A retórica da verdade jornalística

Américo de Sousa1


Indice



Abstract
To what kind of relationship with the truth can journalism aspire? The question put this way fulfills a double function here. On the one hand, it confronts us with the problem of the impossibility for checking a strictly scientific objectivity, which main role is to inform or to emit an opinion; on the other hand, it takes, by itself, the advantage of prefiguring these three concepts - rhetoric, truth and journalism - whose theoretical depth will keep us closer to the specific epistemological statute of the journalistic speech.

De que verdade falamos quando falamos verdade?

Antes de ser verdade jornalística, a verdade já há-de ser verdade, simplesmente. É pois a essa anterioridade conceptual que temos de recuar quando pretendemos descobrir o que se pode entender por verdade, seja em que domínio for. Trata-se, antes de mais, de indagar se alguma das teorias da verdade actualmente disponíveis se revela suficientemente rigorosa, fiável e útil, quando o que está em causa é saber, afinal, de que verdade falamos quando falamos verdade. Será que as verdades correspondem aos factos? O que são factos? Poderemos traçar um rígido limite entre o relato de um facto e o facto em si mesmo? Estaremos aí perante uma só verdade ou verdades diferentes? Que critério ou critérios nos permitirão estabelecer o que é verdade? Eis algumas das questões que têm levado filósofos, lógicos e epistemólogos a tentar dizer a verdade acerca da verdade, numa tarefa cuja natural dificuldade é agravada pela circunstância de, como lembra Daniel Dennett, a verdade tender ``a transformar-se na Verdade - com V maiúsculo -, um conceito inflacionado de verdade que de facto não pode ser defendido''.2 Não se estranhe por isso os diferentes posicionamentos teóricos nesta área de investigação.

No grupo das teorias de verdade tradicionais, encontramos, por exemplo, aquela que é talvez a explicação mais natural e popular da verdade, a teoria da verdade como correspondência, segundo a qual, a crença será verdadeira se, e só se, existir um facto ou realidade que lhe corresponda. Subsiste porém a dificuldade de não especificar o que são factos nem explicitar a natureza de tal correspondência. Já a teoria da verdade como coerência, remete-nos para a noção de que uma crença é justificada ou verificada quando é parte de um sistema de crenças que seja consistente e harmonioso. Só que a verificabilidade e a verdade, embora fortemente correlacionadas, não são, seguramente, a mesma coisa e pode, por isso, acontecer que uma proposição seja falsa apesar de haver boas razões para acreditar nela ou que seja verdadeira mesmo quando não somos capazes de descobrir que ela o é. Quanto à posição pragmatista ela postula uma estreita relação entre a utilidade e a verdade, ao associar a natureza desta última à ideia de que as crenças verdadeiras são uma boa base para a acção. Mas também aqui há que reconhecer que com alguma frequência acções baseadas em crenças verdadeiras conduzem ao desastre, enquanto que suposições falsas produzem, acidentalmente, excelentes resultados.

Estas teorias da verdade tradicionais têm como ponto comum o facto de quase todas se inscreverem num fundo epistemológico ou até metafísico, dado que procuram definir a verdade a partir de uma sua hipotética propriedade ou característica essencial, seja ela a correspondência, a verificabilidade ou a utilidade da crença. O que de modo algum irá acontecer com as chamadas teorias deflacionistas, as quais, conforme a sua designação já sugere, intentam retirar à noção de verdade todo e qualquer pendor substantivo ou metafísico, deslocando-a para o campo exclusivamente semântico. Como diz Paul Horwich, ``um dos poucos factos incontroversos acerca da verdade é o de que a proposição que ``a neve é branca'' é verdadeira se, e só se, ``a neve é branca''.3 Só que as teorias tradicionais consideram isso insuficiente e inflacionam a dita afirmação com um certo princípio adicional da forma ``X é verdadeiro se, e só se, X tem a propriedade P'', onde a propriedade ``P'', como já vimos, tanto pode representar a correspondência com a realidade, como o facto de ser verificável ou adequada para a acção. E é contra isto que o deflacionismo se insurge, defendendo mesmo que não faz sequer o menor sentido colocar a questão da natureza da verdade, pois a verdade não é uma propriedade real ou metafísica. É assim que, através de uma sua versão extremamente forte - a teoria da verdade como redundância - o deflacionismo sustenta, por exemplo, que na expressão ``é verdadeiro que dois mais dois são quatro'' não estamos a dizer qualquer coisa mais do que se disséssemos apenas ``dois e dois são quatro''. A palavra ``verdadeiro'' que está presente na frase por um questão de performatividade da linguagem, acaba então por não conferir qualquer propriedade de verdade à proposição ``dois e dois são quatro''. Donde se conclui que o predicado de verdade é semanticamente redundante, no sentido em que qualquer frase da forma ``a proposição que p é verdadeira'' diz o mesmo que ``p'', ou seja, estamos perante uma identificação dos respectivos conteúdos. É esta identificação, no entanto, que Paul Horwich contesta, por defender que a ligação entre tais conteúdos é de correlação e não de identidade.4

