Perspectivas Weberianas da Sociedade Rede

Manuel Lopes da Silva1


Indice

Introdução

No limiar do Sec XXI tem sentido fazer uma reflexão sobre o passado e o futuro das Ciências Sociais e Humanas, porque, se durante o Sec.XX houve um enorme avanço do conhecimento nestas áreas com grande destaque para a Sociologia, também a sociedade se tornou muito mais complexa exigindo abordagens mais cada vez exigentes .

As `` Etapas do Pensamento Sociológico'' de Raymond Aron de 1965 , e o `` Manual de Sociologia'' de A .Cuvillier de 1976 mostram até que ponto se tinha passado da fase de recolecção de temas avulsos que se poderiam classificar como sociológicos, para a fase do pensamento reflexivo sobre o que é a Sociologia.

Nos EUA desenvolveu-se uma sociologia empírica onde se destacam os nomes de Merton e Wrigth, precisamente dois autores que iniciaram a investigação no domínio da Sociologia da Comunicação.

A ligação entre esta sociologia empírica e a sociologia sistemática europeia tem sido perseguida por vários investigadores, sendo o mais representativo Talcott Parsons que fez a recepção para os EUA da Sociologia de Max Weber.

Por isso é interessante tentar perspectivar um problema sociológico muito actual ( o das redes de Informação e Comunicação de hoje) do ponto de vista precisamente de Max Weber

Parece-nos que os problemas das redes identificados por Castells e Wolton ( em estudos sobre a Internet) se tornam mais compreensíveis na perspectiva weberiana da burocratização progressiva do capitalismo contemporâneo.

Também as teorias da acção e da dominação de M. Weber permitem uma abordagem dos tipos de comunicação contemporâneas muito próxima das análises daqueles autores.

Particularmente interessante também é a convergência de M. Weber com Wolton / Castells na constatação de que do capitalismo contemporâneo se não pode esperar o desenvolvimento da democracia, bem pelo contrário.

O Pensamento Sociológico

Por razões de clareza intelectual e coerência científica, devemos justificar a escolha de M. Weber para abordar as questões levantadas pela Sociedade da Informação, ou , segundo Castells a Sociedade Rede.

Há uma primeira razão, de índole pessoal, que tem origem no interesse em mim despertado nos contactos com investigadores e académicos brasileiros que se referem com frequência a Weber a par de Marx.

Posteriormente a leitura do livro de R. Aron, já referido, confirmou o interesse duma reflexão sobre M. Weber e duma aplicação dos seus conceitos às modernas redes de comunicação.

E há uma terceira razão que me levaria a revisitar M. Weber, que inesperadamente surgiu durante este estudo e que resultou da estreita relação entre Talcott Parsons e M. Weber pelas razões referidas.

Ora a sociologia parsoniana é de natureza sistémica e enquadra-se perfeitamente no quadro de referência da nossa própria formação.

Não é por acaso que T. Parsons no seu modelo sistémico de base estruturo-funcionalista coloca no topo do sistema geral de acção o sub-sistema cultural, o das ideologias, dos conhecimentos e dos valores, que são como veremos fundamentais na sociologia weberiana.

Se Aristóteles, Agostinho ou Maquiavel são hoje designados por pre-sociólogos, com mais razão deverão ser considerados fundadores da sociologia Montesquieu e Tocqueville a que aqui nos referiremos, mas também K. Marx e Augusto Comte.

Na viragem para o Sec. XX há que referir Durkheim com as suas análises do trabalho social e das formas da vida religiosa, Vilfredo Pareto com a sua acção não lógica e a expressão dos sentimentos, e finalmente M. Weber.

Sobre Augusto Comte devo confessar o meu grande interesse pelo seu sistema, mas também a minha perplexidade por desembocar numa metafísica insustentável.

