Renata Silveira1
O choque inicial não é sobre violência. Nem sobre sexo.
Irreversível (Mars Film, 2002), do realizador argentino radicalizado em
França Gaspar Noé, sugere outras reflexões que as mais
aparentemente fáceis. Após o choque que o polémico filme me
causou, busquei críticas e comentários especializados sobre a
película para compreender os sentimentos provocados na assistência
(devo antecipar que li as críticas apenas depois de ter,
desavisadamente me submetido ao filme).
A maioria das resenhas e críticas jornalísticas acusava a
violência explícita do filme como elemento perturbador das
platéias. O que explica mas não justifica a polêmica, pois desde
há cerca de dez anos, a violência explícita, crua, porém
estilizada, na visão de cineastas como Tarantino e Stone já
alcançara um sentido estético. Violência e sexo, elementos
bastante comuns no cinema, adquiriram após Reservoir Dogs (Quentin
Tarantino, 1992), Pulp Fiction (Quentin Tarantino, 1994) ou Natural Born
Killers (Oliver Stone, 1994), qualificações
estéticas2.
Se Irreversível foi considerado o grande escândalo do Festival de
Cannes em 2002 devido a suas cenas de violência explícita, o filme
não quebra entretanto nenhum paradigma. Cenas de violência
explícita, constam em muitas produções cinematográficas
antigas e recentes, como na única boa sequência do início de
Ghost Ship (Steve Beck, 2002), em que dezenas de pessoas são mutiladas
durante um baile, em uma velocidade capaz de desconcertar a assistência
pelo requinte como a sequência é perversamente construída.
O incômodo provocado pelas cenas de violência de Irreversível
não estão essencialmente na exposição prolongada do
espectador à brutalidade das sequências, como foi apontado em
diversos textos de opinião na imprensa especializada. Nem na narrativa
inversa. 'Irreversível' apenas tenta fazer o espectador perder toda a
referência cronológica ou espacial (música ensurdecedora,
créditos finais aparecendo no começo do filme, palavras escritas de
trás para frente, câmera que dá piruetas ou fica de
lado). 3 Mas pensar a violência das imagens é pensar
a tolerância às formas como a violência nos é apresentada. E
neste sentido a narrativa temporal invertida do filme de Gaspar Noé
não é essencialmente estética, mas retórica.
Náusea, desorientação. Desde os primeiros minutos a câmara
nervosa de Gaspar Noé nos perturba irreversivelmente. Não há
tempo na narrativa inversa da história para assimilarmos e digerirmos as
sequências violentas do filme, em especial a primeira. O clímax
surge inexplicavelmente, dissimulado sob pretexto estético. O que
Irreversível sugere de relevante é que a violência extrema
precisa ser justificada, em tempo linear, para que possa ser assimilada como
necessária.
Nesta perspectiva podemos compreender também a necessidade de se justificar uma (!) ação militar no Oriente Médio. Pois pressupomos racionalmente que após a primeira bomba ter destroçado algumas centenas de civis, não haverá argumento válido para aceitarmos a barbárie desta Segunda Guerra do Golfo. Em um artigo publicado no Le Monde Diplomatique, Ignacio Ramonet afirmava 'E por que não há nenhum argumento que consiga justificar a guerra que tantos cidadãos se mobilizaram contra ela". 4
A opinião pública, expressa pelas centenas de manifestações
contra a guerra em diversos países do Oriente e do Ocidente antes do
início da ofensiva militar, e mesmo agora em época de
ocupação militar, não conseguiu digerir os argumentos
"racionais" expostos pelo presidente norte-americano ou pelo
primeiro-ministro inglês. Resta-nos, agora que a guerra encerrou, mas na
prática ainda está longe de acabar, ficarmos tal como espectadores
de uma história que se desenvolve incontornavelmente para a
tragédia.
Em Irreversível a narrativa não foi construída para ``pensar''
pelo espectador. Não há respostas claras. Mais: o filme faz-nos
questionar acerca de como processamos e aceitamos a violência. Uma
destas formas de aceitação desta violência, para mais ou para
menos, dá-se pela identificação com a vítima, o que pode
ser visto à luz da psicanálise.
"No início da vida há somente o Id. Totalmente inconsciente amoral e impessoal, essa mais antiga das três instâncias constitutivas da personalidade humana 'contém tudo que é herdado'. Nele estão depositados a pulsão de vida e a pulsão de morte - também denominadas respectivamente, pulsão sexual e pulsão
destrutrutiva - expressões psíquicas das 'exigências somáticas que são feitas à mente". 5 Marcus e Pierre entram em um prostíbulo homossexual à procura de
Ténia. As cenas indefinidas pelo constante movimento da câmara na
mão, a iluminação deficiente, enfim, toda a técnica
cinematográfica conspiram contra a razão do espectador. Marcus
encontra finalmente Ténia. Após uma discussão dominada pelo
argumento físico da força, o braço de Marcus é partido e
ele é imobilizado no chão por Ténia, que tenciona iniciar uma
violação (mais uma?). Um extintor de incêndio põe fim a
iniciativa de Ténia, quando o atinge na cabeça! Ténia cai ainda
com uma expressão nervosa que faz lembrar um animal. Podemos ver Pierre
com o extintor. Pierre bate outra vez na face de Ténia. E bate outra vez
e outra e outra com o extintor na cabeça de Ténia, que já
está desfigurado e ofegante no chão. Mal podemos reconhecer um
rosto. Pierre não pára ainda. Continua a golpear aquela cabeça,
filmada em primeiro plano, que começa a desfazer-se diante da câmara
até transformar-se em uma massa disforme de carne e sangue.
