José Manuel Silva
Setembro de 1998
"Moro na minha própria casa,
Nunca imitei ninguém
E rio-me de todos os mestres
Que nunca se riram de si.
(Inscrição por cima da minha porta)".
Nietzsche
O riso é próprio do homem, sem dúvida, mas
colocou-se sempre fora do horizonte humano que se reduz à conservação
da vida e à continuação da actividade produtiva. É
por isso que quando ele irrompe por esses lugares tão sérios,
aparece sob a capa do agente provocador, pronto a sabotar.
Para ler este transtornante riso, é útil o estudo
de Georges Bataille sobre "La Notion de Dépense", que vem sustentar
que "les hommes assurent leur subsistance ou évitent la souffrance,
non parce que ces fonctions engagent par elles-mêmes un résultant
suffisant, mais pour accéder à la fonction insubordonnée
de la dépense libre" (Bataille, 1933:45). Ora, deste ponto de vista,
cai por terrra uma visão da humanidade que apenas se revê
no direito de adquirir, de conservar e consumir racionalmente, fazendo
uso do mínimo necessário. O riso pode assim surgir integrado
nesta noção de "dépense" perdulária, que constitui
em si mesma o seu próprio fim, e sempre teve por missão roubar
o homem ao horizonte mesquinho da sobrevivência e investi-lo na posição
de senhor.
Para combater esta "étroitesse de jugement" patente na
mera conservação da vida e das energias, temos então
o uso do riso, salvador ou simplesmente desopilante, que tem como meta
permanente o combate contra o "grand serieux" da vida, de que nos fala
Nietzsche, e junta-se, assim, ao conjunto de outros dispêndios ditos
improdutivos, como o luxo, o luto, as guerras, os jogos, os espectáculos,
as artes e a actividade sexual perversa, que se têm exclusivamente
por fim elas mesmas, e agem numa economia de absoluta perda. Para estas
formas improdutivas Bataille reserva o nome de dispêndios, "à
líexclusion de tous les modes de consommation qui servent de moyen
terme à la production" (Bataille, 1933:28).
Nada é mais improdutivo que o riso, esbanjador por excelência,
e talvez por essa razão os humanos não saibam passar sem
ele. O próprio ricto facial que antecede a sonora gargalhada utiliza,
num dispêndio puro, a maior parte dos músculos que compõem
o rosto humano. Enraízado que está nas estruturas mentais
do homem, o riso não deixa de ser um acto profundamente natural
ó um bebé cego de nascença também sabe rir
ó e como tal acompanha o dispêndio sumptuário inscrito
em nós pela própria natureza, e pode ombrear lado a lado
com a actividade sexual perversa, que não sendo exclusiva do homem,
é um dos seus traços distintivos, contrapondo-o ao restante
reino animal .
A cultura apropriou-se do riso por sua conta e risco, e desde
o primeiro esgar da criança com poucos dias de vida até à
gargalhada triunfal que desampara o mais forte de espírito, o caminho
do homem que ri foi longo e tortuoso.
O ser humano teve de aprender a lidar com este dom da natureza.
Apesar de se tratar de uma "explosion éphémère sans
doute et qui ne sert à rien", relâmpago que faisca por um
breve instante, numa espécie de centelha fulgurante, o riso "arrache
líhomme à líHistoire qui entretient son malheur mais
qui porte avec lui les germes du futur" (Duvignaud, 1985:11). O riso surge
sempre como algo de fugidio, de marginal à História e às
sociedades humanas, irrompendo não se sabe onde, nem se sabendo
como. Faz a sua aparição subversiva e é tudo. Como
tal pode ser considerado como uma "agression momentanée contre líordre
du monde et celui des hiérarchies".
A principal dificuldade deste trabalho queda-se aqui: este género
especial de dispêndio não é homogéneo, e é
extraordinariamente difícil observá-lo à luz de um
estudo das regras, funções e mentalidades que se proponha
"définir la constance, la cohésion et la conservation des
sociétés". Este observatório parcelar da cultura pouco
lhe diz, já que o riso está mais ligado ao modo como "les
femmes et les hommes acceptent, submissent, contournent, déforment
ces contrôles et ces prescriptions invisibles ou non" e que no fundo
"définissent une culture" (Duvignaud, 1985:14).