A sua aventura com Clotilde de Vaux parece ter contribuído para um tal descalabro. Tal como Aron , presto homenagem a Comte pela sua contribuição para a sociologia, mas não o acompanho até ao fim do seu percurso.. Em contrapartida Max Weber é, ainda hoje, um sociólogo que, mau grado a sua preocupação de não sair do campo científico, deixou claramente pistas para passar ao campo mais geral da filosofia.

A Sociologia de Max Weber

Vamos tentar esquematizar o quadro sociológico de referência da obra de M. Weber, segundo uma proposta de R. Aron.

O primeiro tema a abordar será naturalmente a sua teoria da Ciência e, dentro desta, a sua tipologia da acção a qual podemos definir como ``toda a conduta humana , colectiva, individual ou inconsciente''.

A primeira é a ``acção racional relativa a um fim (zweckrational)'', bem diferente da segunda que é a ``acção racional relativa a um valor (wertrational)''.

Considera depois a ``acção afectiva ou emocional'' e finalmente a acção `` tradicional''.

Esta classificação é fundamental por se reflectir em toda a vasta problemática da perspectiva weberiana.

O traço característico do mundo contemporâneo é exactamente a racionalização, ou seja a propagação das acções ``zweckrational'', e isto tanto na economia como no Estado, criando-se o problema da sua compatibilização com outros tipos de acção.

A actividade científica é um misto de zweckrational ( o seu fim é a verdade) e de wertrational, nunca os atingindo visto que a ciência nunca está acabada, tendendo mesmo os cientistas a ignorar a wertrational.

A ciência busca a compreensão (Verstehen), mas tem também um carácter histórico e cultural.

A compreensão científica da Física baseia-se na matematização, a da Sociedade na inteligibilidade no sentido de Jaspers.

Compreender é poder explicar, o que envolve a capacidade de prever, não só linearmente mas também probabilísticamente.

Assim as obras humanas definem-se por referência a valores, mas temos de distinguir entre ``juízos de valor (werturteil)'' e ``relação com os valores (wertbeziehung)'' ; de facto o cidadão que luta pela liberdade persegue um werturteil, mas o sociólogo que estuda o seu comportamento tem uma wertbeziehung. Segundo MW o sociólogo não tem que manifestar apreço pela liberdade, e daqui o surgimento de dois métodos científicos.

O método das ciências da Natureza baseia-se na construção dum sistema ideal de relações, se possível matemático, usando um processo dedutivo, ao passo que o método das ciências da história ou da cultura se baseia na selecção de dados orientada por valores.

Com o segundo método o resultado é um conjunto de interpretações cada uma inseparável dos valores escolhidos, e por isso as ciências humanas ( como as da natureza) são animadas e orientadas por questões que os cientistas põem à realidade. Um exemplo deste método é a questão weberiana acerca da relação existente entre a concepção religiosa de cada um e a maneira como vive e se posiciona face à economia e ao Estado.

A ciência pode entender tal relação mas nenhuma norma científica poderá dizer aos homens como viver ( contra Durkheim), nem qual o futuro da humanidade (contra Marx).

Outra questão, esta filosófica, procura a razão por que os juízos de valor são subjectivos ou existenciais, logo necessariamente contraditórios.

A escolha subjectiva pode verificar-se racionalmente, valendo também aqui o recurso à intuição científica das ciências da natureza.

Chega-se assim a verificar que cada sociedade tem a sua cultura, ou seja um sistema de crenças e valores.

O segundo tema weberiano forte é o das relações entre as ciências históricas e as sociológicas.

Estas ciências são, como vimos, também ciências causais só que se exprimem em termos de probabilidade, podendo dizer -se , por exemplo, que há grande probabilidade dos processos de racionalidade e burocratização continuarem de modo inexorável com o desenvolvimento do actual capitalismo.

M.W. lança mão dos conceitos de `` indivíduo histórico'' como o capitalismo; de ``tipo ideal'' como os elemento abstractos da realidade histórica, por exemplo, a burocracia ou a dominação; e de reconstruções racionalizantes de comportamentos como as económicas.

