DIÁRIOS PORTUGUESES: QUE ESPAÇO PARA O CIDADÃO COMUM?

Jorge Pedro Sousa, Universidade Fernando Pessoa



1. Introdução

Os meios jornalísticos (ou news media, usando a expressão anglo-saxónica mundialmente consagrada) conferem notoriedade pública a determinadas ocorrências e ideias, isto é, contribuem para que a essas ocorrências e ideias seja atribuído um determinado sentido. Não negamos, porém, que a construção última de sentido depende sempre da resposta do receptor (reader response).1

No jornalismo ocidental, aos meios jornalísticos é ainda encomendado um papel de vigia dos poderes.2 Embora esta função social dos media nem sempre se concretize ou, pelo menos, nem sempre se concretize totalmente, parece-nos inegável que, especialmente em sistemas de democracia de partidos ou noutros sistemas democráticos, os meios de comunicação social são um instrumento vital de troca de informações e de estimulação da cidadania. Pelo menos, será este o enquadramento "ideal" da imprensa.

Todavia, não será menos certo, a acreditar em vários estudos e teorias, que os meios de comunicação social, enquanto integrantes da esfera pública, são também usados em função de interesses particulares, como os interesses de determinados poderes, sendo igualmente, em certa medida, a arena onde se digladiam esses poderes, em busca de mais poder.3 Alguns estudos, especialmente nas áreas dos estudos culturais (cultural studies) e das teorias críticas, vão mesmo mais longe e —embora reconhecendo um maior ou menor grau de autonomia a cada jornalista e reconhecendo igualmente que o público em geral, em determinadas circunstâncias, também tem acesso aos media— sustentam que os media noticiosos funcionariam, essencialmente, como correntes de amplificação dos poderes e de sustentação do statu quo, até porque a insistência mediática em determinadas representações das relações sociais de poder tornaria mais difícil imaginar outras relações de poder.4

Ora, apesar de, ocasionalmente, identificarmos algumas desconfianças salutares em relação aos enunciados jornalísticos, não nos parece, contudo, que seja essa a visão dominante ou a visão "de facto" que a generalidade das pessoas tem da imprensa nas sociedades pós-modernas ocidentais. Ao invés, parece-nos que, perante o senso-comum, formulações retóricas como a "separação" entre informação e opinião, entre o facto e o comentário, que os valores jornalísticos "clássicos" propõem, favorecem a construção de uma imagem do jornalismo como espelho da realidade. Se os media noticiosos agirem, realmente, como agentes de sustentação do statu quo e de amplificação de poderes, então a sua imagem pública dominante, ao nível do ser humano comum, poderá, por consequência, facilitar perigosamente a manipulação e a desinformação do público. Do mesmo público que, provavelmente, não sabe que o processo jornalístico dominante de fabrico de informação de actualidade é um processo rotinizado, burocratizado, influenciado e constrangido, em maior ou menor grau, embora a concepção que os jornalistas têm do seu papel (role conception)5 possa ser um factor influente para a configuração da notícia (cada jornalista, individualmente considerado, exerceria, consequentemente, uma acção pessoal enformadora da notícia).

As rotinas, processos mecanicistas, embora permitam ao jornalista, sob a pressão do tempo, transformar rapidamente acontecimentos em notícias, introduzem, de facto, em conjunto com outros agentes, algumas disfuncionalidades no sistema jornalístico, como, entre outras, as seguintes:6

— O jornalismo burocratiza-se;

— O sistema produtivo jornalístico torna-se dependente de um fluxo regular, autorizado, acessível e credível de matéria-prima informativa, o que só pode ser garantido por outras burocracias, que frequentemente mais não são que autênticas fábricas de pseudo-acontecimentos e acontecimentos mediáticos;

— O jornalismo cai na dependência dos canais de rotina, o que leva à institucionalização e ao reforço da legitimidade de determinadas fontes; estas, por vezes, caem na tentação de usar o jornalismo como balão de ensaio para determinadas medidas ou ideias;

— O acesso aos news media torna-se socialmente estratificado;

— As relações profundas dos jornalistas com determinadas fontes, motivadas pelo contacto constante, podem levar ao estabelecimento de problemáticas relações de amizade que não se dissociem da relação profissional;

— O poder ambivalente do Estado levaria as elites a terem um acesso mais facilitado às instituições estatais, podendo, assim, influenciar mais intensamente a cobertura jornalística.

