Jorge Pedro Sousa, Universidade Fernando Pessoa
1. Introdução
Os meios jornalísticos (ou news media, usando a expressão anglo-saxónica mundialmente consagrada) conferem notoriedade pública a determinadas ocorrências e ideias, isto é, contribuem para que a essas ocorrências e ideias seja atribuído um determinado sentido. Não negamos, porém, que a construção última de sentido depende sempre da resposta do receptor (reader response).1
No jornalismo ocidental, aos meios jornalísticos é ainda encomendado um papel de vigia dos poderes.2 Embora esta função social dos media nem sempre se concretize ou, pelo menos, nem sempre se concretize totalmente, parece-nos inegável que, especialmente em sistemas de democracia de partidos ou noutros sistemas democráticos, os meios de comunicação social são um instrumento vital de troca de informações e de estimulação da cidadania. Pelo menos, será este o enquadramento "ideal" da imprensa.
Todavia, não será menos certo, a acreditar em vários estudos e teorias, que os meios de comunicação social, enquanto integrantes da esfera pública, são também usados em função de interesses particulares, como os interesses de determinados poderes, sendo igualmente, em certa medida, a arena onde se digladiam esses poderes, em busca de mais poder.3 Alguns estudos, especialmente nas áreas dos estudos culturais (cultural studies) e das teorias críticas, vão mesmo mais longe e embora reconhecendo um maior ou menor grau de autonomia a cada jornalista e reconhecendo igualmente que o público em geral, em determinadas circunstâncias, também tem acesso aos media sustentam que os media noticiosos funcionariam, essencialmente, como correntes de amplificação dos poderes e de sustentação do statu quo, até porque a insistência mediática em determinadas representações das relações sociais de poder tornaria mais difícil imaginar outras relações de poder.4
Ora, apesar de, ocasionalmente, identificarmos algumas desconfianças salutares em relação aos enunciados jornalísticos, não nos parece, contudo, que seja essa a visão dominante ou a visão "de facto" que a generalidade das pessoas tem da imprensa nas sociedades pós-modernas ocidentais. Ao invés, parece-nos que, perante o senso-comum, formulações retóricas como a "separação" entre informação e opinião, entre o facto e o comentário, que os valores jornalísticos "clássicos" propõem, favorecem a construção de uma imagem do jornalismo como espelho da realidade. Se os media noticiosos agirem, realmente, como agentes de sustentação do statu quo e de amplificação de poderes, então a sua imagem pública dominante, ao nível do ser humano comum, poderá, por consequência, facilitar perigosamente a manipulação e a desinformação do público. Do mesmo público que, provavelmente, não sabe que o processo jornalístico dominante de fabrico de informação de actualidade é um processo rotinizado, burocratizado, influenciado e constrangido, em maior ou menor grau, embora a concepção que os jornalistas têm do seu papel (role conception)5 possa ser um factor influente para a configuração da notícia (cada jornalista, individualmente considerado, exerceria, consequentemente, uma acção pessoal enformadora da notícia).
As rotinas, processos mecanicistas, embora permitam ao jornalista, sob a pressão do tempo, transformar rapidamente acontecimentos em notícias, introduzem, de facto, em conjunto com outros agentes, algumas disfuncionalidades no sistema jornalístico, como, entre outras, as seguintes:6
O jornalismo burocratiza-se;
O sistema produtivo jornalístico torna-se dependente de um fluxo regular, autorizado, acessível e credível de matéria-prima informativa, o que só pode ser garantido por outras burocracias, que frequentemente mais não são que autênticas fábricas de pseudo-acontecimentos e acontecimentos mediáticos;
O jornalismo cai na dependência dos canais de rotina, o que leva à institucionalização e ao reforço da legitimidade de determinadas fontes; estas, por vezes, caem na tentação de usar o jornalismo como balão de ensaio para determinadas medidas ou ideias;
O acesso aos news media torna-se socialmente estratificado;
As relações profundas dos jornalistas com determinadas fontes, motivadas pelo contacto constante, podem levar ao estabelecimento de problemáticas relações de amizade que não se dissociem da relação profissional;
O poder ambivalente do Estado levaria as elites a terem um acesso mais facilitado às instituições estatais, podendo, assim, influenciar mais intensamente a cobertura jornalística.
