Discurso dramático na imprensa: um modelo de análise e o caso do
"PREC"
Pedro Diniz de Sousa
Escola Superior de Comunicação Social - IPL
Índice
O discurso das notícias possui algumas características que o
aproximam do discurso do drama, género literário orientado para uma
situação de comunicação que coloca face a face actores e
espectadores num espaço-tempo comum; a saber: a importância do tempo
presente, a simplificação do discurso decorrente da necessidade de
produzir uma mensagem clara, assimilável no tempo limitado de que
dispõem leitor do jornal e espectador da peça, o carácter
apelativo deste discurso, com recurso frequente às emoções ou a
concentração da acção em torno de um pequeno núcleo de
personagens, que estabelecem entre si uma relação tensa e
conflituosa.
Um tal discurso desempenha, como veremos através de uma breve
incursão teórica, diversas funções simbólicas
susceptíveis de afectar as representações sociais. E as
afinidades atrás apontadas, de alguma maneira evidentes, sugerem que a
análise do discurso dramático nos media pode desempenhar um papel
heurístico importante na compreensão do seu relacionamento com o
meio envolvente, seja este relacionamento considerado numa perspectiva
sociológica, política ou cultural.
Assim, este trabalho procura construir criticamente um modelo de
análise da dramatização na imprensa e apresenta os
resultados da sua aplicação a um caso específico, o
da imprensa doutrinária no chamado "Processo
Revolucionário Em Curso" português de 1975. Como outros
modelos de análise, este é dotado, nas suas categorias e
estrutura, da portabilidade que permitirá aos investigadores
das ciências da comunicação a sua aplicação a
muitas das múltiplas situações que compõem o
riquíssimo panorama comunicacional deste início
de século. A imprensa escrita, a televisão, a rádio,
algumas instâncias da Internet poderão encontrar neste
género discursivo formas engenhosas de atingir os seus
objectivos. O carácter espectacular que muitos foruns de
comunicação vêm assumindo reforça o interesse da
abordagem dos media a partir do discurso dramático.
É ainda importante situar este tipo de discurso no contexto de um
desenvolvimento das práticas jornalísticas marcado pela
preponderância da "ideologia da objectividade", descrita por diversos
autores como uma mitologia, de raiz anglo-saxónica, fundada na
máxima "facts are sacred, but comment is free" (Mesquita e Rebelo,
1994). Segundo ela, o jornalismo seria um "espelho da realidade", uma
actividade desinteressada e objectiva (Traquina, 1988) em que a metáfora
do espelho evoca o carácter mágico do acto de transplantar a
realidade do seu espaço natural para o espaço do medium. Tal
concepção foi amplamente contestada nas últimas décadas do
século XX por autores como Tuchman, Habermas, Baudrillard ou Bourdieu,
para quem os jornalistas, em vez de espectadores desinteressados,
co-produzem a realidade social, interferindo nos seus vários campos ao
seleccionarem e omitirem temas, acontecimentos e formas de os abordar, ao
conferirem visibilidade social ao acontecimento noticiado tornado
meta-acontecimento e gerador de consequências ao nível da realidade social.
Longe de se limitarem às funções "clássicas" do jornalismo,
estes autores apontam ao campo dos media um papel estruturante dos outros
campos sociais e das relações que estabelecem entre si. Como veremos
pelas conclusões do estudo de caso, é nesta perspectiva socialmente
activa que o recurso ao discurso dramático pelos media encontra o seu
sentido.
1 O conceito de discurso dramático
Precisamos, antes de tudo, de definir ou "discurso dramático"
ou "dramatização". Sem esta definição a empresa
está condenada, nomeadamente pela proliferação de
apropriações a que a expressão está sujeita ao
nível do senso comum. Assim, o drama é uma forma
literária e discursiva baseada em atributos que se combinam
para criar a ilusão do vivido ou ilusão
dramática (Reis, 1995: 274). O termo grego originário
remete-nos para a acção, nomeadamente a teatral, que é
o atributo central do drama (Silva, 1969; Reis, 1995).
