"Nada de novo debaixo do sol"
Dimensões do político em Mouffe, Clastres e Schmitt

José Manuel Silva

Setembro de 1998



 

"O nosso entendimento de uma democracia radical postula a impossibilidade de uma realização final da democracia. Afirma que a tensão irresolúvel entre os princípios da igualdade e da liberdade é a verdadeira condição para a preservação da indeterminação e da indecidibilidade que são os elementos constitutivos da democracia moderna. Isso constitui, mais ainda, a garantia principal contra qualquer tentativa de realizar um ëfechamento finalí (final closure); pois isso resultaria na eliminação do político e numa negação da democracia".

Chantal Mouffe, Dimensions of Radical Democracy


 

 Chantal Mouffe está preocupada com a elisão do político num certo discurso da modernidade que apelida de "racionalista e individualista liberal". A autora vê no eclodir dos novos particularismos étnicos, religiosos, e nos nacionalismos, a emergência de novos antagonismos que vêm arrasar, por completo, com a imagem liberal delicodoce que, após a queda do muro de Berlim, se vinha a instalar subrepticiamente na figuração colectiva do político, afirmando o triunfo da razão iluminista.

 Esta proclamada vitória da razão iluminista, concepção directamente legada pelas utopias que alimentaram todo o século XVIII, encontraria a sua confirmação in re na constatação de que se teria chegado, finalmente, ao fim da História, e no fim da história não mais haveria necessidade nem lugar para a figura incómoda do político1.

 Este temor do político, e o consequente apagamento silencioso de que é alvo, prende-se precisamente com o facto de tal figura evocar as grandes massas anónimas e o espectro da irracionalidade daí emergente ó a turba ululante de que falava Sócrates ó num mundo que se quer limpo e polido de tais obscurantismos.

 É esta cegueira, por excesso de luz, que Mouffe contesta, admitindo que a impossibilidade de se sentir, valorizar e fornecer enquadramento teórico ao pulsar das contradições que constituem, precisamente, o cerne do político, poderá pôr em risco a própria democracia. "Porque na realidade é o político, e a possibilidade da sua eliminação, que está aqui em jogo. E é a incapacidade do pensamento liberal para compreender a sua natureza e o carácter irredutível do antagonismo que explicam a impotência da maioria dos teorizadores políticos na situação actual ó uma impotência que, numa época de profundas mudanças poderá ter consequências devastadoras para a política democrática" (Chantal Mouffe: 1992; 12).

 A tarefa que Chantal Mouffe se impõe é então salvar a democracia a todo o custo, e para tal assume a missão de romper em absoluto com uma concepção de pensamento democrático enraízada numa visão "racionalista", "universalista" e "individualista" tão cara aos liberais. Esta concepção para a autora, não nos dá mais que uma ideia ilusória de que se pode dispensar a noção de antagonismo, ideia essa imprescindível aos fundamentos de uma Democracia Radical e Plural que Mouffe pretende erigir.

 Se o pensamento liberal é incapaz de compreender a natureza e o carácter irredutível do antagonismo presente em toda e qualquer relação humana ó daí a sua pretensão de eliminar, pura e simplesmente, o político, como manifestação irracional das massas -, para Chantal Mouffe é um dado adquirido a necessidade do político e a impossibilidade de um mundo sem antagonismos e conflitos. Só aqui, no coração das contradições, a realidade assume, verdadeiramente, a sua dimensão política.

 Para esta tarefa de reabilitar a figura do político, Mouffe socorre-se da obra de Carl Schmitt, que veio chamar a atenção de um aspecto que, por ser incompreensível para uma visão liberal, foi relegado, durante longos anos, para um plano patológico ou irracional. Em análise vai estar a dimensão política, onde assume papel central a relação Amigo-Inimigo. Schmitt, através de finíssimas distinções, prova como tal relação Amigo-Inimigo é essencial ao homem, não havendo forma de mascarar que a esta, de uma forma inequívoca, está arreigada a existência de um irredutível elemento de hostilidade entre os seres humanos.

 Muito clara é a forma como Mouffe, ao longo da obra, irá utilizar os conceitos do filósofo alemão para tentar desmontar a estrutura do pensamento daquele que é um dos mais ferozes inimigos da democracia liberal. "O meu objectivo é pensar com Schmitt, contra Schmitt, e utilizar os seus pontos de vista para fortalecer a democracia liberal contra os seus críticos" (Chantal Mouffe: 1992, 12).

 Muito menos claro, porém, é dizer se o consegue; e de facto, o que este trabalho tentará provar é que essa tentativa de desconstrução falhou, e falhou porque assenta fundamentalmente numa "tresleitura" do filósofo alemão; isto é, num trabalho que parasita o que há a parasitar para o seu próprio momento construtivo, e que ignora olimpicamente tudo o que em Schmitt ó e é muito ó não se adapta ou poderia romper com as categorias impostas pela teoria.

 Para Carl Schmitt a democracia é o princípio segundo o qual os iguais devem ser tratados de um modo igual, o que significa muito simplesmente que os desiguais não podem ser tratados como iguais. Daí decorre que o liberalismo nega a democracia, e esta por sua vez irá negar o liberalismo. Há pois, segundo Schmitt, uma inevitável contradição entre os dois termos.

 Mouffe não irá aceitar esta contradição, já que, na sua perspectiva, ela "resulta apenas da incapacidade de Schmitt para compreender a especificidade da democracia moderna, entre os seus dois princípios constitutivos de liberdade e igualdade". Esta não conciliação é vista, aliás, como "o valor principal da democracia liberal. É este aspecto de não realização, incompletude e abertura que tornam este regime adequado à política da democracia moderna" (Chantal Mouffe: 1992; 148).