Existem, porém, perspectivas mais optimistas. Especialmente após os anos oitenta, com a crescente utilização da análise jornalística e da investigação em profundidade, inseridas em estratégias de diferenciação intermedia motivadas pela competição, o número de fontes teria crescido, pois os jornalistas teriam alargado o seu leque de contactos aos sectores intermédios e às bases das instituições. A informação jornalística ter-se-ia, assim, democratizado.

Não ignoramos também que, num mundo onde o jornalismo fosse momentaneamente abolido em favor da disponibilização ou troca directa de informação através do ciberespaço, provavelmente as pessoas iriam privilegiar as informações das instituições sociais "do sistema" em desfavor das informações e ideias de indivíduos ou organizações pouco conhecidas e representativas. Aliás, com a Internet já é um pouco isso que acontece: a Casa Branca e outras entidades estatais, a par das versões on line dos jornais clássicos7, são dos "sítios" mais consultados, embora os restantes "sítios" estejam lá, o que é manifestamente importante. Por consequência, o papel relevante que os meios de comunicação jornalísticos conferem às instituições de poder aparenta ser, de algum modo, legítimo, pois parece responder a uma espécie de necessidade pública. De igual maneira, a ordenação, hierarquização e composição da informação nos meios jornalísticos (edição) também parece, legitimamente, corresponder a uma espécie de necessidade pública. Menos legítimo será, todavia, ignorar quase completamente as pessoas comuns em assuntos de relevo ou fugir aos grandes temas que necessitam de cobertura profunda e multiangular, como as questões sociais e ambientais.

Face ao presente diagnóstico, para que os meios de comunicação social se tornem intrinsecamente mais democráticos e efectivos agentes sustentadores da democracia, será preciso, na nossa perspectiva, promover a polifonia social 8 no espaço mediático "tradicional" (já que no jornalismo on line há espaço para quase tudo). Essa polifonia não se poderá, contudo, remeter exclusivamente para os fazedores de opinião consagrados. A aproximação ao público, o que, na imprensa, passa pela disponibilização de um espaço crescente para as opiniões dos leitores e pela auscultação diversificada de fontes, é, neste campo, uma receita antiga, mas não ultrapassada.

Para reflectirmos sobre estas questões e avaliarmos da sua pertinência quando aplicadas à imprensa portuguesa, analisámos, embora superficialmente, durante uma semana, os quatro jornais diários portugueses de maior tiragem.
 
 

2. Estudo de caso

Para o nosso estudo, procedemos a uma análise superficial de conteúdo 9 das edições do Jornal de Notícias, do Correio da Manhã, do Público e do Diário de Notícias, de 24 a 30 de Março de 1997. Essa análise foi feita com base na aferição dos seguintes itens:

— número de peças em que os protagonistas são figuras ou organizações "de elite", número de peças em que os protagonistas são figuras ou organizações pouco conhecidas ou "desconhecidas" e número de peças escritas por leitores; espaço ocupado por essas peças;

— número de citações directas (citações entre aspas, uma das rotinas defensivas dos jornalistas que mais marca a vigência de um modelo descritivo de jornalismo) de pessoas "de elite" e número de citações directas de pessoas "desconhecidas" ou pouco conhecidas; número de linhas ocupadas pelas citações;

— número de citações de homens e número de citações de mulheres; número de linhas ocupadas por essas citações.

Estabelecemos, igualmente, listas das situações em que as figuras conhecidas e as desconhecidas eram mais frequentemente citadas.

Os resultados encontram-se expressos nas tabelas inseridas seguidamente.

Tabela I

Jornal de Notícias — Aferição de peças jornalísticas face às entidades representadas

Jornal de
Notícias
N.º
%
Espaço ocupado**
(cm2)
%
Peças* em que os
protagonistas
são figuras ou
organizações
"de elite"

663

70,9%

140.000

68,2%

Peças* em que os
protagonistas
são figuras ou
organizações pouco
conhecidas ou
"desconhecidas"

242

25,9%

56.000

27,3%

Peças escritas
por
leitores
 

30
 

3,2%
 

9.310
 

4,5%
TOTAIS
935
100%
205.310
100%
*Só inclui textos noticiosos; exclui desporto, cultura e espectáculos, suplementos e colunas de selecção de citações.**Valores aproximados.
 