Ao contrário do que acontece na lírica ou no romance, no
drama é o diálogo entre as personagens que define a
acção, o cenário e as próprias personagens
(Hamburger, 1986), não existindo a intervenção da
figura do narrador. Os atributos específicos da acção
dramática são a sua concentração em torno de um
núcleo de personagens principais e de um tempo limitado; a
tensão que decorre dessa concentração e das
relações conflituosas que se estabelecem entre as
personagens; a intensidade que pauta o ritmo da narração
(Silva, 1969; Reis, 1995). Estes atributos articulam-se em palco
num apelo à afectividade e às emoções do
espectador/leitor e criando nele a ilusão do vivido (Silva,
1969; Dawson, 1975).
2 Funções
Diversos contributos teóricos apontam algumas funções que o
discurso dramático pode desempenhar quando utilizado no âmbito dos
media. Tais funções devem converter-se em hipóteses para cada
novo objecto de estudo, onde serão confrontadas com os dados. São
elas:
Conferir visibilidade. Pierre Bourdieu (1989: 145) considera a visibilidade como indispensável
à existência social. Rodrigues (1990) entende-a mesmo como a
principal característica de qualquer corpo social com legitimidade
instituinte do respectivo campo social. O campo dos media tem justamente a
vocação de conferir visibilidade, sendo utilizado pelos diversos
campos sociais para efeitos de legitimação, mediante processos
rituais instituintes. E a referida conjugação de atributos
discursivos dramáticos assegura a visibilidade social dos actores
envolvidos.
Lutar pela imposição de uma visão do mundo. O discurso dramático tem a vocação de representar "a totalidade
da vida", o "mundo" no qual se desenrola a acção (Dawson, 1975: 47).
No campo político, Bourdieu entende a luta política como uma luta
quotidiana pela imposição de categorias de percepção do
mundo social ou da visão legítima desse mundo, no pressuposto de
que a instituição dessa visão legitima por sua vez uma
intervenção directa no mesmo (1998: 90). Esta função do
discurso dramático articula-se com a vocação "natural" dos media
para imporem visões do mundo.
Remitificação. Se as sociedades modernas se caracterizam por uma desintegração da
identidade colectiva (Lipovetsky, 1989), os media têm a função
de organizar a experiência do aleatório e devolver aos cidadãos
enquadramentos explicativos comuns e "uma imagem coerente do destino".
Adriano Duarte Rodrigues (1988: 14-15) designa-a como "função
remitificadora". É nos períodos de crise, caracterizados pelo
questionar das ordens simbólica e social, que ela se torna premente, com
a sua promessa de reposição da ordem e de "restaurar o mito
fundador" (Sfez, 1988: 46). O discurso dramático, especializado na
representação de situações de tensão, pode ajudar a
montar um conflito que resolva definitivamente a confusão simbólica
dominante.
Agitação política. Ao representar situações de tensão e conflito entre as
personagens, ao conseguir apelar às emoções e persuadir, o
discurso dramático pode constituir um veículo eficaz de
agitação política. Não é por acaso que Lenine entendia
como uma das tarefas do agitador "dramatizar" os pequenos factos situando-os
ao nível da luta de classes e procurando suscitar nas massas os
sentimentos de revolta e ódio de classe. Ainda Lenine compreendeu o
papel essencial dos media como campo de mediação, quando elegeu um
jornal como instrumento revolucionário por excelência, pela
coesão, organização e inculcação ideológica que
assegurava a operários e camponeses isolados nas povoações da
grande Rússia.
Persuasão pela união espectador/actor. A situação do teatro suscita dois tipos de união: a do grupo de
espectadores entre si e a desses espectadores com os actores em palco
(Silva, 1969: 247). Tal era o sentido do "teatro do povo", gigantescas
encenações montadas por diversos regimes pós-revolucionários
para assinalar as datas das revoluções, em que este efeito se
conseguia convocando o povo para se representar a si próprio num
espectáculo que ocorria no mesmo local em que os acontecimentos haviam
tido lugar alguns anos antes (a Bastilha, o Palácio de Inverno). Eram
situações-limite de união entre espectadores e actores, mas
também entre realidade e representação (Dort, 1971: 267-280).