 Para Schmitt todo o individualismo coerente tem de negar o político pois é incapaz de compreender a formação de identidades colectivas e não consegue apreender o aspecto colectivo da vida social como constitutivo. Mas o político diz respeito às relações entre Amigo-Inimigo, relaciona-se com a criação de um Nós oposto a um Eles. Aqui estamos perante um reino de decisão, e não já num reino de livre discussão. A sua matéria é, pois, o conflito e o antagonismo.

 A tentativa do liberalismo aniquilar o político está condenada ao fracasso, já que o político nunca será erradicado ou domesticado. Este fracasso do liberalismo parte de uma crença ilusória que o persegue quando se depara com o fenómeno político, e que lhe sussurra que o interesse geral é produto do livre jogo dos interesses privados e que é possível alcançar um consenso universal racional com base na livre discussão. Só que o político, como Schmitt refere, pode retirar energia dos mais variados esforços humanos: ëTodas as antíteses religiosas, morais, económicas, éticas ou outras se transformam em antítese política se for suficientemente forte para agrupar eficazmente os seres humanos em amigos e inimigosí" (Chantal Mouffe: 1992; 149).

 Mouffe, seguindo as ideias de Schmitt, só vê uma possibilidade de superação deste paradoxo no seio da democracia moderna: a criação de um verdadeiro pluralismo democrático. A tensão entre a lógica da identidade (democracia) e a lógica da diferença (liberalismo) é que vai definir a essência da democracia pluralista. Aquilo que é considerado insolúvel para Schmitt é para Mouffe a base para uma forma de Governo adequado ao carácter indeterminado da política moderna. O desejo de dissolver esta tensão acarretaria a eliminação do político e a destruição da democracia.

 Para prosseguir nesse horizonte de investigação que é a tensão democrática pluralista, Mouffe irá basear os seu estudo na distinção entre Inimigo e Adversário2 . Tal trabalho, "exige que, no contexto da comunidade política, o opositor seja considerado, não um inimigo a destruir, mas um adversário cuja existência é legítima e tem de ser tolerada" (Chantal Mouffe: 1992; 15).

 Ora o que parece suceder aqui é que, como num passe de mágica, Mouffe faz surgir das brumas uma terceira figura - o adversário - para afugentar o temor daqueles que se impressionam quando ouvem a palavra inimigo. Mas o papel de mediador que é destinado ao adversário soa a falso desde o princípio. Para poder escapar à inalienável relação amigo-inimigo de Carl Schmitt, onde não há espaço para a tolerância nem sequer fuga possível, Mouffe socorre-se do adversário, mas este não é mais, a meu ver, que uma personagem de "opereta" que representa muito mal a farsa do pluralismo.

 O pequeno trecho mouffiano que, à primeira vista, parece ser algo de insuspeito pelo consenso que poderá produzir, traz, entretanto, problemas irresolúveis para a teoria, sobretudo quando colocado em confronto com o pensamento de Carl Schmitt, donde se poderá dizer que é uma emanação edulcorada, que ao contrário das pretensões de Mouffe, tem muito pouco de radical e tenta, isso sim, eliminar o radicalismo do seu mentor.

 Numa primeira aproximação ao momento construtivo de O regresso do político, pode inferir-se que quando Mouffe fala de "contexto da comunidade política" estará com este conceito a abranger toda a Humanidade. Se assim for, e nada na obra permite ser conclusivo a este respeito, é importante colocá-la em confronto com as palavras de Schmitt, que afirma, sem rebuços, que "le concept díhumanité est um instrument ideológique particulièrement utile aux expansions impérialistes, et sous sa forme éthique et humanitaire, il est un véhicule spécifique de líimperialisme économique" (Carl Schmitt: 1992; 96). À luz desta ideia, não deixa de ser surpreendente imaginar a democrata ëradicalí Mouffe com as vestes imperialistas do sistema ideológico da economia expansionista ocidental.

 Schmitt chega mesmo a garantir que o termo "Humanidade" encerra em si mesmo a pretensão de recusar ao Inimigo a sua qualidade de ser humano, e consequentemente "... partant à pousser la guerre jusquíaux limits extrêmes de líinhumain. Mais hormis cette possibilité díexploitation hautement politique du nom de líhumanité, non politique, en soi, il níexiste pas de guerres de líhumanité en tant que telle. Líhumanité níest pas un concept politique, aussi níexiste-t-il nulle unité ou communauté politique, nul status qui lui corresponde" (Carl Schmitt: 1992; 97).

 Ora é utilizando precisamente esta ficção ideológica que dá pelo nome de Humanidade, que os expansionistas ocidentais poderiam declarar guerra a todos os povos que quisessem submeter às suas ordens, apenas com o pretexto que do outro lado da barricada não se encontravam humanos. Adepto das unidades políticas que são os Estados, Schmitt não vê neles qualquer correspondência com a Humanidade, termo vazio de qualquer conteúdo político, e onde não há lugar para o aparecimento da relação amigo-inimigo.

 Numa segunda ordem de razões, a constituição desta democracia radical que abrangesse todos os Estados cairia, caso Schmitt se debruçasse sobre o texto mouffiano, numa nova falácia: "Le monde politique níest pas un universum mais, si líont peut dire, un pluriversum" ( Carl Schmitt: 1992; 95). A consequência imediata seria a morte do político, veiculada pela morte de toda a oposição e antagonismo, pelo desmembramento da possibilidade de existência da relação Amigo-Inimigo.

 Assim, uma democracia radical não pode simplesmente envolver toda a humanidade porque no dia em que os povos, as religiões, as classes e outros grupos humanos sobre a Terra se unissem, ao ponto de ser impossível e inconcebível qualquer luta entre eles "où donc même la simple éventualité díune discrimination ami-ennemi aura disparu, il níy aura plus que des faits sociaux purs de toute politique: idéologie, culture, civilisation, économie, morale, droit, arts, divertissements, etc., mais il níy aura plus ni politique ni État" (Carl Schmitt: 1992; 95-96).

