As Mulheres Jornalistas*

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Filipa Subtil,** Instituto Politécnico de Lisboa

 

 Há poucos anos atrás, José Eduardo Moniz resolveu despedir Maria Elisa e Margarida Marante. Que pôde a notoriedade das televedetas perante o poder de decisão administrativa do director de programas?

Quase sem presença até 1974, as jornalistas representam agora cerca de 30% do total dos profissionais: 1142 mulheres, num universo de 3879.[1] Mas ao lado dos grandes proprietários das empresas de imprensa como Francisco Pinto Balsemão, Luís Silva ou Carlos Barbosa não se encontra nenhuma mulher. Situação idêntica ocorre na direcção dos principais jornais, rádios e televisões. Até ao momento em que escrevo este texto, nenhuma mulher tem o nome no lugar onde nos habituámos a ver os de Vicente Jorge Silva, Bettencourt Resendes ou José António Saraiva. Excepção feita ao semanário O Diabo, as únicas mulheres directoras de órgãos de comunicação social encontram-se nas revistas dirigidas ao público feminino. São também escassos os cargos de chefia ocupados por mulheres nas redacções. A elite jornalística continua, portanto, a ser predominantemente masculina, o que significa que ao ingresso das mulheres na profissão não tem correspondido idêntico acesso a lugares de relevo. No jornalismo, as mulheres encontram-se, na sua esmagadora maioria, a desempenhar funções de execução. À visibilidade crescente não corresponde o poder nas redacções.

A escolarização e o acesso ao jornalismo

O surgimento da nova geração de mulheres no jornalismo acontece em simultâneo com a chegada feminina em massa a certas profissões liberais como a advocacia, a magistratura ou a medicina, tendência que se tem vindo a acentuar desde os finais dos anos 70. Até então, a sua presença acontecia de uma forma excepcional, acompanhando a dinâmica generalizada de escassa participação das mulheres num mundo laboral protagonizado pelos homens.

A crescente profissionalização feminina deve ser compreendida no contexto mais vasto da recomposição da estrutura social portuguesa nas últimas décadas, a qual se relaciona profundamente com os níveis de instrução escolar. O incremento da escolaridade e as competências por ela transmitidas (ou proporcionadas) são fundamentais para a compreensão das dinâmicas das nossas sociedades. Os dados da escolaridade, em Portugal, indicam que nas três últimas décadas se assistiu à duplicação da percentagem de indivíduos que tiveram sucesso nos diferentes graus de ensino. Um dos casos mais paradigmáticos é o do ensino superior, onde o crescimento em cada década foi mais do dobro.[2] Ora, se em termos quantitativos a mudança é já de si muito significativa, um dos fenómenos que a acompanha diz respeito à radical recomposição sexual dos estudantes universitários. Em 1960, as universitárias constituíam uma pequena minoria, representando apenas 29,5% dos estudantes. A partir daquela data, têm crescido continuamente, sendo actualmente a maioria, atingindo quase os 60%.

Apesar de se manterem certas especificidades no processo de ingresso no jornalismo, em que o credencialismo escolar universitário não constitui condição necessária, na actualidade, um dos mais importantes campos de recrutamento para a profissão acaba por ser, de facto, o meio universitário, em particular a frequência dos cursos de comunicação e jornalismo.[3] Uma breve análise a alguns dos cursos universitários de Lisboa desta área indica uma presença feminina predominante. As estudantes de comunicação (área de jornalismo) das Universidades Nova, Católica e Autónoma são 69,3% do total (Quadro 1).

 

Quadro 1: Estratificação segundo o sexo da frequência dos cursos de comunicação de Lisboa (variantes de comunicação social e jornalismo) da Universidade Nova, Universidade Católica e Universidade Autónoma (1995)

 

 

Esta recomposição sexual da população universitária portuguesa, que se repercute nas licenciaturas do campo da comunicação social, terá decerto consequências efectivas no sistema profissional, sendo tendencialmente um dos factores que poderá vir a contribuir para o crescimento contínuo da taxa de actividade feminina no sector.

O jornalismo é uma actividade intelectual, comportando tarefas e rotinas profissionais relacionadas com a escrita, a reflexão e o pensamento, e com um impacto e relevância pública crescentes. É precisamente em campos profissionais com elevados níveis técnico-científicos que a presença feminina, em Portugal, tem apresentado, em termos totais e nos diversos grupos de profissões, um forte incremento.[4] As profissões intelectuais, científicas e técnicas, onde o jornalismo se insere, apresentam uma evolução a nível nacional que representava há apenas três décadas atrás 2,8%, quando actualmente se aproxima dos 20%.

