Celta Editora, 1998, p. 105. De acordo com a autora, “jornalistas e publicistas, produtores de televisão, operadores de turismo, directores de centros culturais e criadores de moda, arquitectos, galeristas” são alguns dos exemplos ocupacionais destas profissões.

[908] Inclui as seguintes actividades: ir a cafés, cervejarias e pastelarias; ir à missa ou a cerimónias religiosas; ir a discotecas; ir a bares; almoçar ou jantar fora sem ser por necessidade; jogar em máquinas electrónicas (casas de jogos); ir às compras (roupa, discos, livros, etc.).

[909] Observem‑se os quadros referentes à frequência de bares e discotecas (Anexo V/Quadros III e IV). Repare‑se como estas práticas estão positivamente associadas à juvenilidade. No entanto, não deixa de surpreender que, no caso das discotecas, a frequência seja significativamente menor. Aliás, apenas no grupo etário dos inquiridos com idade até aos 20 anos a opção “raramente/nunca” não é predominante. No grupo seguinte, 50.2% declaram raramente ou nunca ir a discotecas. Contraria‑se, assim, a imagem‑rótulo de uma juventude que estaria totalmente absorvida pelos “templos profanos” da cultura pós‑moderna. A frequência assídua de bares pode estar relacionada com o privilegiar de locais que reproduzam modelos de sociabilidade mais “sedentários” e não tão obsessivamente centrados na estética corporal.

[910] Featherstone defende uma espécie de “terceira via” na análise dos estilos de vida nas sociedades hodiernas: a sua crescente importância não deriva de serem produtos manipulados da cultura de massas, nem tão‑pouco expressões totalmente autónomas do espírito pós‑moderno, mas sim de reconfigurações no espaço social, que não significam o seu fim, vd. Consumer Culture…, op. cit., pp. 83‑111.

[911] Vd. Idalina Conde, “Cenários de práticas culturais em Portugal (1979‑1995) in Sociologia Problemas e Práticas, nº 23, 1996, p. 165.

[912] Inclui as seguintes actividades: escrever (poemas, contos, etc.); artes plásticas (pintar, desenhar, esculpir, etc.) e fazer fotografia com intuitos estéticos.

[913] A categoria “práticas associativas expressivas” engloba as seguintes actividades: ir a associações recreativas ou colectividades locais; jogar xadrez; jogar às cartas, damas, bilhar, etc.; fazer campismo e caravanismo.

[914] A categoria “práticas associativas criativas” engloba, por sua vez, as seguintes actividades: fazer teatro amador; dançar (dança contemporânea, ballet, jazz e folclore); tocar (num grupo musical, coro, rancho, etc.); cantar (num grupo musical, coro, rancho, etc.).

[915] Vd. H. Gil Calvo, op. cit., p. 22.

[916] Vd. Carlota Quintão e Paula Oliveira, A Participação Juvenil no Movimento Associativo em Matosinhos, Câmara Municipal de Matosinhos /Fundação Gomes Teixeira, 1997, policopiado

[917] Vd. Paulo Antunes Ferreira, Valores dos Jovens Portuguses nos Anos 80, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais/Instituto da Juventude, 1993.

[918] Vd. Ronald Inglehart, Modernization and Postmodernization — Cultural, Economic and Political Change in 43 Societies, Princeton, Princeton University Press, 1997, em especial pp. 67‑91 e pp. 132‑36. Muitas e variadas têm sido as críticas apontadas a Inglehart, desde questões metodológicas relacionadas com os modos de inquirição (que supostamente manipulariam resultados), até à objecção de fundo de que se trata de uma perspectiva evolucionista e unilinear da história, com implícitos laivos etnocêntricos. Outras críticas dirigem‑se ao excessivo determinismo patente em algumas das suas proposições centrais, como a que liga crescimento económico e ascensão dos valores pós‑materialistas (ao pretender enfatizar o papel dos sistemas simbólicos Inglehart acaba, paradoxalmente, por conceder a primazia ao económico) No entanto, em tempo de alguma “fragmentação” teórica, a utilização crítica de teorias de longo alcance revela‑se, contra a corrente, de renovado interesse. No presente caso existe ainda um factor adicional de valorização: o estudo comparativo de 43 sociedades, entre as quais a portuguesa.

[919] A moda é por ele entendida num sentido amplo, ou seja, enquanto “circulação geral das modas (…) estéticas, políticas, ideológicas, etc.”, instância de regulação e de controle social, vd. op. cit., p. 66.

[920] Idem, ibidem, p. 99.

[921] Idem, ibidem, p. 134.

[922] Cf. a este respeito Mike Featherstone, Consumer Culture and Postmodernism, London, Sage Publications, 1996, em especial o capítulo 7 “City cultures and postmodern lifestyles”, pp. 95‑111.

[923] Num trabalho levado a cabo por José Machado Pais (Usos do Tempo e Espaços de Lazer, Lisboa, Instituto da Juventude/Instituto de Ciências Sociais, s/ data, p. 59), 88.5% dos jovens inquiridos declararam ver diariamente ou quase televisão, o que corresponde, no presente trabalho, à categoria “frequentemente”. Na nossa amostra tal índice desce para 79.2% no caso dos jovens até aos 20 anos e 69.5% no que se refere aos que têm entre 21 e 30 anos.

[924] Vd. Francis Godard, “Les rapports entre générations: une approche historique” in AAVV, Jeunes D’Aujourd’Hui, op. cit., p. 12.

[925] Inglehart fala das “experiências formativas distintivas de determinadas gerações”, vd. op. cit., p. 158.

[926] Robert Elms citado por Mike Featherstone, vd. op. cit., p. 100.