 O professor de direito confessa a sua ignorância se a Terra conhecerá alguma vez o desaparecimento da política e dos Estados, o que pode dizer é que nunca existiram condições para tal na história do homem.

 Retomando, pois, a análise no trecho de Chantal Mouffe, se esta não se estiver a referir à Humanidade inteira quando fala de "contexto da comunidade política"3 , mas sim a uma espécie de recinto confinado a uma peleja entre correligionários e adversários, a suposição acarreta também uma série de questões a que autora não consegue responder convenientemente.

 O inimigo, neste recinto confinado, será simplesmente relegado para uma posição fora de barreiras, por auto-exclusão, já que não aceita as regras do jogo democrático. Ora isto coloca problemas graves. Schmitt, com a categoria de inimigo, sabe muito bem o que lhe fazer: tratá-lo ferozmente como inimigo. Mas não é nada claro ver para onde aponta a aposta de Mouffe: será que erradica, simplesmente, a questão, acreditando que nenhum ser vivente pode auto-excluir-se dessa tensa disputa que apregoa? Disputa, aliás, que desembocará no campo da racionalidade. Mesmo que diga não ao racionalismo, Mouffe será vista como racionalista, nem que seja a última representante do género.

 Se é isto que defende, a posição parece de uma ingenuidade e fragilidade inimagináveis: no limite, é sempre preciso imaginar que enquanto alguém debita o discurso racional da procura de uma solução argumentativa para o confronto com o adversário, este pode, pura e simplesmente, agarrar num tijolo ou numa arma. Esta tentativa de imposição universal das categorias do jogo racionalista parece muito mais um mito herdado das luzes do que uma posição consentânea com alguém que afirma querer salvar o político no seu jogo perene de tensões e contradições, e depois só aceita a hipótese de tensões domesticadas.

 Caso, porém, o inimigo persista, mas necessariamente fora do palco de confronto que é habitado pelo adversário, o que fazer com o ele, tratá-lo como alienígena? Como agir em caso de ataque destes seres? Será que a comunidade política proposta por Mouffe se transformará, muito rapidamente, em terreno fértil para o cinismo?

 A tarefa que Chantal Mouffe se propõe levar a cabo é, como se viu, conciliar a necessidade do político e a impossibilidade de um mundo sem antagonismos, com a criação e a manutenção de uma ordem democrática que tem de assumir, inevitavelmente, uma forma pluralista. Daí a importância da distinção de Inimigo e Adversário, pois só dessa forma se pode vislumbar o opositor, cuja existência dever ser preservada, pois é ela que devolve a minha própria identidade legitimada e protegida.

 "É por isso que este pluralismo deve igualmente distinguir-se da posição pós-moderna de fragmentação social, que se recusa a conceder aos fragmentos qualquer tipo de identidade relacional. A perspectiva que tenho mantido consistentemente rejeita qualquer género de essencialismo ó quer do todo, quer dos seus elementos ó e afirma que nem o todo nem os fragmentos possuem qualquer tipo de identidade fixa, anterior à sua forma de articulação contingente e pragmática" (Chantal Mouffe: 1992; 19).

 É nesta certeza, anti-essencialista, de que todas as identidades são relacionais, que Mouffe salienta que a existência de qualquer indivíduo "é a afirmação de uma diferença, determinação de um ëoutroí que desempenhará o papel de ëelemento externo constitutivoí", tornando-se, assim, possível compreender "a forma como surgem os antagonismos" e o modo como se pode relacionar com os adversários: "Lutaremos contra as suas ideias mas não poremos em causa o seu direito a defendê-las" (Chantal Mouffe: 1992; 15).

 Se poderemos aceitar que para Mouffe o inimigo não desaparece, é certo também que essa categoria se desloca para fora do jogo de linguagem que os actores sociais jogam. O mesmo é dizer que aqueles que não aceitam as regras instituídas antes do início do desafio excluem-se a si próprios na ante-câmara da comunidade política. Sendo assim, conviria obter uma resposta cabal acerca da comunidade que Mouffe pretende atingir.

 A autora, ela própria, sente essa fragilidade ao afirmar em que consiste tal unidade: "Assim, embora, a política vise construir uma comunidade política e uma unidade, nunca será possível concretizar uma comunidade política absoluta nem uma unidade definitiva, porque existirá sempre e permanentemente um ëelemento externo constitutivoí algo exterior à comunidade que torna possível a sua existência" (Chantal Mouffe: 1992; 95). E mais que possibilidade de existência, esse elemento exterior potencia a sua destruição, diria Carl Schmitt. Ou seja, Mouffe tem plena consciência da precariedade da sua comunidade política, uma vez que a força que a aglutina é também ela o elemento destruidor ó o conflito.

 A defesa intransigente do pluralismo tem a plena consciência de que na democracia radical habita um paradoxo incontornável. "O próprio momento da sua realização seria também o início da sua desintegração. Deve ser concebida como um bem que só existe como bem enquanto não pode ser alcançado. (...) Uma tal democracia será sempre uma democracia futura, uma vez que o conflito e o antagonismo são simultaneamente, condição de possibilidade e condição de impossibilidade da sua total realização" (Chantal Mouffe: 1992; 19).

 Os antagonismos, já que não podem suprimidos, devem ter uma espécie de válvula de escape, para que possam ser diluídos no seio do jogo democrático. Para isso deve-se-lhes dar uma saída política dentro do sistema democrático pluralista. A noção de uma cidadania democrática radical assume aqui todo o seu vigor, pois para Mouffe irá facultar uma forma de identificação que permita o estabelecimento de uma identidade política comum entre várias lutas democráticas. Mas, nesta tentativa de recuperar a cidadania é importante não querer implantar uma concepção neutral de cidadania aplicável a todos os membros da comunidade política, ou seja a igualdade não pode interferir com a liberdade individual.