 

Tabela II

Jornal de Notícias — Citações directas

Jornal de Notícias
N.º
%
N.º de linhas
%
Citações directas*
de pessoas
"de elite"**
 

1.421
 

79,9%
 

4.914
 

70,9%
Citações directas*
de pessoas "desconhecidas" ou
pouco conhecidas**
 

357

20,1%

2.016

29,1%

TOTAIS
1.778
100%
6.930
100%
*Excluem-se paráfrases (citações conceptuais); incluem-se as respostas de entrevistas.

**Só inclui textos noticiosos; exclui desporto, cultura e espectáculos, suplementos e colunas de selecção de citações.
 
 

Tabela III

Jornal de Notícias — Lista de situações em que as figuras "desconhecidas" foram cobertas

— Actividades, acções e ideias de importância local (feiras, necessidades locais, pedidos e reclamações, etc.);

— Opiniões sobre acontecimentos de grande dimensão, como os Óscares do cinema (inquéritos de rua);

— Protestos sociais (sindicatos, greves, manifestações, etc.);

— Actividades organizadas (comemorações do Dia do Estudante, etc.);

— Testemunhas de acidentes;

-- Vítimas ou testemunhas de crimes/assuntos de polícia;

— Pareceres de especialistas (muito poucos).



Tabela IV

Jornal de Notícias — Comparação das citações por sexo

Jornal de Notícias
N.º
%
N.º de linhas
%
Citações directas*
de mulheres
"de elite"**
 

56
 

3,1%
 

189
 

2,7%
Citações directas*
de homens
"de elite"**
 

1.365
 

76,8%
 

4.725
 

68,2%
Citações directas*
de mulheres
"desconhecidas" ou
pouco conhecidas**

98

5,5%

525

7,6%

Citações directas*
de homens
"desconhecidos" ou
pouco conhecidos**

259

14,6%

1.491

21,5%

TOTAIS
1.778
100%
6.930
100%
*Excluem-se paráfrases (citações conceptuais).

**Só inclui textos noticiosos; exclui desporto, cultura e espectáculos, suplementos e colunas de selecção de citações.
 
 

Tabela V

Público — Aferição de peças jornalísticas face às entidades representadas

Público
N.º
%
Espaço ocupado**
(cm2)
%
Peças* em que os
protagonistas
são figuras ou
organizações
"de elite"

595

81,4%

133.238

73,9%

Peças* em que os
protagonistas
são figuras ou
organizações pouco
conhecidas ou
"desconhecidas"

 

119


 

16,3%


 

45.059


 

25%

Peças escritas
por
leitores
 

17
 

2,3%
 

2.079
 

1,1%
TOTAIS
731
100%
180.376
100%
*Só inclui textos noticiosos; exclui desporto, cultura e espectáculos, suplementos e colunas de selecção de citações.

**Valores aproximados.
 
 

Tabela VI

Público — Citações directas

Público
N.º
%
N.º de linhas
%
Citações directas*
de pessoas
"de elite"**

1064

67,9%

5.215

73,8%

Citações directas*
de pessoas "desconhecidas" ou
pouco conhecidas**

504

32,1%

1.848

26,2%

TOTAIS
1.568
100%
7.063
100%
*Excluem-se paráfrases (citações conceptuais); incluem-se as respostas de entrevistas.

**Só inclui textos noticiosos; exclui desporto, cultura e espectáculos, suplementos e colunas de selecção de citações.
 
 

Tabela VII

Público — Lista de situações em que as figuras "desconhecidas" foram cobertas

— Actividades, acções e ideias de importância local (necessidades locais);

— Reivindicações e protestos sociais (sindicatos, greves, manifestações e confrontos, etc.);

— Actividades organizadas (comemorações do Dia do Estudante, desfiles, etc.);

— Testemunhas de acidentes;

— Vítimas ou testemunhas de crimes/assuntos de polícia;

— Suspeitos de corrupção insólita (um caso);

— Pareceres de especialistas (muito poucos).