Verdade e conhecimento: os diferentes graus de certeza

Mas não precisamos de alongar o escrutínio das principais teorias da verdade para percebermos como o problema está longe de receber uma resposta consensual ou racionalmente imperativa. Certamente que tanto ``podemos crer no falso, como no verdadeiro'' - reconhece Bertrand Russell.5 A verdade continua evasiva, e a controvérsia, afirma Daniel Dennett, parece não ter fim.6 Controvérsia bem patente na própria distinção entre definição e critério de verdade, através da qual se considera que a definição está para o significado da palavra ``verdadeiro'' assim como o critério está para o teste que nos permite aferir se determinada afirmação é verdadeira ou falsa. Esta diferença terá muito a ver com a que está igualmente presente no exemplo da febre avançado por Susan Haack e que consiste em ``de um lado, fixar o significado de ``febril'' como ter uma temperatura mais alta que algum ponto dado e, de outro, especificar procedimentos para decidir se alguém está febril''.7 O que é certo é que esta distinção aparentemente tão pacífica, é rejeitada por autores como Tarski, Popper, Mackie e Russell, entre outros, que pura e simplesmente não aceitam o recurso a qualquer critério de verdade. Disso nos dá conta Susan Haack que, não obstante, assume uma posição bem mais moderada, ao admitir que, apesar de problemática, tal distinção pode revelar-se da maior utilidade se, por exemplo, em vez de olharmos a teoria da correspondência e a teoria da coerência numa posição de mútua exclusão ou antagonismo, reconhecermos antes que ambas se complementam: ``a correspondência fornecendo a definição e a coerência, o critério''.8

É este sistemático impasse da investigação teórica, no que respeita à compreensão da verdade, que pode muito bem servir de base ao cepticismo radical daqueles para quem a verdade só pode ser única, necessária e absoluta. Logo, ou alguém lhes prova que existe essa verdade absoluta, total, universal e completa ou dirão que todo o conhecimento é incognoscível e, desse modo, não fará até qualquer sentido falar de verdade ou conhecimento objectivo. Mas o que aqui falta dizer é que, como denuncia Russell, ``o desejo de adquirir conhecimentos que não possam ser discutidos e a certeza da verdade final tendem mais a levar à rigidez e dogmatismo arrogante do que à objectividade''.9 Por outro lado, o que parece contradição insanável é que alguém negue as verdades absolutas ao mesmo tempo que acredita com fé absoluta nas suas próprias verdades relativas. Ou que desconfie da opinião dos outros mas acredite cegamente na sua própria opinião. Concerteza que nas questões mais difíceis a verdade pode demorar. Mas não se vê como refutar a ideia de que é possível descobrir a verdade, embora nunca a verdade final ou absoluta, nem tão pouco a verdade sobre tudo o que gostaríamos de saber. Há verdades que só nós conhecemos, por exemplo, o que estamos neste preciso momento a pensar e sentir, ou qual a intenção que nos anima. São verdades modestas, é certo, mas são também as verdadeiras fundações do nosso edifício cognitivo pois, sem elas, a nenhum outro conhecimento teríamos acesso. Há também verdades mais objectivas que ninguém se atreveria a negar, como o são afirmações tais como ``o homem já foi à lua várias vezes'' ou ``estão neste momento X pessoas nesta sala''. A que poderíamos juntar as verdades lógicas como no caso da tautologia ``Heidegger era nazi ou Heidegger não era nazi'', cuja verdade, como bem refere Desidério Murcho, ``não depende de nenhuns factos relativos a Heidegger, mas unicamente do significado dos operadores verofuncionais de formação de frases `ou' e `não' e da forma da frase''.10