Somos uma espécie que sabe rir e, como diz Bergson "não
existe cómico fora do que é propriamente humano. Uma paisagem
poderá ser bela, graciosa, sublime, insignificante ou feia; mas
nunca será risível. Poderemos rir-nos de um animal, mas somente
porque surpreendemos nele uma atitude de homem ou expressão humana"
(Bergson, 93:18).
A comicidade acompanha a humanidade desde os seus primórdios,
e podemos bem imaginar que a primeira gargalhada a ecoar no mundo surgiu
logo nas iniciais páginas do Génesis, pouco depois de Deus
ter concluído a criação, olhado para ela e visto que
era boa. A "queda" judaico-cristã poderá muito bem ter a
sua origem no riso de Eva quando descobriu a diferença do outro,
(é que, embora para os psicanalistas, o complexo de castração
opere ao contrário, aqui Adão é uma personagem meramente
passiva, e portanto não ri, é rido).
Há, grosso modo, duas versões para a expulsão
do homem do jardim das delícias e o seu lançamento no mundo
onde "ganhará o pão com o suor do seu rosto". A primeira,
a que poderiamos chamar "gnosiológica", é a que vê
Eva provando o fruto da árvore da ciência, o conhecimento,
precipitando assim o casal nas agruras do mundo. A segunda, "sexual", identifica
o pecado original com a descoberta da sexualidade, da diferença
do outro, e foi nela que toda a tradição cristã se
baseou para a criminalização do sexo, que perdura, embora
em versão soft, até hoje, com a insistência dogmática
de nunca o separar dos imperativos reprodutivos da espécie.
Nesta segunda versão do pecado original, a que nos interessa,
quando a serpente cheia de malícia aponta a maçã,
está a indicar o caminho não para uma, mas para duas formas
de dépense muito semelhantes, e Eva, vendo que Adão estava
nú e era diferente, riu o primeiro riso do mundo. A gargalhada original
saiu-lhes, evidentemente, cara, e por causa dela foram largados, já
com roupa e tudo, neste mundo cão, mas as duas dépenses primitivas
nunca mais os deixaram, e é através delas que o homem escapa
ao que de doloroso e mesquinho tem o mundo, para um reencontro, ainda que
muito breve e fugaz, com o paraíso adâmico.
Deus sabia, aliás, quão perigoso era este primeiro
riso. Eva, num registo de pura transgressão, ri-se de Adão,
seu criador pois saiu-lhe de uma costela, e era portanto inevitável
que, mais cedo ou mais tarde, e talvez nem tenha sido preciso esperar por
Sade e Nietzsche, o homem acabasse por se rir de Deus.
Há, por isso, no riso, qualquer coisa de diabólico,
herança da armadilha da serpente. Nas duas versões cristãs
de Deus: Antigo Testamento, vingador terrível que virá para
julgar os vivos e os mortos; Novo Testamento, pai bonacheirão que
nos ama e perdoa infinitamente ó Deus é sempre um ser terrivelmente
sério, que jamais ri1
. O mesmo não sucede com Lúcifer e a sua corte de anjos decaídos:
conhecem o poder dionisíaco do riso e sabem como utilizá-lo,
ainda que o seu riso possa não ser o da joie mas da pura maldade;
e por isto o riso move-se sempre num plano de transgressão onde
germinam sementes de danação. Este carácter diabólico
e diabolizante, foi aliás a genial descoberta de Umberto Eco, que
constrói todo O Nome da Rosa em torno desta figura do riso que aparenta
os homens mais com os demónios que com os anjos.
Eva ri-se de Adão e esta matriz original nunca mais foi
abandonada. Os personagens da derrisão são sempre os mesmos:
o Eu, e o Diferente de Mim. O riso é um dispêndio de energia,
uma comoção pelo burlesco, uma farsa que persegue o homem
nos "moments inutiles de líexistence" e que não servem "à
la survie ou à la reproduction de la vie sociale" (Duvignaud, 1985:15).