Tabela VIII

Público — Comparação das citações por sexo

Público
N.º
%
N.º de linhas
%
Citações directas*
de mulheres
"de elite"**
 

14
 

0,89%
 

84
 

1,19%
Citações directas*
de homens
"de elite"**
 

1.050
 

66,96%
 

5.131
 

72,65%
Citações directas*
de mulheres
"desconhecidas" ou
pouco conhecidas**

84

5,36%

245

3,46%

Citações directas*
de homens
"desconhecidos" ou
pouco conhecidos**

420

26,79%

1.603

22,7%

TOTAIS
1.568
100%
7.063
100%
*Excluem-se paráfrases (citações conceptuais).

**Só inclui textos noticiosos; exclui desporto, cultura e espectáculos, suplementos e colunas de selecção de citações.
 
 

Tabela IX

Correio da Manh㠗 Aferição de peças jornalísticas face às entidades representadas

Correio da
Manhã
N.º
%
Espaço ocupado**
(cm2)
%
Peças* em que os
protagonistas
são figuras ou
organizações
"de elite"

380

57,6%

97.400

63,0%

Peças* em que os
protagonistas
são figuras ou
organizações pouco
conhecidas ou
"desconhecidas"

 

242


 

36,7%


 

54.010


 

34,9%

Peças escritas
por
leitores
 

38
 

5,7%
 

3.290
 

2,1%
TOTAIS
660
100%
154.700
100%
*Só inclui textos noticiosos; exclui desporto, cultura e espectáculos, suplementos e colunas de selecção de citações.

**Valores aproximados.
 
 

Tabela X

Correio da Manh㠗 Citações directas

Correio da Manhã
N.º
%
N.º de linhas
%
Citações directas*
de pessoas
"de elite"**
 

723
 

59,0%
 

3.432
 

74,0%
Citações directas*
de pessoas "desconhecidas" ou
pouco conhecidas**

502

41,0%

1.204

26,0%

TOTAIS
1.225
100%
4.636
100%
*Excluem-se paráfrases (citações conceptuais); incluem-se as respostas de entrevistas.

**Só inclui textos noticiosos; exclui desporto, cultura e espectáculos, suplementos e colunas de selecção de citações.
 
 

Tabela XI

Correio da Manh㠗 Comparação das citações por sexo

Correio da Manhã
N.º
%
N.º de linhas
%
Citações directas*
de mulheres
"de elite"**
 

209
 

17,0%
 

1.185
 

25,6%
Citações directas*
de homens
"de elite"**
 

514
 

41,9%
 

2.247
 

48,5%
Citações directas*
de mulheres
"desconhecidas" ou
pouco conhecidas**

126

10,3%

340

7,3%

Citações directas*
de homens
"desconhecidos" ou
pouco conhecidos**

376

30,8%

864

18,6%

TOTAIS
1.225
100%
4.636
100%
*Excluem-se paráfrases (citações conceptuais).

**Só inclui textos noticiosos; exclui desporto, cultura e espectáculos, suplementos e colunas de selecção de citações.
 
 

Tabela XII

Diário de Notícias — Aferição de peças jornalísticas face às entidades representadas

Diário de
Notícias
N.º
%
Espaço ocupado**
(cm2)
%
Peças* em que os
protagonistas
são figuras ou
organizações
"de elite"

647

68,9%

189.720

73,0%

Peças* em que os
protagonistas
são figuras ou
organizações pouco
conhecidas ou
"desconhecidas"

256

27,3%

62.530

24,1%

Peças escritas
por
leitores
 

35
 

3,8%
 

7.640
 

2,9%
TOTAIS
938
100%
259.890
100%
*Só inclui textos noticiosos; exclui desporto, cultura e espectáculos, suplementos e colunas de selecção de citações.

**Valores aproximados.
 
 

Tabela XIII

Diário de Notícias — Citações directas

Diário de Notícias
N.º
%
N.º de linhas
%
Citações directas*
de pessoas
"de elite"**
 

1.575
 

73,3%
 

5.747
 

73,2%
Citações directas*
de pessoas "desconhecidas" ou
pouco conhecidas**

574

26,7%

2.107

26,8%

TOTAIS
2.149
100%
7.854
100%
*Excluem-se paráfrases (citações conceptuais); incluem-se as respostas de entrevistas.