 A aplicação a todos os membros da comunidade de uma determinada ordem é, aliás, a crítica que Mouffe faz aos comunitaristas, como Alasdair MacIntyre, que rejeita o pluralismo pois é, segundo a autora, contrário a uma defesa de uma ideia substantiva de "bem comum", que não deixa de ser outra forma de escapar aos alicerces do antagonismo.

 Daí a importância do papel do adversário para o desenvolvimento da tese apresentada por Chantal Mouffe. O inimigo é algo que se auto-exclui das relações de força que acontecem no interior da comunidade política, tornando-se assim como que uma espécie alienígena que cai fora dos quadros mentais da comunidade. Apesar de ser, em primeira instância, o factor aglutinador dessa unidade, o inimigo é visto como se de coisa inumana se tratasse. Já o adversário é um outro, que partilha dos mesmos jogos de linguagem da comunidade, e que vai permitir, afinal, o reconhecimento da existência ad eternum do conflito na comunidade política.

 O adversário significa assim o reconhecimento da existência do político em toda a sua complexidade: "a dimensão do ënósí, a construção do campo do amigo, bem como a dimensão do ëelesí, o aspecto constitutivo do antagonismo. (...) a concepção que aqui defendo é verdadeiramente uma concepção de democracia radical e plural. É a única concepção que retira todas as implicações do ëpluralismo de valoresí e enfrenta as consequências de reconhecer a existência permanente do conflito e do antagonismo" (Chantal Mouffe: 1992; 19).

 Mouffe, que foi buscar às obras de Carl Schmitt os conceitos de amigo e inimigo para dar consistência à sua tese acerca da permanência do conflito nas relações humanas, no modo de operar com essas categorias do político, introduziu uma nova figura que se chama adversário, vindo com isso a subverter por completo o pensamento do filósofo alemão.

 É como uma espécie de um salto no escuro protagonizado pela investigadora anglo-saxónica com consequências totalmente contrárias ao pensamento alicerçado por Schmitt. Este autor faz uma distinção extremamente rigorosa entre inimigo no sentido político do termo e inimigo no interior da vida privada, ao qual, no prisma schmittiano, podemos conceder dar o nome de adversário e até amá-lo.

 O filósofo alemão quando quer falar de inimigo refere-se sempre ao inimigo político, àquele que é hostil e não a um mero adversário que Schmitt classifica até "comme un être apolitique" (Carl Schmitt: 1992; 69).

 No pensamento deste autor há plena consciência que "les concepts díami et díennemi doivent être entendus dans leur conception concrète et existentielle et non point comme des métaphores ou des symboles, il ne faut pas les attênuer en y mêlant des notions économiques, morales ou autres, ni surtout les interpréter psychologiquement dans un sens privé et individualiste, comme síils exprimaient les sentiments et les tendances díun simple particulier. Ces concepts opposés ne sont ni normatifs ni purs intelligibles" (Carl Schmitt: 1992; 66).

 Se é critério do político realizar a distinção amigo-inimigo, a julgar pelas palavras de Schmitt, Mouffe cai fora, deliberadamente, desse critério quando introduz a todo o custo a categoria nova do adversário. Aliás, há um trecho onde o filósofo alemão parece estar a responder-lhe à letra e a criticar-lhe tal tomada de posição, quando conclui que: "Dans un dilemme qui le caractérise bien (...), le libéralisme, pris entre líesprit et líéconomie, a tenté de réduire líénnemi à un concurrent du côte des affaires, et du côte de líesprit, à líadversaire que líon affronte dans un débat" (Carl Schmitt: 1992; 67). E é extraordinário verificar como Mouffe ignora olimpicamente argumentos que, em poucas linhas, lhe arrasam a teoria salientando-lhe os pontos fracos; e, também, como abdica conscientemente de lhes responder.

 É preciso, então, reconhecer que nos domínios do liberalismo, não existem inimigos na assunção política que Schmitt requer para o termo. Por essas paragens o inimigo reduz-se ou a um concorrente económico que se degladia pelo melhor negócio, ou a um adversário "de líesprit " que se afronta num debate sem fim.

 Para Schmitt não seria assim então difícil especular ó num mundo hipotético governado inteiramente pela ética e pela moral, onde o político não faz a sua aparição ó que esse universo humano "ne conna"tra-t-il plus díautre affrontement que la discussion" (ibidem).

 Mouffe parece contentar-se em atingir esse pequeno mundo liberal, convencida que está que no seu interior continua a repousar a dimensão política, pois está presente a figura de adversário. "A política numa democracia moderna tem de aceitar a divisão e o conflito como inevitáveis e o facto de a conciliação de reivindicações opostas e interesses conflituantes só pode ser parcial e provisória" (Chantal Mouffe: 1992; 152).

 Ora, ao seu trabalho, que está, nas suas teses fundamentais, todo ele contido no esforço e teorização de Schmitt, o qual consegue mercê do seu género teórico, suplantá-la ainda antes mesmo de ter começado a falar, aplica-se, sem ironias, a citação bíblica: "O que tem sido, isso é o que há-de ser; e o que se tem feito, isso se tornará a fazer; nada há que seja novo debaixo do sol. Há alguma coisa de que se possa dizer: vê, isto é novo? ela já existiu nos séculos que foram antes de nós. Já não há lembrança das gerações passadas; nem das gerações futuras haverá lembrança entre os que virão depois delas"4 .
 Visão diametralmente oposta à veiculada por Mouffe é a de Schmitt. Para o professor de direito, essa transformação do inimigo em adversário é simplesmente impossível, sob pena de elidir o político: "Ce níest donc pas le concurrent ou líadversaire au sens général du terme qui est líennemi" (Carl Schmitt: 1992; 67).