No entanto, estes momentos estão disseminados por todas as culturas,
desde as mais alegres às mais austeras, e é nestas que o
riso surge como ameaça e transgressão.
"Lí allégresse qui, chez certains peuples, accompagne
la vie quotidienne ne se confond pas avec le rire codé qui síétablit
ici ou là de groupe à groupe; le comique que suggère
une possible transgression des règles traditionnelles ne síidentifie
pas au rire qui explose dans les jeux, la fête, non plus quíà
la dérision qui corrompt les mythes ou líordre établi
chaque ensemble humain porte avec lui ses formes de comique..." (Duvignaud,
1985:19).
É possível, todavia, que na escalada da espécie
humana o riso tenha perdido a sua candura original. À medida que
as sociedades se tornam mais hierarquizadas e estratificadas, o cómico
transforma-se em algo cada vez mais codificado, só inteleccionável
por aqueles que participam e conhecem esses sinais. Basta pensar numa cultura
ocidental dominada pela ideia de "pecado original" para concluir que o
tempo não está propício a grandes risadas, pois o
que importa, se quisermos salvar-nos para a eternidade, segundo a prescrição
cristã, é escapar para fora deste "vale de lágrimas",
e o riso, instrumento terreno por excelência, não confere
mas afasta do tão almejado passaporte.
O cómico não é visto com bons olhos pelos
poderes instituídos, sejam eles de índole religiosa, política
ou económica. O riso é uma pura perda de tempo, quando o
que interessa é produzir e adquirir propriedade, na terra ou no
prometido reino do além.
O lema do poder que é "muito riso pouco siso", diz muito
do medo que se instala ante uma sonora gargalhada, e não é
de estranhar, por exemplo, que alguns reinos, os mais desconfiados, chamem
ao seu seio uma nova personagem ó o bobo ou pantomineiro ó
para aplacar a fúria das hordas. É, domesticadamente, servido
um sedativo para adormecer as micro-revoluções sempre em
estado latente e que podem ser desencadeadas, a qualquer momento, por um
riso que desconcerta, perdidamente, o mais sisudo dos governantes. "Certaines
royautés africaines ou européennes du Moyen Age aient fait
du bouffon une sorte díinstitution pour se défendre de la
corruption comique. La plupart des dominations politiques se méfient
du rire" (Duvignaud, 1985:26).
O riso é sempre contraproducente, e se não for
possível varrê-lo para debaixo do tapete da história,
mais vale domesticá-lo desde a nascença, antes que irrompa
algures alegremente, desenvolvendo, em absoluta perda e a despropósito
de todos os costumes e convenções sociais, pequenas e grandes
revoluções.
A noção de potlatch pode adquirir, nesta altura,
todo o seu valor, quando o riso se propaga, subitamente, dos subterrâneos
da razão para criar em momentos especiais, como as festas carnavalescas,
o excesso e a comoção de voltar as hierarquias sociais de
cabeça para baixo.
É de crer, pois, que o riso acompanhe estas perdas sumptuárias
de bens e propriedades. Tal como o riso, o potlatch integra o modo natural
do homem agir sobre si e interagir com os outros. O dispêndio surge
como a base desta interacção primária, e a produção
e a aquisição são meros efeitos secundários
neste sistema.
Esta visão torna-se ainda mais clara quando se lida com
as instituições económicas ditas primitivas, onde
"líéchange est encore traité comme une perte somptuaire
des objects cédés". Se muitos economistas tradicionais continuam
a acreditar que a troca está na origem ancestral do comércio,
as cerimónias do potlatch evidenciam, precisamente o contrário:
"Il se présent ansi, à la base, comme un processus de dépense
sur lequel síest développé un processus díacquisition.
(...) Un moyen díacquisition comme líéchange ait pu
avoir comme origine, non le besoin díacquérir quíil
satisfait aujourdíhui, mais le besoin contraire de la destruction
et de la perte" (Bataille, 1933:32).
O potlatch surge, tal como o riso, em ocasiões especiais
de mudança quer nas pessoas, quer nas situações. As
iniciações, os casamentos e os funerais incluem-se neste
tipo. Está sempre presente a ideia de festa, onde os rivais se desafiam,
muitas vezes, através de destruições espectaculares
de riqueza.