Podemos encontrar estas formas de união na comunicação
mediática e política actuais, onde se procura frequentemente a
identificação entre jornalistas e espectadores ou entre
políticos e cidadãos (Mesquita, 2003: 89-106).
3 Operacionalização
Trata-se de adaptar o conceito de discurso dramático, e a
problemática teórica construída a partir das suas
funções simbólicas, ao campo dos media e em particular ao do
jornalismo. Há que torná-lo operatório na realidade particular
dos media, de modo a viabilizar a medição dos dados.
Para tanto, partimos dos cinco "procedimentos clássicos de
dramatização nos media" apontados por Pierre Babin (1993): o
exageramento; a oposição; a simplificação; a
deformação; a amplificação emocional. A elaboração
crítica de uma grelha de análise, dotada de categorias capazes de
medir e caracterizar o discurso dramático, bem como testar as
funções que lhe estão associadas, é o passo seguinte.
Metáfora. Ao permitir transportar ideias, objectos ou imagens de um universo
semântico original para outro (em grego a palavra significa
"transporte"), a metáfora assemelha-se à encenação teatral,
na medida em que esta constitui sempre uma recriação do guião e
dos cenários originais e uma adaptação a novos contextos
(Dawson, 1975: 25). As metáforas conferem ao discurso as propriedades
dramáticas da simplificação, ao transportarem o leitor para universos mais
acessíveis e, em muitos casos, da intensidade, ao enfatizarem o objecto.
Metonímia. No Dicionário da Literatura (Coelho, 1969: 638) diz-se que "pode resultar das seguintes
relações: a parte pela parte; a parte pelo todo; o todo pela parte".
Ao nível do discurso mediático, a metonímia pode traduzir-se
em tomar o continente pelo conteúdo ou vice-versa, a causa pelo efeito
ou vice-versa, o abstracto pelo concreto ou vice-versa. Ao inverter os
termos do real, ela encena-o, recria-o. No discurso dos media encontramos
diversos processos metonímicos:
a) A identificação entre o medium e outras entidades, sociais ou ideológicas. O efeito metonímico entre representante e representado no campo
político é referido por autores como Bourdieu (1989: 157-159) e
Abélès (1995). Este raciocínio é transposto para a
análise da imprensa e da televisão, em que muitas vezes se procura
uma estratégica identidade entre jornalista e leitor/espectador, como
notou Mário Mesquita a propósito do Telejornal (2003: 102).
b) Narração e interpretação de factos concretos através de uma ideologia. Trata-se de uma metonímia muito utilizada pelos media. Já Lenine
exprimia a preocupação de situar a realidade ao nível da luta
de classes (Domenach, 1962: 22-23). No teatro de participação
política também se procurava apresentar uma visão do mundo como
a "verdade escondida" nos factos noticiados (Dort, 1971). Uma modalidade
particular desta metonímia consiste em tomar entidades individuais por
entidades colectivas.
Categorias de simplificação. Uma das propriedades do discurso dramático consiste como vimos na
produção de um discurso simples, ideia confirmada por Babin a
propósito dos media. Identificámos duas formas de
simplificação mensuráveis:
a) Oposições e associações binárias. A oposição binária constitui o processo universal fundamental da
produção de sentido (Fiske, 1993:158). Ela e o seu simétrico, a
associação binária, além de simplificarem, têm como
função estabelecer relações de tensão entre as
personagens (Babin, 1993), contribuindo para a agitação
política e ajudando a construir a estrutura de representações
que o medium pretende veicular.
b) "Rótulos de codificação". Trata-se de um
conjunto de termos ou expressões recorrentemente aplicadas a
entidades, codificando-as de forma simples e valorativa. O
rótulo posiciona a entidade-objecto no quadro da visão do
mundo que o jornal pretende impor, criando a ilusão de um
determinado real. Além de simplificar pela omissão, ou
pela redução de entidades complexas a uma mera
"definição-síntese", o rótulo possui na maior
parte dos casos, como pudemos constatar, um juízo de
valor associado, que alivia o esforço interpretativo do
leitor, conduzindo-o a uma leitura ideologicamente enformada das
entidades visadas.