 Se até aqui se salientou, através das palavras de Schmitt, aquilo que o inimigo não é, a partir de agora o filósofo alemão vai aludir à raiz etimológica do termo para demonstrar, afinal, que "ennemi signifie hostis et non inimicus" (Carl Schmitt: 1992, 67). Na passagem bíblica de Mateus, "Amai os vossos inimigos", Schmitt não vê que em tal afirmação haja qualquer alusão ao inimigo político. Mas "aimez vos ennemis", no entanto, não viria à mente "díaucun chrétien quíil fallait, par amour pour les Sarrasins, ou pour les Turcs, livrer líEurope à líIslam au lieu de la défendre. Líennemi au sens politique du terme níimplique pas une haine personnelle, et cíest dans la sphère de la vie priveé seulement que cela a un sens díaimer son ennemi, cíest-à-dire son adversaire" (Carl Schmitt: 1992; 68).

 Na base, então, da distinção da categoria do inimigo está o conceito da hostilidade que, curiosamente, Chantal Mouffe nunca refere, se calhar talvez porque dessa hostilidade nasce a guerra e a violência, questões que um regime democrático, mesmo radical e pluralista, terá dificuldade em conceber, preferindo mitigar o problema travestindo o inimigo com as roupas mais suaves de adversário.

 O que é incontornavél é o facto que "les concepts díami, díennemi, de combat tirent leur signification objective de leur relation permanente à ce fait réel, la possibilité de provoquer la mort physique díun homme. La guerre níest que líactualisation ultime de líhostilté" (Carl Schmitt: 1992; 71). Se o professor de direito garante que a sua definição de político não é belicista, militarista, imperialista, nem tão pouco pacifista, é, no entanto, algo de insuportável paras teses defendidas por Mouffe. Esta autora, apesar de reconhecer que os acordos alcançados numa democracia pluralista serão sempre provisórios, espera que as forças antagónicas e conflituantes se diluam no próprio jogo democrático sem que nunca se verifique ser necessário a actualização última da hostilidade.

 Ideia bem diferente tem Schmitt, já que explica que "líantagonisme politique est le plus fort de tous, il est líantagonisme suprême, et tout conflit concrete est díautant plus politique quíil se rapproche davantage de son point extrême, de la configuration opposant líami et líennemi" (Carl Schmitt: 1992; 68).

 Se Schmitt recorda que quanto mais forte o antagonismo político for mais se aproxima do seu ponto mais extremo, o paroxismo da guerra; para Mouffe essa luta política, esse conflito, poderá ser diluído e de alguma forma ësublimadoí nos confrontos parlamentares.

 Apesar de algumas reservas, a investigadora anglo-saxónica sempre vai afirmando que "para defendermos o liberalismo político e o pluralismo numa perspectiva não racionalista temos de ver o parlamento, não como o lugar onde se pode aceder à verdade, mas sim como o lugar onde, através da discussão e da persuasão, deveria ser possível chegar a um entendimento quanto a uma solução razoável, tendo presente que tal entendimento nunca poderá ser definitivo e deverá permanecer sempre aberto ao desafio" (Chantal Mouffe. 1992; 174).

 Todavia, Mouffe não defende a manutenção destas instituições tal como funcionam actualmente, indo assim de encontro às críticas de Schmitt àcerca dos sistemas parlamentares.

 O filósofo alemão, no entanto, vai ainda mais longe na discussão. Mostra até que, nos regimes democráticos liberais, se assiste ao aparecimento "des formes de politique encore plus atténnuées, defigurées jusquíà être parasitaires ou caricaturales et qui, de la configuration originelle opposant líami et líennemi, ne conservent que líun ou líautre élément díantagonisme, lequel se manifeste en tactiques et en pratiques de toutes sortes, en rivalités et en intrigues, et qui désigne par ce nom de politique les affaires et les manigances les plus curieuses" (Carl Schmitt: 1992, 68).

 É óbvio que para Schmitt pouco ou nenhum interesse tem esta espécie de política de pacotilha, absorvida no corte e costura da pequena intriga que serve apenas para alimentar a mórbida curiosidade dos media, e que apenas vem macaquear a configuração original das figuras de amigo-inimigo.

 É de convir também que para Mouffe este mundo não é de todo do seu agrado. Mas por recusar, ou muito simplesmente não saber lidar com a conotação tão forte que a categoria de inimigo transporta no seu seio ó e com a eventualidade sempre demasiadamente próxima de se fazer uso da violência física ó, não tem meios depois para poder escapar ao ciclo ornamental no qual a figura do adversário parace movimentar-se tão bem, no puro reino espectacular das rivalidades e intrigas, para honrar os compromissos assumidos com o pluralismo.

 Para lançar luz sobre esta dimensão tão problemática do seu trabalho, e que Chantal Mouffe pretende "camuflar", é interessante salientar o trabalho do antropólogo Pierre Clastres, sobre a arqueologia da violência. Neste pequeno estudo, quase por acaso, há caminhos que se entrecruzam, e logo se separam, das teses defendidas por Carl Schmitt.

 Diz o antropólogo francês que os povos primitivos são sempre apresentados como apaixonadamente dados à guerra; é o seu carácter particularmente belicoso que impressiona, sem excepção, os observadores europeus que chegaram pela primeira vez ao Novo Mundo. A mais evidente imagem oferecida aos olhares europeus por estas culturas é a do "guerreiro" e é essa imagem que permite autorizar uma constatação sociológica insofismável: "As sociedades primitivas são sociedades violentas, o seu ser social é um ser-para-a-guerra" (Pierre Clastres: 1977; 13).