[927] O próprio Inglehart, apesar da ambição de aplicação universal da sua teoria, acaba por reconhecer que os jovens protagonistas dos valores pós‑materialistas começaram por ser grupos restritos de estudantes universitários, vivendo num meio social distinto e fechado em relação aos jovens de outros meios sociais. A mesma concepção está implícita na sua hipótese de que o grau de adesão a esses valores depende estreitamente do nível educacional, ocupacional e económico dos agentes e, em particular, do nível de segurança vivido durante o seu período formativo (conceito de “segurança formativa”, vd. op. cit., pp. 138‑159).

[928] Vd. A. Giddens, Modernidade e Identidade Pessoal, Oeiras, Celta Editora, 1994, p. 191‑206.

[929] Idem, ibidem, p. 192.

[930] Elísio Estanque e José Manuel Mendes referem, aliás, que “nos países mais avançados a segregação sexual em relação às mulheres é muito maior” do que em Portugal onde as mulheres revelam estar numa situação de superioridade em segmentos fundamentais do mercado de trabalho, em particular “nos casos em que o factor qualificações (credenciais) assume maior importância”, vd. Classes e Desigualdades Sociais em Portugal, Porto, Edições Afrontamento, 1998, p. 207.

[931] Augusto Santos Silva e Helena Santos chegaram a conclusões semelhantes: “...o espaço exterior tende a ser mais masculino e juvenil. As associações entre passeio e convivência familiar sugerem indirectamente a atenção a um facto que outras observações confirmam: os movimentos femininos pelos espaços públicos ou reservados (...) quando não decorrem das deslocações de trabalho, estão, sobretudo entre adultas, ligadas a actividades das famílias e em família”, vd. Prática e Representação das Culturas: um Inquérito na Área Metropolitana do Porto, Porto, Centro Regional das Artes Tradicionais, 1995, p. 40.

[932] A. Giddens, Modernidade e Identidade Pessoal, ed. cit., p. 190.

[933] Inclui as seguintes práticas: frequentar festas de carácter popular; passear; fazer desporto; fazer jogging; fazer pequenas viagens; ir à pesca; ir à caça; ir à praia; passear em centros comerciais; ir a feiras.

[934] A. Santos Silva e Helena Santos concluíram no seu estudo que “não só os jovens e as mulheres são aqueles que menos aderem (por comparação com os adultos e os homens), enquanto sócios, às colectividades, como também são os que menos probabilidades estatísticas apresentam de serem, nelas, dirigentes” , vd. op. cit., p. 49.

[935] Vd. Capítulo IV.

[936] Vd. Capítulo X.

[937] Vd. A este respeito Justin O’ Connor e Derek Wynne, “Das margens para o centro. Produção e consumo de cultura em Manchester” in Carlos Fortuna (org.), op. cit., em especial pp. 200‑204.

[938] No caso do B Flat, o tratamento de um inquérito realizado pela direcção do clube de jazz a um total de 508 pessoas permitiu‑nos constatar a seguinte distribuição etária:

-            menos de 15 anos: 0.4%

-            dos 15 aos 24 anos: 27.2%

-            dos 25 aos 34 anos: 40.2%

-            dos 35 aos 60 anos: 32.3%

O inquérito às práticas culturais dos lisboetas revela que uma boa parte do público que aprecia jazz tem entre 21 e 44 anos, confirmando estes dados (vd. José Machado Pais (coord.) et al., Práticas Culturais dos Lisboetas, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, 1994, pp. 152‑154). Um estudo relativo aos Estados Unidos mostra resultados semelhantes: 2/3 do público tem menos de 45 anos, concentrado  especialmente no grupo etário 25‑34 anos (vd. Scott De Veaux, Jazz in America: Who's listening?, Carson, Seven Locks Press, 1995, p. 3).

[939] Vd. M. Featherstone, op. cit., p. 44.

[940] Featherstone assinala a este respeito a “percepção do passado como um conglomerado de imagens, fragmentos e espectáculos”, ibidem, p. 98.

[941] Vd. Vladimir Jankélévitch, “Georg Simmel, philosophe de la vie” in G. Simmel, La tragédie de la Culture, Paris, Édtions Rivages, 1988, p. 55.

[942] Idem, ibidem, p. 92.

[943] Vd. Sihem Najar, “Comportement vestimentaire et identification au pluriel” in Société, nº 50, 1995, p. 404.

[944] Vd. Georg Simmel, “La mode” in La Tragédie de la Culture”, Paris, Éditions Rivages, 1988, p. 93.

[945] Vd. Pierre Bourdieu, “Remarques provisoires sur la perception sociale du corps” in Actes de La Recherche en Sciences Sociales, nº 14, 1977.

[946] Idem, ibidem, p. 95.

[947] Idem, ibidem, p. 98.

[948] Vd. G. Simmel, “La mode” in op. cit., p. 92.

[949] Vd. Gilles Lipovetsky, O Império do Efémero. A Moda e o seu Destino nas Sociedades Modernas, Lisboa, Publicações D. Quixote, 1989, p. 28.

[950] Vd. G. Simmel, “La mode” in op. cit., p. 102.

[951] Idem, ibidem.

[952] Idem, ibidem.

[953] Vd. Pierre Bourdieu, “Les trois états du capital culturel” in Actes de la Recherche en Sciences Sociales, nº 30, 1979, p. 4.

[954] Vd. José Luís Casanova, “Uma avaliação conceptual do habitus” in Sociologia — Problemas e Práticas, nº 18, 1995, p. 61.

[955] Vd. G. Simmel, “La mode” in op. cit., p. 98

[956] Idem, ibidem, p. 113.

[957] Vd. Anthony Giddens, “Time, space and regionalisation” in Derek Gregory e John Urry (eds.), Social Relations and Spacial Structures, London, MacMillan, 1985, p. 269.

