José Manuel Silva
Fevereiro de 1997
A citação de Walter Benjamin que dá o título
ao presente trabalho servirá de mote na discussão mantida
em torno da obra de arte na contemporaneidade. O facto novo que aqui emerge
é viver-se numa era que pulverizou por completo os modelos e categorias
antigas do Belo, devido à assunção do conceito de
"reprodutibilidade técnica" que integra a obra estética na
esfera industrial da cultura.
Perante uma época que tem como única certeza o
seu fim, é lícito perguntar, à maneira kantiana, "O
que podemos esperar?" e "O que devemos fazer a seguir?". As respostas a
estas questões serão procuradas, sobretudo, na fecundidade
das divergências entre Theodor Adorno e Walter Benjamin, representantes
máximos da Escola de Franckfurt.
A busca aqui proposta prende-se com a ideia de que Adorno, ao
assumir como princípio da sua crítica a não identidade
entre razão e real, leva até ao fim uma dialéctica
negativa de onde não se pode escapar, enquanto Benjamin assimila
e transforma toda esta negatividade em admiráveis mundos novos,
infinitamente geradores de possibilidades e fascínio.
Se aceitarmos a noção de que Hegel foi "o inventor
de um triciclo a que chamaram dialéctica"(Melo, 1977: 16), podemos
dizer que na teoria adorniana falta uma das rodas ao veículo ó
a "síntese" é sempre impossível de alcançar.
Para Adorno, a transformação que ocorre no universo da cultura
dá-se como um acidente repressivo, e a razão aí só
pode erigir-se como negatividade.
Este percurso de crítica do pensamento moderno sobre si
próprio é levado por Adorno a formas paroxísticas,
que estão patentes no paradoxo da razão que intenta refutar
a própria razão. O único sentido da crítica,
e que permite à razão não se transformar em anti-razão,
é o carácter não conclusivo de uma reflexão
dialéctica que não cessa de recolocar em questão os
seus próprios resultados. Esta é, aliás, a força
do pensamento adorniano.
Ora esta profunda negatividade, a que subjaz, evidentemente,
o colapso da razão que se esmaga sobre si própria nas suas
investigações, desvanece-se no pensamento de Benjamin, e
aquilo que para Adorno era considerado "o retorno à barbárie",
constitui neste último mais uma fonte de esperança, mais
um caminho que pode vir a ser trilhado pelo homem nas novas formas de arte
que estão ao seu dispor.
Como se sabe, a questão estética, desde que Sócrates
respondeu a Hípias que "o Belo não era um atributo particular
de mil e um objectos; sem dúvida, homens, cavalos, vestuário,
virgem ou lira são coisas belas; mas acima de tudo isso, existe
a Beleza em si" (Huisman, 1984: 16), acompanhou para sempre o homem. Platão,
discípulo de Sócrates, dá os primeiros passos na busca
deste Belo. No Fédon, o filósofo grego diz que na origem
de toda a beleza deve haver "uma primeira beleza que pela sua presença
torna belas as coisas que designamos por belas, qualquer que seja o modo
como se faz essa comunicação"(Huisman, 1984:17), e é
só pela ascese dialéctica que ascenderemos amorosamente a
esse cume ideal do mundo das ideias, onde o perfeito Belo resplandece.
Muitos séculos passaram até que se despertasse
deste sonho dogmático de existência de um belo-em-si, e para
tal foi preciso esperar pela figura tutelar de Kant, que na "Crítica
do Juízo Estético" pretende "superar a antinomia fundamental
entre a ideia de um gosto subjectivo, imbuído do que a sensibilidade
comporta de contigência, particular e arbitrário, e a ideia
de um gosto universal e necessário. Entre estes dois pólos,
o gosto ficava apenas reduzido ou a um prazer ou a um juízo" (Huisman,
1984: 36). Para o filósofo alemão, o gosto já não
é apenas um juízo do sentimento, é também um
sentimento do juízo, tornando-se, pois, um universal necessário
e afectivo.
O sistema kantiano, profundamente influenciado pelos alvores
do Iluminismo, vem demonstrar que "é permitido determinar, por conceitos
a priori, a relação de um conhecimento que não provém
nem da razão pura prática nem da razão pura especulativa,
mas da faculdade de julgar proveniente do sentimento do prazer ou do desgosto"
(Huisman, 1984: 36).
No interior da "Crítica do Juízo Estético"
, a sua Analítica compõe-se de quatro momentos essenciais
para a compreensão dos traços estéticos fundamentais
do pensamento kantiano. Assim, num primeiro momento, considerado o da qualidade,
ao comparar as formas de satisfação estética do gosto,
do agradável e do Bem, Kant infere que "o gosto é a faculdade
de julgar um objecto ou um modo de representar pela satisfação
ou desprazer de forma inteiramente desinteressada. Designa-se por Belo
o objecto dessa satisfação" (Huisman: 1984:38).
O segundo momento do esquema kantiano, conhecido pelo da quantidade,
irá deduzir que a categoria da beleza é representada "sem
conceito" como "objecto de uma satisfação necessária"
definindo-se assim o Belo como "aquilo que agrada universalmente sem conceito".
No passo seguinte, o da relação, Kant vai mostrar
que o juízo do gosto repousa em princípios a priori e totalmente
independentes de conceitos como a atracção, a emoção,
e a perfeição, propondo em princípio o ideal de beleza
"pelo acordo mais perfeito possível de todos os tempos e de todos
os povos" àcerca "das produções exemplares". Kant
retira daqui a conclusão de que a beleza se manifesta como "a forma
da finalidade de um objecto enquanto percebida sem representação
de fim" .
Por último, o momento do juízo do gosto, segundo
a modalidade, vem salientar que "a necessidade do contentamento universal
concebido num juízo de gosto é uma necessidade subjectiva,
na suposição de um senso comum", definindo o Belo a partir
deste momento como "aquilo que é reconhecido sem conceito como o
objecto de uma satisfação necessária" (Huisman, 1984:
39).
Este uso da Razão para a compreensão do fenómeno
estético, apesar de duramente criticado por Adorno, traz na sua
génese o fermento daquilo que se vai passar nas primeiras décadas
deste século.
Desejando-o ou não, Adorno na sua Teoria Estética,
última obra da sua vida, para rebater as propostas de Kant vai utilizar
o mesmo instrumento que este último usou: a Razão. Adorno
não deixa, no entanto, de admirar o edifício kantiano, pois
segundo as suas palavras "Kant foi o primeiro a adquirir o conhecimento,
ulteriormente admitido, segundo o qual o comportamento estético
está isento de desejos imediatos; arrancou a arte ao filistinismo
voraz, que continua de novo a tocá-la e saboreá-la" (Adorno,
1970: 21).