 Em busca destas raízes da violência originária, Clastres inicia o caminho com o discurso heterogéneo do passado que explica a sociedade e a guerra primitivas. As três grandes direcções desta heterogeneidade desenvolvem-se pelos discursos naturalista, economista e cambista.

 Abreviadamente, pode-se dizer que o primeiro discurso sobre a guerra, o naturalista, assume o carácter biológico da questão. A sua resposta garante que "o comportamento de agressão pertence à realidade humana pelos menos desde os Australantropus e a evolução acelerada do dispositivo social não mudou nada no lento decurso da manutenção filogenética" (Pierre Clastres: 1977; 16).

 Para Clastres este tipo de resposta salienta "a agressão como comportamento, quer dizer, o uso da violência é deste modo relacionado com a humanidade, é-lhe coextensiva" (ibidem). É evidente que este autor desaprova este discurso, onde a violência da espécie humana estaria já pré-programada no seu código genético e refinada depois pelos acasos da evolução: mais violento sinónimo de mais apto, e portanto de mais genes legados às gerações seguintes.

 O que importa, para Clastres, estabelecer é que "a guerra primitiva nada deve à caça, que ela mergulha as raízes não na realidade do homem como espécie, mas sim no ser social da sociedade primitiva, e que ela se distingue pela sua universalidade não em relação à natureza mas em relação à cultura" (Pierre Clastres: 1977; 18).

 Por sua vez, o discurso economista formou-se durante o século XIX, altura em que a Europa começou a pensar-se em termos separados da "selvajaria" dos povos ameríndios. Perdendo-se o mito do bom selvagem, a crença de que a vida primitiva era a vida feliz, ficou enraízada a ideia de que o mundo dos selvagens era o "o mundo da miséria e da desgraça" (Pierrre Clastres; 1977; 19).

 Alicerçada sobre uma base confirmada pelo senso comum, e que acabou por ser repisada insistentemente pelos etnólogos, esta noção de que a economia primitiva é uma economia de subsistência que apenas permite aos selvagens subsistir, ou seja, sobreviver face aos enormes obstáculos proporcionados pelo meio envolvente, ganhou tradições muito difíceis de serem ultrapassadas.

 Este discurso economista vai então relacionar o conflito com a escassez de meios para prover à subsistência das populações, "a guerra primitiva com a fraqueza das forças produtivas: a raridade dos bens materiais disponíveis conduz à concorrência entre os grupos que a necessidade impele para a sua apropriação, e esta luta pela vida desagua no conflito armado" (Pierre Clastres: 1977; 19).

 Curiosamente, este tipo de discurso, segundo o antropólogo francês, também serve na perfeição ao marxismo, enquanto teoria geral da sociedade e da história. Para Clastres, o postulado da miséria da economia primitiva, ou seja, o muito fraco rendimento da actividade de produção, está inteiramente de acordo com própria teoria de Karl Marx que "descobre na tendência irreprimível das forças produtivas a desenvolverem-se a lei do movimento histórico e da transformação social" (Pierre Clastres: 1977, 21).

 O marxismo não se importa de descer até ao degrau do senso comum, desde que daí advenham as condições ideais para ser formada a imagem da miséria primitiva. A necessidade desta imagem de extrema debilidade é necessária, pois só assim se compreende que "a história se ponha em marcha". É necessário que as forças produtivas existam no mais total subdesenvolvimento, na mais extrema fraqueza, "sem o que não haveria a menor razão para que tendessem a desenvolver-se, não se podendo articular modificação social e desenvolvimento das forças produtivas". ( Pierre Clastres: 1977; 21). A pobreza seria então o primeiro motor da dialética da história.

 Só que as investigações mais recentes, no domínio da antropologia económica, vêm deitar por terra todas estas razões aduzidas pelo senso comum, dando a entrever um quadro vivencial diametralmente oposto ao do discurso economista. O que fica demonstrado nestes trabalhos é que "a economia dos selvagens, ou Modo de Produção Doméstica, permite, na realidade, uma satisfação total das necessidades materiais da sociedade, à custa de um tempo limitado de actividade de produção e de um fraco desenvolvimento dessa actividade. Noutros termos, a sociedade primitiva, longe de se esgotar continuamente na tentativa de sobreviver, mostra-se selectiva na determinação das suas necessidades e dispõe de uma ëmáquinaí de produção apta a satisfazê-las" (Pierre Clastres: 1977: 22).

 Esta visão é claramente o oposto do mito da escassez. Longe de ser uma economia de miséria, a sociedade primitiva é uma economia de abundância, pelo menos as necessidades sentidas - e não existem ainda falsas necessidades, necessidades super-impostas - podem no imediato ser satisfeitas, sem um esforço que esgote por completo as forças individuais ou colectivas. Assim, o económico nada tem a ver com a guerra, pelo menos, quando se fala das sociedades ditas primitivas.

 Por último, o discurso cambista sobre a guerra pretende explicar o fenómeno mostrando que "as trocas comerciais representam guerras potenciais pacificamente resolvidas, e as guerras são a consequência de transacções infelizes" (Pierre Clastres: 1977, 23). O representante desta última corrente é Claude Lévi-Strauss, e para este autor a guerra recebe a sua definição e o seu sentido último do funcionamento particular da sociedade primitiva. Nesta as relações entre comunidades são primeiramente comerciais, e é do sucesso ou do insucesso desses empreendimentos comerciais que depende a paz ou a guerra entre as tribos.