**Só inclui textos noticiosos; exclui desporto, cultura e espectáculos, suplementos e colunas de selecção de citações.
 
 

Tabela XIV

Diário de Notícias— Comparação das citações por sexo

Diário de Notícias
N.º
%
N.º de linhas
%
Citações directas*
de mulheres
"de elite"**
 

133
 

6,2%
 

492
 

6,3%
Citações directas*
de homens
"de elite"**
 

1.442
 

67,1%
 

5.255
 

66,9%
Citações directas*
de mulheres
"desconhecidas" ou
pouco conhecidas**

112

5,2%

412

5,2%

Citações directas*
de homens
"desconhecidos" ou
pouco conhecidos**

462

21,5%

1.695

21,6%

TOTAIS
2.149
100%
7.854
100%
*Excluem-se paráfrases (citações conceptuais).

**Só inclui textos noticiosos; exclui desporto, cultura e espectáculos, suplementos e colunas de selecção de citações.




3. Discussão dos resultados

Em função dos dados, parece-nos que é possível concluir que todos os jornais privilegiam as fontes que emanam dos poderes (e outras fontes "de elite"), em detrimento de uma auscultação mais abrangente do meio social, ou seja, em prejuízo de uma maior polifonia social. É interessante, inclusivamente, notar que os valores percentuais encontrados não são significativamente dissonantes de uns para outros jornais. Os resultados corresponderam à nossa previsão, pois, de algum modo, vão ao encontro das teorias do conteúdo dos news media.10
Além disso, parece-nos que todos os jornais desvalorizam impressionantemente as contribuições dos leitores (em número de peças publicadas e espaço consagrado), apesar do interesse destas e do facto de, frequentemente, estas serem, na nossa óptica, mais interessantes do que o restante conteúdo dos jornais. A isto acresce que, se exceptuarmos O Correio da Manhã, que publica os textos dos leitores logo na página 2 (embora mesclados com textos de colaboradores permanentes e jornalistas), os restantes jornais inserem esses espaços no interior, sendo que no Jornal de Notícias, o caso "mais grave", a Página do Leitor surge "escondida" depois dos espectáculos e antes dos anúncios classificados.
O Espaço Público, apesar de surgir normalmente na página 8 do jornal Público, tem tanto ou mais espaço para a opinião dos jornalistas, rectificações e um cartoon de actualidade do que para as poucas contribuições dos leitores, sendo que por vezes estas são unicamente pedidos de rectificação de notícias. Já o Diário de Notícias consagra, habitualmente, uma página quase completa às cartas dos leitores, intitulada Meu Querido DN, embora quase sempre na 14ª página, entre as secções Internacional e Sociedade.
Além das questões da participação do leitor, há um exemplo curioso que suscitou a nossa atenção por ser ilustrativo da impressionante desvalorização dos cidadãos comuns enquanto fontes de informação: nos quatro jornais foram editadas pequenas peças sobre as comemorações do Dia do Estudante que vão ao encontro da ideia de que o argumento de autoridade e outros factores, como as rotinas e os critérios de noticiabilidade, levam os jornalistas a privilegiar fontes de informação que emanam dos poderes, fomentando a estratificação social no acesso aos news media e a dissonância entre a realidade e a construção mediática dessa realidade.
Repare-se, então, que sobre o dia consagrado aos estudantes, na peça descuidadamente editada no Jornal de Notícias (até surge no fim do texto a legenda da foto que deveria ter sido tirada desse local e colocada junto à imagem), não há quaisquer citações directas de estudantes falando sobre si, os seus problemas ou os problemas da "classe", se excluirmos duas citações dos organizadores das comemorações (oito linhas). Inversamente, sobre um debate realizado no âmbito das comemorações, foram citados o presidente da Câmara de Lisboa, João Soares, o secretário de Estado do Ensino Superior, Jorge Silva, o reitor da Universidade de Lisboa, Meira Soares, e os professores Leston Bandeira e José Barata Moura. Mesmo o representante dos estudantes no Conselho Nacional da Educação, Fernando Medina, também presente, não foi citado uma única vez. Tal demonstra bem que até intervenções organizadas da sociedade civil (associações, etc.) nem sempre conseguem penetrar no sistema mediático, ainda que trabalhando —frequentemente recorrendo a actos "fora do comum", como manifestações, cortes de estrada, etc.— para serem notados e cobertos.
No Público, a peça sobre as mesmas comemorações, a exemplo do que sucedeu no JN, dava bastante mais espaço às citações das fontes do poder (secretário de Estado da Juventude e ministro da Ciência) do que aos estudantes. E o mesmo se passava no Diário de Notícias e no "popular" Correio da Manhã.
A questão, porém, ultrapassa a lógica do mero número de citações. Está também relacionada com as circunstâncias em que as fontes "de elite" (geralmente fontes dos poderes) e as restantes fontes são citadas. É que enquanto as primeiras são, usualmente, cobertas enquanto no exercício de poderes (ocasionalmente de abuso dos poderes), as segundas são, tendencialmente, focadas apenas quando trabalham no sentido de se fazerem notar, para o que, frequentemente, necessitam de recorrer a actos "desviantes" para chamarem a atenção sobre si, como manifestações ou outros protestos. Ora, assim sendo, é hipoteticamente possível que a construção simbólica de imagens do real por parte dos receptores seja influenciada por esse tratamento, que, pessoalmente, consideramos favorecedor do statu quo e tendencialmente inibidor da difusão de visões alternativas sobre a organização da sociedade (ou seja, limita o mercado livre das ideias).
Finalmente, gostaríamos de frisar que o número de citações de figuras masculinas é manifestamente superior ao de figuras femininas, o que mostra bem como o jornalismo português, enquanto construtor da realidade social e das imagens que se possuem dessa realidade, pode diminuir simbolicamente o contributo das mulheres para a edificação colectiva da sociedade.
 