Existem, porém, perspectivas mais optimistas. Especialmente após os anos oitenta, com a crescente utilização da análise jornalística e da investigação em profundidade, inseridas em estratégias de diferenciação intermedia motivadas pela competição, o número de fontes teria crescido, pois os jornalistas teriam alargado o seu leque de contactos aos sectores intermédios e às bases das instituições. A informação jornalística ter-se-ia, assim, democratizado.
Não ignoramos também que, num mundo onde o jornalismo fosse momentaneamente abolido em favor da disponibilização ou troca directa de informação através do ciberespaço, provavelmente as pessoas iriam privilegiar as informações das instituições sociais "do sistema" em desfavor das informações e ideias de indivíduos ou organizações pouco conhecidas e representativas. Aliás, com a Internet já é um pouco isso que acontece: a Casa Branca e outras entidades estatais, a par das versões on line dos jornais clássicos7, são dos "sítios" mais consultados, embora os restantes "sítios" estejam lá, o que é manifestamente importante. Por consequência, o papel relevante que os meios de comunicação jornalísticos conferem às instituições de poder aparenta ser, de algum modo, legítimo, pois parece responder a uma espécie de necessidade pública. De igual maneira, a ordenação, hierarquização e composição da informação nos meios jornalísticos (edição) também parece, legitimamente, corresponder a uma espécie de necessidade pública. Menos legítimo será, todavia, ignorar quase completamente as pessoas comuns em assuntos de relevo ou fugir aos grandes temas que necessitam de cobertura profunda e multiangular, como as questões sociais e ambientais.
Face ao presente diagnóstico, para que os meios de comunicação social se tornem intrinsecamente mais democráticos e efectivos agentes sustentadores da democracia, será preciso, na nossa perspectiva, promover a polifonia social 8 no espaço mediático "tradicional" (já que no jornalismo on line há espaço para quase tudo). Essa polifonia não se poderá, contudo, remeter exclusivamente para os fazedores de opinião consagrados. A aproximação ao público, o que, na imprensa, passa pela disponibilização de um espaço crescente para as opiniões dos leitores e pela auscultação diversificada de fontes, é, neste campo, uma receita antiga, mas não ultrapassada.
Para reflectirmos sobre estas questões e avaliarmos da sua pertinência
quando aplicadas à imprensa portuguesa, analisámos, embora
superficialmente, durante uma semana, os quatro jornais diários
portugueses de maior tiragem.
2. Estudo de caso
Para o nosso estudo, procedemos a uma análise superficial de conteúdo 9 das edições do Jornal de Notícias, do Correio da Manhã, do Público e do Diário de Notícias, de 24 a 30 de Março de 1997. Essa análise foi feita com base na aferição dos seguintes itens:
número de peças em que os protagonistas são figuras ou organizações "de elite", número de peças em que os protagonistas são figuras ou organizações pouco conhecidas ou "desconhecidas" e número de peças escritas por leitores; espaço ocupado por essas peças;
número de citações directas (citações entre aspas, uma das rotinas defensivas dos jornalistas que mais marca a vigência de um modelo descritivo de jornalismo) de pessoas "de elite" e número de citações directas de pessoas "desconhecidas" ou pouco conhecidas; número de linhas ocupadas pelas citações;
número de citações de homens e número de citações de mulheres; número de linhas ocupadas por essas citações.
Estabelecemos, igualmente, listas das situações em que as figuras conhecidas e as desconhecidas eram mais frequentemente citadas.
Os resultados encontram-se expressos nas tabelas inseridas seguidamente.
Tabela I
Jornal de Notícias Aferição de peças jornalísticas face às entidades representadas
Notícias |
|
|
(cm2) |
|
protagonistas são figuras ou organizações "de elite" |
663 |
70,9% |
140.000 |
68,2% |
protagonistas são figuras ou organizações pouco conhecidas ou "desconhecidas" |
242 |
25,9% |
56.000 |
27,3% |
por leitores |
30 |
3,2% |
9.310 |
4,5% |
|
|
|
|
|
Tabela II
Jornal de Notícias Citações directas
|
|
|
|
|
de pessoas "de elite"** |
1.421 |
79,9% |
4.914 |
70,9% |
de pessoas "desconhecidas" ou pouco conhecidas** |
357 |
20,1% |
2.016 |
29,1% |
|
|
|
|
|
**Só inclui textos noticiosos; exclui desporto,
cultura e espectáculos, suplementos e colunas de selecção
de citações.