No entanto, apesar deste crescente ingresso das mulheres no ensino superior, que lhes proporciona melhores condições para ter sucesso, tal não tem correspondido à sua melhor inserção na esfera profissional, ocupando-se fundamentalmente das áreas de trabalho social, administrativo, artístico, escolar e agora comunicacional — sectores que tradicionalmente são considerados como estando fora do conceito de “trabalho produtivo” —, as quais tendem a ser desvalorizadas com efeitos nos níveis de prestígio, de recompensa económica e de poder social.

A profissionalização das mulheres e as especificidade da semiperiferia portuguesa

A partir de dados da OCDE, Nadine Lefaucheur refere que é nos países escandinavos e anglo-saxónicos que a taxa de actividade profissional das mulheres atinge valores mais elevados: mais de 45% das mulheres com idade superior a quinze anos (45% no Reino Unido e Austrália, 49% nos Estados Unidos e Canadá, 57% na Dinamarca e na Suécia) exercem uma actividade profissional, muitas vezes a tempo parcial (em cada dez mulheres empregadas, estão nesta situação mais de quatro nos países escandinavos, mas somente duas nos Estados Unidos).[5] Em 1985, a proporção de mulheres casadas com idade inferior a cinquenta anos de idade que exerciam uma actividade profissional ultrapassava os 55% em cinco estados da Europa dos dez.[6] Dados do Eurostat apontam também para a situação de, em 1990, a taxa de emprego feminino em Portugal atingir, na faixa etária dos 20 aos 59 anos, valores na ordem dos 64%, quando a média da União Europeia se cifrava nos 61%.[7] As percentagens nacionais só são inferiores às verificadas em França (68%), no Reino Unido (72%) e na Dinamarca (84%).[8] Importa, todavia, acentuar que estes valores comportam uma elevada percentagem de trabalho a tempo parcial (superior a 40%), sem paralelo em Portugal, onde não chega a atingir os 6%.

Todavia, a análise do significado social da taxa de actividade feminina em Portugal deve ser analisada à luz das profundas mudanças na estrutura social que introduzirão necessariamente novos elementos de compreensão. Desde logo, deve assinalar-se a diluição da até então efectiva divisão entre os planos sociais e o domínios de actividade dos homens e das mulheres: aqueles no trabalho profissional, estas no trabalho doméstico.[9] Actualmente, as mulheres deixaram de estar confinadas ao espaço doméstico constituindo um efectivo considerável que disputa com os homens espaços de intervenção na esfera profissional. Em Portugal, este fenómeno é bem visível quando passamos à análise estatística. Nos últimos 20 anos, assistiu-se a uma quase duplicação da taxa de profissionalização das mulheres (1981, 29%; 1992, 41,3%).[10] Deste modo, como assinalam J. Ferreira de Almeida et al.: “A amplitude do processo de profissionalização das mulheres e o seu ritmo crescente tornam-se ainda mais salientes se compararmos as taxas de actividade dos dois sexos por faixas etárias. Para as gerações que actualmente têm menos de 45 anos, a taxa de actividade feminina ultrapassa já três quartos da taxa de actividade masculina, atingindo quase 90% destas nos escalões mais jovens”.[11]

A crescente presença das mulheres no jornalismo faz inteiramente parte do processo analisado, decorrendo ainda do aumento rápido e generalizado dos níveis de escolaridade dos jovens portugueses. Duas das maiores consequências da dinâmica de escolarização prendem-se, por um lado, com a intensidade com que a escolaridade se verifica no sexo feminino (o que induz mudanças graduais no estatuto social das mulheres, nas próprias relações sociais e nos modos de vida da população portuguesa), e, por outro, com o crescimento significativo dos efectivos das profissões intelectuais, científicas e técnicas. Este forte impulso ficou a dever-se, em grande medida, ao elevado concurso da profissionalização feminina neste sector, revelando a crescente qualificação dos indivíduos do sexo feminino. Neste grupo profissional, em que quase todos os efectivos possuem um curso superior (cerca de 90%), a distribuição por sexos é paritária.

Virgínia Ferreira, uma atenta investigadora desta situação, adianta a hipótese de o elevado grau de feminização das profissões técnico-científicas poder estar associado à menor segregação sexual existente no sistema de ensino, o qual, já desde os anos 60 que vem apresentando uma das mais elevadas taxas de feminização dos cursos superiores universitários registadas nos países europeus.[12] Vejamos os argumentos apresentados pela autora para explicar uma situação tão específica como a que sucede em Portugal. Os países de desenvolvimento económico clássico apresentam uma divisão sexual do trabalho bastante rigidificada assente em elevados índices de salariato e que se estende às profissões técnico-científicas. Tal circunstância ficar-se-ia a dever à maior dificuldade das mulheres participarem nas estruturas de investigação, isto porque existe uma maior articulação entre essas actividades e o próprio sistema produtivo. Os sectores com menores status no interior das profissões técnico-científicas são maioritariamente ocupados por homens dos grupos sociais mais desfavorecidos que atingiram níveis de escolaridade elevados. No entanto, segundo a autora, em países com processos de desenvolvimento mais tardio como Portugal, com um sistema económico frágil, uma forte e pioneira intervenção do Estado e a debilidade do próprio sistema de ensino — nomeadamente o ensino universitário menos massificado e consequentemente mais elitista —, isto é, em sociedades mais segmentadas entre as elites e a maioria da população, tende-se a valorizar socialmente as altas qualificações das mulheres pertencentes às elites.[13]