[958] Devido à existência de uma enorme lista de convidados, o Rivoli abriu com uma estreia em duas noites. Claro que a primeira noite contou com um cerimonial ainda mais ritualizado, dada a presença de dignatários e representantes dos vários poderes, quer de dimensão local, quer nacional.

[959] Vd. Diana Crane, The Production of Culture. Media and the Urban Arts, Newbary Park, Sage, 1992, p. 5.

[960] Em baixo capital escolar consideramos todos os percursos escolares que, no máximo, completaram a escolaridade obrigatória (9º ano de escolaridade). Em médio capital escolar consideramos os inquiridos que têm mais do que a escolaridade obrigatória mas no máximo o 12º ano. Em alto capital escolar consideramos níveis de escolaridade correspondentes a um diploma de curso médio ou superior.

[961] No inquérito às práticas culturais dos lisboetas conclui‑se que “entre os géneros de música menos escutados se encontram — para além da música barroca — o jazz, os blues e a música rap”. Por outro lado, o público de jazz e de blues caracterizam‑se pela sua “elitização” (alto nível de escolaridade, perfil urbano, estratos médio superior e alto, vd. José Machado Pais (coord.) et al., Práticas Culturais dos Lisboetas, Lisboa, Instituto de Ciências sociais, 1994, p. 151.

Nos Estados Unidos da América, país de origem deste género musical, o perfil é idêntico: público altamente escolarizado (mais de 3/4 tem frequência ou diploma de ensino superior), qualificado e detentores de altos rendimentos, vd. Scott De Veaux, Jazz in America: Who's listening?, Carson, Seven Locks Press, 1995.

[962] Vd. José Machado Pais et al., op. cit., p. 151.

[963] Vd. Pierre Bourdieu, La Distinction. Critique Sociale du Jugement, Paris, Les Éditions de Minuit, 1979. No entanto, não podemos concordar com o autor francês quando enquadra o jazz nas “artes em via de legitimação”. Apesar das suas origens “plebeias”, o gosto pelo jazz está muito menos disseminado do que o gosto pela música clássica, o que corresponde, certamente, a um processo de enobrecimento cultural que o transforma numa prática fortemente “classificadora”, devido (e utilizamos uma expressão adoptada por Bourdieu para a “música nobre”) “à raridade das condições de aquisição das disposições correspondentes”, vd. op. cit., p. 17.

[964] Idem, ibidem, p. 429.

[965] Vd. Mike Featherstone, Consumer Culture & Postmodernism, ed. cit., em particular o capítulo 6 (“Lifestyle and consumer culture”).

[966] “Valores que eram controversos nos anos 60 tornaram‑se os valores da situação nos anos 90”, vd. R. Inglehart, Modernization and postmodernization, ed. cit., p. 142.

[967] Muitas das profissões incluídas nesta “nova pequena burguesia” indiciam essa ligação privilegiada à cultura e à informação: relações‑públicas, designers, jornalistas, publicitários, críticos, artistas, etc.

[968] Laura Bovone cita a este respeito Douglas e Isherwood : “É bem evidente a colocação central e a liderança dos intermediários culturais no «campo em que se trava a batalha da definição e da forma da cultura»” , vd. Laura Bovone in Carlos Fortuna (org.), op. cit., p. 113.

[969] Vd. Alan Warde, “Intermediação cultural e alteração do gosto” in Carlos Fortuna (org.), op. cit., em particular pp. 121‑124.

[970] No entanto, convém realçar que a declaração de uma prática regular de leitura, dado o carácter prestigiante associado a esta prática (e a vergonha cultural que “mancha” quem não lê) difere consideravelmente da prática efectiva; vd. a este respeito Eduardo de Freitas et al., Hábitos de Leitura. Um Inquérito à População Portuguesa, Lisboa, Publicações D. Quixote, 1998, pp. 257‑262.

[971] De acordo com os dados do inquérito nacional, 14.9% dos inquiridos declaram ler diariamente ou quase (o que corresponde à nossa categoria “frequentemente”, ou seja, a 40.8% dos respondentes); 13.2% afirmam ler pela menos uma vez por semana (o equivalente à nossa categoria “com alguma frequência”, que representa 43% das respostas) e 70.5% manifestam ler raramente ou nunca (16.2% na nossa amostra), vd. Eduardo de Freitas et al., op. cit., p. 258.

[972] Idem, ibidem, p. 271.

[973] Vd. Olivier Donnat, Les Français Face à la Culture. De l' Éxclusion à l'Écletisme, Paris, 1994, p. 275.

[974] Idem, ibidem, pp. 276‑277.

[975] Idem, ibidem, p. 280.

[976] Vd. Georg Simmel, “La mode” in La Tragédie de la Culture, ed. cit., p. 117. Simmel considera as modas pessoais como um caso limite da moda social.

[977] Bourdieu afirma, no entanto, que o conhecimento da novidade e o estar actualizado sobre as novas referências é um privilégio, precisamente, dos que, devido à sua íntima familiaridade com a “cultura nobre” podem “dar‑se ao luxo” de se afastar dos “universos mais escolares, mais clássicos, para se aventurarem em regiões menos legítimas, menos «arriscadas» da cultura dita «livre« que, não sendo ensinada pela escola (...) pode ter um alto rendimento simbólico e procurar um forte ganho distintivo”; vd. La Distinction, ed. cit., p. 68. Contudo, não partilhamos, para a nossa amostra, essa hipótese interpretativa. Não sendo independente do volume e composição do capital escolar, esta predisposição moderna dos praticantes culturais da Praia da Luz parece‑nos estar associada a um universo simbólico onde é preponderante o peso da condição juvenil.

[978] Vd. Pierre Bourdieu, La Distinction, ed. cit., p. 68.

[979] “O capital cultural incorporado das gerações anteriores funciona como uma espécie de avanço (no duplo sentido de vantagem inicial e de crédito), idem, ibidem, p. 77.