"Il exclut tout marchandage et, en général, est
constitué par un don considérable de richesses offertes ostensiblement
dans le but díhumilier, de défier et díobliger un
rival. La valeur díéchange du don résulte du fait
que le donataire, pour effacer líhumiliation et relever la défi,
doit satisfaire à líobligation, contractée par lui
lors de líacceptation, de répondre ultérieurement
par un don plus important" (Bataille, 1933:33).
O potlatch é um delírio que percorre toda a festa,
numa verdadeira hecatombe de propriedades com o fim exclusivo de espantar
o outro. Esta prática lançou, aliás, raízes
muito mais profundas do que podemos imaginar, e traços abastardados
deste potlatch encontram-se nas sociedades ocidentais contemporâneas,
onde o homem vive, em delírio consumista, esmagado pela máxima:
"O meu mercedes há-de ser maior que o teu".
Nestas cerimónias originais o mais o rico acaba por ser
aquele que fica mais pobre, num desperdício sumptuário e
irracional de dotes e bens. Quase se torna perceptível o brilho
nos olhos e o riso estampado no rosto de quem se despoja assim de todos
os seus pertences em frente do outro. Este recebe as dádivas como
uma espécie de bofetada na face, ruborizada pela humilhação
sofrida e que só pode ser aplacada no próximo potlatch.
Este rir de quem dá, de quem destrói a seu bel-prazer,
é também um "rir de soi". Como muito bem notava Nietzsche,
temos de rir de nós próprios, antes que sejamos ridos. Neste
momento pode até estar contida a sua visão do riso como afirmação
da vontade do Eu. O homem torna-se outra vez criança quando joga,
em absoluta perda da sua individualidade, o seu Sim à vida: "Si
líon considère que líhomme a été pendant
des centaines díannées un animal extrêmement sujet
à la peur, et que toute brusquerie, tout imprévu lui commandait
de se préparer à la lutte, peut-être à la mort
et que, même plus tard, dans líordre social, tout sa sécurité
reposait sur le prévu, sur la tradition des idées et des
activités, on ne síétonnera pas que toute brusquerie,
tout trait inattendu de la parole et du geste, pour peu quíils éclatent
sans danger un dommage, provequent chez líhomme une détente,
quíil passe alors à líopposé de la crainte:
líêtre recroquevillé, tremblant de peur, se détend,
síépanouit largement ó líhomme rit" (Nietzsche,
citado por Duvignaud, 1985:51).
O riso tem vida e assume várias máscaras. O próprio
Bergson vê nele algo de acidental, como uma arma de arremesso ao
dispôr do social contra a rigidez que se pode propagar, como uma
doença, num indivíduo isolado ou num grupo de pessoas que
perdeu a "elasticidade".
Aqui o riso aparece como um tónico vitamínico que
repõe a normalidade, entretanto, desaparecida. "O que a vida e a
sociedade exigem de cada um de nós é uma atenção
constantemente desperta, pondo a claro os contornos da situação
presente; uma certa maleabilidade do corpo e do espírito que nos
ponha em condições de a ela nos adaptarmos" (Bergson, 93:26).
Em tal caso, a rigidez seria o cómico e "o riso é
o seu castigo". Nesta curiosa visão Bergsoniana ninguém se
pode distrair dos seus deveres da vida social, pois as campainhas de alarme
estão sempre prontas a disparar: "É cómica a personagem
que segue automaticamente o seu caminho, sem tratar de tomar contacto com
os outros. Lá está o riso para corrigir a sua distracção
e para a fazer acordar do seu sonho" (Bergson, 93: 99).
Esta concepção do cómico é bem patente
numa sociedade utilitária e aquisitiva com a nossa, onde um qualquer
D. Quixote e seus moinhos de vento são sempre bem vindos pela oportunidade
oferecida à chacota sobre a sua triste figura. Claro que a triste
figura pode não estar no homem de La Mancha, mas no pauperismo dos
que o aguardam como abutres ávidos para extraírem da sua
situação existencial um mísero casquinar.