Adorno discorda, por completo, é da assunção
kantiana da ideia de "satisfação desinteressada". Nesta questão,
o homem da Escola de Franckfurt sublinha que "a satisfação
desprovida deste modo do que em Kant se chama o interesse, torna-se satisfação
de algo tão indefinido que já não serve para nenhuma
defeinição de Belo" (Adorno, 1970: 21). A doutrina da satisfação
desinteressada é pobre perante o fenómeno estético,
até porque visa reduzi-lo "ao belo formal, sobremaneira problemático
no seu isolamento". Adorno, imbuído que está da sua crítica
dialéctica, à guisa de explicação refere que
Kant ao realçar a diferença entre a arte e a faculdade de
julgar valida consequentemente a diferença entre a arte e a realidade
empírica, "mas não a idealizou sem mais: a separação
da esfera estética em relação à empiria constitui
a arte. No entanto, Kant fixou transcendentalmente esta constituição,
em si mesma algo de histórico, e, mediante uma lógica simplista,
equiparou-a à essência artística, sem se preocupar
com o facto de que as componentes da arte subjectivamente pulsionais retornam
metamorfoseadas na sua forma mais pura, que as nega" (Adorno, 1970: 22).
A Teoria Estética adorniana também não passou
incólume às críticas dos seus pares e Peter Bürger,
num artigo publicado na Revista de Estética, a propósito
da figura de Adorno, dá conta de alguns exemplos significativos:
"On lui reproche díavoir réduit líart au ëdenominateur
commun de la négativitéí et de líavoir amputé
de sa ëfonction de communicationí, on découvre le caractère
théologique sous-jacent díune esthétique qui oppose
líart à la réalité comme son ëautreí".
Esta ideia de uma estética que opõe a arte à
realidade como seu "autre" está bem patente nas palavras dirigidas
a Kant quando Adorno afirma que "ao que é desprovido de interesse
deve juntar-se a sombra do interesse mais feroz, se pretende ser mais do
que simples indiferença; muitas coisas provam que a dignidade das
obras de arte depende da grandeza do interesse a que são arrancadas.
Kant nega isto por causa de um conceito de liberdade, que pune com a heteronomia
o que nem sempre é próprio do sujeito (...) Por conseguinte,
em conjunto com aquilo de que ela brotou antiteticamente, a arte fica amputada
de todo o conteúdo e supõe-se no seu lugar um elemento tão
formal como a satisfação. Bastante paradoxalmente, a estética
torna-se para Kant um hedonismo castrado, prazer sem prazer, com igual
injustiça com a experiência artística, na qual a satisfação
actua casualmente e de nenhum modo é a totalidade" (Adorno, 1970:22).
Nesta abordagem sumária, onde o vigor da crítica
adorniana se manifesta em tudo onde repousa os seus olhos, como uma espécie
de frémito desmedido e paradoxal, pois pode falar-se de uma paixão
devoradora pela Razão, encontram-se algumas pistas sobre o cerne
do assunto que se propõe, a partir deste momento, colocar em discussão.
Tendo sempre como pano de fundo os textos de Theodor Adorno sobre
a "Indústria da Cultura"; e de Walter Benjamin a propósito
da "Obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica", seguir-se-á
não um caminho directo e de sentido único, mas alguns outros
trilhos situados nas suas margens, que em aproximações sucessivas
e graduais, servirão como pontes de passagem para o interior fulgurante
destas duas personagens que marcaram, indelevelmente e cada um à
sua maneira, o pensamento contemporâneo.
Sendo os homens, em grande medida, aquilo que as suas vidas deles
fazem, nada melhor do que partir à descoberta destas personagens
através das suas histórias pessoais, tantas vezes cruzadas,
mas que nunca obliteraram uma independência intelectual que constituia,
para ambos, ponto de honra.
A Criança e o Mestre
Se não soubessemos que Benjamin era 11 anos mais velho
que Adorno e que este último foi, sem margem para dúvidas,
"o primeiro e único discípulo de Benjamin" (Arendt, 91: 178),
obteriamos da relação entre ambos uma imagem distorcida.
Pelas epístolas trocadas entre dois, é sempre Adorno quem
assume o papel do velho mestre, constantemente pronto a proteger, sempre
presente quando Benjamin encontrava na sua vida "o senhor desajeitado",
sempre pronto "a mandar-lhe cumprimentos" (Arendt, 91 : 187). O velho mestre
seguia de longe os acontecimentos, sorrindo com as traquinices do "discípulo",
outras vezes amargurado quando julgava que essas tropelias tinham a ultrapassado
as marcas; usando muitas vezes palavras severas, para o chamar à
razão. "A discussion of the Adorno/Benjamin debate will not necessitate
abandoning the main thesis, but only demonstrate the dialectics of their
friendship" (Buck-Morss, 1977: 139).
A nova orientação política marxista de Benjamin,
ligada à sua paixão antiga pela mística judaica, explica
que "unique among his friends, only Adorno really suported Benjaminís
efforts to incorporate both poles" (Buck-Morss, 1977: 141). Mas toda a
paciência tem limites e o caso muda de figura quando Benjamin descobre
o surrealismo, tornando-se amigo de Brecht, um homem que Adorno pura e
simplesmente detestava: "When Benjamin had found in surrealism an aesthetic
model for his theological impulse which he now understood as ëprofane
illuminationí, Adorno referred to such illumination as ënegativeí,
or ëinverseí theology, equating it with aesthetic experience"
(Buck-Morss, 1977: 141).
Benjamin tem perfeita consciência da sua dualidade teórica
e refere-se a ela como a sua "Janus-face". Esta hercúlea tarefa
de unir aquilo que não se pode juntar é considerada uma "intellectual
schizophrenia [wich] repeatedly exasperated Adorno, whose own notion of
profane illumination was to extrapolate out of the extremes of theology
and Marxism to the point where they could be shown to converge, rather
than simply to present these two poles in unmediated juxtaposition" (Buck-Morss
1977: 141).
Apesar deste permanente desacordo entre Adorno e Benjamin, o
primeiro sempre alimentou a esperança de salvar o náufrago
que julgava à deriva num mar de ilusões. O próprio
Benjamin, extremamente lúcido, como era o seu timbre, também
tem essa imagem de naufrágio iminente, e numa carta de 1931 dirigida
a Gerhard Scholem, dá conta da sua situação desesperada,
escrevendo: "Como náufago que se mantém à tona trepando
a um mastro já vacilante. Mas daí tem a oportunidade de lançar
um sinal, pedindo socorro" (Arendt, 91: 199).