[980] Vd. Capítulo IX.

[981] Vd. Olivier Donnat, op. cit., p. 149.

[982] Cf. a este respeito as propostas por nós apresentadas em trabalho anterior no sentido de reformular o conceito bourdiano de campo escolar, nomeadamente quando referimos que “o amplo movimento de recusa da escola nega operacionalidade às antigas instâncias de legitimação, bem como ao seu instrumento privilegiado: o exame, a avaliação, o veredicto escolar. Este, nada mais tem de sagrado, banalizou‑se (..) Quem verdadeiramente conta, hoje em dia, nas nossas escolas, para definir um percurso legítimo são os grupos de amigos. O capital escolar — o tal capital específico, inerente a um efeito de campo é, antes de mais, um capital de sociabilidade”, vd. Tristes Escolas, ed. cit., p. 180.

[983] Pierre Bourdieu e Jean‑Claude Passeron afirmam a esse respeito que “a acção pedagógica escolar (...) reproduz a cultura dominante, contribuindo assim para reproduzir a estrutura das relações de poder, numa formação social onde o sistema de ensino dominante tende a assegurar o monopólio da violência simbólica legítima”, vd. A Reprodução. Elementos para uma Teoria Geral do Sistema de Ensino, Lisboa, Editorial Veja, s/ data, p. 25.

[984] Caracterizado, entre outros atributos, pela centralidade do paradigma cultural imagem‑som, por certas saídas nocturnas (jazz, rock, espectáculos de dança, cinema...) e por comportamentos anti‑ascéticos e mesmo hedonistas e individualistas (defesa da “arte de viver”), vd. op. cit., p. 342.

[985] Quando resultam do cruzamento entre um baixo capital escolar de origem e um médio capital escolar de ego.

[986] Vd. Elísio Estanque e José Manuel Mendes, op. cit., p. 209.

[987] Presente quando Bourdieu considera que “a disposição estética é (...) uma manifestação do sistema de disposições que produzem os condicionamentos sociais associados a uma classe particular de condições de existência”, vd. La Distinction, ed. cit., p. 59.

[988] Vd. Jean Viard, La Société d'Archipel, Le Château, Édtions de l'Aube, 1994, pp. 21‑22.

[989] Vd. Elísio Estanque e José Manuel Mendes, op. cit., em particular o capítulo I.

[990] Vd. Pierre Bourdieu, “La «jeunesse» n'est qu'un mot” in Questions de Sociologie, Paris, Les Éditions de Minuit, 1994, p. 148.

[991] Vd. “La Métamorphose des gouts” in op. cit., p. 170.

[992] Vd. Pierre Bourdieu, La Distinction, ed. cit., p. 158.

[993] Vd. Anthony Giddens, Modernidade e Identidade Pessoal, Oeiras, Celta Editora, 1994, pp. 72‑79.

[994] Idem, ibidem, p. 74.

[995] Vd. Peter L. Berger e Thomas Luckmann, A Construção Social da Realidade, Petrópolis, Editora Vozes, 1985, p. 107.

[996] Definidos por Giddens da seguinte forma: “Os estilos de vida são práticas rotinizadas, as rotinas incorporando‑se em hábitos de vestir, comer, modos de agir e meios favorecidos para o encontro com os outros”. Ou ainda: “Um estilo de vida pode ser definido como um conjunto mais ou menos integrado de práticas que um indivíduo adopta, não só porque essas práticas satisfazem necessidades utilitárias, mas porque dão forma material a uma narrativa particular de auto‑identidade”, in op. cit., p. 73.

[997] Vd. a este respeito David J. Lee e Bryan S. Turner (orgs.), Conflicts about class. Debating Inequality in Late Industrialism, London, Longman, 1996, em especial pp. 1‑20.

[998] Vd. capítulos VI e VII.

[999] Vd., por exemplo, Pierre Bourdieu, La Distinction, ed. cit., em particular pp. 409‑431 e ainda Mike Featherstone, Consumer Culture & Postmodernism, ed. cit., em particular cap. 6.

[1000] Vd. Anthony Giddens, The Class Structure of the Advanced Societies, London, Hutchinson, 1983, p. 107.

[1001] Idem, ibidem, p. 109. Giddens aproveita ainda para neste ponto criticar Weber. De acordo com o autor inglês, Weber fez coincidir erradamente o status (que resulta de uma avaliação) com os grupos de status (onde a existência dessa avaliação pode não existir ou estar meramente implícita).

[1002] Vd. João Sedas Nunes e Maria Paula Duarte, “Usos do tempo e gostos culturais” in José Machado Pais (coord.), Práticas Culturais dos Lisboetas, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, 1994, p. 311.

[1003] Idem, ibidem, p. 312.

[1004] Vd. Augusto Santos Silva e Helena Santos, Prática e Representação das Culturas: um Inquérito na Área Metropolitana do Porto, Porto, Centro Regional de Artes Tradicionais, 1995, p. 25.

[1005] Vd. Paulo Filipe Monteiro, “Os públicos dos teatros de Lisboa: primeiras hipóteses” in Análise Social, nº 129, 1994, p. 1237.

[1006] Vd. O. Donnat, op. cit., p. 368.

[1007] O que poderá relacionar‑se com o facto de estarmos aqui a tratar da “fotografia artística”, desligada dos seus usos banais, de forte cunho familiar e de celebração ritual, vd. Pierre Bourdieu et al., Un Art Moyen. Essai sur les Usages Sociaux de la Photographie, Paris, Les Éditions de Minuit, 1965.

[1008] Vd. Eduardo de Freitas et al., op. cit., p. 119. Os mesmos autores referem ainda a acção conjugada do capital escolar adquirido com “um vivenciado relacionamento primário de registo favorável no campo da leitura” (p. 123).