Categorias de apelo afectivo. Com o apelo afectivo procura-se um envolvimento emocional que facilitará
a persuasão e a assimilação do almejado efeito de "ilusão de
realidade". Eis as respectivas categorias mensuráveis:
a) Sentimentos. Quais são as funções que os sentimentos desempenham na
visão do mundo do jornal? Que entidades permitem eles relacionar e em
que sentidos? A abordagem dos sentimentos, privilegiada por Pierre Ansart
(1983), permite-nos descortinar as funções que este atributo
dramático desempenhe no discurso.
b) Enfatização. Ao realçar-se ou intensificar-se um objecto, estabelece-se com o leitor
uma comunicação que dispensa a interpretação racional do
texto em detrimento de um envolvimento emocional. É possível medir
a enfatização através de elementos objectivos, como o ponto de exclamação, os
advérbios de intensidade (já, muito, sempre...) ou os seus graus superlativos (muitíssimo, imenso, pessimamente...). A enfatização semântica, situação discursiva enfática pelo seu
contexto semântico, constitui o tipo mais frequente. A sua
avaliação, pela dependência em relação ao contexto,
envolve alguma subjectividade, superável mediante métodos de
análise intersubjectivos.
c) Vitimização. A apresentação de determinada entidade como vítima constitui
uma forma de apelo afectivo importante, ao estimular no leitor sentimentos
como a comiseração para com os vitimados e o ódio aos
agressores. Por outro, ajuda-nos a precisar a estrutura de relações
entre os actores sociais que ocupam o espaço simbólico do medium, ao
estabelecer um conjunto de oposições binárias.
Personificação. O discurso dramático depende da presença de personagens e do
diálogo que estabelecem entre si (Hamburger, 1986). O apuramento das
personagens antropomórficas (pessoas nomeadas) e não
antropomórficas (grupos sociais, entidades e sentimentos colectivos,
categorias ideológicas) é central no desenrolar da análise.
4 Enquadramento epistemológico e descrição do método
analítico
Da análise de conteúdo à análise do discurso. A pluralidade das situações discursivas que procuramos
(enfatização, vitimização, metáforas, metonímias ou
oposições binárias) impõe ao texto um carácter
polissémico que não se compadece com regras básicas da
análise conteúdo como a da exclusividade ou a dependência em
relação a unidades de registo fixas (palavra, frase, documento). Por
exemplo, uma mesma frase pode constituir simultaneamente uma metáfora e
uma oposição binária, conter rótulos de codificação,
e estar ainda contida num parágrafo que assuma o sentido de uma
metonímia entre os factos noticiados e a sua explicação
histórica. A mesma frase desempenha múltiplas funções
simbólicas e deve ser registada (ela ou partes dela) tantas vezes
quantas as categorias de análise que serve. As unidades de registo
são assim unidades de sentido, correspondentes a ocorrências das categorias de
análise, e têm uma dimensão variável.
O objecto do trabalho analítico é primordialmente relativo à
forma do discurso e, só numa fase posterior de apropriação da
análise por uma problemática científica específica,
relativo ao seu conteúdo. O modelo fundamenta-se na análise do
discurso, método que tem a vantagem de se situar na intersecção
dos universos da linguística e de outras ciências sociais
(Maingueneau, 1976, Fairclough, 1996).
