COMUNICAÇÃO GLOBAL

QUANDO A PRÁTICA ULTRAPASSA AS MENTALIDADES

 

Isabel Afonso de Sousa

Março de 1999

 

 

Falar de comunicação global parece hoje já uma banalidade. Todavia, apesar das muitas simpatias que o conceito vem recolhendo, a prática revela muitas resistências à sua verdadeira aceitação.

 

Na verdade, a implementação de uma verdadeira estratégia de comunicação global implica tantas e tão profundas revoluções, quer nas agências quer nas empresas anunciantes, que a aplicação deste conceito, a curto prazo, dificilmente ultrapassará o limiar das meras boas intenções.

 

É moda falar-se, desejar-se, dizer-se que se pratica a comunicação global ou, um pouco menos ambiciosamente, uma comunicação integrada. Mas quantos já pararam para pensar que levar este objectivo a fundo implica romper com uma das bases sacrossantas do Marketing, onde a comunicação é apenas um dos elementos que compõem o marketing-mix. De facto, se aceitarmos, tal como a comunicação global pressupõe, que todos os elementos de uma empresa ou organização, que mantém contacto com exterior, comunicam, todos os componentes do marketing mix se tornam também poderosos elementos de comunicação. As características do produto ou serviço em si mesmo, o preço, a distribuição e as pessoas são vitais para uma imagem global da marca.  Todavia, para além destes elementos que podem considerar-se dos domínios do marketing, a localização da empresa, as suas instalações, a decoração, as fardas, todo o papel impresso, a conduta dos funcionários, sem naturalmente esquecer os orgãos de admnistração,… enfim tudo e todos os que podem ser relacionados com essa empresa ou organização, acabam por contribuir para a construção da sua imagem e da sua identidade. 

Assim sendo, uma directriz de comunicação global não só não pode estar dependente do marketing, nem sequer de uma Direcção Comercial, como terá até de criar directivas de conduta para a própria administração. Quantas empresas estão dispostas a tamanha sublevação???

 

É um facto que, se olharmos à nossa volta vamos já sentindo a existência de muitas  marcas, de origem internacional, bem como algumas de origem nacional, que já não se perdem em comunicações várias, num regime de peças avulso sem qualquer coluna dorsal. Graças à aceitação da necessidade de uma sólida estratégia de comunicação publicitária, há cada vez mais marcas que nas suas campanhas publicitárias se apresentam donas de personalidade única, bem definida e construída para durar. Mas quantas delas conseguem fazer respeitar essa personalidade nos elementos que ultrapassam os programas das campanhas publicitárias?

 

Na prática, a maioria das organizações e empresas que se julgam mais revolucionárias, acabam por apenas tentar que a estratégia traçada a nível do marketing inclua algumas linhas orientadoras para as restantes áreas da empresa. Iniciativa louvável e que poupa já muito “tiro perdido”, mas que na realidade não tem qualquer capacidade vinculativa - os outros departamentos não aceitam directrizes de uma proveniência que hierarquicamente não lhe é superior.

 

Qual é a solução?

Dotar o departamento de marketing de poder vinculativo? E esse poder atingiria toda a empresa? Incluindo a própria administração?

Pouco provável e se calhar até pouco recomendável, uma vez que o departamento de marketing tem um ponto de vista muito particular, carecendo de uma perspectiva que se deseja realmente globalizante.

 

Se o problema parece prender-se com duas premissas - Poder e garantia de uma perspectiva global - a solução ideal poderia estar na própria administração. Porque não atribuir à administração esta valorosa função?

Provavelmente porque como muitos dos directos intervenientes o corroborariam, as administrações têm missões bem mais importantes. E, na prática, a maioria das administrações não está, de facto, sintonizada com um dos pressupostos fundamentais de uma estratégia de comunicação global – “o pensar consumidor”. Raciocínios,  objectivos e todo um discurso centrado sobre a própria empresa poderia antes levá-la a um crescente e agudo autismo na sua relação com o exterior.

 

Outra solução: criar departamentos de comunicação que construam directrizes para toda a empresa.

Nesse caso, esse poder será pacífico para todas as áreas da empresa? Como será a convivência com os departamentos de marketing e imagem? Na realidade, como pode aceitar o departamento de marketing directrizes sobre a sua principal ferramenta de trabalho? E a administração estará pronta a acatar as orientações que lhe couberem cumprir?

 

Seja qual for a melhor situação a encontrar num futuro, a realidade actual mostra-se plena de confusões e mal entendidos.

Entretanto, quer por iniciativa própria quer porque as empresas estão a ficar mais exigentes, cada vez são mais as agências de publicidade que declaram oferecer este tal serviço de comunicação global, criando novos modelos estratégicos que dizem incorporar disciplinas tão diversas como (promoções, relações públicas, merchandising, marketing directo, …). Todavia, para que a agência possa de facto cumprir um real acompanhamento global das marcas e organizações, também elas têm de sofrer profundas remodelações.