[1009] É justo considerar que Bourdieu apenas ao de leve é tocado por esta crítica, apesar da centralidade que o capital escolar ocupa na sua análise do simbólico. Com efeito, o autor francês não só apresenta uma noção multidimensional do capital global (distribuído por várias espécies de capital), como considera o próprio capital escolar enquanto uma forma particular, institucionalizada, de capital cultural. Por outro lado, a perspectiva relacional que Bourdieu impõe à sua análise leva‑o a fazer depender igualmente a génese das práticas às posições ocupadas no campo (“campo de forças” e “campo de lutas”), vd., por exemplo, Raisons Pratiques, Paris, Éditions du Seuil, 1994, cap. I e pp. 53‑56.

[1010] Vd. Idalina Conde, “Contextos, culturas, identidades” in José Manuel Leite Viegas e António Firmino da Costa (orgs.), Portugal, que Modernidade?, Oeiras, Celta Editora, 1998, p. 91.

[1011] Idem, ibidem, p. 92.

[1012] Expressão que encontramos em Idalina Conde, vd. “Cenários de práticas culturais em Portugal (1979‑1995)” in Sociologia — Problemas e Práticas, nº 23, 1996, p. 183.

[1013] Vd. Idalina Conde, “Contextos, culturas identidades” in op. cit., p. 96.

[1014] Vd. Pierre‑Michel Menger, “L'oreille spéculative. Consommation et perception de la musique contemporaine” in Revue Française de Sociologie, XXVII, 1986, pp. 445‑479.

[1015] Vd. Idalina Conde, “Contextos, culturas, identidades” in op. cit., p. 96. A autora refere‑se às conclusões de um estudo de públicos por si realizado para a Fundação de Serralves em 1994.

[1016] Habermas faz notar, aliás, que com a ascensão da esfera pública burguesa cai o princípio do livre acesso, passando este a ser condicionado por critérios ligados à propriedade e à formação cultural. Neste caso, já não se pode falar em rigor de uma esfera pública. No entanto, o autor faz notar que esta distinção tinha origem na esfera privada da sociedade civil burguesa, sendo construída de antemão. Sob os seus pressupostos de livre‑concorrência cada um teria teoricamente a oportunidade de conquistar os atributos de homem com acesso à esfera pública, vd. Jurgen Habermas, Mudança Estrutural da Esfera Pública, Rio de Janeiro, Edições Tempo Brasileiro, 1984, pp. 105‑109.

[1017] Idem, ibidem, p. 16.

[1018] Vd. Richard Sennett, The Fall of the Public Man, New York, Norton, 1992, p. 4.

[1019] Idem, ibidem, p. 8.

[1020] Sennet refere‑se numa outra obra a esta “desordem de carácter” (segundo os rótulos da psicanálise de cujos efeitos terapêuticos ele desconfia, por considerar que se trata de um mal estar de raízes culturais e civilizacionais) como “uma sensação de estar morto para o mundo”, uma “incapacidade de sentir” que leva a que o Outro não nos estimule. O mito de narciso tem uma ligação directa com esta situação: Narciso “inclina‑se à borda d'água indiferente à voz que lhe pede para retroceder; quer acercar‑se mais e mais da imagem de si mesmo reflectida na água; no momento desta união consigo mesmo, afoga‑se”. Por outras palavras, Narciso mostra‑se incapaz de distinguir entre o eu e o outro; vd. R. Sennett, Narcisismo y Cultura Moderna, Barcelona, Editorial Kairós, 1980, pp. 10‑13.

[1021] Vd. R. Sennett, The Fall of Public Man, ed. cit., p. 41.

[1022] Idem, ibidem, p. 10.

[1023] Vd. J. Habermas, op. cit., p. 184.

[1024] Vd. Jean Viard, op. cit., p. 54.

[1025] Vd. François Ascher, Metapolis, ed. cit., pp. 92‑93.

[1026] Vd. Graham Allan, Friendship. Developing a Sociological Perspective, London, Harvester wheatsheaf, 1989, p. 138.

[1027] “O lar é um espaço de vida criado pelos seus habitantes para exprimir, de certa maneira, a sua individualidade e estilo pessoal”, vd. Idem, ibidem, p. 139.

[1028] Idem, ibidem, pp. 140‑142.

[1029] Vd. J. Habermas, op. cit., p. 61.

[1030] Vd. R. Sennett, op. cit., p. 15.

[1031] Vd. François Ascher, Metapolis, ed. cit., p. 89. O autor refere ainda o desconforto dos cientistas sociais perante os novos posicionamentos familiares, resultantes de uma flexibilização e fragilização dos laços conjugais (“meia‑irmã”, falso irmão, pseudo‑avó, quase esposo, etc.).

[1032] Vd. A. Giddens, As Consequências da Modernidade, Oeiras, Celta Editora, 1992, p. 14.

[1033] Vd. François Ascher, op. cit., p. 99.

[1034] Vd. J. Habermas, op. cit., p. 193.

[1035] Idem, ibidem, p. 191.

[1036] Idem, ibidem, p. 188.

[1037] Idem, ibidem, p. 194.

[1038] Idem, ibidem, p. 202.

[1039] Vd. José Madureira Pinto, Intervenção no painel “Mudam‑se os campos, mudam‑se as cidades” in Sociologia. Revista da Faculdade de Letras, Vol. II, 1992, p. 191.

[1040] Crítica formulada por John B. Thompson e retomada por Jim McGuigan in Culture and the Public Sphere, London, Routledge, 1996, p. 27. Thompson assinala ainda um conjunto de quatro grandes críticas à teoria de Habermas sobre a esfera pública: negligência do papel dos movimentos populares constituídos através de uma “esfera pública plebeia” (Habermas concentra‑se na versão burguesa da esfera pública); não assinalar da masculinidade da esfera pública burguesa, baseada numa total exclusão das mulheres; subvalorização da força criativa da produção e recepção culturais de raiz popular, bem como das potencialidades comunicacionais dos novos media; carácter vago das suas propostas de renovação da teoria crítica.