"During all of their disagreements Adornoís persistent
goal was to rescue Benjamin from what he considered the Scylla of Brechtian
materialism on the one hand, and the charybdis of Judaic theology on the
other" (Buck-Morss, 77: 141). Adorno responde sempre à chamada,
mas os motivos são sempre diferentes dos de Benjamin.
Para um entendimento mais preciso destas duas fortes personalidades,
retratar-se-á de seguida algumas divergências de pensamento
e de atitudes que os vão colocando em campos opostos, por vezes
mesmo extremados.
O homem da instituição
versus o "flâneur"
O Instituto de Pesquisa Social é a casa de Adorno. Ele
e Max Horkheimer fundam os alicerces de uma Teoria Crítica da Sociedade,
que mesmo exilada nos Estados Unidos, se irá manter bem viva até
ao início da década de 60.
A natureza adorniana não é de modo algum expansiva,
e quando muitos intelectuais aderiam entusiasticamente ao Partido Comunista,
Adorno, um marxista convicto, colocou sempre reservas em envolver-se no
pulsar da vida política do seu tempo. Esta atitude manteve-se íntegra
ao longo do seu percurso pessoal, criando dissabores aos esquerdistas da
década de 60, que já o viam como um "pai" e um líder
natural do movimento contestatário que surgia um pouco por toda
a Europa. Contudo, esta sua natural reserva e distanciamento leva, rapidamente,
ao desapontamento generalizado e à criação de suspeitas
em seu redor, tornando-se Adorno, sem o ter desejado, "the most controversial
theoretician of the German New Left" .
Controverso como era no interior da nova esquerda germânica,
é muito natural que o percurso de crítica do pensamento moderno
sobre si próprio que constrói, apesar de ter sido discutido
ao longo do século, permaneça, no entanto, numa zona de penumbra.
O próprio Adorno não favorece de todo uma ampla expansão
das suas ideias e dos seus textos, tanto dentro do quadro alemão,
como no período de exílio na Inglaterra e nos Estados Unidos,
onde a sua figura sempre se manteve afastada dos circuitos visíveis
da fama.
Bem distinta é a vida e o percurso pessoal de Walter Benjamin.
O mínimo que se pode dizer é que se trata de um homem fascinado.
Como todos os seus quadros de referência, atitudes e comportamentos
pertencem ao século anterior, esta personagem parece ter sido deslocada
repentinamente para este século, sentindo-se maravilhada com o que
estava a acontecer num mundo totalmente novo, digno de todas as explorações.
Neste estranhamento poder-se-á filiar o seu pensamento
inconstante, desconcertante por vezes. As suas paixões intelectuais
revelam bem este "flirt" pelas coisas, num eterno deambular à procura
de algo, algo que Benjamin muitas vezes se apercebia não ser o essencial,
mas sim um caminho percorrido que o levava aos mais estranhos recônditos
da experiência humana. Por isso, os seus biógrafos têm
dificuldade em o descrever, e a única forma encontrada para chegar
até este autor passa por uma série "de afirmações
negativas" que escapam às nossas referências habituais.
"A sua erudição era grande, mas ele não
foi um erudito; o seu trabalho tinha a ver com os textos e a sua interpretação,
mas não era um filólogo; sentia-se extremamente atraído,
não pela religião, mas pela teologia e pelo tipo de interpretação
teológica segundo o qual o próprio texto é sagrado,
mas não era teólogo e não manifestou especial interesse
pela Bíblia; era um escritor nato, mas a sua maior ambição
foi criar uma obra exclusivamente composta de citações; foi
o primeiro alemão a traduzir Proust e Saint-John Perse, e já
antes disso traduzira os ëTableaux Parisiensí de Baudelaire,
mas não era um tradutor; fazia recensões críticas
de livros e escreveu um livro acerca do barroco alemão e deixou
inacabado um enorme estudo sobre o século XIX francês, mas
não era um historiador da literatura; (...) ele pensava poeticamente
mas não era poeta nem filósofo" (Arendt, 91: 180).
Esta larga passagem de Arendt traduz uma personalidade multifacetada,
que se dava bem pelas margens do pensamento contemporâneo, apesar
de reconhecer os perigos que podiam advir dessa situação
incómoda e ser um desastre em interpretar esses sinais, como a catadupa
de infortúnios ocorridos na sua curta vida o prova.
Benjamin nunca pertenceu verdadeiramente a nenhuma escola de
pensamento, e manteve-se ligado ao Instituto de Franckfurt sempre por laços
muito ténues e fracos. No entanto, era um homem de amizades que
correspondiam sempre às suas motivações intelectuais.
Na esteira do que foi dito, é de fácil compreensão
os rancores mudos que esta inusitada figura, sem se aperceber de nada,
criava à sua volta. Sem mexer um dedo para evitar desastres iminentes
e perfeitamente previsíveis, transmitia sempre a impressão,
nas suas acções, de que estava a fugir deles.
Walter Benjamin tinha inculcada até à medula o
espírito das errâncias. "É ao flâneur, vagueando
sem rumo por entre a multidão das grandes cidades, em oposição
deliberada à sua actividade febril e utilitária, que as coisas
revelam o seu sentido íntimo (...), e só o flâneur,
na sua errância descuidada, consegue captar a mensagem" (Arendt,
91: 190-191).
O fascínio pelas passagens de Paris, que o autor descobre
ainda novo, não mais desaparece, e nada melhor que a figura do "flâneur"
para viajar através "das fachadas uniformes, limitando as ruas como
paredes interiores, que fazem uma pessoa sentir-se fisicamente mais resguardada
nesta cidade do que em qualquer outra" (Arendt, 91: 201), comenta um Benjamin
assombrado. "As passagens que ligam entre si os grandes boulevards e oferecem
um abrigo contra as intempéries exerceram sobre Benjamin um tão
extraordinário fascínio que ele se referia à grande
obra que projectava escrever sobre o século XIX e a sua capital
chamando-lhe simplesmente ëAs Passagensí" (Arendt, 91: 201).
Este andar à deriva de Benjamin, que irritava de sobremaneira
Adorno e que era considerada por este como uma pura perda de tempo, traz
na sua génese a próxima divergência entre os dois autores.