Na dominação ele considera a racional, a tradicional e a carismática.

O terceiro tema weberiano que nos interessa é o das antinomias da condição humana.

A primeira antinomia é a que contrapõe os ``juízos de valor'' à ``relação com os valores'', que levanta a questão de saber se é de facto possível ao cientista social esquecer-se dos seus próprios valores.

Outra antinomia resulta da verificação de que os valores não são dados nem no sensível nem no transcendente: segundo M.W. são criados por decisões diferentes das que buscam a verdade.

Mas a antinomia fundamental da acção é a da ética da responsabilidade (verantwortungsethik) contraposta à ética da convicção (gesinnungsethik).

A ética da responsabilidade caracteriza-se pela escolha dos meios mais adaptados aos fins, é de carácter teleológico, e a ética da convicção leva a agir segundo os sentimentos sem referência às consequências.

Quanto aos fins que determinam a acção responsável, M.W. constata que eles são incompatíveis uns com os outros, que se contrapõem enfim, dizendo poeticamente que ``os deuses do Olimpo estão naturalmente em conflito'' situação que surgiu a partir da Renascença e sobre o qual falaremos mais tarde.

Na realidade a ética da responsabilidade e a ética da convicção são complementares, completam-se uma à outra sendo este equilíbrio que deverá ser preocupação do político.

A sociologia da Religião é o quarto tema fundamental da sociologia weberiana.

M.W. parte duma questão que o opõe imediatamente a Marx : em que medida as concepções religiosas influem no comportamento dos actores económicos?

O capitalismo define-se pela existência de empresas ( Betrieb) cujo fim é a maximização do lucro, e em que se juntam a organização racional do trabalho e da produção ao desejo do lucro.

A burocratização surge associada a um fim, o lucro, que não tem que ver com o capitalismo em si, sendo uma motivação do domínio da ascese religiosa como existe no calvinismo.

O capitalismo é sempre uma forma de dominação (Bandigung), embora a sua forma actual se baseie no trabalho ``livre''.

Mas essa liberdade do trabalhador foi conseguida com a separação entre o grupo familiar (Haushalt) e a empresa (Betrieb), em paralelo com o desenvolvimento do Comércio e dos títulos negociáveis (Bolsa) em ambiente especulativo, assim surgindo a Burguesia.

M.W. caracteriza a burocracia como a organização permanente de cooperação entre indivíduos com funções especializadas, na base de regras de comportamento, de comando e de comunicação, desligados da sua família e ignorando a sua personalidade, e com remuneração fixada por regras.

Ele afirma que uma tal impessoalidade é essencial na natureza da burocracia.

O desenvolvimento do capitalismo contemporâneo tornou-se possível porque o cálculo económico foi facilitado com os computadores, e a comunicação se tornou mundial. Assim a racionalização burocrática não pode deixar de continuar a progredir.

Os puritanos queriam ser homens sempre atarefados... e o seu sonho tornou-se infelizmente uma realidade dos nossos dias.

De facto a ética calvinista era muito austera, excluía mesmo o misticismo e todas as formas de idolatria.

A consequência de todo este austero processo foi o surgimento dum ``desencantamento'' (entzauberung) do mundo que prossegue nos nossos dias.

O individualismo que então se propagou é uma das características do capitalismo contemporâneo, conducente a injustiças sociais que todos conhecemos.

M.W. associa deste modo a influência que tem a concepção do mundo dos actores sociais sobre o sistema económico escolhido.

De facto as concepções religiosas determinam os interesses dos indivíduos e são estes que os movem à acção. Naturalmente que esta explicação da adopção dum sistema económico devido a um determinado sistema de crenças é apenas uma possibilidade (causalidade probabilística).

Mas o facto é que a produção indefinidamente crescente, com o aumento do lucro e re- investimento, sugere uma forte ligação a uma ética de austeridade, de trabalho e de poupança.