Tabela III
Jornal de Notícias Lista de situações em que as figuras "desconhecidas" foram cobertas
Actividades, acções e ideias de importância local (feiras, necessidades locais, pedidos e reclamações, etc.);
Opiniões sobre acontecimentos de grande dimensão, como os Óscares do cinema (inquéritos de rua);
Protestos sociais (sindicatos, greves, manifestações, etc.);
Actividades organizadas (comemorações do Dia do Estudante, etc.);
Testemunhas de acidentes;
-- Vítimas ou testemunhas de crimes/assuntos de polícia;
Pareceres de especialistas (muito poucos).
Tabela IV
Jornal de Notícias Comparação das citações por sexo
|
|
|
|
|
de mulheres "de elite"** |
56 |
3,1% |
189 |
2,7% |
de homens "de elite"** |
1.365 |
76,8% |
4.725 |
68,2% |
de mulheres "desconhecidas" ou pouco conhecidas** |
98 |
5,5% |
525 |
7,6% |
de homens "desconhecidos" ou pouco conhecidos** |
259 |
14,6% |
1.491 |
21,5% |
|
|
|
|
|
**Só inclui textos noticiosos; exclui desporto,
cultura e espectáculos, suplementos e colunas de selecção
de citações.
Tabela V
Público Aferição de peças jornalísticas face às entidades representadas
|
|
|
(cm2) |
|
protagonistas são figuras ou organizações "de elite" |
595 |
81,4% |
133.238 |
73,9% |
protagonistas são figuras ou organizações pouco conhecidas ou "desconhecidas" |
119 |
16,3% |
45.059 |
25% |
por leitores |
17 |
2,3% |
2.079 |
1,1% |
|
|
|
|
|
**Valores aproximados.
Tabela VI
Público Citações directas
|
|
|
|
|
de pessoas "de elite"** |
1064 |
67,9% |
5.215 |
73,8% |
de pessoas "desconhecidas" ou pouco conhecidas** |
504 |
32,1% |
1.848 |
26,2% |
|
|
|
|
|
**Só inclui textos noticiosos; exclui desporto,
cultura e espectáculos, suplementos e colunas de selecção
de citações.
Tabela VII
Público Lista de situações em que as figuras "desconhecidas" foram cobertas
Actividades, acções e ideias de importância local (necessidades locais);
Reivindicações e protestos sociais (sindicatos, greves, manifestações e confrontos, etc.);
Actividades organizadas (comemorações do Dia do Estudante, desfiles, etc.);
Testemunhas de acidentes;
Vítimas ou testemunhas de crimes/assuntos de polícia;
Suspeitos de corrupção insólita (um caso);
Pareceres de especialistas (muito poucos).
Tabela VIII
Público Comparação das citações por sexo
|
|
|
|
|
de mulheres "de elite"** |
14 |
0,89% |
84 |
1,19% |
de homens "de elite"** |
1.050 |
66,96% |
5.131 |
72,65% |
de mulheres "desconhecidas" ou pouco conhecidas** |
84 |
5,36% |
245 |
3,46% |
de homens "desconhecidos" ou pouco conhecidos** |
420 |
26,79% |
1.603 |
22,7% |
|
|
|
|
|
**Só inclui textos noticiosos; exclui desporto,
cultura e espectáculos, suplementos e colunas de selecção
de citações.
Tabela IX
Correio da Manhã Aferição de peças jornalísticas face às entidades representadas
Manhã |
|
|
(cm2) |
|
protagonistas são figuras ou organizações "de elite" |
380 |
57,6% |
97.400 |
63,0% |
protagonistas são figuras ou organizações pouco conhecidas ou "desconhecidas" |
242 |
36,7% |
54.010 |
34,9% |
por leitores |
38 |
5,7% |
3.290 |
2,1% |
|
|
|
|
|
**Valores aproximados.
Tabela X
Correio da Manhã Citações directas
|
|
|
|
|
de pessoas "de elite"** |
723 |
59,0% |
3.432 |
74,0% |
de pessoas "desconhecidas" ou pouco conhecidas** |
502 |
41,0% |
1.204 |
26,0% |
|
|
|
|
|
**Só inclui textos noticiosos; exclui desporto,
cultura e espectáculos, suplementos e colunas de selecção
de citações.