A dialéctica negativa versus
o mundo das aparências
A crítica adorniana, profundamente racionalista, tem nos
seus limites um exercício de dialéctica negativa que leva
à refutação da razão, refutação
essa levada a cabo pela própria razão. Como horizonte de
reflexão, cada vez mais abstractizada, está o fenómeno
cultural contemporâneo. Esta cultura, na visão de Adorno,
é enformada pelo fenómeno de emergência das massas,
que ganha expressão em todos os campos da actividade humana, seja
ela política, económica ou social. Aliado a esta massificação
está um poderoso processo de alta tecnologização,
que se expande dos processos materiais para atingir os processos de reprodução
simbólica, e assim o nível individual é também
duramente violentado.
A ideia de separação das esferas material e simbólica
estilhaça-se devido ao consumismo cultural. Tudo se torna uniforme
e Adorno ó onde Benjamin se maravilhava com a intensa diversidade
que a tecnologização da cultura traz no seu seio ó
apenas encontra uma trágica semelhança que se apega a todas
as coisas tentando devorá-las.
Daí o seu espanto, e a crítica a Benjamin pela
sua "descrição meticulosa dos pormenores factuais". "Quanto
mais pequeno o objecto, mais susceptível lhe parecia de conter,
sob a forma mais concentrada, tudo o resto" (Arendt, 91: 190), como se
o mundo fosse um imenso fractal desdobrando-se infinitamente sobre si próprio.
O fascínio benjaminiano, ao contrário do que sucedia com
Adorno, nunca foram as ideias, mas sempre o fenómeno. Nas palavras
de Benjamin, isto assim sucede porque "o que me parece paradoxal em tudo
quanto justificadamente dizemos belo é o facto de se manifestar
no mundo das aparências" (Arendt, 91: 190). A biógrafa chama
a este paradoxo "o prodígio da aparição", que esteve
sempre na base de todas as suas deambulações. Mesmo a paixão
de Benjamin pela dialética sofre destes estímulos encantatórios
das coisas. Curiosa é a crítica de Adorno a esta excentricidade,
que é apelidada de "não dialética", pois que se move
num quadro de "categorias materialistas que de modo algum coincidem com
as marxistas".
Benjamin, que chegou a pensar em aderir ao Partido Comunista
seria talvez o marxista mais singular de toda a história. Pouco
preocupado com o edifício conceptual de Marx, era atraído,
no entanto, pela doutrina da superstrutura, uma pequena franja do pensamento
marxista e a que o próprio Marx dedicou poucos parágrafos,
sendo certo que só muitas décadas depois tal conceito viria
a transformar-se na coqueluche e deleite da inteligentzia dos anos 60.
Mas "Benjamin apenas se serviu desta doutrina enquanto estímulo
heurístico-metodológico, pouco ou nada se interessando pelo
seu pano de fundo histórico ou filosófico. O que o fascinou
foi o facto do espírito e a sua manifestação material
estarem tão intimamente ligados que parecia possível descobrir
em toda a parte as ëcorrespondancesí baudelairianas, cujo poder
de se clarificarem e iluminarem umas às outras quando devidamente
correlacionadas, acabaria por dispensar, em última análise,
todo e qualquer comentário interpretativo ou explicativo" (Arendt,
91: 189).
Como é evidente, esta atitude escapa a qualquer quadro
de referência dialético e Adorno critica este "elemento estático"
do pensamento benjaminiano. Adorno vai mais longe e salienta que "para
se compreender correctamente Benjamin há que descortinar por trás
de cada frase a conversão da mais extrema agitação
em algo estático, que é afinal a noção estática
do próprio movimento".
Benjamin não se interessava minimamente por teorias ou
"ideias" que de imediato não assumissem a forma exterior, daí
que o seu pensamento "não visava nem podia traduzir enunciados irrefutáveis
e universalmente válidos; estes eram substituídos, como Adorno
observa em tom de crítica, em ëenunciados metafóricosí"
(Arendt, 91: 191) .
Por isso, voltando de novo à teoria da superstrutura,
é bem de ver que Benjamin não tinha qualquer dificuldade
em entendê-la "como a doutrina definitiva do pensamento metafórico
ó precisamente porque estabelecia com toda a naturalidade, e evitando
qualquer espécie de mediações, uma relação
directa entre a superstrutura e a chamada infra-estrutura ëmaterialí,
que para ele equivalia à totalidade dos dados da experiência
sensível" (Arendt, 91: 193).
Deste fascínio pela forma exterior das coisas, nasce uma
nova divergência com o pensamento adorniano, a partir da aproximação
de Benjamin ao surrealismo, sobretudo quando encontra na sua vida uma figura
como a de Bertolt Brecht. Os seus dois amigos de sempre ó Adorno
e Scholem ó sobre este encontro apenas referem a "influência
desastrosa" de Brecht em Benjamin.
Anti-vanguardismo
versus Surrealismo
Theodor Adorno, na sua Teoria Estética, dá uma imagem
terrível do que é a arte nos dias de hoje. A uniformização
da indústria cultural permitiu "a supressão da diferença
entre o artista como sujeito estético e o artista como pessoa empírica"
(Adorno, 70: 283) e implicou que "a distância da obra de arte à
empiria foi suprimida sem que, no entanto, a arte tenha sido restituída
à vida livre que não existe. A sua proximidade intensifica
o lucro, a imediaticidade é organizada para enganar" (Adorno, 70:
283).
Para Adorno, até os movimentos vanguardistas fazem este
"engano das massas" quando pretendem "assinalar à arte, teórica
e até mesmo praticamente, o seu lugar na sociedade". É que
depois da arte ter sido reconhecida como um facto social igual a tantos
outros, "o complemento do lugar sociológico sente-se-lhe, por assim
dizer, superior e dispõe dela". Por isso é que "as perturbações
vanguardistas das reuniões da vanguarda estética são
tão ilusórias como a crença de que elas são
revolucionárias e que a revolução é uma forma
de belo: a amusia não se situa por cima, mas abaixo da cultura,
e o ëengagementí muitas vezes não é senão
falta de talento ou concentração, um abrandamento da força"
(Adorno, 70, 283).
Peter Bürger, num artigo intitulado "Líanti-avant-gardisme
dans líesthétique díAdorno" refere que "líattaque
dirigée par les mouvements díavant-garde contre le statut
díautonomie de art (...) ne peut être interprétée
par Adorno que comme un pseudo-dépassement de líapparence
esthétique, et non pas comme le lieu historique díun renversement
qui permettrait de penser les contradictions de líart au sein de
la société bourgeoise". É neste ponto que reside o
anti-vanguardismo de Adorno que, tal como um guardador de margens, quer
salvar a esfera da arte: "Contre les tendances conduisant à une
dissolution de líart en actions (dadaïsme), expression (expressionisme),
révolution de la vie quotidienne (surréalisme), Adorno veille
à ce que la ëfrontière ne soit pas violéeí,
frontière qui délimite la sphère de líart.