O mundo em que o capitalismo vive é feito de matéria ou de seres destinados a serem transformados ou consumidos, e já não são portadores dos encantos do carisma.

A religião num mundo material e desencantado não pode deixar de se retirar para a intimidade da pessoa ou evadir-se para além dum Deus transcendente. O profetismo que surge em tal situação, com a quebra da ligação entre o carisma e as coisas, estabelece uma oposição fundamental entre este mundo e o outro.

As duas saídas possíveis são o misticismo ou o ascetismo, optando por este último o calvinismo que pratica a ascese no meio do mundo.

O profetismo abre caminho à autonomia crescente de cada actividade e levanta a contradição entre os valores religiosos e os valores políticos, económicos e científicos. Por isso M.W. diz que os deuses do Olimpo estão em conflito permanente e propõe uma filosofia dos valores que descreve como o quadro axiológico evolui historicamente. Mas a contradição dos valores já existia na antiguidade, basta recordar como Apolo e Dionisos se opunham tão vivamente, e não foi criada pela modernidade.

A novidade da ciência positiva, experimental e matematizante consistiu em expulsar progressivamente o segredo do mundo, deixando-nos um cosmos utilizável mas vazio de sentido. O postulado ético segundo o qual o mundo é um cosmos ordenado por Deus, possuindo por isso um certo sentido no plano moral, foi contestado, surgindo uma contradição entre saber positivo, demonstrável mas sempre incompleto e saber religioso que se não demonstra mas responde às questões essenciais.

O quinto tema fundamental das reflexões weberianas é sobre a economia e a sociedade.

Para estudar as características do agir económico, há que estudar a sociologia que é a ciência da acção social.

Uma acção social é um comportamento humano ( Verhalten), uma atitude interior ou exterior, orientada para a acção ou abstenção , com sentido.

A acção social organiza-se em relação social (soziale Beziehung), e a ordem legítima surge na sequência da relação regular.

A ordem legítima é convencional quando a sanção que visa a sua violação é uma reprovação colectiva; é jurídica quando há coacção física.

Há quatro tipos de ordem legítima, a afectiva ou emocional, a racional por referência a valores, a religiosa e a determinada pelo interesse.

Mas a sociedade é sempre palco do combate (Kampf), exibindo sempre lutas e acordos.

O processo de integração na sociedade (Geselshaft) surge a partir da motivação das acções sociais pelo interesse, de integração na Comunidade ( Gemeinshaft) na motivação afectiva ou tradicional.

Na empresa (Betrieb) a acção contínua dos actores sociais é motivada pela racionalidade com vista a um fim.

Nesta surge a questão da hierarquia. O Poder ( Macht) é a probabilidade de um actor impor a outro a sua vontade, mesmo contra a resistência deste, enquanto na Dominação ( Herrshaft) existe sempre um Senhor ( Herr) que tem a probabilidade de obter obediência daqueles que, em teoria, lha devem.

No Poder o comando não é necessariamente legítimo nem a submissão um dever; na Dominação a obediência assenta no reconhecimento das ordens dadas.

A acção económica é aquela que, segundo a sua significação, se refere à satisfação de desejos de prestação de utilidade ( Nutzleistung, nutz=utilidade, leisten=produzir).

Agir económico, Wirtshaften, designa a experiência pacífica duma capacidade de disposição economicamente orientada.

Daqui se pode facilmente chegar à distinção entre Ordem Política e Ordem Económica: a economia refere-se à satisfação das necessidades como fim que a determina; a política refere-se à dominação exercida por um/ alguns homens sobre outro/outros homens.

Esta dominação pode ser de três tipos: racional, tradicional, carismática.

A dominação racional assenta na crença da legalidade das prescrições; a tradicional no carácter sagrado das tradições antigas e na legitimidade dos chamados a mandar; a carismática justifica-se pelo carácter sagrado ou força heróica duma pessoa e pela ordem que ela revela.