Para um perfil sociológico das jornalistas em Portugal

As mudanças na distribuição sexual dos jornalistas é um dos aspectos do processo mais vasto de recomposição social do conjunto dos profissionais desse campo, por sua vez inserido na evolução recente da paisagem mediática portuguesa. Após um período em que o sistema dos media teve como elementos estruturantes a propriedade estatal da televisão; a díade na rádio entre o Estado e a Igreja Católica e a coexistência do sector público e privado na imprensa escrita, a década de 80 indicia uma profunda mudança no espaço mediático nacional.[14] Esta encontra-se marcada, numa primeira fase, pela introdução de novos processos de reconversão associados à introdução de novas tecnologias, à privatização da imprensa ‘oficial’, ao boom de novas publicações, ao surgimento das rádios locais e à reestruturação das nacionais, culminando, já no início da década de 90, com a abertura da televisão a operadores privados. Neste quadro, as mulheres constituem mais de 50% do público televisivo e representam também uma grande parte dos novos leitores de jornais e revistas, apesar de não se poder falar, como se verá adiante, da existência de uma opinião pública feminina. Este alargamento do espectro informativo não deixa de estar associado, entre outras, a novas necessidades de informação criadas pela adesão de Portugal à União Europeia e ao desenvolvimento que nesta área se tem vindo a operar nos países ocidentais, nomeadamente as novas visibilidades possibilitadas pela cibernética, sem dúvida extremamente estimulantes na captação de novos públicos — novos contingentes de leitores, telespectadores e ouvintes mais escolarizados e cada vez mais exigentes que reclamam mais quantidade e qualidade na informação.

As jornalistas, em grande medida jovens licenciadas nas áreas das ciências sociais, ingressam massivamente nas redacções, no momento em que se dá o boom dos anos 80 no espaço mediático nacional, em condições de profunda precariedade, realizando estágios, muitas das vezes, não remunerados. Esta real mudança na paisagem mediática assenta, todavia, num fenómeno de fragilidade estrutural de grande parte das empresas de comunicação social que têm como estratégia de rentabilidade formas de precariedade laboral ligadas ao recrutamento de mão-de-obra barata e de preferência qualificada, onde se inclui a feminina, mais exposta à subcontratação e aos contratos a prazo.

As transformações na paisagem mediática, em associação com a recente chegada à profissão das jornalistas portuguesas, marca um ponto de viragem no perfil da profissão e na sua própria composição social. O rejuvenescimento da actividade deve-se, em grande medida, às mulheres recém chegadas à profissão. Segundo os dados de 1987, 55,9% das jornalistas tinha menos de 35 anos e 83% menos de 45 anos de idade, o que leva a concluir que mais de 60% das profissionais do sexo feminino exerce a sua actividade há menos de dez anos.[15] Dados recentes referentes à idade média das jornalistas e da sua entrada na profissão, comprovam estes números. As jornalistas são substancialmente mais jovens que os seus colegas do sexo masculino, com uma idade média de 34 anos, enquanto a dos homens ronda os 42.[16]Quanto à idade média de entrada na profissão a diferença não é tão acentuada, mas revela que as mulheres entram na profissão mais cedo do que os homens: em termos médios com 25 anos, enquanto a entrada dos segundos acontece aos 27. O seu acesso à profissão processa-se, fundamentalmente, por via do credencialismo académico, ao contrário dos seus colegas homens, muitos deles tendo acedido à profissão com baixíssimos níveis de escolaridade e contando como meio de aprendizagem a tradicional “tarimba”.