Tabela XI
Correio da Manhã Comparação das citações por sexo
|
|
|
|
|
de mulheres "de elite"** |
209 |
17,0% |
1.185 |
25,6% |
de homens "de elite"** |
514 |
41,9% |
2.247 |
48,5% |
de mulheres "desconhecidas" ou pouco conhecidas** |
126 |
10,3% |
340 |
7,3% |
de homens "desconhecidos" ou pouco conhecidos** |
376 |
30,8% |
864 |
18,6% |
|
|
|
|
|
**Só inclui textos noticiosos; exclui desporto,
cultura e espectáculos, suplementos e colunas de selecção
de citações.
Tabela XII
Diário de Notícias Aferição de peças jornalísticas face às entidades representadas
Notícias |
|
|
(cm2) |
|
protagonistas são figuras ou organizações "de elite" |
647 |
68,9% |
189.720 |
73,0% |
protagonistas são figuras ou organizações pouco conhecidas ou "desconhecidas" |
256 |
27,3% |
62.530 |
24,1% |
por leitores |
35 |
3,8% |
7.640 |
2,9% |
|
|
|
|
|
**Valores aproximados.
Tabela XIII
Diário de Notícias Citações directas
|
|
|
|
|
de pessoas "de elite"** |
1.575 |
73,3% |
5.747 |
73,2% |
de pessoas "desconhecidas" ou pouco conhecidas** |
574 |
26,7% |
2.107 |
26,8% |
|
|
|
|
|
**Só inclui textos noticiosos; exclui desporto,
cultura e espectáculos, suplementos e colunas de selecção
de citações.
Tabela XIV
Diário de Notícias Comparação das citações por sexo
|
|
|
|
|
de mulheres "de elite"** |
133 |
6,2% |
492 |
6,3% |
de homens "de elite"** |
1.442 |
67,1% |
5.255 |
66,9% |
de mulheres "desconhecidas" ou pouco conhecidas** |
112 |
5,2% |
412 |
5,2% |
de homens "desconhecidos" ou pouco conhecidos** |
462 |
21,5% |
1.695 |
21,6% |
|
|
|
|
|
**Só inclui textos noticiosos; exclui desporto, cultura e espectáculos, suplementos e colunas de selecção de citações.
3. Discussão dos resultados
Em função dos dados, parece-nos que é possível
concluir que todos os jornais privilegiam as fontes que emanam dos poderes
(e outras fontes "de elite"), em detrimento de uma auscultação
mais abrangente do meio social, ou seja, em prejuízo de uma maior
polifonia social. É interessante, inclusivamente, notar que os valores
percentuais encontrados não são significativamente dissonantes
de uns para outros jornais. Os resultados corresponderam à nossa
previsão, pois, de algum modo, vão ao encontro das teorias
do conteúdo dos news media.10
Além disso, parece-nos que todos os jornais desvalorizam impressionantemente
as contribuições dos leitores (em número de peças
publicadas e espaço consagrado), apesar do interesse destas e do
facto de, frequentemente, estas serem, na nossa óptica, mais interessantes
do que o restante conteúdo dos jornais. A isto acresce que, se exceptuarmos
O
Correio da Manhã, que publica os textos dos leitores logo na
página 2 (embora mesclados com textos de colaboradores permanentes
e jornalistas), os restantes jornais inserem esses espaços no interior,
sendo que no Jornal de Notícias, o caso "mais grave", a Página
do Leitor surge "escondida" depois dos espectáculos e antes
dos anúncios classificados.