Podemos resumir dizendo que a razão, a emoção e o sentimento explicam que a acção seja racional, afectiva ou tradicional, e que a dominação seja racional, carismática ou tradicional.

A acção racional com vista a um fim é o tipo ideal da acção económica ou política ( sem a wertrational).

Há muitas ordens económicas e políticas, mas o nosso mundo de hoje é racionalizado pela ciência, pela administração e pela gestão rigorosa dos empreendimentos económicos. Porém continua a luta de classes, entre as nações e entre os deuses (valores), verificando-se particularmente que a racionalização capitalista não garante o triunfo da democracia.

O pensamento weberiano é como vemos riquíssimo e de grande actualidade como refere Marcuse, e pouco conhecido, embora as suas propostas fundamentais tenham sido utilizadas por Talcott Parsons na Teoria dos Sistemas Sociais.

O conceito de burocracia de M.W. revelou-se de maior consistência e de maior utilidade do que o conceito marxiano de luta de classes.

A Sociedade Rede

Ao reflectir sobre a nova sociedade emergente, a sociedade rede, a primeira questão que se levanta é se a Internet ( a rede global) é uma fonte de comunidade renovada ou se , pelo contrário, constitui uma causa de alienação e escape do mundo real - mas acaba por não ser nem uma coisa nem outra como refere Castells.

A interacção social em rede, em geral, não tem efeito directo sobre a configuração da vida quotidiana, para além de acrescentar a interacção `` on line'' às relações sociais previamente existentes. De resto verifica-se um princípio geral de complementaridade entre os vários meios, por exemplo entre o computador e o telefone, ou a Internet e os Media, ou entre a Radiodifusão e a Imprensa.

Há no entanto uma substituição dos ``lugares'' físicos pelas redes como sustentação da sociabilidade.

Na linha do pensamento sistémico podemos dizer que as comunidades são redes de laços interpessoais que proporcionam sociabilidade, apoio, informação, um sentimento de pertença e uma identidade social.

Na nossa sociedade há, como sabemos, uma tendência dominante na evolução das relações sociais para o individualismo.

As relações primárias concretizadas na família, as secundárias proporcionadas pelas associações e as terciárias (características da comunidade) tornam-se personalizadas, incarnadas em redes centradas no Eu, surgindo portanto ``um individualismo em rede''.

O indivíduo ( que era um valor do capitalismo norte-americano) constrói hoje as suas redes ``on line'' e `` of line'' na base dos seus interesses, valores, afinidades e projectos. Este reforço do individualismo pelas redes vai causar certamente problemas à sociedade que não estão suficientemente avaliados.

A prática política que deve gerar a mudança social e o conflito é também afectada pelas redes. Surge uma ``Noopolitik'' a substituir a ``Realpolitik'' porque a estratégia política passa a basear-se na manipulação da informação, diferente dos antigos equilíbrios nacionais de poder.

E nas redes surgem movimentos emocionais ( Internet) mais importantes politicamente do que as antigas ONG, tão globalizadas como ela como, por exemplo, a luta pelos direitos humanos, os movimentos feministas, os ecologistas, sindicais, pacifistas...

A mudança social hoje provoca conflitos devido à transformação das categorias da existência pela utilização de redes interactivas como forma de organização e mobilização. Um exemplo interessante é o das ``redes de cidadãos'' surgidas de movimentos de base pre- Internet em busca de novas oportunidades de agitar as consciências, ``häkers'' políticos ou governos municipais.

Nestas redes cidadãs há uma tensão entre centrar-se na vida local ou aceder à rede global. Os activistas sociais fomentam a participação do cidadão na construção da democracia local, e paralelamente as agências de serviços sociais proporcionam acesso, formação e ajuda para a educação e o emprego.

O exemplo mais interessante duma rede cidadã é o de Amsterdam, a DDS ( De Digital Stadt), que estava organizado em habitações, praças, cafés, quiosques digitais, um centro digital de arte e cultura.