As jornalistas: a visibilidade sem reflexo no poder

A forte escolarização das jornalistas portuguesas não se repercute, todavia, na ocupação de posições cimeiras no interior das redacções, tendo fundamentalmente assento nos cargos de execução. A tendência para a crescente visibilidade das jornalistas, resultante da sua crescente presença no “mundo da comunicação” e nas redacções, dando-lhes uma imagem “arejada” e moderna, não tem correspondido à transformação das estruturas de hierarquia e organização do trabalho jornalístico. A análise da composição sexual da elite jornalística comprova que as jornalistas se encontram, na sua esmagadora maioria, completamente arredadas dos cargos de topo conotados com o exercício da autoridade e do poder.[17] (Segundo alguns testemunhos recolhidos, que, evidentemente, não permitem uma extrapolação representativa, mesmo quando atingem os cargos de chefia, as mulheres não parecem auferir o mesmo salário que os seus colegas homens em idênticos cargos. Esse é, nomeadamente, o caso das directoras das revistas femininas, por comparação com os directores dos jornais diários ou semanários).[18]

Na verdade, as jornalistas estão pouco representadas nos quadros directivos dos órgãos de comunicação social (exceptuando as rádios, embora sendo ainda minoritárias, e as revistas destinadas ao público feminino). Começando por tomar como primeiros indicadores os três principais semanários do país (Expresso, Independente e Semanário) e a revista Visão, constata-se que num total de 182 jornalistas 29,7% são mulheres, enquanto na elite, em 55 apenas 12,7% o são (Quadro 2). Nos quatro principais diários (Público, Diário de Notícias, Jornal de Notícias e Correio da Manhã), em 443 jornalistas 31,6% são mulheres; na elite e em 103, somente 13,6% o são (Quadro 3). No audiovisual, contando apenas, quanto às televisões, com os dados da SIC, a divisão sexual do trabalho apresenta-se extremamente assimétrica e rígida. Nenhuma mulher na direcção, subdirecção e direcção adjunta; na “2ª linha” apenas duas mulheres — uma na coordenação da produção e outra realizadora; na “3ª linha”, em quatro editores especiais não existe nenhuma mulher; na coordenação da edição, em seis profissionais só existe uma mulher — Cândida Pinto; em 18 jornalistas, sete são mulheres mas com grande visibilidade apenas Margarida Marante marca presença. Já na “pool” em 14 profissionais metade são mulheres; no escalão mais baixo, os estagiários, todos são do sexo feminino. No entanto, contrariando esta tendência, na rádio, em particular nas de maior difusão nacional (RDP, Rádio Renascença, Rádio Comercial e TSF), não só o peso das mulheres é superior no conjunto de todos os profissionais do sector — em 224 jornalistas, as mulheres representam 37,5% —, como detêm até um pouco mais de peso percentual nos grupos de topo — num total de 63 integrantes da elite, as mulheres representam 38% (Quadro 4). Em termos de assimetria sexual, as situações de rigidez alteram-se ainda mais — e radicalmente — no campo das revistas femininas analisadas (Marie Claire, Máxima, Elle, Cosmopolitan, Guia e Mulher Moderna): constituindo a esmagadora maioria nas redacções — 82,7% dos 52 jornalistas — as mulheres apresentam também uma altíssima percentagem da elite — 80% num total de 30.

 

Quadro 2: Estratificação segundo os sexos no total dos jornalistas e nas elites (nos semanários Expresso, Independente, Semanário e Visão — dados recolhidos durante Setembro e Outubro e Novembro de 1995)

 

           

Aprofundando a análise, através do Quadro nº 2 verifica-se que o Independente apresenta a redacção com maior percentagem de mulheres — 38,3% dos jornalistas. Em termos percentuais, segue-se a Visão com 37,9% de mulheres na redacção. O Expresso, semanário de referência de maior antiguidade e com um perfil mais institucional, apresenta uma estrutura extremamente masculinizada — numa redacção de 62 jornalistas, apenas 14,5% são mulheres.

Quando passamos à análise da estratificação nas elites segundo o sexo deparamo-nos com um sector onde a participação feminina é pouco significativa. Em todos os semanários em análise, constata-se uma profunda diferença entre o peso percentual que as mulheres detêm no total de jornalistas e o peso que representam na elite, incluindo o Independente que, como se disse antes, é dos quatro semanários o que conta com maior número de mulheres jornalistas. Assim, devido a este factor, o Independente conta com a mais alta percentagem de mulheres na elite (22,2%), seguindo-se depois a Visão (18.8%), o Semanário (11,1%) e, finalmente, o Expresso (4,8%). O Semanário e a Visão apresentam uma estrutura mais rigidificada nas elites — 25% e 19,1% são as percentagens que marcam a distância entre o peso que as mulheres ocupam no conjunto dos profissionais e o peso que representam na elite.

 

Quadro 3: Estratificação segundo os sexos no total dos jornalistas e nas elites (no Público, Diário de Notícias Jornal de Notícia e Correio da Manhã — dados recolhidos durante Setembro, Outubro e Novembro de 1995)

 

 

A análise dos diários (Quadro 3) demonstra que se mantêm as tendências já assinaladas. No conjunto dos diários de maior expansão nacional o Diário de Notícias integra 41,3% de mulheres jornalistas, o Correio da Manhã e o Público surgem, de seguida, com 39,8% e 37,7%, respectivamente. O Jornal de Notícias do Porto, numa redacção de 106 jornalistas, é o que apresenta a percentagem de mulheres mais reduzida — apenas 15%.