O que importa reconhecer é que, por um lado, nem sempre o conhecimento da verdade pode satisfazer o mesmo grau de exigência em sede de convicção, evidência ou prova e que, por outro, é necessário não confundir a questão metafísica do que é a verdade com a questão epistemológica do que é verdade. Naturalmente que é no âmbito desta última que agora nos situamos, já que a relação de conformidade, identificação ou equivalência para que nos remete - a saber, a que tem de existir entre uma expressão verdadeira e a situação ou facto a que a mesma se refere - é, sem dúvida, a que mais directamente tem a ver com a prática jornalística. Conhecer ou dizer o que é verdade estará por isso fatalmente conexionado com os diferentes graus de certeza ou fiabilidade cognitiva que somos levados a admitir: a certeza, a probabilidade, a verosimelhança e a conjectura ou mera possibilidade. A certeza - de quem com toda a segurança pode afirmar que está vivo; a probabilidade - com a qual nos confrontamos numa dada esperança média de vida; a solução verosímel, razoável ou consensual - que resulta do livre confronto de opiniões; e a mera conjectura - por exemplo, a de que amanhã pode chover ainda que hoje tenha estado um dia lindíssimo.

É esta diferente graduação da certeza que não pode deixar de moldar o conhecimento em cada um de nós, desse modo influenciando, decisivamente, todo o campo da comunicação de que o jornalismo é hoje, como se sabe, um dos lugares de maior difusão e visibilidade. Aproximamo-nos assim do tipo de relação que o jornalismo pode manter com a verdade, a qual, tanto no caso da notícia como da opinião, só pode ser a de uma certeza de grau e intensidade variáveis, quer no tocante ao rigor dos factos quer no que se prende com a sua descrição, relato ou avaliação. Desde logo porque no caso dos factos, essa relação com a verdade tende a ser indirecta já que, por norma, o jornalista apoia-se em fontes (que são, para todos os efeitos, as suas fontes de verdade) cuja credibilidade nem sempre lhe será possível confirmar inteiramente. E depois, porque os acontecimentos-notícia se repartem ou podem repartir por tantas e diferentes actividades e áreas do conhecimento que, muitas vezes, a sua plena compreensão só está ao alcance de especialistas a quem o jornalista, naturalmente, terá de recorrer. Atendendo, porém, à notável evolução tecnológica que vimos assistindo, também ao nível dos sistemas de monitorização, de televigilância e registo, hoje tão popularizados pelo cinema e pela televisão - atente-se no fenómeno do Big Brother - atrevemo-nos a admitir que a relação do jornalismo com a verdade, mais do que depender do grau de acessibilidade a factos ou situações que são cada vez mais globalizadamente partilháveis, passe a centrar-se no campo da mediação interpretativa e respectiva atribuição de sentido. Logo, a precisão e a pertinência da própria análise teriam muito a ganhar se pudéssemos partir aqui de uma noção segura e consensual sobre o que é, afinal, o jornalismo. Mas é dessa noção que, como se sabe, ainda estamos longe de dispor.