O Espaço Público, apesar de surgir normalmente
na página 8 do jornal Público, tem tanto ou mais espaço
para a opinião dos jornalistas, rectificações e um
cartoon
de actualidade do que para as poucas contribuições dos
leitores, sendo que por vezes estas são unicamente pedidos de rectificação
de notícias. Já o Diário de Notícias
consagra, habitualmente, uma página quase completa às cartas
dos leitores, intitulada Meu Querido DN, embora quase sempre na
14ª página, entre as secções
Internacional
e Sociedade.
Além das questões da participação do leitor,
há um exemplo curioso que suscitou a nossa atenção
por ser ilustrativo da impressionante desvalorização dos
cidadãos comuns enquanto fontes de informação: nos
quatro jornais foram editadas pequenas peças sobre as comemorações
do Dia do Estudante que vão ao encontro da ideia de que o
argumento de autoridade e outros factores, como as rotinas e os critérios
de noticiabilidade, levam os jornalistas a privilegiar fontes de informação
que emanam dos poderes, fomentando a estratificação social
no acesso aos news media e a dissonância entre a realidade
e a construção mediática dessa realidade.
Repare-se, então, que sobre o dia consagrado aos estudantes,
na peça descuidadamente editada no Jornal de Notícias
(até surge no fim do texto a legenda da foto que deveria ter sido
tirada desse local e colocada junto à imagem), não há
quaisquer citações directas de estudantes falando sobre si,
os seus problemas ou os problemas da "classe", se excluirmos duas citações
dos organizadores das comemorações (oito linhas). Inversamente,
sobre um debate realizado no âmbito das comemorações,
foram citados o presidente da Câmara de Lisboa, João Soares,
o secretário de Estado do Ensino Superior, Jorge Silva, o reitor
da Universidade de Lisboa, Meira Soares, e os professores Leston Bandeira
e José Barata Moura. Mesmo o representante dos estudantes no Conselho
Nacional da Educação, Fernando Medina, também presente,
não foi citado uma única vez. Tal demonstra bem que até
intervenções organizadas da sociedade civil (associações,
etc.) nem sempre conseguem penetrar no sistema mediático, ainda
que trabalhando frequentemente recorrendo a actos "fora do comum", como
manifestações, cortes de estrada, etc. para serem notados
e cobertos.
No Público, a peça sobre as mesmas comemorações,
a exemplo do que sucedeu no JN, dava bastante mais espaço
às citações das fontes do poder (secretário
de Estado da Juventude e ministro da Ciência) do que aos estudantes.
E o mesmo se passava no Diário de Notícias
e no "popular"
Correio
da Manhã.
A questão, porém, ultrapassa a lógica do mero
número de citações. Está também relacionada
com as circunstâncias em que as fontes "de elite" (geralmente fontes
dos poderes) e as restantes fontes são citadas. É que enquanto
as primeiras são, usualmente, cobertas enquanto no exercício
de poderes (ocasionalmente de abuso dos poderes), as segundas são,
tendencialmente, focadas apenas quando trabalham no sentido de se fazerem
notar, para o que, frequentemente, necessitam de recorrer a actos "desviantes"
para chamarem a atenção sobre si, como manifestações
ou outros protestos. Ora, assim sendo, é hipoteticamente possível
que a construção simbólica de imagens do real por
parte dos receptores seja influenciada por esse tratamento, que, pessoalmente,
consideramos favorecedor do statu quo e tendencialmente inibidor
da difusão de visões alternativas sobre a organização
da sociedade (ou seja, limita o mercado livre das ideias).
Finalmente, gostaríamos de frisar que o número de citações
de figuras masculinas é manifestamente superior ao de figuras femininas,
o que mostra bem como o jornalismo português, enquanto construtor
da realidade social e das imagens que se possuem dessa realidade, pode
diminuir simbolicamente o contributo das mulheres para a edificação
colectiva da sociedade.