Parce quíil ne considère pas que la tentative díune
réinsertion de líart dans la vie quottidienne soit une étape
nécessaire à líinterieur de la société
bourgeoise, et quíil y avoit au contraire um retour à la
barbarie, sa critique des catégories de líesthétique
idéaliste aboutit finalement à leur sauvegarde" (Burger:
85, 90).
Podemos afirmar que a estética adorniana acaba por ser
uma estética saudosística, que vive obcecada com a ideia
de reconciliação do homem com a natureza, com a ideia platónica
que o homem busca qualquer coisa de essencial que perdeu. Para Platão
a arte era algo de dispensável e nocivo, porque simulacro, imitação
inferior da realidade. Para Adorno as vanguardas, e em geral toda a arte
praticada no seu tempo, era dispensável e nociva, porque simulacro
ó não já inferior mas hiper-real ó e simulacro
ao serviço de um projecto de dominação e embrutecimento
do homem.
Como tal, a nostalgia platónica das formas puras não
encontra qualquer justificação para estas novas formas de
arte: "Líutopie renouvelée et actualisée dans le contexte
des mouvements díavant-garde, selon laquelle tous devraient pouvoir
síépanouir en produisant librement, níest pas dévoloppée
par Adorno parce que son esthétique est centrée sur le concept
de la grande oeuvre díart qui garantit la pérennité
de líartiste" (Burger, 1985: 93).
Pelos mesmo motivos que Adorno se afasta dos movimentos vanguardistas,
é que Benjamin se aproxima firmemente do surrealismo como modelo
estético a seguir. "Com Brecht [Benjamin] podia praticar aquilo
a que o próprio Brecht chamava ëpensamento brutoí" A
ideia era para Brecht "aprender a pensar em bruto. O pensamento em bruto
é o pensamento dos grandes" e Benjamin conclui que "para muita gente,
um dialéctico é um amador de subtilezas... Mas a verdade
é que os pensamentos em bruto devem fazer parte integrante do pensamento
dialéctico, pois não são mais do que a referência
da teoria à prática... Só o pensamento em bruto pode
afirmar os seus direitos no campo de acção" (Arendt, 91:
194) . E é no surrealismo que Benjamin vai encontrar este campo
de acção posto a descoberto pela nova técnica artística
ó escrita automática, ready-made, cadáveres esquisitos
ó imprimida pelo pensamento em bruto.
Mais ainda, "It was the artistic technique of surrealism that
fascinated Benjamin. Surrealist art portrayed everyday objects in their
existing, material form (in this literal sense surrealist fantasy was ëexactí),
yet these objects were at the same time transformed by the very fact of
their presentation as art, where they appeared in a collage of remote and
antithetical extremes. Prototypical of Benjaminís ëdialectical
imagesí, surrealist atwork illuminated unintended truth by the juxtaposition
of ëtwo distant realitiesí from wich sprang ëa particular
light..., the light of the imageí" (Buck-Morss, 77: 125).
Em Benjamin a função cultural da arte tradicional
termina e em seu lugar surge uma arte enraízada na praxis. O valor
regulativo que nos diz o que é a arte é o seu valor expositivo
e já não o seu valor cultural. O valor não está
na obra em si mas na obra que se mostra, que se dá a ver.
Por isso, para Benjamin é fabuloso que a flor azul deixe
de ser sonhada, pois através da técnica agora é colocada
à disposição de todos, e todos podem vê-la,
tocá-la, e se possível cheirá-la. É a flor
azul, aliás, que conduz este trabalho para os textos sobre a questão
estética de Adorno e Benjamin.
É fácil imaginar o fascínio de Benjamin,
e a negatividade de Adorno, à volta da flor azul. Para o primeiro
ela seria tão mais perfeita quanto maiores fossem as possibilidades
de reprodutibilidade técnica que oferecesse. Poderá ser grande
injustiça dizê-lo, talvez Benjamin tivesse olhos mais virgens,
mas a imagem que isto irremediavelmente evoca é a do ramo kitsch,
de plástico, repetido ad nauseam num qualquer hipermercado (hipermercado
que, como na imagem do fractal, também se repete infinitamente,
em progressão geométrica e imparável). Para Adorno,
pelo contrário, a flor é algo que se sonha e que se busca,
e nesse sentido é um objecto raro e de uma delicadeza diáfana,
como se possuisse asas translúcidas e por isso constantemente se
escapasse. É preciosa e rara como um perfume ó talvez até
exista tão só apenas o perfume ó que embriaga despertando
o desejo mais intenso, mas ao mesmo tempo volatiliza-se, permanecendo inacessível
à captura e à posse. Adorno é tão vago nos
seus textos de estética, que poderiamos dizer que para ele talvez
nem sequer exista flor azul, só a ideia, a nostalgia de um perfume.
Sob o signo tentacular
da dominação
Na sua análise sobre as Indústrias da Cultura, Adorno
coloca o acento problemático na figura do indivíduo ameaçado
pelo poder da técnica sobre a sociedade. E se "a racionalidade da
técnica hoje é a racionalidade da própria dominação"
(Adorno, 85: 114), então conclui-se que "é o poder dos economicamente
mais fortes que se faz sentir sobre a sociedade". Os gostos são
padronizados , a produção em série faz com que "a
flor azul" não tenha uma pétala fora do estribilho que é
a uniformização. Até porque "se tudo vem da consciência",
então "na arte para as massas vem da consciência das equipas
de produção" (Adorno, 85:117). Os próprios meios audio-visuais,
que tentam oferecer uma diversidade de escolhas, não estão
mais do que "a aumentar o empobrecimento dos materiais estéticos,
a tal ponto que a identidade mal disfarçada dos produtos da indústria
cultural pode vir a triunfar abertamente já amanhã -- numa
realização escarninha do sonho wagneriano da obra de arte
total" (Adorno, 85: 116).
A tese adorniana é que aquilo que se dá a ver como
diversidade não passa de uma mera aparência, e o que realmente
sucede de facto, com a chegada das indústrias culturais, é
a introdução de uma marca identificativa que constitui a
uniformização. Isto significa que o sujeito já recebe
o objecto com as marcas, os signos de como há-de ser percebido,
e portanto, face a ele, é totalmente passivo ó nada retira
do objecto, porque também nada lhe dá, e já perdeu
há muito a capacidade de sonhar. Estes sinais são para Adorno
tão visíveis nos regimes ditatoriais como nos ditos democráticos:
em ambos é o autoritarismo que marca a sua presença, distinguindo
toda a cultura de massas como idêntica.