O jornalismo como forma de conhecimento

Não há congresso, seminário ou ``workshop'' sobre jornalismo e comunicação que não conduza à recorrente pergunta: ``o que é o jornalismo?''. Mas sempre a resposta fica em aberto, espelhando uma dificuldade de precisão compreensiva que parece, aliás, vir a aumentar de dia para dia, à medida que os avanços tecnológicos vão pondo em crise a estrutura dos meios técnicos utilizados e a própria estabilidade do processo de produção jornalística. O recurso à Internet, disso será apenas o mais recente exemplo (haja em vista a actual explosão de ``Blogs'' jornalísticos ou como tal intitulados). Não admira, por isso, que, apesar das inúmeras propostas de definição, tenhamos ainda alguma dificuldade em avançar com uma noção clara, breve e, acima de tudo, suficientemente delimitadora em relação às restantes áreas ou actividades ligadas à comunicação. Mas será que uma definição rigorosa é assim tão indispensável? É que mesmo sem cuidar aqui de definir a própria definição,11 nela há que reconhecer, desde logo, duas importantes características: relatividade e retoricidade. Relatividade porque, como afirma categoricamente o insuspeito Bertrand Russell, ``(...) uma colecção de definições inclui a nossa escolha (choice) dos argumentos e o nosso juízo sobre o que é considerado mais importante''.12 Retoricidade porque como lembram Armando Plebe e Pietro Emanuele, ``(...) não é preciso chegar às definições paradoxais para reconhecer a origem em grande parte retórica do processo de definir (...).13 E se retórica é a definição de jornalismo, é porque aquilo que o jornalismo é não se deixa apreender na rigidez analítica da pura demonstração formal. Logo, retórica há-de ser, também, a própria verdade jornalística.

O jornalismo pode, naturalmente, ser abordado de diferentes ângulos. Mas estando em causa a sua relação com a verdade, concederemos que importa aqui encará-lo, sobretudo, enquanto forma de conhecimento. Um conhecimento parcial mas em progressão para a verdade e que, no caso do jornalismo, notoriamente se situa entre o rigor sistemático e analítico próprio das ciências, e o menos prevenido recurso ao senso comum, no qual Fernando Gil reconhece, ainda, uma epistemologia implícita.14 Um conhecimento de facto e de interpretação, que o jornalismo produz no seu seio e que em seguida re-produz para o espaço público. É que ``as organizações noticiosas acabam por produzir, em elevado grau, o conhecimento social e político dos públicos. Os conteúdos que as fontes aportam, o jornalista edita e a organização noticiosa difunde, por exemplo, reunem condições para se transformar em conhecimento social e referencial a partir do seu consumo''.15 Um conhecimento que, marcado pelo que Mar de Fontcuberta considera serem as bases tradicionais do jornalismo - realidade, veracidade e actualidade16 passa, em grande parte, como se sabe, pela transformação dos acontecimentos em notícias, que o mesmo é dizer, pela atribuição aos factos de um dado índice de noticiabilidade, pela sua selecção e interpretação, mas acima de tudo, por uma escolha. E é precisamente o reconhecimento de que os jornalistas seleccionam os acontecimentos sobre os quais escrevem e as próprias noticias, que vem realçar, como sustenta Jorge Pedro de Sousa, uma noção central da pesquisa sobre os efeitos dos meios de comunicação: ``as notícias podem indiciar a realidade, representar a realidade, mas não são a realidade nem o seu espelho''.17

É então já possível vislumbrar alguns pontos de contacto entre o jornalismo e a retórica, não tanto à custa de uma definição prévia e totalizante do que o jornalismo necessariamente teria de ser, mas antes, mais modestamente, listando algumas das principais características que consensualmente lhe são reconhecidas e que configuram aquilo a que Nelson Traquina chama de ``identidade jornalística''. Em primeiro lugar, o facto do jornalismo ter, como se sabe, um ethos próprio - o ethos jornalístico - que, num contexto democrático, leva a encará-lo como ``um veículo de informação para equipar os cidadãos com os instrumentos vitais para o exercício dos seus direitos e a voz na expressão das suas preocupações''.18 Nesse sentido o jornalismo seria, como defende Boyce - ``um elo indispensável entre a opinião pública e as instituições governantes'',19 assegurando desse modo a chamada liberdade positiva do jornalismo. Mas a teoria democrática aqui subjacente, como bem lembra Traquina, remete-nos igualmente para a afirmação de ``(....) uma liberdade negativa do jornalismo - o jornalismo como guardião dos cidadãos - em que os meios de comunicação social protegem os cidadãos de eventuais abusos de poder por parte dos governantes''.20 Estão aqui em causa, como é óbvio, valores, interesses e preferências cuja reivindicação é indissociável de um discurso marcadamente retórico-argumentativo.