Decomposição das categorias de análise em variáveis. As categorias de análise obtidas são todas susceptíveis de
decomposição em variáveis com os ganhos no trabalho de
interpretação dos dados decorrentes da viabilização de
diversas técnicas de análise quantitativa e de uma análise
sistemática dos dados. A partir desta decomposição, o sentido de
cada categoria de análise passa a ser dado pela relação entre as
variáveis que a constituem e o sentido de cada ocorrência a depender
das modalidades presentes nela. Eis o resultado da referida
decomposição:
Categoria de análise |
Variáveis |
Enfatização |
Topos da enfatização |
Vitimização |
Vítima; Tipo de agressão; Agressor |
Sentimentos |
Sujeito; Sentimento; Objecto/causa |
Rótulos de codificação |
Rótulo atribuído; Entidade codificada |
Nomeação de pessoas |
Pessoa nomeada; Valoração da nomeação |
Oposições binárias |
Entidade A; Entidade B |
Associações binárias |
Entidade A; Entidade B |
Metáforas |
Tipo de metáfora; Entidade metaforizada |
Metonímia "entidades colectivas" |
Entidade particular; Entidade colectiva |
Metonímia "explicação histórica" |
Facto noticiado; Tipo de explicação |
Metonímia medium-actor pelo uso de códigos linguísticos |
Expressão usada |
Procedimentos de análise. Da recolha dos dados do corpus resulta uma mole de frases, expressões,
palavras e grupos de frases que constituem as ocorrências das categorias
de análise. Para cada ocorrência há que identificar as
variáveis (que figuram na tabela anterior) num trabalho de paciência
para o qual aconselhamos vivamente o recurso a meios informáticos. O
processo seguinte ainda é mais complexo: agrupar ou agregar, em
sucessivas etapas de recodificação, todos os actores implicados na
representação da realidade social, com o objectivo de obter um
número mais reduzido de modalidades/entidades comuns às várias
categorias de análise.
Este processo de agregação confere às entidades (ou actores) um
peso estatístico que viabiliza a análise quantitativa. Em
contrapartida, do ponto de vista qualitativo, ele acarreta a perda do valor
específico, relevante, que determinadas entidades primárias
pudessem assumir. Por isso, no universo da análise do discurso, é
pecado perder de vista os dados primários: esquecê-los, significaria
de certo modo perder o contacto com a realidade, sob a capa pseudo-objectiva
de um objecto científico.
Podemos sugerir técnicas de análise quantitativa, como a análise
factorial das correspondências, capaz de encontrar factores explicativos
das co-variações, ou o recurso a tabelas cruzadas que exibam a
totalidade das relações entre variáveis. No entanto, a partir do
processo de recolha e agregação referido, várias outras pistas
de análise quantitativa se abrem. Refira-se que este tratamento
sistemático dos dados não pode retirar ao discurso analítico a
sua dimensão qualitativa e crítica.
5 O estudo de caso baseado no PREC
O estudo de caso levado a cabo a partir deste modelo, que
consistiu num trabalho de vários anos entretanto publicado
(Sousa, 2003), é aqui apresentado de forma necessariamente
fugaz. Tratava-se de analisar o discurso de um jornal
revolucionário durante o chamado Processo
Revolucionário Em Curso, que decorreu entre 11 de Março e
25 de Novembro de 1975. Um período excepcionalmente rico em
actividade comunicacional, que encaixa como uma luva nas
definições de crise (Sfez, Balandier) e que mereceria
porventura uma maior atenção por parte dos investigadores
portugueses, a bem do nosso auto-conhecimento: o "código
genético" da nossa democracia, da nossa sociedade, da nossa
consciência cívica passa por aqueles oito meses e meio -
e arredores.
O tempo sobre o qual incidiu o estudo propiciava aquilo que definimos como o
discurso dramático. A escolha de um jornal doutrinário convocava
para a nossa causa a muito teorizada teatralidade da comunicação
política. E a provocação em boa hora lançada pelo
jornalista do Le Monde, Dominique Pouchin, que chamou ao nosso processo
revolucionário "o último teatro leninista", merecia uma genuína
curiosidade.
As conclusões do trabalho revelaram alguns encontros felizes entre
teoria e prática. A Voz do Povo, afecta à UDP, era um semanário
revolucionário, baseado numa rede de correspondentes sem limite de
número, decalcado do dispositivo concebido e levado à prática
com sucesso por Lenine: o jornal "A Centelha". O Portugal Socialista, jornal
do PS usado como termo de comparação e com o intuito de relativizar
a análise, fazia também um uso intensivo do discurso dramático.
6 Voz do Povo: luta disciplinada pela visão do mundo marxista
A Voz do Povo transmite e procura claramente impor a sua visão do mundo no
espaço simbólico através de um discurso profundamente
dramatizado. É uma encenação coerente e disciplinada da
visão marxista da luta de classes.
Através das oposições e associações binárias o
jornal transmite uma visão profundamente conflitual dos campos social e
laboral, que tomam o lugar do campo político e ideológico. A
análise da relação entre sujeitos e objectos dos sentimentos
confirma esta estrutura de representações, consolidando-a pela
mobilização do espaço afectivo para a luta de classes e pela
relação vítima-agressão-agressor nas relações de
vitimização estabelecidas.