Logo porém surgiu um conflito fundamental resultante da contradição entre comunidade democrática e estrutura burocrática com controle hierárquico. E o sonho duma comunidade electrónica livre reduziu-se a uma empresa ``pontocom'' em crise.

A TV, a Rádio e a Imprensa continuam a ser meios preferidos, visto que se adeqúam melhor ao modelo de comunicação ``um para muitos'', que continua a ser a base da política de hoje. A Internet não poderá apagar por meio duma nova tecnologia, o profundo desencanto político que sente a maioria dos cidadãos do mundo, dado que a crise da legitimidade política resulta da frustração destes relativamente aos seus representantes. Ou seja , a Internet não pode proporcionar uma solução tecnológica à democracia.

E até os usos da Internet tendem antes a aprofundar a crise de legitimidade, visto que proporcionam uma plataforma às actividades de rumores e escândalos.

Os criadores da Internet pensavam sinceramente estar a proporcionar à sociedade um instrumento eficaz de sociabilidade e promoção pessoal, mas nunca puderam prever que um tal sistema se transformasse num campo de batalha entre poderosos interesses , muitos deles ilegítimos.

Mas as NTIC permitem também o aparecimento dum novo tipo de guerra no terreno real, em que a táctica de ``sworming'' substituiu as tácticas tradicionais - substituindo-as por ataques concentrados e ágeis como os dos enxames de abelhas.

De facto instalou-se a designada guerra cibernética no quadro da já referida ``noopolitik'', sendo uma das suas características a de abandonar e estrutura convencional das FA baseada em corpos, divisões, regimentos e batalhões, bem como a divisão funcional em infantaria, blindados, comunicações, artilharia , engenharia.

Passa a haver unidades móveis multifuncionais dependentes da sua conexão em rede para obter apoio mútuo.

Com um sistema de comunicações totalmente integrado as FA transformam-se numa ``organização sensorial '', com as unidades ligadas em rede. O sistema C4ISR permite um ``top sight'', uma visão geral de todo o conjunto de meios.

Do ponto de vista político, a Internet suscita um grave conflito entre a privacidade e a liberdade dos cidadãos no ciberespaço.

Embora o cidadão possa tentar defender-se usando por exemplo ``senhas'', na realidade não se pode considerar em segurança contra os ataques dos ``hackers''. E mesmo o próprio sistema cria anti-corpos poderosos, os virus e vermes (crackers) que demonstram a impotência das formas tradicionais de controle policial pelo Estado.

Todavia somos, na Internet, vigiados por um Poder que já não é o Grande Irmão mas antes uma multidão de ``Pequenas Irmãs'', agências de informação que registam o nosso comportamento.

Nos alvores do Sec.XXI dá-se então uma inquietante combinação no ciberespaço da ideologia libertária muito expandida, com um grau de controlo cada vez maior, e não só na Internet como na comunicação em geral, porque de facto em todos os Media existe um controlo, embora de diferentes formas sendo o do poder económico talvez o mais constringente.

Todavia a história tem-nos mostrado que o principal bastião contra a tirania tem sido a democracia institucional e não a ideologia libertária, como lembra Castells.

Neste quadro a actuação cidadã com base na responsabilidade social dos utentes é a saída que, por enquanto, se afigura viável

A perspectiva de Wolton é porém um pouco mais optimista, dado que considera que comunicação está no coração da modernidade, no centro da história económica, social e cultural e é esta que dá sentido à história técnica e não o inverso.

A evolução dá-se segundo o consenso de industriais, jornalistas e políticos, sendo certo que o elemento determinante é o modelo cultural e social que se persegue.

Há uma dualidade fundamental na comunicação dos nossos dias, que é a da existência duma comunicação com sentido normativo( da ordem do ideal) e de outra com carácter funcional ( da ordem da necessidade).