 Na lógica deste pensamento está, segundo Clastres, a convicção de que o comércio e a guerra devem ser pensados como fenómenos sequentes, porque "é o próprio comércio que detém, relativamente, à guerra, uma prioridade de algum modo ontológica, na medida em que é colocado no coração do ser social" (Pierre Clastres: 1977; 24). Este princípio de reciprocidade onde "as trocas são guerras pacificamente resolvidas, as guerras são resultado de transacções infelizes", é para Clastres uma mera "banalidade sociológica" que tão pouco chega a arranhar a superfície da questão do fenómeno guerreiro na comunidade primitiva.

 "A lógica da concepção cambista conduz assim a uma quase dissolução do fenómeno guerreiro. A guerra, desprovida de positividade em consequência da prioridade atribuída à troca, perde toda a dimensão institucional: ela não pertence ao ser da sociedade primitiva, antes é uma sua propriedade acidental, ocasional, inessencial; a sociedade primitiva é pensável sem a guerra" (Pierre Clastres: 1977, 26).

 Só que este discurso cambista esquece o factor etnográfico, isto é, que o fenómeno guerreiro percorre todas as culturas; por isso Clastres reafirma que a sociedade primitiva tanto é um espaço de troca como também um lugar de violência: "A guerra pertence ao ser social primitivo ao mesmo título que a troca"(ibidem).

 Passo a passo, a argumentação de Pierre Clastres aproxima-se do fim que tem em mente. Após ter verificado que as direcções dos três discursos analisados até aqui vão desembocar em verdadeiros becos sem saída, acabando por não explicar a existência da guerra na comunidade primitiva, o antropólogo vai tentar uma nova abordagem àcerca do problema.

 É ponto assente que para Clastres o fenómeno guerreiro tem de ser encarado como um meio de um fim político. "Perguntarmos, por consequência, por que os selvagens fazem a guerra é o mesmo que indagarmos sobre a própria natureza da sociedade" (Pierre Clastres; 1977; 27). Essa natureza é política, e desta forma o antropólogo entrecruza-se com o pensamento schmittiano. Afinal, para o filósofo alemão "síil existe réellement des ennemis au sens existentiel du terme tel quíon líentend ici, il est logique, mais díune logique exclusivement politique, de se défendre contre eux, si nécessaire, par líemploi de la force physique et de lutter avec eux" (Carl Schmitt 1992; 90). A lógica política não se deixa enredar em grandes mistérios metafísicos. Se existem inimigos de carne e osso, então é preciso criar esquemas de protecção, e na maioria dos casos esses esquemas implicam o uso da força física para os combater.

 A comunidade primitiva é para Clastres o grupo local. Este desenvolve-se por uma localidade, denominado o seu território, num sentido de reserva natural dos seus recursos materiais, e como espaço exclusivo onde se exercem todos os direitos comunitários. Ao demarcar um espaço, a comunidade primitiva demarca também o que está fora dele, fundando o Nós e o Outro, a relação Amigo-Inimigo, e introduzindo assim a dimensão política nas relações sociais.

 "A exclusividade no uso do território implica um movimento de exclusão, e aqui aparece claramente a dimensão propriamente política da sociedade primitiva como comunidade incluindo a sua relação essencial com o território: a existência do Outro é posta à partida no acto que o exclui, é contra as outras comunidades que cada sociedade afirma o seu direito exclusivo sobre um território determinado, a relação política com os grupos vizinhos é imediatamente estabelecida" (Pierre Clastres: 1977; 29).

 Clastres não deixa de reconhecer que a comunidade primitiva é ao mesmo tempo totalidade e unidade, já que se trata de um conjunto de elementos totalmente acabado, autónomo, completo, sempre aplicado em preservar, a todo o custo, essa autonomia perante o exterior. "É por isso que o critério de indivisão é fundamentalmente político: se o chefe selvagem nos aparece destituído de poder é porque a sociedade não aceita que o poder se separe do seu próprio ser, que a divisão se estabeleça entre aquele que comanda e aqueles que obedecem" (Pierre Clastres; 1977; 31).

 É esta dimensão territorial que inclui já o vínculo político, na medida em que exprime a exclusão do Outro. "É justamente o Outro como espelho ó os grupos vizinhos ó que devolve à comunidade a imagem da sua unidade e da sua totalidade. É face às comunidades ou grupos vizinhos que uma comunidade ou grupo determinado se situa e se pensa como diferença absoluta, liberdade irredutível, vontade de manutenção do seu ser como totalidade una" (ibidem).

 Mas esta organização primitiva não pode ser pensada na inércia, na completa ausência de movimento; pelo contrário, a própria realidade mostra o perpétuo movimento em que se encontram estas comunidades primitivas. Elas não estão encerradas sobre si mesmas, é o Estrangeiro que molda a sua própria membrana celular, abrem-se sobre o Outro de tal forma e com tamanha intensidade que, mais tarde ou mais cedo, se cai no estado puro de violência.

 Esta perspectiva de guerra sempre omnipresente é, para Clastres, algo que está inscrito no ser social da comunidade primitiva. "A vontade de cada comunidade de afirmar a sua diferença é suficientemente tensa para que o menor incidente transforme a diferença querida em diferendo real (...) a possibilidade da violência e do conflito armado é aqui um dado imediato" (Pierre Clastres: 1977; 32).

 Por isso, o discurso protagonizado por Lévi-Strauss tem, inevitavelmente, de fracassar, uma vez que, em primeiro lugar, ignora que essas comunidades primitivas tendem sempre a reduzir o alcance da troca e não a alargar o seu terreno. Num segundo momento Lévi-Strauss esquece-se da importância real da violência, que não deve ser vista como mera negatividade. Como Clastres acaba por justificar: "Não é a troca que surge em primeiro lugar, mas a guerra, inscrita no modo de funcionamento da sociedade primitiva. A guerra implica a aliança, a aliança conduz à troca (entendida não como difrença entre o homem e o animal, como passagem da natura à cultura, mas como desdobramento da socialidade da sociedade primitiva, como livre jogo do seu ser político" (Pierre Clastres: 1977; 39).