4. Considerações finais

Parece-nos que, face aos dados expostos, a generalidade das ideias apontadas na introdução podem ser aplicadas à imprensa portuguesa, pelo menos aos jornais analisados no período analisado. De entre essas ideias, avulta a de que rotinas e valores-notícia 11, entre outros factores, tendem a excluir da cobertura noticiosa as pessoas de menor prestígio, em favor das poderosas/de "elite", e contribuem para manter determinados limites de aceitabilidade e legitimidade às intervenções sociais. Porém, à luz das ideias da responsabilidade social —e até porque o jornalismo não é uma actividade subjugada, mas unicamente uma actividade integrada num sistema que a transcende—, se quisermos assegurar uma maior polifonia social no seio da nossa sociedade, mais ou menos democrática, então será necessário operar uma revisão nos critérios de noticiabilidade e nas formas de fazer as coisas nas redacções. Entre outras opções, julgamos essencial enveredar pelos seguintes caminhos:

— Alargar o número de fontes de informação;

— Procurar dar um maior espaço aos grupos tendencialmente marginalizados na cobertura jornalística, aos idosos e às mulheres;

— Incentivar, nas redacções, a cultura do projecto de investigação jornalística e da contextualização ampla dos assuntos;

— Aumentar, na imprensa, o espaço consagrado às colaborações dos leitores; as hipóteses linhas telefónicas para colaborações do leitor (número verde) e fóruns temáticos, além das tradicionais cartas ao leitor, são soluções possíveis;

— Promover a edição on line dos jornais diários, pois no ciberespaço não se necessita de estabelecer limites à participação cívica das pessoas, já que não há um espaço físico em disputa, como acontece com as páginas dos jornais (inclusivamente, como os jornais on line e as versões on line dos jornais tradicionais já não têm limites espaciais à participação dos leitores, a situação dos jornais em papel poderá tornar-se ainda mais preocupante, a menos que estes últimos se adaptem aos novos tempos);

— Promover, na rádio e na televisão, espaços de debate abertos à participação do público (como o Forum, da TSF) e, em vez de espectáculos de entretenimento como A Cadeira do Poder, dar tempo —em entrevistas, por exemplo— às pessoas "desconhecidas" ou pouco conhecidas que tenham algo de interessante a dizer;

