O espaço público e o papel do Estado na sociedade global da informação

 

Estrela Serrano, Escola Superior de Comunicação Social - Instituto Politécnico de Lisboa

1998

Introdução

O objectivo deste trabalho consiste em  acompanhar o processo no decurso do qual o público moderno, na concepção que dele faz Habermas [1] (pessoas privadas fazendo uso da razão, reunidas em um público que se apropria da esfera pública controlada pela autoridade e a transforma num espaço de crítica contra o poder do Estado) se torna, por acção da própria esfera privada, num público massificado de consumidores dominados pela lógica do mercado e como, por um lado, a crescente concentração do poder económico ligado aos media e a irrupção de formas de comunicação ligadas ao marketing, às relações públicas e à publicidade e, por outro, a globalização e a convergência, ameaçam a diversidade cultural e a liberdade de expressão. Esta situação criou, nas democracias europeias, condições para a intervenção do Estado como entidade reguladora da (des)ordem existente na sociedade da comunicação. Daí que se afigure pertinente acompanhar o percurso do serviço público de radiodifusão na Europa, com especial destaque para o modelo da BBC. Considerou-se, igualmente, de interesse, enquadrar, em traços gerais, a evolução da imprensa desde o século XVIII, o que permite perceber melhor as transformações posteriores e alguns dos valores e ideologias que ainda atravessam os serviços públicos de radiodifusão

1. As linhas de evolução do espaço público
O desenvolvimento do capitalismo mercantil no século XVI, aliado às mudanças das formas institucionais do poder político, criaram as condições para a emergência de uma nova forma de esfera pública na Europa. Contudo, foi só nos séculos XVII e XVIII, com o desenvolvimento do capitalismo, que a esfera pública assumiu uma forma própria. A "sociedade civil" emergiu como um domínio de relações económicas privatizadas, estabelecidas sob a égide da autoridade pública. Entre a esfera da autoridade pública e a esfera privada da sociedade civil, emergiu uma nova esfera de um público -a esfera pública burguesa- em que indivíduos considerados como seres privados se reuniam para discutirem, entre si, assuntos relacionados com a regulação da sociedade civil e a conduta do Estado. Esta nova esfera pública não fazia parte do Estado. Pelo contrário, era uma esfera no seio da qual as actividades do Estado podiam ser sujeitas a crítica. O meio através do qual essa crítica se exercia era, em si próprio, significativo: trata-se do uso público da "razão" usada, livremente, por pessoas privadas (Habermas, 1962,37-41).
O papel da imprensa periódica na emergência da esfera pública revestiu-se de especial importância. Habermas refere o aparecimento de jornais de cariz crítico no final do século XVII e princípios do século XVIII, como tendo proporcionado um novo espaço para o debate público. Esses jornais eram, a princípio, na sua maioria dedicados a assuntos literários e culturais mas, rapidamente, se voltaram para assuntos de alcance social e político, sendo usados pelas autoridades para publicação de assuntos ligados ao exercício do poder administrativo, criando um público que recorria a eles para ser informado. O seu objectivo principal era servir o público e facilitar as transacções comerciais. Este público não era, contudo, constituído pelo chamado homem comum, mas antes pelas camadas cultas. Habermas refere-se a uma camada de burgueses ligada ao moderno aparelho do Estado que assume posição central no público. A esfera pública, que tinha sido considerada um domínio próprio do poder, separou-se deste para se tornar um forum onde as pessoas privadas reunidas num público, obrigavam o poder a justificar-se perante uma opinião pública. (1962,38-41)
A esfera pública burguesa desenvolve-se, pois, no seio de tensões entre o Estado e a sociedade, mantendo-se no decurso dessa evolução, como parte integrante do domínio privado. Com a expansão das relações económicas, o desenvolvimento do mercado e o surgimento do Estado social a partir da segunda metade do século XIX, o Estado conquista novas funções, no sentido da protecção dos mais fracos económicamente, funções que, até então, eram deixadas à iniciativa privada. Amplia-se, assim, o sector dos serviços públicos e surge "uma esfera social repolitizada" (Habermas,1962,148-151) que conduz a uma interpenetração e interdependência entre o Estado e a sociedade. O trabalho e a organização social passam a fazer parte da esfera pública, surgindo, entre a esfera pública e a esfera privada, uma esfera social que assume funções antes desempenhadas por instituições públicas (construção de instalações para trabalhadores, bibliotecas, escolas, etc), fenómeno que Habermas classifica como "feudalismo industrial". A esfera profissional evolui, assim, para um domínio quase público, enquanto a esfera privada fica reduzida à dimensão da família (1962,159-61)