Na análise da estratificação por elites, e tal como sucedia nos semanários, os diários apresentam, não só uma composição fundamentalmente masculina, como se constata uma profunda diferença entre o peso percentual que as mulheres detêm no total de profissionais e o seu peso na elite. É no Correio da Manhã que se verifica a maior percentagem de mulheres em lugares de destaque (26,7%) e no Jornal de Notícias a menor (2,9%). O Correio da Manhã, e curiosamente também o Jornal de Notícias, com 13%, são os diários que apresentam uma estrutura menos rigidificada por comparação com o Público e o Diário de Notícias, respectivamente com 22,7% e 23,1% de percentagem a marcar a distância entre o peso que as mulheres ocupam no conjunto dos profissionais e o peso que representam na elite.

 

Quadro 4: Estratificação segundo os sexos no total dos jornalistas e na elite (na Rádio Difusão Portuguesa, Rádio Renascença, Rádio Comercial e TSF — dados recolhidos durante Novembro e Dezembro de 1995)

 

 

 

O universo radiofónico analisado revela uma forte componente feminina que se aproxima dos 40% na RDP, na Rádio Renascença e Rádio Comercial. Na TSF esse número fica um pouco aquém das outras estações. Todavia, quando analisamos a estratificação nas elites, a TSF apresenta a especificidade de contar com um maior peso de mulheres jornalistas nos lugares de destaque (42,4%) do que no total de jornalistas (33,9%), facto que se fica a dever ao elevado número de segundas editoras. Com apenas 28,6% de mulheres na elite, a Rádio Renascença, é a que apresenta uma estrutura em que as mulheres estão mais segregadas dos lugares de poder.

 

Quadro 5: Estratificação segundo os sexos no total dos jornalistas e nas elites (na Marie Claire, Máxima, Elle, Cosmopolitan, Guia e Mulher Moderna — dados recolhidos em Setembro, Outubro e Novembro de 1995)

 

Nas revistas destinadas ao público feminino a situação inverte-se — as mulheres encontram-se em maioria quer no número total de jornalistas, quer nos lugares de chefia. De destacar a Marie Claire que não conta nos seus quadros com qualquer elemento do sexo masculino.

A realidade descrita demonstra que existem outros factores, que não as qualificações, a interferir no acesso das mulheres aos lugares de poder e de maior prestígio. O fenómeno da sua menor antiguidade na profissão pode ser aduzido como elemento explicativo, tanto mais que aquele factor se revela importante na ascensão aos lugares de topo no jornalismo. No entanto, importa entrar em linha de consideração com outras hipóteses de compreensão. As mulheres, na sua grande maioria, tal como ocorre noutros países, ao encontrarem-se afastadas, senão mesmo marginalizadas, dos lugares de chefia e de status elevados, e debatendo-se com falta de reconhecimento e legitimação social, põem a descoberto que a sua inserção no mercado de trabalho não se encontra necessariamente associada à melhoria do seu estatuto. Argumenta Lígia Amâncio que as formas objectivas de discriminação, assim como a sua expressão subjectiva, têm “(...) origem numa forma de pensamento social que diferencia valorativamente os modelos de pessoa masculina e feminina e as funções sociais dos dois sexos na sociedade”, revelando que a assimetria entre homens e mulheres está inscrita nas nossas relações sociais.[19]

A assimetria presente nos universos simbólicos que o masculino e o feminino constituem reflecte-se em todos os processos que integram a produção da realidade social de ambos os sexos no mundo do trabalho. A categoria feminina, conotada com uma especificidade própria do seu modo de ser social que a confina a estritos limites sociais que lhe são constantemente impostos, leva a que, quando ultrapassa determinadas fronteiras normativas definidas para o seu comportamento, se torne particularmente visível aos olhos dos observadores homens e mulheres que tendem a masculinizá-la. Esta situação dificulta o seu comportamento, que se espera que responda, simultaneamente, às exigências do contexto onde estão inseridas e às expectativas que os outros associam à sua categoria de pertença, introduzindo conflitos profundos no modo de ser mulher. Deste modo, quando colocadas perante situações de desempenho de autoridade parece poder constatar-se a sua notória preocupação no que se refere aos comportamentos que possam representar o modo de ser feminino, procurando evitar a associação de tais comportamentos às mulheres numa estratégia que procura universalizar o feminino ao mundo do trabalho e, em simultâneo, evitar que constitua uma marca de diferença para as mulheres.