Neste ponto nada justifica a barbárie da violência a que somos
submetidos. Não houve na narrativa tempo hábil e uma
explicação "racional" que justificasse aquela sequência de
violência. O clímax do filme exposto no início da narrativa
pode ser o fator pelo qual muitos espectadores saíram das salas de
exibição antes mesmo de haver identificação com a
vítima ou com o agressor, e portanto nada pode os fazer aceitar o que
acabaram de assistir. Muitos espectadores não passaram deste ponto,
questionando-se sobre o ato que acabam de presenciar.
Para os que resistiram ao resto do filme, é possibilitada a
identificação com a vítima, que em uma narrativa linear
crescente teria surtido um choque menor no espectador frente à cena do
extintor, e fornece uma resposta "aceitável" para a animalidade de
Pierre.
Alex discute com Marcus em uma festa e resolve voltar para casa sozinha. Ao
entrar em uma passagem subterrânea depara-se com Ténia. Acossada,
Alex é violentada e espancada até estar inconsciente dentro do
túnel (já sabemos, antecipadamente, que Ténia, um perigoso
homossexual do submundo parisiense fora a primeira "vítima" do filme).
A sequência é igualmente longa e crua.
As razões para a primeira sequência de choque do filme estão
agora justificadas. Embora o espectador possa não ter mais
condições emocionais de digerir e aceitar a justificativa, pois o
choque está instaurado. Neste ponto da narrativa é possível uma
identificação com a vítima, o que apenas pode trazer mais
náusea para o espectador até o final do filme (supostamente onde
tudo deveria estar começando).
A vingança é um dos argumentos da violência. O inconformismo com
o sistema penal condescendente, "porque a maioria dos crimes permanece
impune", Irréversible 6 poderia funcionar como justificativa aceitável para a cena do extintor e o filme não
causaria o mal-estar generalizado se o espectador anteriormente já
estivesse à par da violência sofrida por Alex.
Para a cena da violação, a sequência dentro do túnel,
não há justificativa racional possível. Apenas o desprezo pelo
outro, a violência ilimitada que destrói as histórias das
personagens envolvidas. Mais uma vez, o espectador, violentado por uma
sequência demasiadamente longa (nove minutos), questiona-se sobre as
causas do ato que acaba de presenciar. Para este fragmento da história,
extremamente penoso ao espectador, não há argumentos possíveis
senão as sociopatias e psicopatias, vistos à luz da psicanálise.
Nada pode momentaneamente diminuir a angústia e o ressentimento
experimentados pela assistência.
E é após a cena do túnel que Noé se torna mais cruel com o
espectador. A história das personagens, recortadas e coladas
inversamente levam o espectador ao sentimento de impotência e
frustração. A única pergunta possível é porque os fatos
haviam de se desenvolver da maneira como serão.
Noé nos dá uma perspectiva regressiva da violência em sua
narrativa. Experimentamos a partir da metade do filme até o final a
embaraçosa sensação de já sabermos o que vem ``em seguida''
na vida de cada personagem. E em cada nova sequência cresce a
indignação de já saber a que ponto chegará aquela
história. No final do filme, a revelação de que eles (Alex e
Marcus) seriam felizes é pesada demais para aceitarmos o
começo-final da história.
Talvez seja um sentimento muito próximo o que experimentamos desde o
início da guerra orquestrada pelo governo norte-americano contra o
Iraque. Falharam os discursos diplomáticos junto ao Conselho de
Segurança da ONU que tentavam racionalmente nos convencer da necessidade
da violência extrema da guerra. Venceu a barbárie, na guerra de
nervos travada pelos EUA com o resto do mundo. O princípio de
aceitação ou não da violência (em maior ou menor
intensidade, sempre violência) é a capacidade, legal ou cultural,
que temos em produzir justificativas racionais para ela.
Mais uma vez, em relação à guerra, sabemos antecipadamente o que vem em seguida, mas, ao contrário de Irreversível, sabemos que ela não é racionalmente inevitável (como supomos que seja o ato de violar um ser humano), embora estejamos igualmente em um estado de resignação diante da "realidade". E porque sabemos que após a primeira bomba cair, seja ela qual ``mãe de todas as bombas'' for, nada poderá ser justificado.
Após o choque primitivo causado pelas imagens inexplicáveis das primeiras vítimas da guerra, torna-se impossível aceitar qualquer razão para a violação coletiva de centenas, milhares de civis. E todos os atos de violência em seguida estarão esvaziados de explicações, pois já não há respeito pelas leis e códigos estabelecidos internacionalmente, que versam sobre Direitos Humanos e Soberania Nacional.
As imagens que vêm da guerra são de uma violência
presumível, embora ilimitada. E estamos tal como espectadores em um
cinema, sujeitos a tais imagens, mais uma vez nos questionando sobre a
necessidade da barbárie. A ordem sócio-política do mundo
estará comprometida pela decisão de um único indivíduo com
um desejo (político) doentio e irracional de vingança. E "a
substituição do poder do indivíduo pelo poder de uma comunidade
constitui o passo decisivo da civilização (...) A primeira
exigência da civilização, portanto, é a da justiça, ou
seja, a garantia de que uma lei, uma vez criada, não será
violada". 7 (Freud, 1930. p.115-116)
Não fora de admirar que particularmente a França, berço do
Iluminismo, e a Alemanha de todas as filosofias que, de certa maneira e com
suas políticas diplomáticas e coerentes com a "lei" para além
dos seus próprios interesses políticos e econômicos, tentaram
travar a ``racionalidade'' da guerra. Mas a civilização não pode
excluir as bestas, e o final feliz fica, na vida assim como no cinema, mais uma vez na
lembrança do estado irreversível das coisas como eram.
Veja também o trailler do filme