— Explorar as cenas vivas das mundivivências, envolvendo não apenas figuras-públicas, mas também as pessoas comuns;

— Perspectivar o jornalista como um produtor-autor, um mediador social que pode enveredar pela consagração de espaço à riqueza e pluralidade das pessoas e das situações;

— Abandonar, parcialmente, os actuais formatos do serviço público de televisão e favorecer a abertura de espaços a programas produzidos e realizados por pessoas comuns interessadas em fazê-los, algo que seria facilitado pelo progressivo crescimento da rede de televisão por cabo em Portugal;

— Para servir de exemplo, disseminar o conhecimento de experiências comerciais positivas de jornais que se aproximaram do público ao promover a diversificação das fontes de informação e novas tácticas comunicativas e ao inaugurar espaços reservados à discussão de temas e à colaboração dos leitores, serviços telefónicos gratuitos para apresentação de sugestões, ideias, reclamações e textos, etc.;

— Fortalecer o papel dos provedores dos leitores.
 
 

Notas:

1. São vários os livros que abordam esta questão. Uma sistematização pertinente e aplicada ao jornalismo pode encontrar-se em: MONTERO, María. La información periodística y su influencia social. Barcelona: Labor, 1993.

2. Embora, de alguma forma, esta tradição de jornalismo se tenha iniciado com Pulitzer no último quartel do século passado, nos Estados Unidos, uma das suas primeiras formulações actuais encontra-se em: SCHRAMM, Wilbur. "The nature of news". Journalism Quarterly, vol. 26, (1949): pp. 259-269.

3. Já para não recorrer aos livros enunciando teorias da conspiração, que, em certa medida, não têm admissibilidade científica, referencio, porém, a título exemplificativo: CHOMSKY, Noam e HERMAN, Edward. Manufacturing Consent. The Political Economy of the Mass Media. New York: Pantheon Books, 1988.

4. Entre os variadíssimos trabalhos que orbitam em torno das teorias críticas cito, por exemplo: ALTHUSSER, Louis. Ideología y aparatos ideológicos de Estado. Buenus Aires: Nueva Visión, 1974. Entre os trabalhos desenvolvidos dentro do paradigma dos estudos culturais (ou cultural studies, na expressão anglo-saxónica globalmente consagrada), referencio, a título meramente exemplificativo: HALL, Stuart. "The rediscovery of "ideology": Return of the repressed in media studies". In: GUREVITCH, T.; CURRAN, J. e WOOLLACOT, J., eds. Culture, Society and the Media. London: Routledge, 1982. (Friso, aliás, que todo este livro, onde se inscreve a contribuição de Hall, aborda o tema dos estudos culturais aplicados ao campo dos media, incluindo o jornalismo.)

5. Ver, por exemplo: JOHNSTONE, J. W. C.; SLAWSKI, E. J. e BOWMAN, W. W. "The professional values of American newsmen". Public Opinion Quarterly, vol. 36, (1972), pp. 522-540. Ou, mais actualmente: GAUNT, Philip. Choosing the News. New York: Greenwood Press, 1990. Sobre a temática da acção pessoal sobre as notícias, consultar: SOUSA, Jorge Pedro. Fotojornalismo Performativo. O Serviço de Fotonotícia da Agência Lusa de Informação (tese de doutoramento). Santiago de Compostela: Universidade de Santiago de Compostela (Edição em CD-ROM), 1997. Ou: SCHUDSON, Michael. "Por que é que as notícias são como são". Revista de Comunicação e Linguagens, n.º 8, pp. 17-27.

6. Ver, por exemplo: SHOEMAKER, Pamela e REESE, Stephen. Mediating the Message. Theories of Influences on Mass Media Content. White Plains, N. Y.: Longman, 1996. Ou: SOUSA, Jorge Pedro. Fotojornalismo Performativo. O Serviço de Fotonotícia da Agência Lusa de Informação (tese de doutoramento). Santiago de Compostela: Universidade de Santiago de Compostela (Edição em CD-ROM), 1997.

7. Sobre jornalismo on line, ou seja, jornalismo electrónico ciberespacial, aconselho, por exemplo: ARMAÑANZAS, Emy; DÁZ NOCI, Javier e MESO, Coldo. El periodismo electrónico. Barcelona: Ariel, 1996.