4. Considerações finais
Parece-nos que, face aos dados expostos, a generalidade das ideias apontadas na introdução podem ser aplicadas à imprensa portuguesa, pelo menos aos jornais analisados no período analisado. De entre essas ideias, avulta a de que rotinas e valores-notícia 11, entre outros factores, tendem a excluir da cobertura noticiosa as pessoas de menor prestígio, em favor das poderosas/de "elite", e contribuem para manter determinados limites de aceitabilidade e legitimidade às intervenções sociais. Porém, à luz das ideias da responsabilidade social e até porque o jornalismo não é uma actividade subjugada, mas unicamente uma actividade integrada num sistema que a transcende, se quisermos assegurar uma maior polifonia social no seio da nossa sociedade, mais ou menos democrática, então será necessário operar uma revisão nos critérios de noticiabilidade e nas formas de fazer as coisas nas redacções. Entre outras opções, julgamos essencial enveredar pelos seguintes caminhos:
Alargar o número de fontes de informação;
Procurar dar um maior espaço aos grupos tendencialmente marginalizados na cobertura jornalística, aos idosos e às mulheres;
Incentivar, nas redacções, a cultura do projecto de investigação jornalística e da contextualização ampla dos assuntos;
Aumentar, na imprensa, o espaço consagrado às colaborações dos leitores; as hipóteses linhas telefónicas para colaborações do leitor (número verde) e fóruns temáticos, além das tradicionais cartas ao leitor, são soluções possíveis;
Promover a edição on line dos jornais diários, pois no ciberespaço não se necessita de estabelecer limites à participação cívica das pessoas, já que não há um espaço físico em disputa, como acontece com as páginas dos jornais (inclusivamente, como os jornais on line e as versões on line dos jornais tradicionais já não têm limites espaciais à participação dos leitores, a situação dos jornais em papel poderá tornar-se ainda mais preocupante, a menos que estes últimos se adaptem aos novos tempos);
Promover, na rádio e na televisão, espaços de debate abertos à participação do público (como o Forum, da TSF) e, em vez de espectáculos de entretenimento como A Cadeira do Poder, dar tempo em entrevistas, por exemplo às pessoas "desconhecidas" ou pouco conhecidas que tenham algo de interessante a dizer;
Explorar as cenas vivas das mundivivências, envolvendo não apenas figuras-públicas, mas também as pessoas comuns;
Perspectivar o jornalista como um produtor-autor, um mediador social que pode enveredar pela consagração de espaço à riqueza e pluralidade das pessoas e das situações;
Abandonar, parcialmente, os actuais formatos do serviço público de televisão e favorecer a abertura de espaços a programas produzidos e realizados por pessoas comuns interessadas em fazê-los, algo que seria facilitado pelo progressivo crescimento da rede de televisão por cabo em Portugal;
Para servir de exemplo, disseminar o conhecimento de experiências comerciais positivas de jornais que se aproximaram do público ao promover a diversificação das fontes de informação e novas tácticas comunicativas e ao inaugurar espaços reservados à discussão de temas e à colaboração dos leitores, serviços telefónicos gratuitos para apresentação de sugestões, ideias, reclamações e textos, etc.;
Fortalecer o papel dos provedores dos leitores.
Notas:
1. São vários os livros que abordam esta questão. Uma sistematização pertinente e aplicada ao jornalismo pode encontrar-se em: MONTERO, María. La información periodística y su influencia social. Barcelona: Labor, 1993.
2. Embora, de alguma forma, esta tradição de jornalismo se tenha iniciado com Pulitzer no último quartel do século passado, nos Estados Unidos, uma das suas primeiras formulações actuais encontra-se em: SCHRAMM, Wilbur. "The nature of news". Journalism Quarterly, vol. 26, (1949): pp. 259-269.
3. Já para não recorrer aos livros enunciando teorias da conspiração, que, em certa medida, não têm admissibilidade científica, referencio, porém, a título exemplificativo: CHOMSKY, Noam e HERMAN, Edward. Manufacturing Consent. The Political Economy of the Mass Media. New York: Pantheon Books, 1988.
4. Entre os variadíssimos trabalhos que orbitam em torno das teorias críticas cito, por exemplo: ALTHUSSER, Louis. Ideología y aparatos ideológicos de Estado. Buenus Aires: Nueva Visión, 1974. Entre os trabalhos desenvolvidos dentro do paradigma dos estudos culturais (ou cultural studies, na expressão anglo-saxónica globalmente consagrada), referencio, a título meramente exemplificativo: HALL, Stuart. "The rediscovery of "ideology": Return of the repressed in media studies". In: GUREVITCH, T.; CURRAN, J. e WOOLLACOT, J., eds. Culture, Society and the Media. London: Routledge, 1982. (Friso, aliás, que todo este livro, onde se inscreve a contribuição de Hall, aborda o tema dos estudos culturais aplicados ao campo dos media, incluindo o jornalismo.)