Em segundo lugar - e continuamos a seguir de perto Nelson Traquina -, o jornalismo implica a crença numa dada constelação ou conjunto de valores e normas profissionais, tais como a liberdade, a independência e autonomia, a credibilidade, a verdade, a objectividade. E se é sobejamente reconhecida a ligação histórica entre o jornalismo e a liberdade, não é menos evidente a reiterada preocupação da generalidade dos códigos deontológicos dos jornalistas de todo o mundo em ``proclamar de forma inequívoca e solene, o dever de cada jornalista de perseguir, de procurar a verdade, de informar a verdade''.21 Quanto à independência e autonomia dos jornalistas face aos restantes agentes ou actores sociais, repare-se que ela é a primeira condição da própria credibilidade, juntamente com a criteriosa verificação dos factos, uma segura avaliação das fontes e, de uma maneira geral, com a exactidão da informação. A objectividade, essa representa, como se sabe, um valor permanentemente em discussão no seio do jornalismo. Depois do culto dos puros factos ter estabelecido, na primeira metade do séc XIX, a sua primazia sobre as opiniões - levando assim à mudança de um jornalismo de opinião para um jornalismo de informação - eis que a própria noção de facto começa a tornar-se suspeita por reconhecer-se, finalmente, que aquilo que o jornalista pode comunicar não é nunca o facto em si mesmo mas, mais exactamente, a sua interpretação desse facto. E é assim que a objectividade se desloca da simples fé nos factos para uma fidelidade a um conjunto de regras e procedimentos que visam conferir a essa interpretação o cariz mais objectivo possível. Ficaria desse modo assegurada a credibilidade do jornalista na medida em que ele pode argumentar que o seu trabalho é objectivo por terem sido seguidos à risca os procedimentos que consensualmente se identificam com a objectividade. Não se confunda, porém, objectividade com neutralidade, pois o facto do jornalista dar mais atenção a este ou àquele acontecimento não só não retira objectividade ao seu trabalho como se inscreve nas suas próprias competências técnico-profissionais. Ou seja, naquilo que dele se espera.

O imediatismo, uma competência profissional específica, uma maneira de agir, uma maneira de falar, uma maneira de ver e uma cultura profissional são os demais factores da identidade jornalística de que nos fala Nelson Traquina e que, quando atentamente observados, deixarão claramente perceber que a ``postura epistemológica do jornalista, a prioridade que é dada à acção sobre a reflexão'',22 exprime uma nítida opção pela lógica do concreto, pela lógica do acontecimento, do novo. Naturalmente que devemos destacar aqui o factor do imediatismo por, só por si, condicionar todo o processo de produção das notícias, encurtando, por vezes, drásticamente, quer o tempo de reflexão quer o da própria execução. E isso requer uma competência profissional específica que apela para o conjunto de saberes a que se referem Ericson, Baranek e Chan23 - o saber de reconhecimento, o saber de procedimento e o saber de narração - entre os quais se inclui a capacidade de, em tempo útil, integrar as informações recolhidas numa narrativa noticiosa e fazê-lo de forma interessante ou apelativa.