[1041] Vd. Jean Viard, La Société d'Archipel, Le Château, Éditions de l'Aube, 1994, p. 14.

[1042] Idem, ibidem, p. 20.

[1043] Vd. A. Giddens, As Consequências da Modernidade, ed. cit., p. 16.

[1044] Conceito de Lewis Mumford e que Jean Viard define como “soma dos territórios‑arquipélago das pessoas em relação directa com a cidade”, vd. J. Viard, op. cit., p. 37.

[1045] Vd. Pio Ricci Bitti e Bruna Zani, A Comunicação como Processo Social, Lisboa, Editorial Estampa, 1993, em particular pp. 19‑55.

[1046] Idem, ibidem, p. 27.

[1047] Vd. Paul DiMaggio, “Classification in art” in American Sociological Review, vol. 52, 1987, p. 440. Por cultura popular, no contexto da produção teórica americana, deve entender‑se cultura de massas.

[1048] Vd. Jim McGuigan, op. cit., p. 28.

[1049] Vd. Paul DiMaggio, art.cit., p. 442.

[1050] Idem, ibidem, p. 443.

[1051] Vd. Claire Bidart, L'Amitié. Un Lien Social, Paris, Éditions La Découverte, 1997, em especial pp. 183‑189 e Félix Requena Santos, Amigos y Redes Sociales. Elementos para una Sociología de la Amistad, Madrid, Siglo XXI de España Editores, 1994, em particular pp. 42‑46. O conceito de espaço pessoal da autoria de Deem é definido por Requena Santos como estando “contido dentro dos limites definidos pela oportunidade de que dispõe um indivíduo para desenvolver aspectos da sua vida pessoal na forma que quer e pode escolher”,  vd. op. cit., p. 25.

[1052] Vd. de Claire Bidart, para além da obra citada, o artigo “Sociabilités: quelques variables” in Revue Française de Sociologie, nº 29, 1988.

[1053] Vd. François Héran, “La sociabilité, une pratique culturelle” in Économie et Statistique, nº 216, 1988.

[1054] Vd. Claire Bidart, op. cit., pp. 193‑197.

[1055] Vd. Félix Requena Santos, op. cit., pp. 11‑16.

[1056] Vd. Claire Bidart, op. cit., p. 7.

[1057] Claire Bidart define o círculo social como sendo simultaneamente “um conjunto de indivíduos e um sistema de regras, de códigos e de símbolos” que funcionam como meios ou recursos de acção, vd. op. cit. 54.

[1058] Vd. Graham Allan, Friendship. Developing a Sociological Perspective, Hertfordshire, Harvester Wheatsheaf, 1989, pp. 1‑17.

[1059] Vd. François Héran, art. cit., p. 18.

[1060] Vd. Félix Requena Santos, op. cit., p. 15

[1061] Vd. Graham Allan, op. cit., p. 20.

[1062] Vd. Claude S. Fischer, “Toward a subcultural theory of urbanism” in Mark Baldassare (ed.), Cities and Urban Living, New York, Columbia University Press, 1983, pp. 84‑114.

[1063] Vd. Paul DiMaggio, art. cit., p. 447.

[1064] Vd. Claude. S. Fischer, art. cit., p. 94.

[1065] O conceito de homofilia (“homophilie”) é utilizado por Claire Bidart para salientar a “tendência a preferir o semelhante em contactos que não os conjugais”, em relação aos quais se utiliza o termo vizinho de homogamia. “A homofilia pode‑se assim definir como a tendência para as amizades se formarem entre indivíduos que se assemelham sobre um aspecto preciso”, que pode ser a classe social, a geração, a etnia, o credo, etc., vd. C. Bidart, op. cit., p. 42.

[1066] Vd. Graham Allan, op. cit., pp. 142‑147.

[1067] Vd. Jan C. C. Rupp, “Les classes populaires dans un espace social à deux dimensions” in Actes de la Recherche en Sciences Sociales, nº 109, 1995, p. 97.

[1068] Vd. François Héran, art. cit., p. 14.

[1069] Vd. Félix R. Santos, op. cit., pp. 44‑46.

[1070] Estes aspectos são desenvolvidos por Ward H. Goodnough no seu artigo “Multiculturalism as the normal human experience” in Elizabeth M. E. e William L. P. (eds.), Applied Anthropology in America, New York, Columbia University Press, 1978.

[1071] Vd. por exemplo Claire Bidart, op. cit., em especial o capítulo “Qui se ressemble s'assemble?”, pp. 41‑51.

[1072] Vd. François Ascher, op. cit., p. 91.

[1073] Vd. Elísio Estanque e José Manuel Mendes, Classes e Desigualdades Sociais em Portugal. Um Estudo Comparativo, Porto, Edições Afrontamento, 1998, p. 128.

[1074] Vd. Graham Allan, op. cit., p. 23.

[1075] Vd. Claire Bidart, op. cit., p. 202.

[1076] Vd. François Héran, art. cit., p. 15.

[1077] Vd. Graham Allan, op. cit., p. 137.

[1078] Vd. Claire Bidart, op. cit., p. 247.

[1079] Vd. Pierre Bourdieu, La Distinction, ed. cit., p. 409.

[1080] Idem, ibidem, p. 418.

[1081] Idem, ibidem, p. 415.

[1082] Idem, ibidem, pp. 348‑362.

[1083] Idem, ibidem, p. 356.

[1084] Crescimento económico associado à racionalidade técnico‑científica e domínio da tecnoestrutura; produção em massa padronizada; autoridade identificável; centralidade do Estado‑Nação; mercados estáveis; etc., cf. David Harvey, Condição Pós‑Moderna, São Paulo, 1992, pp. 121‑134

[1085] Vd. Pierre Bourdieu, La Distinction, ed. cit., p. 358.