Provavelmente, uma delas é despedir-se dos organigramas complexos,  desmultiplicados numa imensa miríade de ramificações, traduzindo não só uma alta especialização de funções como um profundo sentido hierárquico, e aceitar o movimento de simplificação, que algumas agências já vão ensaiando noutros países. Esta tendência manifesta-se numa progressiva fragmentação da mega estrutura, em  pequenos núcleos de projecto, onde cada elemento da equipa tem funções muito menos precisas, mas com muito maior grau de flexibilização e visão global.

 

As próprias funções clássicas e estanques que dividem criativos de comerciais e especialistas em media, poderão também perder-se para fazer jus à máxima que desde os anos sessenta é proclamada pelo afamado Jacques Séguéla e que defende que mais do que ser-se criativo ou executivo, há que se ser publicitário. Diríamos mesmo: “ um estratega de comunicação”.

 

Assim, a agência de publicidade tem de se reinventar e apresentar-se essencialmente como consultor de comunicação global. Naturalmente que não se preconiza o regresso ao tempo da “agência de vão de escada” onde,  alimentada pela  carolice de quem julga que o importante é “desenrascar”,  cada pessoa acaba por  fazer de tudo um pouco. Pretende-se antes o avanço para um conhecimento profundo das relações das diversas vertentes da comunicação. O problema põe-se depois na aplicação desse programa de comunicação global. E a tendência que hoje se verifica é que cada vez mais surgem empresas especializadas nas diversas áreas (merchandising, relações públicas, web design, produtoras de eventos, …) que poderão ser sempre contratadas, não só como fornecedores de um serviço, mas como verdadeiros parceiros capazes de contribuir com ideias que ajudam a concretizar o que ficou delineado na estratégia.

 

A agência de publicidade, que obrigatoriamente terá de rever a sua designação,  vê-se agora perante um novo dilema - a justa remuneração das suas novas atribuições.

Tendo perdido a sua clássica fonte de rendimentos, a comissão particularmente choruda dos investimentos em media, a agência é hoje muitas das vezes remunerada por um fee estabelecido mensal ou anualmente. Se a concretização das peças é na realidade muitas vezes feita pelos tais parceiros especializados, a agência queda-se precisamente no âmbito da consultoria, e este é, precisamente,  o trabalho mais difícil de fazer remunerar justamente.

Um problema claro de mentalidades – o anunciante deseja e solicita todo o apoio estratégico, mas ainda é claramente mais fácil fazer pagar peças, do que ideias e aconselhamento que, na verdade, exigem envolvimento e conhecimentos muito mais aprofundados.

 

 

O problema das mentalidades não se fica, porém, pelas empresas. Tal como aconteceu em outras áreas da sociedade, esta revolução faz-se lentamente e nunca em simultâneo em todas as agências. Assim, se a grande maioria vive ainda o período da “revolução industrial”, ou se quisermos utilizar a terminologia de Alvin Tofler, na segunda vaga, muitas estão ainda no antes dessa revolução.

 

O que se ensina nas escolas é pois igualmente variável. Primeiro porque, estando o ensino da publicidade altamente dependente dos profissionais que a praticam, a experiência desses profissionais, está directamente dependente da organização e estado de evolução das agências e empresas por onde passaram. E é essa realidade que acaba por condicionar os materiais que serão transmitidos aos alunos.

 

Poderá questionar-se a dependência do ensino da publicidade face às agências que a praticam. Contudo, sem querer minorar o valor da investigação académica, um observador mais atento não pode deixar de constatar a escassez das teorias publicadas e, pior, a sua patente desactualização. Desactualização que não se deve tanto a uma mutação constante, mas apenas ao facto das teorias e metodologias verdadeiramente inovadoras viverem “fechadas a sete chaves” no seio das multinacionais que têm recursos para as desenvolver, só conhecendo o domínio público quando essas empresas já possuem algo que julgam melhor), desactualizando inevitavelmente as primeiras.

Se aliarmos o pioneirismo das metodologias, ao valor da experimentação da prática do dia-a-dia, acabamos por concluir que, se se desejar um ensino adequado à realidade do mundo de trabalho, não pode deixar de se estreitar os laços, para vantagem de ambas as partes.  É que,  apesar do valor indiscutível da Universidade na preparação dos novos profissionais, nomeadamente na provisão de uma formação de base mais alargada e completa, há que aceitar que, na área das práticas publicitárias,  as investigações académicas, por si só, dificilmente  conseguem ser motor de mudança ou mesmo de vanguarda. Se só delas estivéssemos dependentes, provavelmente a questão da comunicação global ainda nem sequer teria despontado.

Num último balanço sobre o tema central, resta-nos acrescentar que acreditamos que, apesar de todas dificuldades apontadas,  a Comunicação Global veio para ficar. Não tanto pela influência dos desejos de alguns mais iluminados, mas tão somente por ser chave de sobrevivência das marcas e organizações.