A retoricidade do conhecimento jornalístico

É a partir deste modo de olhar a prática jornalística e da sua compatibilidade com um modelo de verdade progressivamente afinado por renovados desenvolvimentos teóricos que poderemos detectar o carácter manifestamente retórico do conhecimento jornalístico. Retórico, desde logo, porque ao abandonar a ideia do acesso à pura factualidade, o jornalismo centra-se cada vez mais nas tarefas de interpretação, avaliação e debate, que o fazem retornar ao``(...) mundo da opinião, da intersubjectividade, do confronto e livre discussão das ideias, um mundo, afinal, onde não é possível traçar, milimetricamente ou a esquadro, qualquer fronteira entre o bem e o mal, entre o belo e o feio, entre o justo e o injusto''.24 É que se o que o jornalista comunica é sempre e apenas a sua avaliação da realidade e nunca o facto em si mesmo, então há necessidade de convocar uma argumentatividade que justifique e prove o acerto ou a preferência dessa sua interpretação sobre outras interpretações igualmente possíveis. Retórico porque se desenvolve na dependência e na prossecução de um conjunto de valores cuja concreta determinação apela para o regime da discutibilidade crítica e se decide por uma avaliação em sede do plausível e consensual, própria de toda a argumentação retórica. Retórico porque se faz à custa de opções ou escolhas, quer na selecção dos factos a que atribui o valor de notícia, quer na própria construção desta última, opções ou escolhas que, como todos sabemos, nem são arbitrárias nem se fundam em razões universais ou logicamente coercitivas. Retórico, em suma, porque se trata de um conhecimento que emerge no contexto de uma comunicação marcadamente persuasiva onde o louvável espírito de isenção e objectividade não anula nem condena o propósito de atrair, de agradar e de convencer o respectivo auditório, enquanto principal alvo e razão de ser da actividade jornalística.

É quanto basta, julgamos, para se reconhecer como o jornalismo partilha da relatividade do conhecimento retórico. Uma relatividade que não obriga, porém, a travar a marcha, a regressar ao ponto de partida ou a ficar pirronicamente de braços cruzados, só porque não há, afinal, um único caminho seguro para o verdadeiro conhecimento Trata-se antes de uma relatividade que nos permite avançar sempre um pouco mais, embora com a prudência e vigilância crítica de quem sabe que essa caminhada para a verdade se faz por vias mal assinaladas, num percurso sempre inacabado e por atalhos que podem surpreender ou até mesmo iludir. Mas é a alternativa, quer ao não sair do mesmo sítio, quer ao avançar cegamente ou de olhos fechados. É, enfim, um modo de olhar a relatividade em que esta, ao invés de significar a prévia desvalorização dos factos ou absoluta impossibilidade de a eles cognitivamente aceder, permite antes reconhecer a interdependência e contextualização que estará na base das suas sempre possíveis diferenças de significado ou valor.

Assim pensado, o jornalismo acaba então por se constituir num espaço disciplinar, teórico e prático, que abrange a reflexão e o exercício de uma opinião epistemologicamente redignificada. É que, como refere Perelman, ``se não se admite a validade absoluta do critério de evidência, já não há, entre a verdade e a opinião uma diferença de natureza e sim de grau''.25 O que, vindo no sentido da diferente graduação de certeza a que já anteriormente aludimos, parece apontar, por outro lado, para ``a necessidade de um certo aveludar ou amolecer da tradicional rigidez de antinomias como verdade e opinião, realidade e aparência, objectividade e subjectividade''.26 A verdade pode assim deixar de ser encarada como coincidência perfeita com o seu objecto, pois ``a não ser que não tenha objecto, como sucede nas ciências dedutivo-formais, ela é aproximação e generalização, únicas coisas que tornam possível a sua comunicação''.27 As novas verdades passam a constituir “apenas as nossas opiniões mais seguras e provadas” 28 e, nessa medida, revelam-se um excelente ponto de partida para interpelar o mundo, para partilhar conhecimentos, para sustentar com razões os nossos próprios pontos de vista.

Defender portanto que a verdade jornalística é argumentável ou retórica, já não pode surpreender ninguém. Nem o jornalista, nem o filósofo, nem o cientista. Porque como se procurou aqui mostrar, fica cada vez mais claro que a retórica é incontornável quando se trata de comunicar ou fazer partilhar seja informação ou conhecimento, seja verdade ou opinião. Bem se compreende, por isso, que Daniel Dennett, um fervoroso adepto do compromisso com a ciência e com a verdade, se tenha referido à polémica que de há muito mantém com Richard Rorty, do seguinte modo: ``Rorty e eu temos vindo a discordar construtivamente desde há mais de um quarto de século. Penso que cada um de nós ensinou muito ao outro, através do processo recíproco de polir as nossas discordâncias mútuas''.29 O que afinal Dennett está aqui a reconhecer não é outra coisa senão a dimensão argumentativa do conhecimento, desse modo legitimando até a hipótese de que o próprio caminho para a verdade possa vir a revelar-se fundamentalmente retórico. Não seria sensato, então, cometer ao jornalismo uma pretensão de verdade superior à que tanto a filosofia como a ciência nos podem oferecer.