5. Ver, por exemplo: JOHNSTONE, J. W. C.; SLAWSKI, E. J. e BOWMAN, W. W. "The professional values of American newsmen". Public Opinion Quarterly, vol. 36, (1972), pp. 522-540. Ou, mais actualmente: GAUNT, Philip. Choosing the News. New York: Greenwood Press, 1990. Sobre a temática da acção pessoal sobre as notícias, consultar: SOUSA, Jorge Pedro. Fotojornalismo Performativo. O Serviço de Fotonotícia da Agência Lusa de Informação (tese de doutoramento). Santiago de Compostela: Universidade de Santiago de Compostela (Edição em CD-ROM), 1997. Ou: SCHUDSON, Michael. "Por que é que as notícias são como são". Revista de Comunicação e Linguagens, n.º 8, pp. 17-27.
6. Ver, por exemplo: SHOEMAKER, Pamela e REESE, Stephen. Mediating the Message. Theories of Influences on Mass Media Content. White Plains, N. Y.: Longman, 1996. Ou: SOUSA, Jorge Pedro. Fotojornalismo Performativo. O Serviço de Fotonotícia da Agência Lusa de Informação (tese de doutoramento). Santiago de Compostela: Universidade de Santiago de Compostela (Edição em CD-ROM), 1997.
7. Sobre jornalismo on line, ou seja, jornalismo electrónico ciberespacial, aconselho, por exemplo: ARMAÑANZAS, Emy; DÁZ NOCI, Javier e MESO, Coldo. El periodismo electrónico. Barcelona: Ariel, 1996.
8. Esta noção, que pode ter origem no livro de Mikhaïl Bektine sobre O Romance de Dostoievski, representa também uma opção para o jornalismo, defendida, entre outros, por Cremilda Medina, em: MEDINA, Cremilda. "Epistemologia pragmática e saber plural". In MEDINA, Cremilda e GRECO, Milton, orgs. Saber Plural. São Paulo: ECA/USP, 1994.
9. Como obra de orientação metodológica elegemos: KRIPPENDORFF, Klaus. Metodología de análisis de contenido. Teoria y práctica. Barcelona: Paidós, 1990.
10. Ver, por exemplo: SHOEMAKER, Pamela e REESE, Stephen. Mediating the Message. Theories of Influences on Mass Media Content. White Plains, N. Y.: Longman, 1996.
11. Os critérios de valor-notícia são os critérios empregues pelos jornalistas, consciente ou não conscientemente, para avaliar o que tem valor como notícia, ou seja, o que tem "valor-notícia". O primeiro elenco de criérios de valor-notícia consistente e sistemático terá sido o apresentado em: GALTUNG, Johan e RUGE, Marie Holmboe. "The structure of foreign news". Journal of International Peace Research, n.º 1. Para uma visão mais extensa da influência das rotinas e dos critérios de valor-notícia sobre os enunciados jornalísticos consultar: SHOEMAKER, Pamela e REESE, Stephen. Mediating the Message. Theories of Influences on Mass Media Content. White Plains, N. Y.: Longman, 1996, ou SOUSA, Jorge Pedro. Fotojornalismo Performativo. O Serviço de Fotonotícia da Agência Lusa de Informação (tese de doutoramento). Santiago de Compostela: Universidade de Santiago de Compostela (Edição em CD-ROM), 1997.
Bibliografia:
ALTHUSSER, Louis. Ideología y aparatos ideológicos de Estado. Buenus Aires: Nueva Visión, 1974.
ARMAÑANZAS, Emy; DÁZ NOCI, Javier e MESO, Coldo. El periodismo electrónico. Barcelona: Ariel, 1996.
CHOMSKY, Noam e HERMAN, Edward. Manufacturing Consent. The Political Economy of the Mass Media. New York: Pantheon Books, 1988.
GALTUNG, Johan e RUGE, Marie Holmboe. "The structure of foreign news". Journal of International Peace Research, n.º 1.
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