O posicionamento das mulheres nas relações sociais constitui, pois, uma faca de dois gumes que as coloca em constante conflito: se, por um lado, “ (...)o desvio das normas comportamentais definidas pelo estereótipo feminino é particularmente negativo para a mulher, traduzindo-se simultaneamente numa perda de estatuto e na assimilação dos traços negativos da dominância masculina (...)”, por outro, só a assimilação dos traços masculinos detentores de forte legitimação social, permite o desempenho de um comportamento de autonomia profissional.[20]

Assim sendo, até que ponto é que a crescente antiguidade na profissão que as jornalistas vão tendo no sistema dos media permitirá reduzir a distância ao poder nas redacções? E na estrutura dos diferentes espécies de capital (social, simbólico e reportável à performatividade física — tais como a voz, o rosto e a simbologia erótica) quais se revelarão mais importantes para as mulheres acederem a lugares de visibilidade e poder no jornalismo?

As jornalistas e a condição das mulheres: uma opinião pública feminina?

A União Europeia, no seu terceiro programa de Acção Comunitária sobre Igualdade de Oportunidades (1991-1995), teve como prioridade melhorar a imagem e participação das mulheres nos meios de comunicação considerando esse facto essencial para a melhoria do estatuto da mulher na sociedade. Segundo este organismo, os meios de comunicação social são um sector chave para a mudança de representações e valores. A Comissão reconheceu que era necessário incrementar o número de mulheres nos cargos de tomada de decisão e trabalho criativo dentro da indústria dos media, visto ser uma forma de influenciar o conteúdo dos programas e promover imagens positivas do papel da mulher na sociedade.[21] Apesar do escasso poder no interior dos media, no interior das redacções, é inegável, constituindo a informação um dos poderes mais fortes da sociedade contemporânea, que as mulheres participam do poder da informação.[22] Não tendo, muitas vezes, a possibilidade de decidir sobre a selecção e sobre a hierarquização dos assuntos e dos destaques da primeira página, fazem uso de uma cota de poder na informação que lhes permite definir e articular os temas relevantes de debate público.[23] E, no que diz respeito às performances mediáticas, será que o fotojornalismo no masculino e no feminino produzirá os mesmos resultados mediáticos? Uma operadora de câmara terá como critério fundamental do seu scoope a procura de Claúdia’s Schiffer’s na assistência?

A ampliação do espaço público, a existência de mulheres mais escolarizadas e consequentemente novos contigentes de leitoras, são também factores explicativos da existência nas redacções de um maior número de mulheres jornalistas por permitirem alargar determinados públicos femininos. A interrogação que se coloca no que diz respeito à relação com o público, no caso particular das jornalistas, é, de algum modo, idêntica à que sucede com os jovens. Será que um jornalista de 50 anos é o mais indicado para escrever peças dirigidas fundamentalmente aos jovens leitores? A este tipo de problema, as revistas destinadas fundamentalmente ao público feminino respondem com redacções maioritariamente, senão mesmo exclusivamente, femininas, com a convicção de que esta é uma das formas de estar mais próximo dos anseios do seu público. Fará então sentido falar de uma opinião pública feminina?

Apesar das normativas comunitárias e das estatísticas nacionais revelarem um significativo indicador de igualdade de oportunidades comparativamente a outros países, os estudos sociais têm mostrado que uma outra realidade se esconde por detrás desta aparência da participação das mulheres na vida activa. Manuel Villaverde Cabral, por exemplo, num estudo recente, ao analisar em profundidade algumas dimensões e tendências da condição feminina em Portugal — dando particular destaque a situações estruturais do nosso passado recente — conclui que as mulheres portuguesas, ao contrário dos homens, vivem ainda, em grande medida, em função do universo conjugal ou pós-conjugal que lhes limita uma maior inserção na vida profissional.[24] Desde logo, como elementos estruturadores da condição feminina, as mulheres estão, à partida, limitadas pelos seus baixos níveis de instrução (apesar da recente inversão da tendência) e por auferirem os mais baixos rendimentos, o que conduz a uma espécie de dependência endémica perante o elemento masculino, fazendo com que as mulheres se movimentem numa teia de relações muito mais limitada, não motivadora da expressão de “opiniões próprias”. Apesar da recente inversão da tendência, ocorre que em termos dos grandes quantitativos nacionais, a grande maioria das mulheres portuguesas estão ainda limitadas pelos baixos níveis de instrução e consequentemente auferindo rendimentos mais baixos, acentuando a sua condição de dependência. A partir daqueles dois elementos, múltiplas conexões surgem como mobilizadoras da condição feminina. Como exemplo, e associado à baixa instrução, destaquem-se os baixos índices de mobilização cognitiva, os quais, segundo M. Villaverde Cabral medem “(...) a capacidade para formular e defender opiniões próprias, nomeadamente de ordem política (...)”, e “servem para identificar os chamados ‘líderes de opinião’, o que constitui uma outra forma de abordar as questões da “distância ao poder” e da participação política em geral”, revelados pelas mulheres, e que se repercute no elevado défice de informação por elas demonstrado.[25] Nos dados analisados pelo autor, referentes a 1991, perto de 80% das inquiridas declaram um nível de exposição fraco ou nulo (contra 53% dos homens). Relativamente à imprensa escrita, cerca de 50% das mulheres nunca lêem jornais diários (contra 27% dos homens). Uma situação deste tipo revela-se desmotivadora de qualquer tipo de participação cívico-política das mulheres, caracterizando-se o sistema por uma profunda iniquidade de oportunidades e recompensas socioeconómicas, que não têm, todavia, sido contrariadas pelos que mais com elas sofrem. Não se tem assistido a qualquer tipo de mobilização na expressão de desejos, opções e tendências que propiciem a modificação da estrutura social, no que à discriminação diz respeito.