[1086] Cf. Quadro LII.

[1087] Vd. por exemplo Mike Featherstone, op. cit., em particular capítulo 6 e Laura Bovone, “Os Novos intermediários culturais. Considerações sobre a cultura pós‑moderna” in Carlos Fortuna (org.), op. cit., em especial pp. 111‑118.

[1088] Vd. David Harvey, op. cit., pp. 304 e 305.

[1089] Vd. Erving Goffman, A Apresentação do Eu na Vida de Todos os Dias, Lisboa, Relógio d 'Água, 1993, p. 15.

[1090] Goffman refere três vários tipos de atitudes possíveis: “por vezes o indivíduo agirá de modo inteiramente calculado (...) Por vezes o indivíduo continuará a calcular os seus actos mas permanecendo relativamente inconsciente de o estar a fazer. Por vezes expressar‑se‑á intencional e conscientemente de um modo determinado, mas fazendo‑o sobretudo porque a tradição do seu grupo ou categoria social exigem esse tipo de expressão (...) Por vezes as tradições ligadas ao papel de um indivíduo levá‑lo‑ão a causar uma impressão perfeitamente deliberada de um tipo particular e, apesar disso, ele pode não estar nem consciente nem inconscientemente decidido a causar o tipo de impressão correspondente”, Idem, ibidem, p. 17.

[1091] Vd. Serge Collet in AAVV, Théâtre Public. Le Rôle du Spectateur, nº 55, 1984, p. 13.

[1092] Os conceitos em itálico são da autoria de Goffman, vd. op. cit., p. 21 e p. 27.

[1093] Vd. Pierre Bourdieu, “Le sens pratique” in Actes de La Recherche en Sciences Sociales, nº 1, 1976, p. 43.

[1094] Idem, ibidem.

[1095] Idem, ibidem, p. 60.

[1096] Designação de Paul Connerton comentada por Miguel Vale de Almeida Vd. “Antropologia do corpo e da incorporação” in Miguel Vale de Almeida (org.), Corpo Presente, Oeiras, Celta Editora, 1996, p. 15.

[1097] Idem, ibidem, p. 16.

[1098] Vd. Jorge Vala, “Representações sociais e percepções intergrupais” in Análise Social, nº 140, 1997, p. 11.

[1099] Vd. Cláudia Marisa Silva de Oliveira, A Vida em Silêncios Comunicantes. Análise Sociológica da Criação e da Recepção de um Espectáculo Teatral, Porto, Faculdade de Letras, 1997, p. 298.

[1100] Vd. Robert Francès, La Perception, Paris, Presses Universitaires de France, 1992, p. 117.

[1101] Registo de diário de campo.

[1102] Vd. Pierre‑Michel Menger, “L'oreille spéculative. Consommation et perception de la musique contemporaine” in Revue Française de Sociologie, XXVII, 1986, pp. 473‑475.

[1103] Vd. Robert Francès, op. cit., pp. 117‑118.

[1104] Vd. Cláudia Marisa de Oliveira, op. cit., pp. 193‑194.

[1105] Cf., a propósito dos rituais e da sua eficácia simbólica, Jean Maisonneuve, Les Rituels, Paris, Presses Universitaires de France, 1988.

[1106] Conceito proposto, na linha teórica de Giddens, por William A. Corsaro, “Discussion, debate, and friendship processes: peer discourse in U.S. and Italian nursery schools” in Sociology of Education, vol. 67, 1994, p. 2.

[1107] Vd. Anthony Giddens, As Consequências da Modernidade, Oeiras, Celta Editora, 1992, p. 94: “As relações são laços baseados na confiança, uma confiança que não é pré‑determinada mas construída, e em que a construção envolvida significa um processo mútuo de auto‑desvendamento”.

[1108] Vd. Richard Sennett, The Fall of Public Man, New York, Norton, 1992, pp. 33‑38.

[1109] Vd. Serge Collet in AAVV, op. cit., p. 13.

[1110] Vd. Anne‑Marie Gourdon, “Le public de théâtre et sa perception” in AAVV, op. cit., p. 9.

[1111] Registamos uma conversa entre vários homens, na casa dos 50 anos, que conversavam animadamente sobre o festival de jazz do Rivoli. Um deles era unanimemente reconhecido pelos outros como “o especialista”. Não só tinha comprado bilhetes para todos os espectáculos, como possuía vasta informação sobre o programa, que lhes ia fornecendo.

[1112] Vd. Anne‑Marie Gourdon, art. cit., p. 9.

[1113] No B Flat registamos, entre outros, este excerto de conversa, entre um homem que aparentava ter cerca de 30 anos e uma rapariga mais nova: “Em Nova York havia uma discoteca muito estranha...de homossexuais... estava lá um tipo vestido de cabedal, com um chicote e começou a olhar para o meu amigo. Ele entrou em pânico! Eu, por precaução, andava sempre encostado à parede. Aquilo estava cheio, era uma loucura. Lá as pessoas são super‑radicais!”. De igual modo, captámos na Praia da Luz conversas sobre destinos de viagens mais ou menos exóticos, como Manaus ou Singapura: “Em Singapura, mesmo no aeroporto, tu não vês uma migalha no chão”. De certa forma, esta exteriorização de “cosmopolitismo” pode ser enquadrada em estratégias de distinção social.

[1114] Vd. Nathalie Heinich, “Du jugement de goût à la perception esthetique” in Idalina Conde (coord.), Percepção Estética e Públicos da Cultura, Lisboa, Acarte/Fundação Calouste Gulbenkian, 1992, pp. 16‑17.