 O estado de guerra permanente é, assim, resultado do livre jogo do ser político, que é a verdadeira natureza da sociedade primitiva, onde o estrangeiro é visto, então, como o inimigo, o qual gera, por sua vez, a figura do aliado, com o qual se podem trocar presentes. Tanto no plano económico, impossibilidade de acumular riquezas, como no plano da relação do poder, onde o chefe existe para não comandar, a sociedade primitiva tem como política conservar um Nós indiviso, uma totalidade una e autónoma.

 "A capacidade de estabelecer a relação estrutural de hostilidade (dissuasão) e a capacidade de resistência efectiva às iniciativas dos outros (repelir um ataque), em suma, a capacidade guerreira de cada comunidade é a condição da sua autonomia" (Pierre Clastres: 1977; 41).

 Este sentido de totalidade, autonomia e unidade que Pierre Clastres observa nas sociedades primitivas, também Carl Schmitt o sente na formação e permanência dos Estados modernos. Mas Clastres garante que a sociedade primitiva tem um comportamento agresssivo por ser sua política recusar, por essência, o Estado por este ser "a manifestação acabada da divisão da sociedade, enquanto órgão separado do poder político: a sociedade, a partir daí, acha-se dividida entre os que exercem o poder e os que o suportam".

 Já Carl Schmitt vê nos Estados verdadeiras "unidades políticas", quem for incapaz de compreender a formação de identidades colectivas e não conseguir apreender o aspecto colectivo da vida social como constitutivo é rotulado de individualista..

 Para Schmitt a política pode sobreviver na ausência dos Estados, já o inverso é um puro contrasenso. É impossível sequer pensar uma sociedade que não seja organizada politicamente. Aqui o jurista alemão faz a distinção entre "substância" e "instância". O Estado, apesar de dispor da possibilidade efectiva de designar o inimigo, é uma instância. Em casos extremos como as revoluções e as guerras civis, o Estado decompõe-se numa rivalidade de duas vontades políticas inimigas e consequentemente a instância desaparece por momentos. O que permanece e ainda com maior intensidade é a actividade política. É preciso, pois, considerar a política na sua substância fundamental, a sua essência: a relação amigo-inimigo da qual se pode deduzir toda actividade e todo o motivo político.

 De qualquer forma, a relação amigo-inimigo que nos traz a antropologia não é muito diferente da análise que Schmitt faz da questão. Desta fortíssima relação, que não aceita mais nenhum companheiro de viagem, decorrem as fragilidades e o fracasso da tentativa de Chantal Mouffe em querer radicalizar o regime democrático-liberal, e de alargar a revolução democrática a um número crescente de relações sociais.

 "Em vez de fugir da componente da violência e hostilidade inerente às relações sociais, a tarefa consiste em pensar em como criar as condições nas quais essas forças agressivas podem ser diluídas e canalizadas de forma a tornar possível uma ordem democrática pluralista" (Chantal Mouffe; 1992, 203); ora esta tentativa de domesticação do político é, à luz de Schmitt e de Clastres, impossível, porque a cumprir-se, consuma precisamente a negação do político.

 Como se viu, essas condições pura e simplesmente não existem. Mesmo que fosse possível uma canalização do antagonnismo e violência para o interior de um regime parlamentar, essa diluição das forças agressivas do cerne do ser social representaria a nulificação do político, ficando o cenário do confronto de pé, quando os principais personagens do drama há muito tinham abandonado a boca de cena.

 Schmitt apercebe-se claramente disto e, curiosamente, desmonta mesmo ante rem toda a argumentação que Chantal Mouffe irá utilizar. O drama de O regresso do político é a cegueira a esta dimensão constitutiva do político, ao próprio texto de Schmitt, e o naufrágio onde soçobra por impossibilidade de sustentar a própria argumentação.

 Pode pois, dizer-se, quanto à obra de Mouffe, que "nada de novo debaixo do sol", excepto o desfiar de um rosário de excelentes e pias intenções, que de radical têm muito pouco; e que, duas centenas de páginas depois, nem o político nem o homem ficaram mais ricos, confirmando-se mais uma vez a profecia do Eclesiastes: "Todas as coisas estão cheias de cansaço; ninguém o pode exprimir: os olhos não se fartam de ver, nem os ouvidos se enchem de ouvir".
 

Notas:
 

1. É inegável que erupções deste fenómeno de "já fomos salvos" vêm ocorrendo no discurso contemporâneo, não só ao nível dos media, mas também num palco mais profundo onde se forja a identidade colectiva dos povos. Não há, de resto, a meu ver, outra explicação para o estrondoso sucesso de Fukuyama, que transformou as suas duas obras em influentes best-sellers por todo o ocidente ëcivilizadoí.

2. E esta forma de tentar digerir, a seco e tout-court, o trabalho de Schmitt, parece-me um excelente exemplo da forma de parasitar ó com legitimidade mas pouca elegância ó o trabalho do filósofo alemão.

3 . E é absolutamente impossível, pela leitura da obra, decidir se Mouffe se refere à a humanidade inteira ou a um palco escolhido de actores, porque ela não é nada explícita a esse respeito.

4 . Antigo Testamento, Eclesiastes, cap. 1, vs. 9-11.
 
 

Bibliografia:
 

Mouffe, Chantal, 1992, O Regresso do Político, Gradiva, Lisboa.

Schmitt, Carl, 1992, La Notion de Politique, Flammarion, France.

Clastres, Pierre, 1977, Guerra, Religião e Poder, Perspectivas do Homem, Edições 70, Lisboa.