O riso nos tempos modernos, mesmo empobrecido, como é
óbvio não desaparece de cena, antes é aproveitado
por uma indústria que o sabe usar para os seus próprios fins.
O mercado do riso foi transformado em paliativo óuma máquina
que gira para não sair do seu lugar ó, e assiste-se cada
vez mais à sua própria macaqueação. As anedotas
do Sala, os concursos televisivos onde as vítimas debitam piadas
ao cronómetro, a gargalhada enlatada das sit coms, são signos
desta domesticação de um instinto selvagem e profundo.
"Na falsa sociedade, o riso atacou ó como uma doença
ó a felicidade, arrastando-a para a indigna totalidade dessa sociedade.
Rir-se de alguma coisa é sempre ridicularizar, e a vida que, segundo
Bergson, rompe com o riso a consolidação dos costumes, é
na verdade a vida que irrompe barbaramente, a auto-afirmação
que ousa festejar uma ocasião social, a sua libertação
do escrúpulo. Um grupo de pessoas a rir é uma paródia
da humanidade. São mónadas, cada uma das quais se entrega
ao prazer de estar decidida a tudo à custa dos demais e com o respaldo
da maioria. A sua harmonia é a caricatura da solidariedade. O diabólico
no riso falso está justamente em que ele é forçosamente
uma paródia até mesmo daquilo que há de melhor: a
reconciliação" (Adorno, 1985:132).
Como Adorno muito bem nota, o riso perdeu a sua inocência
original e tornou-se maldoso, amarrado que está às instâncias
da dominação. De repente, tudo ficou repleto de Sanchos Panças,
que já não se dão ao trabalho sequer de seguir o seu
mestre. A mula foi substituída pelo sofá mais próximo
do televisor2 e espera-se
que as máquinas produtoras de gargalhadas façam o seu trabalho,
para que se possa rir alarvemente a toque-de-caixa.
O medo deixou de existir e, como tal, o dispêndio do potlatch
e do riso, como supérfluos que são, tornam-se obsoletos,
já que uma vez realizada a perda do homem pobre, aquele que não
possui bem para realizar o potlatch, "le plaisir de líhomme riche
[realizar o potlatch] se trouve peu à peu vidé de son contenu
et neutralisé: il fait place à une sorte díindifférence
apathique" (Bataille, 1933:40).
Esta indiferença apática é o lugar privilegiado
para a indústria do prazer. "O riso torna-se nela o meio fraudulento
de ludibriar a felicidade". A mentira instala-se com o recurso ao humor,
"a alegria maldosa que se experimenta com toda a renúncia bem-sucedida.
Rimos do facto de que não há nada de que se rir" (Adorno,
1985:131).
É pois um riso domesticado, um riso da maioria numa cultura
da sit com, que modela o gag em conceitos previamente estabelecidos e re-conhecidos
por todos. Os intervenientes sabem de cor as suas marcações,
e até em que ritmo podem rir. A comédia não é
mais que isto. A antevisão de um qualquer filme para plateias escolhidas
a dedo, é bem o exemplo acabado desta instrumentalização
do riso. Nesta primeira reacção do público procura-se,
antes de mais, extirpar os elementos considerados espúrios a este
cómico condicionado. Produz-se o riso como se fabricam enchidos
numa linha de montagem: entra porco, sai chouriço. Esta sociedade
aceita muito relutantemente o agónico, o imprevisto e o excesso,
assente que está nos alicerces de uma verdade deformada. Mas o riso
gosta de usar artimanhas e, tal como o vento, penetra por todas as frestas
da casa, levantando o pó pusilâmine da renúncia à
vida.
Numa época em que a maioria das ciências sociais
proclamam, por hiperdesenvolvimento (obesidade?), a morte do seu objecto,
cumpre portanto perguntar que é feito do riso originário,
aquele com que Eva estarreceu o Criador e que terá lançado
o homem na sua condição mortal e transitória de pó
a caminho do pó. E ainda bem. É a nossa mortalidade e não-omnisciência
que justifica a existência-persistência de tal gesto perdulário.