Lígia Amâncio afirma que, apesar das mutações que se tem vindo a assistir em termos da composição sexual dos sectores de actividade, tal não implica que o quadro de representações sociais e dos valores que consubstancia as relações sociais entre os sexos se tenha afastado significativamente do modelo da assimetria das representações sobre o masculino e o feminino. Estas representações, reportando-se a saberes comuns partilhados acerca dos homens e das mulheres vai sendo construído a partir de valores, crenças e ideologias dominantes, que adquirem sentido através da objectivação das diferenças entre os sexos, as quais constituem um processo de construção social da distintividade entre o masculino e o feminino produzida pelos próprios indivíduos no contexto relacional e que atribui ao homem a função de guardião do bem-estar e da subsistência da família. Deste modo, apesar da crescente presença da mulher no mercado de trabalho, a sua situação não se equipara à dos homens. A desigualdade entre os sexos por actividade profissional e níveis hierárquicos permanece uma constante. A taxa de actividade feminina permanece inferior à dos homens, tendem a inserir-se nos sectores menos qualificados e consequentemente mais mal remunerados, denotando, além disso, uma menor mobilidade profissional.

Sabendo-se que a segregação das mulheres se dá muito na vida privada (a chamada vida doméstica), que repercussões e impactos é que o exercício de uma profissão como o jornalismo com os seus incessantes ritmos e tempos provocarão nas oportunidades e estilos de vida, nas experiências conjugais e na opção pela maternidade? Estamos em crer que as mulheres tenderão a pagar um preço mais elevado nestas esferas do que pagam os seus colegas homens. Interrogações interessantes para outros estudos sobre as jornalistas portuguesas.



*      Os dados referidos neste texto reportam a Setembro de 1995 e foram fornecidos pelo Sindicato dos Jornalistas. Chama-se desde já a atenção para o facto de que quando este escrito for publicado a situação descrita pode ter já sofrido algumas alterações significativas.

**     Socióloga, Escola Superior de Comunicação Social – Instituto Politécnico de Lisboa.

[1]      Dados referentes a Setembro de 1995 fornecidos pelo Sindicato dos Jornalistas. Chamo desde já a atenção que quando este texto for publicado é possível que tenha havido mudanças na realidade que aqui se descreve. Tal como é afirmado por José Luís Garcia, até ao 25 de Abril de 1974, o número de mulheres era muito reduzido: “(...) ingressavam na profissão uma a duas por ano”, “Principais tendências de evolução do universo dos jornalistas portugueses”, Vértice, Maio-Junho de 1994.

[2]      A taxa de frequência e de conclusão do ensino superior é um indicador privilegiado para a compreensão dos processos de recomposição social das populações. Nos últimos 30 anos o número de alunos inscritos no ensino superior sextuplicou eram , em 1960, um pouco mais de 20.000 e atingiam em 1989 mais de 130.000 in João Ferreira de Almeida, António Firmino da Costa, Fernando Luís Machado, “Recomposição socioprofissional e novos protagonismos”; Antonio Reis (coord.), 20 anos de democracia, Lisboa, Círculo de Leitores, 1993.

[3]      A este respeito ver J.M. Paquete de Oliveira, “Elementos para uma Sociologia dos jornalistas portugueses”, Comunicações e Linguagens nº 8, pp. 51, 52; e José Luís Garcia, op. cit., p. 71.

[4]      Realce-se que é, fundamentalmente, nos grupos de profissões ligados ao sector terciário. Foi nos empregados administrativos, do comércio e dos serviços pessoais que esta evolução se deu de uma forma mais regular. Entre 1970 e 1992 para os dois grupos os valores de presença feminina duplicaram: os empregados administrativos passaram de 3,0% para 6,6%, respectivamente; o mesmo sucedeu com os empregados do comércio e dos serviços pessoais que de 6,9% passaram para 12,3%, no mesmo período. Cf. João Ferreira de Almeida, A. F. Costa, F. L. Machado, op. cit. p. 319.