Descobre Adorno esta uniformidade na falsa identidade entre o
universal e o individual que os poderes de dominação instituídos
gostam de apregoar aos quatro ventos. Nessa aparente diversidade esconde-se
a marca organizadora: o dinheiro. Este, para além de ser um instrumento
económico, vai conformar um corpo social, impondo tão só
uma única regra: dar a aparência de que esse corpo se organiza
de acordo com a liberdade de cada um.
Nada no campo cultural escapa a esta totalidade, aliás,
é aí que surge uma dominação mais refinada,
sustentáculo de todo o edifício de dominação,
e por isso o mundo inteiro vê-se na contingência de ser "forçado
a passar pelo filtro da indústria cultural". Esta desenvolveu-se
a partir de um "predomínio que o efeito, a performance tangível
e o detalhe técnico alcançaram sobre a obra, que era outrora
veículo da Ideia e com essa foi liquidada (...) A tudo isto deu
fim a indústria cultural mediante a totalidade. Embora nada mais
conheça além dos efeitos, ela vence a sua insubordinação
e os submete à fórmula que substitui a obra"(Adorno, 85:
118).
A obra de arte enquanto construção desaparece,
restando apenas um produto sincrético, já preenchido tecnicamente,
numa totalidade que vai distribuindo os elementos mediante as possibilidades
reais de cada técnica, prefigurando as próprias partes que
a compõem. O artista, na era da indústria cultural, não
passa de um simulacro, uma figura anacrónica, onde já não
se pede, na sua intervenção, um confronto com os materiais.
Tudo já está previamente programado e nada escapa a este
olho ciclópico da cultura.
A necessidade de criação esvai-se numa injuncção
de técnicas prévias que tornam este trabalho uma mera imitação
de modelos, numa espécie de sucedâneo da identidade. "A indústria
cultural acaba por colocar a imitação como algo de absoluto.
Reduzida ao estilo, ela trai o seu segredo, a obediência à
hierarquia social. A barbárie estética consuma hoje a ameaça
que sempre pairou sobre as criações do espírito desde
que foram reunidas e neutralizadas a título de cultura" (Adorno,
85: 123). Tal como Platão, portanto, é precisamente o facto
de a arte ser ou, para Adorno, se ter tornado, simulacro, que é
criticado.
Nesta completa desvirtuação da obra, o lugar à
interrogação desaparece, restando apenas as piruetas técnicas
de uma arte que se ri de si própria. Para que este absoluto imitativo
possa funcionar tem de excluir-se deste universo o novo, e nisso a indústria
cultural é imbatível, sabe muito bem como o repelir: "Nada
deve ficar como era, tudo deve estar em constante movimento. Pois só
a vitória universal do ritmo da produção e da reprodução
mecânica é a garantia de que nada mudará, de que nada
surgirá que não se adapte. O menor acréscimo ao inventário
cultural comprovado é um risco excessivo" (Adorno, 85: 126). Este
novo é, no entanto, reclamado pelas formas de arte emergentes desta
era da tecnologização, mas tal facto é sinal de que
"a arte renega a sua autonomia, incluindo-se orgulhosamente entre os bens
de consumo, que lhe confere o encanto da novidade" (Adorno, 85: 147).
O ciclo fecha-se e na indústria da cultura o valor de
alguma coisa está na possibilidade da sua troca, nada no seu interior
existe em si mesmo se não se obtiver daí algum lucro. O próprio
valor de uso da obra de arte, que é o seu ser mais íntimo,
é considerado a partir de agora "como um fetiche, e o fetiche, a
avaliação social que é erroneamente entendida como
hierarquia das obras de arte - torna-se o seu único valor de uso,
a única qualidade que elas disfrutam" (Adorno, 85: 148).
O filósofo da Escola de Franckfurt remata a sua ideia
concluindo que "a arte como um género de mercadoria, que vivia de
ser vendida e, no entanto, de ser invendível, torna-se algo hipocritamente
invendível, logo que o negócio deixa de ser meramente a sua
intenção e passa a ser o seu único princípio"
O fascínio da infinita
reprodutibilidade
Estas linhas de força postas no ensaio "Indústria
Cultural" prenunciam já o modo crítico como Adorno irá
receber o texto de Walter Benjamin sobre "A obra de arte na era da sua
reprodutibilidade técnica". O próprio Benjamin também
não estaria a contar com uma boa recepção. Apesar
de estar "clearly excited about the piece, believing it would be an important
theoretical contribution to the debate on Marxist aesthetics going on among
artists and literary figures both inside and outside the Communist Party
in Europe during the thirties" (Buck-Morss, 77: 146), adiou por largos
meses o envio da cópia do manuscrito a Adorno e, finalmente, quando
se decidiu "the response, when it came, was critical". Até porque
não podia ser de outra maneira. Os temas tratados aproximavam-se
demasiado do próprio trabalho de Adorno "for the points of difference
no to be abrasive" (Buck-Morss, 77: 147).
Benjamin inicia o texto tomando, desde logo, o conceito da superstrutura
de Karl Marx, para com ele empreender o caminho em torno das recentes transformações
da cultura. "A transformação da superstrutura, que decorre
muito mais lentamente do que a da infra-estrutura, necessitou de mais de
meio século para tornar válida a alteração
das condições de produção, em todos os domínios
da cultura" (Benjamin, 92:73). Os propósitos do trabalho são
anunciados no prólogo: "Os conceitos seguidamente introduzidos,
novos em teoria da arte, diferenciam-se dos correntes pelo facto de serem
totalmente inadequados para fins fascistas. Pelo contrário, são
aproveitáveis para a formulação de exigências
revolucionárias em política de arte" (Benjamin, 92:74).
Ao querer trazer o método marxista de crítica ao
modo de produção capitalista para o campo artístico,
entendido este como um processo separado e que precisa de uma análise
própria, Benjamin está a deitar achas para a fogueira do
debate que o opõe a Adorno. Este último concordará
que a arte tem um desenvolvimento próprio, mas onde observa "artís
transformation brought about by the dialectical praxis between the artist
and the historical developed techniques of his trade", Benjamin situa "the
dialectic solely within the objectives forces of the superstructure, that
is, within the mechanical technologies of artís reproduction" (Buck-Morss,
77: 147) .