8. Esta noção, que pode ter origem no livro de Mikhaïl Bektine sobre O Romance de Dostoievski, representa também uma opção para o jornalismo, defendida, entre outros, por Cremilda Medina, em: MEDINA, Cremilda. "Epistemologia pragmática e saber plural". In MEDINA, Cremilda e GRECO, Milton, orgs. Saber Plural. São Paulo: ECA/USP, 1994.

9. Como obra de orientação metodológica elegemos: KRIPPENDORFF, Klaus. Metodología de análisis de contenido. Teoria y práctica. Barcelona: Paidós, 1990.

10. Ver, por exemplo: SHOEMAKER, Pamela e REESE, Stephen. Mediating the Message. Theories of Influences on Mass Media Content. White Plains, N. Y.: Longman, 1996.

11. Os critérios de valor-notícia são os critérios empregues pelos jornalistas, consciente ou não conscientemente, para avaliar o que tem valor como notícia, ou seja, o que tem "valor-notícia". O primeiro elenco de criérios de valor-notícia consistente e sistemático terá sido o apresentado em: GALTUNG, Johan e RUGE, Marie Holmboe. "The structure of foreign news". Journal of International Peace Research, n.º 1. Para uma visão mais extensa da influência das rotinas e dos critérios de valor-notícia sobre os enunciados jornalísticos consultar: SHOEMAKER, Pamela e REESE, Stephen. Mediating the Message. Theories of Influences on Mass Media Content. White Plains, N. Y.: Longman, 1996, ou SOUSA, Jorge Pedro. Fotojornalismo Performativo. O Serviço de Fotonotícia da Agência Lusa de Informação (tese de doutoramento). Santiago de Compostela: Universidade de Santiago de Compostela (Edição em CD-ROM), 1997.

Bibliografia:

ALTHUSSER, Louis. Ideología y aparatos ideológicos de Estado. Buenus Aires: Nueva Visión, 1974.

ARMAÑANZAS, Emy; DÁZ NOCI, Javier e MESO, Coldo. El periodismo electrónico. Barcelona: Ariel, 1996.

CHOMSKY, Noam e HERMAN, Edward. Manufacturing Consent. The Political Economy of the Mass Media. New York: Pantheon Books, 1988.

GALTUNG, Johan e RUGE, Marie Holmboe. "The structure of foreign news". Journal of International Peace Research, n.º 1.

GAUNT, Philip. Choosing the News. New York: Greenwood Press, 1990.

GUREVITCH, T.; CURRAN, J. e WOOLLACOT, J., eds. Culture, Society and the Media. London: Routledge, 1982.

HALL, Stuart. "The rediscovery of "ideology": Return of the repressed in media studies". In: GUREVITCH, T.; CURRAN, J. e WOOLLACOT, J., eds. Culture, Society and the Media. London: Routledge, 1982.

JOHNSTONE, J. W. C.; SLAWSKI, E. J. e BOWMAN, W. W. "The professional values of American newsmen". Public Opinion Quarterly, vol. 36, (1972), pp. 522-540.

KRIPPENDORFF, Klaus. Metodología de análisis de contenido. Teoria y práctica. Barcelona: Paidós, 1990.

MEDINA, Cremilda. "Epistemologia pragmática e saber plural". In MEDINA, Cremilda e GRECO, Milton, orgs. Saber Plural. São Paulo: ECA/USP, 1994.

MONTERO, María. La información periodística y su influencia social. Barcelona: Labor, 1993.

SCHRAMM, Wilbur. "The nature of news". Journalism Quarterly, vol. 26, (1949): pp. 259-269.

SCHUDSON, Michael. "Por que é que as notícias são como são". Revista de Comunicação e Linguagens, n.º 8, pp. 17-27.

SHOEMAKER, Pamela e REESE, Stephen. Mediating the Message. Theories of Influences on Mass Media Content. White Plains, N. Y.: Longman, 1996.

SOUSA, Jorge Pedro. Fotojornalismo Performativo. O Serviço de Fotonotícia da Agência Lusa de Informação (tese de doutoramento). Santiago de Compostela: Universidade de Santiago de Compostela (Edição em CD-ROM), 1997.