[5]      Cf. Nadine Lefaucheur, “Maternidade, Família, Estado” in Georges Duby, Michelle (orgs.), História das Mulheres - século XX, sob a direcção de Françoise Thébaud, Porto, Afrontamento, 1995, pp. 476 - 481.

[6]      Alemanha Federal, Bélgica, Reino Unido, França e Dinamarca (país onde atingia 87%).

[7]      Ana Nunes de Almeida e Karin Wall, “A família” in Portugal Hoje, Lisboa, INA, 1994, p.41.

[8]      Cf. J.Ferreira de Almeida, A.Firmino da Costa e F.Luís Machado, op. cit. p.325.

[9]      Cf. Ibid., p.318.

[10]     Segundo os dados do INE, Recenseamentos Gerais da População e Inquérito ao Emprego.

[11]     Ibid. p. 318.

[12]     Virgínia Ferreira, “Padrões de segregação das mulheres no emprego - uma análise do caso português no quadro europeu”, in Boaventura de Sousa Santos, Portugal: um Retrato Singular, Porto, Edições Afrontamento,

[13]     Segundo este ponto de vista, V. Ferreira considera que um certo tipo de forças estruturantes inerentes ao desenvolvimento económico que no caso português tem a ver com o não cumprimento da legislação , a quase inexistência de trabalho a tempo parcial devida, em grande medida, à falta de incentivos legislativos, quadros familiares bastante rigidificados ancorados em valores societais bastante conservadores, que tendem a perpetuar uma profunda assimetria entre os géneros, poderá, todavia, ser atenuada, visto que Portugal iniciou o seu desenvolvimento económico numa fase posterior, caracterizada já por mudanças significativas nos modelos de desenvolvimento, apostados em novas estruturas menos atomizadas e modelos organizacionais mais afastados do modelo tayloriano. A conjugação deste tipo de situações acompanhadas de um conjunto de iniciativas promotoras da paridade levadas a cabo no âmbito do cumprimento de directivas comunitárias poderá levar à manutenção de menores índices de segregação sexual da estrutura de emprego no nosso país.

[14]     No que diz respeito à evolução do sistema dos media em Portugal ver José Manuel Paquete de Oliveira, “A integração europeia e os meios de comunicação social”, Análise Social , vol. XXVII (118-119), 1992 (4.º-5.º), pp. 995-1024; e Mário Mesquita, “O Universo dos Media entre 1974 e 1986” in António Reis (coord.), Portugal 20 ano de democracia, Círculo de Leitores, Lisboa, 1993.

[15]     José Luís Garcia, “Principais tendências de evolução do universo dos jornalistas portugueses”, Vértice, Maio - Junho, 1994, p.70.

[16]     Dados do Sindicato dos Jornalistas de 30 de Setembro de 1995.

[17]     O conceito de elite que aqui se utiliza remete sobretudo para os ocupantes dos cargos de elevados recursos organizacionais e de maior nível de status no jornalismo. Na medida em que não existe uma estrutura hierárquica comum aos diversos meios de comunicação social, considera-se como membros da elite jornalística os detentores de cargos de direcção e chefia, tais como directores, editores, subeditores, chefes de redacção e grandes repórteres.

[18]     Para demonstrar esta hipótese tornava-se necessário aceder aos níveis salariais dos jornalistas, o que não foi possível devido aos obstáculos colocados pelos diversos meios de comunicação social e pelo próprio Sindicato dos Jornalistas.

[19]     Lígia Amâncio, Masculino e Feminino, Porto, Edições Afrontamento, 1994, p.16.

[20]     Idem.

[21]     Jane Paul, “Imagen y realidad. La experiencia de las mujeres y los medios de comunicacion, in Mujeres y poder, Tercer Seminário Internacional, Instituto Universitario de estudios de la Mujer, Universidad Autónoma de Madrid, Madrid, 1994.

[22]     Expressão utilizada por Milly Buonanno “Occhio di donna e visione etica del giornalismo”, Scuola Democratica, 1-2, Roma, Le Monnier.

[23]     Idem.

[24]     Manuel Villaverde Cabral, “Alguns aspectos da condição feminina em Portugal” Revista Organizações e Trabalho, nº5/6, Dezembro, 1991.

[25]     Manuel Villaverde Cabral, “Portugal e a Europa: diferenças e semelhanças”, Análise Social, vol.XXVII (118-119), 1992, (4.º - 5.º), pp.949 - 950.