Este arrebatamento benjaminiano pelo marxismo acaba por subverter
a doutrina por completo, pois já não há lugar para
pensar numa infraestrutura prévia à própria cultura:
no seu interior é que se encontram os seus dois níveis de
existência, e as novidades instauradas ao nível da arte passam
pelos dispositivos técnicos na reprodução dos objectos
artísticos.
O seu método analógico, para explicar como estas
transformações se realizam no mundo artístico, está
mais uma vez demonstrado no exemplo que toma para desenvolver os seus raciocínios
posteriores. A fotografia servirá de base a esta tarefa de explicar
o todo pela ínfima parte ó reflexo ainda da "teoria" dos
cristais ou do fractal ó e, desta forma, um novo campo de investigações
abre-se à sua frente. "Pela primeira vez, com a fotografia, a mão
liberta-se das mais importantes obrigações artísticas
no processo de reprodução de imagens, as quais, a partir
de então, passam a caber unicamente ao olho que espreita por uma
objectiva. Uma vez que o olho apreende mais depressa do que a mão
desenha, o processo de reprodução de imagens foi tão
extraordinariamente acelerado que pode colocar-se a par da fala" (Benjamin,
92: 76).
Com a reprodução artística entramos num
novo mundo, havendo um outro que se fecha para sempre. A autenticidade
que constituia o original da obra de arte, a sua existência única
num espaço e num tempo próprio, onde faz a sua aparição,
perde-se por completo com a introdução das técnicas
que permitem a reprodução em série dessa obra. O conceito
de aura ó o aqui e o agora do original ó torna-se uma quimera
do passado. Esta transformação dialéctica da arte,
que a leva à sua auto-destruição, é, curiosamente,
entendida por Benjamin como uma espécie de bênção,
pois, assim, esta adquire um novo valor de uso. A obra deixa de depender
parasitariamente do ritual para se basear numa outra prática: a
política.
"Specifically, the possibility of the artworkís unlimited
duplication robbed it of its ëauraí, that very uniquess wich
Benjaminís original philosophy had been the source of its cognitive
value. Now he claimed that liquidation of artís aura had a positive
effect, and art acquired a new use value" (Buck-Morss, 77: 147).
A grande força da reprodutibilidade da obra de arte, que
tem para Benjamin o seu agente mais poderoso no filme, reside no processo
de "ao multiplicar o reproduzido, colocar no lugar da ocorrência
única a ocorrência em massa. Na medida em que permite à
reprodução ir ao encontro de quem apreende, actualiza o reproduzido
em cada uma das suas situações. Ambos os processos provocam
um profundo abalo do reproduzido, um abalo da tradição que
é o reverso da crise actual e a renovação da humanidade.
Estão na mais estreita relação com os movimentos de
massas dos nossos dias" (Benjamin, 92: 79). Dias radiosos estes, julga
Benjamin, que esperam a humanidade com "a liquidação do valor
da tradição na herança cultural" .
A obra de arte, ao deslocar-se a caminho dos indivíduos,
aumenta o seu poder, tornando-se irrecusável, intrometendo-se quer
na esfera da experiência individual, quer na própria vida
colectiva, onde a arte passa a ser vista como um medium social. Os novos
caminhos estão prontos a ser percorridos, e aí reside a esperança
de Benjamin depositada na arte que escapou às amarras da aura. Atrás
dessas transformações estão os dispositivos técnicos
e uma nova sociabilidade ávida por estes produtos colocados à
sua disposição.
Este é mais um pomo de discórdia entre Adorno e
Benjamin. Enquanto o primeiro compreendia a massa como algo inexistente
já que é apenas o produto de uma cultura; Benjamin, bem pelo
contrário, verifica que é o modo como as pessoas se juntam
que leva a existir uma cultura específica para aquele tipo muito
próprio de sociabilidade. A função política
da arte surge de uma arte enraízada na praxis, que remete para a
vida, para o quotidiano na sua imediaticidade.
Se em Benjamin era explicada a possibilidade que arte tinha de
se tornar mais progressiva na sua autonomia, Adorno via, por seu lado,
nesta afirmação, uma traição às suas
anteriores posições: "In your earlier writings, the great
continuity of wich, it seems to me, your present essay dissolves (...)
I find it questionable, then ó and here I see a very sublimated
remnant of certain Brechtian motifs ó that you now effortlessly
transfer the concept of magical aura to the ëautonomous work of artí
and flatly assign the latter a counter-revolutionary function" (Buck-Morss,
77: 148).
A noção de negatividade na arte é central
em Adorno. Essa negatividade é encarada como uma forma de resistência.
O que estimula Adorno nos seus trabalhos é essa afirmação
subjectiva do sujeito, mas tal questão pouco incomoda Benjamin,
daí poder olhar para a obra de arte na cultura de massas como uma
apropriação emancipatória da colectividade. Aqui a
compreensão da arte e da cultura fazem-se a partir de uma teoria
da experiência. Chegamos neste ponto a um dos aspectos fulcrais do
texto benjaminiano, e que diz respeito ao modo como a percepção
sensorial do homem se organiza.
Se para Adorno o lugar de recepção da obra de arte
no processo industrial da cultura é já uma questão
pré-determinada, operando por isso num registo intelectual muito
pobre, em Benjamin atinge uma zona privilegiada das suas investigações.
A entrega sensorial dos indivíduos é feita numa experiência
que é pura fruição em dois planos distintos: uma relação
crítica com as obras e a diversão. "Aproximar as coisas espacial
e humanamente é actualmente um desejo das massas tão apaixonado
como a sua tendência para a superação do carácter
único de qualquer realidade através do registo da sua reprodução.
Cada dia se torna mais imperiosa a necessidade de dominar o objecto fazendo-o
mais próximo da imagem, ou melhor, na cópia, na reprodução"
(Benjamin, 92: 81).
Os suspiros pelos sonhos com as flores azuis acabam quando se
pode "retirar o invólucro a um objecto, destroçar a sua aura",
e estas são formas do domínio "de uma percepção,
cujo ësentido para o semelhante no mundoí se desenvolve de
forma tal que, através da reprodução, também
o capta no fenómeno único" (Benjamin, 92: 81).
Salvar a estrela
dançante
Adorno e Benjamim, duas visões do mundo que se cruzam e
entrelaçam, sem nunca perderem de vista que o seu rumo não
é o mesmo. Da querela mantida entre estes dois autores na década
de 30, podemos perguntar, a 60 anos de distância, afinal qual dos
dois esteve mais próximo do que a realidade viria a confirmar?