[1115] Não sendo impossível fazer a síntese. François Aubral fala, por exemplo, da “comoção estética” como fruição activa, capaz de “tocar” no criador virtual que existe em cada agente, vd. AAVV, op. cit., p. 31.

[1116] Vd. Prefácio de Jean Starobinski à obra de Hans Robert Jauss, Pour une Esthétique de la Réception, Paris, Gallimard, 1978, p. 13.

[1117] Hans Robert Jauss, op. cit., p. 53.

[1118] Idem, ibidem.

[1119] Idem, ibidem.

[1120] Esta última expressão é da nossa autoria. Jauss nunca fala na “verdadeira arte”, mas não anda longe, ao referir‑se às qualidades do que é artístico, como a “mudança de horizonte”.

[1121] Vd. Nathalie Heinich, art. cit., p. 11.

[1122] Esta categoria resulta da agregação das seguintes respostas: “boa música/bom espectáculo” (Praia da Luz); “boa qualidade da música”, “desilusão pelo espectáculo” (B Flat) e “gostar de ouvir música tocada ao vivo”, “boa qualidade do som”, “lembranças da cultura alemã”, “o realismo do cinema português”, “os textos contundentes e provocatórios” (Rivoli). Por seu lado, a categoria “ideias/impressões associadas a uma apropriação pessoal do espectáculo” foi construída com base nos ítems “monotonia”, “ruído”, “ambiente invulgar” (Praia da Luz), “comunicação”, “monotonia”, “harmonia/calma/bem‑estar/prazer”, “alegria/ritmo/animação”, “interrupção da rotina e das preocupações” (B Flat) e ainda “Paz/bem‑estar/relaxamento”, “energia/alegria/simpatia”, “emoção”, “ajuda a viver”, “revolta face à sociedade”, “escuridão/morte”, “caos”, “moderno/criativo/variado/original”, “depressão/mundo cruel” (Rivoli).

[1123] Vd. Jorge Vala, art. cit., p. 10.

[1124] Vd. Read Bain citado por Jacques Leenhardt, “Recepção da obra de arte” in Mikel Dufrenne (org.), A estética e as Ciências da Arte, Amadora, Bertrand, 1982, p. 73.

[1125] Idem, ibidem.

[1126] Vd. Russell W. Belk, “La consommation symbolique d'art et de culture” in AAVV, Économie et Culture, Paris, La Documentation Française, 1987, p. 136.

[1127] “A mesma obra de arte pode provocar múltiplas respostas num mesmo indivíduo”, vd. Idem, ibidem.

[1128] Vd. Yves Evrard, “Les déterminants des consommations culturelles” in AAVV, Économie et Culture, ed. cit.

[1129] Vd. Pierre Bourdieu, Sobre a Televisão, Oeiras, Celta Editora, 1997, p. 10.

[1130] Idem, ibidem.

[1131] Idem, ibidem, p. 15.

[1132] Vd. Robert Francès, op. cit., p. 122.

[1133] Idem, ibidem, p. 124.

[1134] Vd. Diana Crane, The Production of Culture. Media and the Urban Arts, Newbary Park, Sage, 1992.

[1135] Vd. a este respeito Mike Featherstone, Consumer Culture and Postmodernism, London, Sage Publications, 1996.

[1136] Vd. Diana Crane The Production of Culture. Media and the Urban Arts, Newbary Park, Sage Publications, 1992, p. 112.

[1137] Cf. a este respeito a obra de Mike Featherstone, Undoing Culture. Globalization, Postmodernism and Identity, London, Sage Publications, 1995, em especial capítulo 4.

[1138] Vd. Jim McGuigan, Culture and the Public Sphere, London, Routledge, 1996, p. 102.

[1139] Vd. José Bragança de Miranda, "Modernidade, espaço público e conflito de nomeações" in Revista de Comunicação e Linguagens, nº 2, 1985, pp. 16‑17.

[1140] Vd. Jurgen Habermas, "A nova opacidade: a crise do estado‑providência e o esgotamento das energias utópicas" in Revista de Comunicação e Linguagens, nº 2, 1985, p. 116.

[1141] Idem, ibidem, p. 128.

[1142] Vd. Adriano Duarte Rodrigues, "O público e o privado" in Revista de Comunicação e Linguagens, nº 2, 1985, p. 14.

[1143] Citado por Jim McGuigan, Culture and the Public Sphere, London, Routledge, 1996, p. 103.

[1144] Mike Featherstone é um dos mais argutos teóricos do pós‑modernismo. Na sua obra poderemos encontrar um desenvolvimento adequado destas tendências, bem como o adoptar de uma posição singular que se distancia da vulgata pós‑moderna, vd. Consumer Culture and Postmodernism, London, Sage Publications, 1996 e ainda Undoing Culture, London, Sage Publications, 1995. Para uma síntese crítica, vd. David Harvey, Condição Pós‑Moderna, São Paulo, Edições Loyola, 1992.

[1145] Vd. Anthony Giddens, As Consequências da Modernidade, Oeiras, Celta Editora, 1992, p. 116.

[1146] Cf. a este respeito, do mesmo autor, Modernidade e Identidade Pessoal, Oeiras, Celta Editora, 1994.

[1147] Vd. "Entrevista com Jurgen Habermas: a dialéctica da racionalização" in Revista de Comunicação e Linguagens, nº 2, 1985, p. 162.

[1148] Idem, ibidem, p. 163.

[1149] Vd. Richard Sennett, The Fall of Public Man, New York, Norton, 1992.

[1150] Vd. Christopher Lasch, "Consumo, narcisismo e cultura de massas" in Revista de Comunicação e Linguagens, nº 2, 1985, p. 134.

[1151] Idem, ibidem, p. 138.

[1152] Vd. David Harvey, op. cit., p. 308.

[1153] Vd. David Harvey, op. cit., p. 319.