Outro elemento central na estratégia discursiva da Voz do Povo são os
rótulos de codificação: com o seu cunho simplificador e
caricatural, eles são utilizados de forma meticulosamente selectiva,
para classificar as entidades cuja representação social ofende a
visão que se pretende impor. São os casos do PCP (verdadeira
"cabeça de cartaz"), da Intersindical, de pequenos partidos de esquerda
concorrentes da UDP, dos chefes, encarregados, quadros e profissionais
liberais, das eleições ou do Parlamento. Todas estas entidades - e
não as outras - são rotuladas, no sentido da sua associação
ao "campo da burguesia", num esforço de correcção das suas
representações sociais.
A visão do mundo da Voz do Povo e a sua visibilidade são procuradas também
pelo uso regular da metonímia de situar a verdade dos factos noticiados
ao nível da sua explicação histórica e de tomar entidades
individuais por entidades colectivas; o espaço noticioso é
transformado num veículo de transmissão de uma ideologia. O uso
quase permanente das metáforas de luta, a construção subliminar
de uma alegoria da guerra convocam a metáfora para a mesma empresa de inculcação
ideológica.
A Voz do Povo recorre às instâncias discursivas dramáticas para efeitos de
agitação política. Desde logo, o pendor profundamente
acusatório do discurso, consubstanciado numa prática de
denúncias que quase monopoliza as nomeações de pessoas. O
discurso enfático da Voz do Povo concentra-se também na função de
agitação política: os três principais objectos de
enfatização baseiam-se nas três fases do processo de luta de
classes: denúncia, hostilidade e a própria luta, cada fase gerada
pela anterior. As palavras de ordem, que rematam a maior parte das
notícias, são outra forma de enfatização que procura a
agitação política.
7 Portugal Socialista: mobilização do espaço afectivo para fins
ideológicos
O Portugal Socialista, defensor da democracia pluralista, desenvolve um discurso em quase tudo
oposto ao da Voz do Povo: apaziguador, defensor das instituições vigentes, do
convívio democrático, fértil portanto em associações
binárias, em sentimentos generosos. A nomeação de pessoas serve
de forma extensiva a visibilidade social dos quadros do PS, que precisam dela para
legitimar o poder que vão ocupar.
Os sentimentos são uma presença quase constante no discurso do
Portugal Socialista, assumindo o valor de explicação de múltiplos aspectos da
ideologia de consenso e pacificação defendida. É através
deles - e não de um discurso racional - que o jornal justifica a sua
oposição à ruptura social defendida e praticada pela
extrema-esquerda e em certa medida pelo PCP, enquanto ao mesmo tempo se
assume como marxista e anti-capitalista. Esta mobilização afectiva
no discurso do PS, já notada por Madalena Matos (1992) revela uma
elevação do sentimento à categoria de ideologia.
8 Comment is sacred, facts are free
O discurso dramático constitui uma resposta à situação de
ambiguidade da imprensa partidária, quando vê confrontada a
(também) sua pretensão de objectividade com o objectivo assumido de
expor uma visão do mundo enquadrada ideologicamente. No espaço da
notícia, o redactor pode dispor factos noticiáveis, objectivos,
verdadeiros, num palco simbólico construído a partir duma
ideologia, a que chamamos visão do mundo, e desenvolver a narrativa
à maneira de um drama. Os atributos deste, criando a ilusão de
realidade ou "ilusão dramática", asseguram o desempenho das
funções políticas próprias de um jornal ideológico, sem
que a verdade ou talvez mesmo a objectividade dos factos precisem de ser
afectadas.
É assim que a dramatização inverte, pelo menos no campo da
imprensa partidária, a frase de referência da ideologia da
objectividade: "comment is free but facts are sacred". Pela análise que
levámos a cabo, concluímos que "sagrados" são os
comentários, ou seja, a inculcação, por via dramática, de
uma ideologia; e que os factos, esses sim, são livres: quaisquer uns
servem para encenar a visão do mundo do jornal.
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