É indiscutível que na imediaticidade dos tempos
sombrios que se avizinhavam da Europa, é Adorno o mais lúcido.
Benjamin, ainda esperançoso com o nascente regime comunista na União
Soviética, continuava à espera de "uma politização
da arte".
Os campos de concentração da Alemanha nazi, o uso,
pela primeira vez na história da humanidade, de armas atómicas,
as purgas estalinistas no período pós-guerra, vieram ampliar
a noção de negatividade introduzida pelo pensamento adorniano,
ultrapassando-a mesmo quando os gases se abriram sobre os corpos de milhões
de judeus. O irracional irrompe nos campos de concentração
e a Razão nada mais pode fazer senão remeter-se ao silêncio.
Adorno conclui, anos mais tarde, que "não há poesia depois
de Auschwitz!" (Tar, 1977: 141), como se fosse o epitáfio trágico
à frase, cheia de esperanças, proferida por Benjamin, e que
dava conta de que o homem tinha deixado de sonhar com flores azuis.
Não deixa de causar perplexidade esta atitude esperançosa
por parte de um homem habitado por uma incomum vocação para
a desgraça, e cuja vida tão copiosamente cumpriu este fado.
Deve notar-se, todavia, que por mais sedutora e terna que tal crença
na capacidade ilimitada de reciclagem do humano possa parecer, a atitude
não é original. A atracção de Benjamin pelo
novo, pelas potencialidades abertas pela tecnologização crescente
não é mais do que uma erupção tardia da atitude
que, no início do século, animara Marinetti e todos os futuristas,
fascinados pelo esplendor da máquina, o brilho dos motores reluzentes,
a potência infinita de uma máquina a vapor... "Um automóvel
que ruge, que parece correr debaixo de fogo, é mais belo do que
a Vitória de Samotrácia" (Marinetti, 79: 49) fora, nos seus
dias, um programa de trabalho fecundo e original, mas a história,
essa grande desmancha-prazeres, veio muito simplesmente confirmar como
tal fascínio podia acabar mal.
Limitando-se o objecto deste trabalho apenas à questão
estética nos dois textos fundadores produzidos por Adorno e Benjamin,
as ressonâncias políticas que daí advêm são
muitas e podem trazer alguma luz ao pensamento actual.
Adorno, nos anos subsequentes à guerra, vai afirmar que
"o capitalismo encontrou recursos em si mesmo que lhe permitiram adiar
indefinidamente o colapso do sistema" (Tar, 1977: 163). Com a integração
da classe trabalhadora na sociedade burguesa, as relações
de produção tornam-se mais elásticas. A par deste
factor, o progresso tecnológico vem minimizar a parte do trabalhador
na produção da mais-valia e, como tal, continua a haver "uma
dominação sobre as massas através do processo económico,
mas a antiga opressão social tomou novas formas anónimas
e tornou-se universal" (Tar, 1977: 163).
O fracasso em encontrar um sujeito revolucionário a partir
daí levou Adorno a erigir "uma torre de marfim" em torno da sua
dialéctica negativa, que nunca mais abandonou. Nem mesmo os chamamentos
de uma aliança temporária de Marcuse com a "pseudo- revolução
e os seus filhos" nos movimentos estudantis dos anos 60, o fizeram demover
do seu "exílio" auto-imposto, já que era firme a sua ideia
de que "no processo de integração do proletariado no sistema,
a indústria da cultura foi instrumental na manipulação
tanto do consciente como do subconsciente" (Tar, 1977: 164).
Por isso, Adorno não entende a arte do seu tempo como
algo de novo, como espaço de recusa e de revolta perante o instituído.
Mas quer Adorno queira, quer não, há algo que chegou ao fim
e nada como o dadaísmo para mostrar o esboroamento desse edifício:
"DADA não é uma doutrina para ser posta em prática:
Dada, ó é para mentir: um negócio que corre bem. ó
Dada contrai dívidas e não vive agarrado ao colchão.
Deus-nosso-senhor criou uma língua universal, e é por isso
que ninguém o leva a sério. Uma língua é uma
utopia. Deus pode dar-se ao luxo de não ser bem sucedido: Dada também.
Dada é um luxo ou Dada está com o cio. Deus é um luxo
ou Deus está com cio. Quem tem razão: Deus, Dada ou o crítico?"
(Tzara, 1987: 46).
Benjamin está profundamente encantado com a questão
da técnica, fascinado com os caminhos que os novos objectos artísticos
apontam e permitem percorrer, mas, uma coisa é certa, as categorias
fundamentais, e ele apercebeu-se disso, que governavam o Belo, já
não são as mesmas ou, pura e simplesmente, desapareceram
no redomoinho da história. Daí, talvez, a posição
mais consentânea com este caminhar seja a de Walter Benjamin. Mesmo
que a dominação alastre e faça uso da sua força
em todos os níveis da actividade humana, será sempre possível
criar bolsas de resistência nas suas fronteiras, nem que esse trabalho
seja apenas abrir trincheiras.
A grandeza de Adorno está na sua Grande Recusa
de aceitar que talvez já não haja volta atrás. A nossa
poderá estar em admitir que os valores fortes talvez tenham morrido
para sempre, e neste novo universo fluído e caótico tentar,
à semelhança de Benjamin, manter viva a esperança.
"É preciso um caos dentro de si para gerar uma estrela dançante",
diria profeticamente Nietzsche.
Bibliografia
Adorno, Theodor , 1970, Teoria Estética, Edições 70, Lisboa
Adorno, Theodor et al., 1985, Dialéctica do Esclarecimento, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro
Arendt, Hannah, 1991, Homens em tempos sombrios, col Antropos, Relógio díÁgua, Lisboa
Benjamin, Walter, 1992, Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, col. Antropos, Relógio díÁgua, Lisboa
Burger, Peter, 1985, "Líanti vanguardisme dans líesthétique díAdorno", in Revue díEsthétique, nouvelle serie, nº 8, Éditions Privat, Toulouse
Buck-Morss, Susan, 1977, The Origin of Negative Dialectics, The Free Press, New York
Huisman, Denis, 1984, A Estética, col. Biblioteca Básica de Filosofia, Edições 70, Lisboa
Marinetti, 1979, Antologia do futurismo italiano, col. Provisórios e Definitivos, Editorial Vega, Lisboa
Melo, Adélio, 1977, Para Além de Sade, Edições Árvore, Porto.
Tar, Zoltán, 1977, A Escola de Francoforte, Edições 70, Lisboa
Tzara, Tristan, 1987, Sete Manifestos Dada, col. Cão Vagabundo, Hiena Editora, Lisboa.