Os actuais Media completam-se, os de massa convencionais, e os interactivos que reforçam o individualismo.

Os Media generalistas obrigam a uma reflexão mais complexa, mas no conjunto há que procurar harmonizar as duas dimensões contraditórias de liberdade e igualdade, que tem que ver com o equilíbrio fundamental entre as componentes normativa e funcional.

Neste amplo quadro há uma questão nevrálgica que é a do SPRTV ( Serviço Público de Rádio e TV) na Europa, que se justifica não por razões técnicas ou económicas, mas sim pelo modelo socio-cultural adoptado pela sociedade - reforçando a componente normativa da comunicação. Wolton apela ao retorno aos valores que, a partir da Renascença, os ocidentais parecem querer ignorar ( os deuses estão em guerra...como diz M.Weber)

Weber e as Redes

A perspectiva weberiana ajuda a compreender as análises de Wolton e Castells da Sociedade da Informação ou Sociedade Rede.

Por exemplo o conflito referido por estes autores entre os valores da liberdade e da igualdade faz parte do conflito dos deuses do Olimpo de M.Weber, criado pelo desencantamento do Mundo.

Se Castells apela a uma ética da responsabilidade, Wolton apela claramente a uma ética de convicção que, segundo M.W., são apelos complementares devendo harmonizar-se na sociedade da comunicação do século XXI.

As quatro ordens de legitimação weberianas, a ``zweckrational'' contemplando os fins, as afectiva e religiosa, contemplando valores, wertrational, e as determinadas por interesses, são evidentes na comunicação dos nossos dias, quer na comunicação normativa (que remete para os valores) quer na funcional (que remete para os interesses).

A progressiva burocratizarão da sociedade prevista por M. Weber (causada pela inexorável evolução do capitalismo contemporâneo) acentua os procedimentos ``zweckrational'', e pode levar a que a comunicação funcional (Wolton) enfraqueça a comunicação normativa. (valores).

Então a economia (o capitalismo) pode dominar as pessoas e faz todo o sentido o apelo de Wolton ao reforço da componente normativa - o que é incompatível com os interesses do mercado.

Se Weber exprime as suas apreensões sobre um possível domínio imoral do sistema económico ( e da comunicação que lhe corresponde) sobre o cidadão, ele não faz mais do que exprimir as preocupações que os sociólogos e até os pre- sociólogos sempre exprimiram.

Particularmente oportunas são as reflexões pre-monitórias de Tocqueville na ``Democracia na América'', de que recordamos uma passagem que é frequentemente invocada, onde se refere a possibilidade dum despotismo democrático:

`` Vejo uma inumerável multidão de homens semelhantes e iguais que rodam sem descanso sobre si próprios para obterem prazeres pequenos e vulgares com que enchem a sua alma. Cada um deles, retirado no seu canto e como alheio ao destino de todos os outros; os seus filhos e os seus amigos particulares constituem para si toda a espécie humana; quanto aos restantes seus concidadãos, está ao lado deles, mas não os vê; toca-os e não os sente; só existe em si e para si só, e , se tem ainda uma família (?), podemos pelo menos dizer que já não tem Pátria.

Acima destes homens ergue-se um poder imenso e tentacular que se encarrega sozinho de lhes garantir a existência e de zelar pela sua sorte; é absoluto, minuciosos, previdente e brando. Parecer-se-ia com o poder paternal se, como ele, tivesse por fim preparar os homens para a idade viril; mas só procura, pelo contrário, fixá-los irrevogavelmente na infância; gosta que os cidadãos se divirtam contanto que só pensem em divertir-se; trabalha de bom grado para a felicidade deles, mas quer ser o único agente e o único árbitro dessa felicidade; vela pela sua segurança, prevê e garante as suas necessidades, facilita os seus prazeres, dirige os seus assuntos principais, governa a sua indústria, regulamenta as suas sucessões, divide as suas heranças; só lhe falta poder arrancar-lhe inteiramente a perturbação do pensamento e a dor da vida !''