Borges, num dos contos do Aleph, compraz-se a descrever um mundo
pós-apocalíptico habitado por fantasmas e ruinas de fantasmas
que vagueiam, mudos e apáticos, por entre os escombros. São
os imortais, e a personagem que os encarna, Homero. O seu pesadelo, e poucos
pensaram nisso, é estarem condenados à eternidade, ao eterno
retorno de tudo o que foi e será, e portanto todo o gesto, que é
medido com a eternidade, deixa de fazer sentido - fazer o quê? se
tudo o que não foi feito, será inevitavelmente feito.
O riso é portanto apanágio da condição
dos mortais. Terá morrido com a instrumentalização
que se apoderou dele, numa altura em que a última barreira que parece
por ultrapassar é, precisamente, a da mortalidade? Há algo
de felino no riso, e o felino é o único animal que, deixando-se
domesticar, saber permanecer wild at heart. Mesmo domesticado, o riso continua
a encerrar felinamente este potencial selvagem e destruidor, que às
vezes, ainda que brevemente, irrompe de supresa sobre a superfície
lisa e nua das coisas.
A epígrafe de Nietzsche é, precisamente, a tese
que orienta Eco no Nome da Rosa. Só o que sabe rir-se de si consciente
da própria contingência pode rir, com a pureza original, da
verdade, do mundo, e mesmo dos outros, e esta é a forma privilegiada,
talvez única, de dizer Que Não. A morte do riso seria a morte
da condição humana, conquistada a tão duras penas
por intermédio de uma maçã. Portanto, o entimema segue
limpo e escorreito sem violar nenhuma lei da Lógica: o riso está
vivo.
Desde que haja alguém disponível para saltar para
cima do seu Rocinante e seguir viagem estrada fora, o dispêndio do
riso será a fogueira que o irá aquecer nas noites mais frias.
Não importa que desta vez Sancho Pança fique na soleira da
porta a ver partir o seu amo de triste figura. Haverá sempre dragões
a quem espetar galhardamente a lança, e outras aventuras dignas
de um cavaleiro, certo de que no fim o coração de Dulcineia
ó não importa se taberneira, mas sim o amor-puro-amor ó
será arrebatado com todo este dispêndio a despropósito
de forças e energias.
Quem sabe se no final da jornada não estará a resposta
de Guilherme de Baskerville, por sinal amigo de outro Guilherme, o de Occam,
ao seu fiel seguidor:
"Teme, Adso, os profetas e aqueles que estão dispostos a morrer
pela verdade, que de costume fazem morrer muitíssimos com eles,
frequentemente antes deles, por vezes em seu lugar. Jorge cumpriu uma obra
diabólica porque amava de modo tão lúbrico a sua verdade
que ousava tudo com a condição de destruir a mentira. Jorge
temia o segundo livro de Aristóteles porque ele ensinava talvez
a deformar deveras o rosto de toda a verdade, a fim de que não nos
tornássemos escravos dos nossos fantasmas. Talvez a tarefa de quem
ama os homens seja fazer rir da verdade, fazer rir a verdade, porque a
única verdade é aprender a libertar-nos da paixão
insana pela verdade" (Eco, 1996:486).
Notas:
1. É, de resto, um problema teológico interessante saber se uma criatura omnisciente, para a qual nunca haverá surpresas, pode rir.
2 . Os americanos, possuem, aliás, uma expressão
belíssima, de conotações infinitas, para designar
este tipo de humanóide: "couch potatoe".
Bibliografia:
Adorno et. al., 1944, Dialética do Esclarecimento, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro.
Bataille, Georges, 1933, "La Notion de Dépense", in La Critique Sociale, nº 7.
Bergson, Henri, 1993, O Riso - Ensaio Sobre o Significado do Cómico, 2ª ed., col. Filosofia & Ensaios, Guimarães Editores, Lisboa.
Duvignaud, Jean, 1985, Le Propre de LíHomme - Histoires du Rire et de la Dérrision, col. La Force des Idées, Hachette, Saint-Amand-Montrond.
Eco, Umberto, 1996, O Nome da Rosa, Difel - Difusão Editorial, Lisboa.
Nietzsche, 1987, A Gaia Ciência, col. Filosofia & Ensaios, Guimarães Editores, Lisboa.