Bibliografia

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Sousa, J. P., (2000), As notícias e os seus efeitos, Coimbra: Edições Minerva

Traquina, N., (2002), Jornalismo, Lisboa: Quimera Editores, Lda



Notas de rodapé

... Sousa1
Universidade da Beira Interior
... defendido''.2
Dennett, D., (1997), ``Fé na verdade'' - artigo inédito publicado em Disputatio-Journal of Philosofy in the Analytic Tradition, Vol. 3 (Novembro 1997), disponível igualmente na internet em http://disputatio.tripod.com/articles/003-1.pdf, p. 12. Trata-se de uma das Oxford Amnesty Lectures, proferida pelo autor em Janeiro de 1997.

... branca''.3
2. Horwich, P. (2001), ``Teoria da Verdade'' in Branquinho, J. e Murcho, D., Enciclopédia de Termos Lógico-Filosóficos, Lisboa: Gradiva-Publicações Lda., p.733
... identidade.4
ibidem
... Russell.5
Russell, B.,(1959), Os Problemas da Filosofia, Coimbra: Arménio Amado, Editor, p. 185

... fim.6
Dennett, D., ``Fé na verdade'', p.13
... febril''.7
Haack, S., (2002), Filosofia das Lógicas, S. Paulo: Editora UNESP, p. 130
...erio''.8
ibidem
... objectividade''.9
Russell, B., (1970), Pensamento e Comunicação, Porto: Brasília Editora, p. 187
... frase''.10
Murcho, D., (2001), ``Verdade Lógica'' in Branquinho, J. e Murcho, D., Enciclopédia de Termos Lógico-Filosóficos, Lisboa: Gradiva-Publicações Lda., p.739
...ao,11
Referimo-nos aqui, basicamente, à definição que ocorre no seio da linguagem natural
... importante''.12
Russell, B. e Whitehead, A.,(1962), Principia Mathematica, Cambridge, pp 11-12
... (...).13
Plebe, A. e Emanuele, P., (1992),Manual de Retórica,S. Paulo:Martins Fontes, pp. 48-50
...icita.14
Conf. Gil, F., (2001), Mediações, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, p. 464
... consumo''.15
Sousa, J. P., (2000), As notícias e os seus efeitos, Coimbra: Edições Minerva, p. 148
... actualidade16
in ibidem, p. 27
... espelho''.17
ibidem, p. 135
...oes''.18
Traquina, N., (2002), Jornalismo, Lisboa: Quimera Editores, Lda, p. 132
... governantes'',19
cit. in ibidem, p. 134
... governantes''.20
ibidem, p. 134
... verdade''.21
Afirmação de José Pedro Castanheira, Presidente da Comissão Organizadora do 3$^{o}$. Congresso dos Jornalistas Portugueses, em 1998, cit. in ibidem, p. 139
...ao'',22
ibidem, p 155
... Chan23
cit. in ibidem, p. 151
... injusto''.24
Sousa, A., (2001), ``Retórica e discussão política''. Comunicação apresentada no II Congresso da SOPCOM, em Outubro de 2001, na Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa
... grau''.25
Perelman, C., (1997), Retóricas, S. Paulo: Martins Fontes, p. 365
...subjectividade''.26
Sousa, A., (2001), ``Retórica e Discussão Política''

...ao''.27
Perelman, C., (1997), Retóricas, S. Paulo: Martins Fontes, p. 365
... provadas''28
Cit. in Sousa, A.,(2001), A Persuasão, Covilhã: Editora da Universidade da Beira Interior, p. 107
...utuas''.29
Dennett, D., (1997) ``Fé na verdade'', p. 15