Todo este ameaçador desígnio é realizado pelos conteúdos das redes de comunicação dos nossos dias, comandadas pela nefasta aliança entre os actuais poder político e económico, que manifestamente tentam destruir os valores fundamentais da pessoa humana ( do cidadão, na perspectiva de Tocqueville).

Perante um tal panorama Max Weber mantém-se silencioso, não toma posição segundo o critério que adoptou e que designa por ``científico'', portanto mantendo apenas uma relação com os valores (wertbeziheung) e não se envolvendo com eles, não emitindo juízos de valor (werturteil).

Hoje , porém, os sociólogos estão inquietos, particularmente os da Comunicação.

Com a mudança do estado Social para o Neo- liberalismo perfilam-se ameaças que só a Ética pode afastar mediante a responsabilização dos actores conscientes dos domínios da economia, da comunicação e da sociedade ( o triângulo de Wolton)

Considerações finais

O contributo de Max Weber para sociologia dos nossos dias é relevante. Para além da Teoria da Sociedade que revimos em capítulos anteriores, ele deixou-nos também uma teoria das organizações do maior interesse que não desenvolvemos por sair do âmbito deste trabalho. Ela desenvolveu-se em torno de dez pontos chave: o carácter legal das normas; o carácter formal dos canais de comunicação; a divisão do trabalho; a impessoalidade nas relações; a hierarquização da autoridade; as rotinas e procedimentos; a competência técnica e o mérito; a especialização da administração; a profissionalização; a previsibilidade de funcionamento.

Cada um destes dez pontos comporta, porém, riscos e disfunções que não foram previstos por M.W. como, por exemplo, o excesso de formalismo e de papelada, a resistência à mudança, a superconformidade com as rotinas ou a exibição de autoridade.

A pesar de tudo a teoria burocrática das organizações representa um avanço quer em relação à teoria clássica como em relação à das relações humanas.

Max Weber também não poderia ter-se apercebido da dependência essencial do capitalismo contemporâneo das suas redes de comunicação, mas compreendeu bastante bem a sua natureza burocrática. As teorias da acção e da dominação weberianas permitem também entender melhor os processos da comunicação contemporânea, ao passo que as relações tensas da economia com a política são por ele bem apreendidas.

Essa tensão entre economia e política é exacerbada pela actual dinâmica do modelo comercial da comunicação e, por isso mesmo, faz sentido falar nos valores de liberdade e igualdade quando há uma injustiça fundamental a reger os usos actuais da comunicação na sociedade.

Torna-se imperioso recorrer aos valores éticos para recuperar o respeito pela pessoa humana, começando pelos seus direitos como cidadão, mas o conflito ``entre os deuses do Olimpo'' tem de ser superado referindo-os aos transcendentais

Entre esses direitos, alguns dos mais importantes são o direito a ser respeitado pelos outros, o da liberdade de expressão, e também o do acesso dos cidadãos a uma boa comunicação política, que não têm sido respeitados pela comunicação de natureza comercial.

A perspectiva ética de Max Weber, com a dimensão de responsabilidade (verantwortungsethik) perante a sociedade, tem assim uma surpreendente actualidade quando aplicada aos operadores comerciais da comunicação dos nossos dias.

Bibliografia

Etapas do Pensamento Filosófico, por Raymond Aron, Ed. Dom Quixote, Lisboa , 2000.

Teorias Sociológicas ( Antologia de textos), por M. Braga da Cruz, Ed. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2001.

Les morales selon Max Weber, por Michel Istas,Les Éditions du Cerf, Paris, 1986.

L'Internet et Aprés ? por D. Wolton, Ed. Flammarion, Paris, 1999.

La Galaxia Internet, por Manuel Castells, Ed.Areté, Barcelona, 2001.



Notas de rodapé

... Silva1
Professor Cated. Jub., DCC/UNL, Investigador CECL