2. As novas formas de visibilidade: O mercado da comunicação e a massificação dos públicos
As novas formas de visibilidade estão estreitamente ligadas ao desenvolvimento dos media, especialmente da televisão. Em vez de uma publicitação ligada à partilha de um local comum, surge uma publicitação mediatizada que não depende de ser vista ou ouvida e que não está ligada à partilha de um espaço, que substitui o face-a-face da publicitação anterior por uma visão (visibilidade) simultâneamente vivida por milhares ou milhões de pessoas. O novo "campo de visão" permite ver aspectos particulares de uma pessoa ou evento, que podem ser retirados de contexto e, por outro lado, quem vê não controla o que vê, nem é visto por quem o vê. A transformação da visibilidade é, assim, marcada pela separação entre a produção e a recepção no que se refere à capacidade de ver e ser visto. Ora, esta mudança das condições da visibilidade mudou as condições do exercício do poder. Os media, sobretudo a televisão, levaram os políticos a encontrar regras para orientar e praticar essa visibilidade, na medida em que necessitam dela, não apenas para assegurar o voto dos eleitores, mas também no exercício do poder no dia a dia, em que os processos de decisão são, cada vez mais, públicos.
Uma das caracteristicas das sociedades democráticas e capitalistas é, precisamente, a existência de um espaço público que estrutura a vida política, as relações entre as instituições e a organização das comunicações sociais (Floris, 1997,122). A partir desta problemática sociológica coloca-se a questão da relação entre o espaço público e a empresa. O espaço público é o campo de mediação de interesses e forças sociais contraditórias, mediador de relações de poder na gestão simbólica das relações sociais (Floris,1997,124). Nas suas origens, a empresa escapa duplamente ao espaço público, por um lado porque as questões económicas são de natureza privada e, por outro, porque o Estado não se mistura no funcionamento da empresa. A partir de meados do século XIX, com o sufrágio universal masculino e o desenvolvimento dos meios de comunicação social, o campo económico interpenetra-se com o Estado, tornando-se este a entidade reguladora do direito da economia e do trabalho, da produção e das trocas, numa interpenetração do político e do económico. Ao mesmo tempo, assiste-se ao desenvolvimento da comunicação publicitária nos media e a empresa faz a sua irrupção no espaço público através dos media. Surgem as direcções de comunicação e as assessorias de imprensa, desenvolve-se o conceito de “cultura da empresa” e um novo espaço público interno, parcial e ambivalente, que usa formas políticas e comunicacionais próprias do espaço público. Este "novo espaço público" torna-se lugar de partilha de poderes entre o sistema político tradicional, os conselheiros de marketing político, os politólogos, os media e os institutos de sondagens.
O desenvolvimento dos media electrónicos, especialmente da televisão, trouxeram consigo o desenvolvimento de uma cultura cuja tónica é a distracção. A comercialização e a concentração económica, técnica e organizacional, transformam os media em grandes complexos dotados de força social (Habermas assinala o aparecimento dos primeiros grandes grupos de imprensa por volta de 1875 nos EUA, em Inglaterra e na Alemanha) (1962,194). À medida que a sua expansão se torna um facto e que o seu impacto aumenta, tornam-se alvo de interesses privados. A sua comercialização transforma a esfera pública. Aparecem as empresas de publicidade que compram espaço nos media. A publicidade televisiva expande-se e a televisão torna-se o grande meio de comunicação de massas, operando uma “socialização dos bens” que antes era reservada às classes superiores. As classes inferiores encontram nela uma compensação simbólica para a sua inferioridade social. Habermas classifica esta cultura como uma cultura de integração, dominada, por um lado, pelo estilo “estórias reais” e “serviços ao público” e, por outro, pela publicidade, a que ele chama “super-slogan” destinado a promover e consolidar o satus quo. O público é agora substituído, na sua função mediadora, por instituições representando interesses privados e partidos, só intervindo raramente e, quando isso acontece, através de “funções aclamativas”. As suas decisões individuais e colectivas são influenciadas por instâncias políticas e/ou económicas.
Com o desenvolvimento das relações públicas, a publicidade comercial assume um caracter político em toda a Europa, constituindo este sector um fenómeno-chave de ocupação da esfera pública, na medida em que o emissor (os promotores de acontecimentos) dissimulam as suas intenções comerciais sob a aparente defesa do bem comum, usando os media com o objectivo de converter interesses privados de grupos de indivíduos, num interesse público comum (Habermas, 1962,201-202).
Habermas atribui às relações públicas um papel importante na interpenetração do Estado e da sociedade e refere o aparecimento, no nosso século, da "imprensa oficial" das administrações públicas e privadas que pretendem condicionar a opinião pública, usando os media com o objectivo de converter interesses privados de grupos de indivíduos, num interesse público comum. As técnicas de mercado usadas para obter adesão a decisões políticas constituem um condicionamento da opinião pública e uma subversão do princípio da Publicité (Habermas,1962,204-218).
No plano teórico das ciências da comunicação, a comunicação empresarial entendida como função autónoma, é relativamente recente. Bernard Floris ao analisar a interpenetração do espaço público e da empresa classifica-a como um campo social complexo que, juntamente com outras instituições como o Estado, as Forças Armadas, as Escolas, os Partidos estruturam o campo do poder. Nesta perspectiva, Floris define o espaço público como "o campo de mediação entre interesses e posições sociais contraditórias passando, necessáriamente, por formas culturais e simbólicas de formação de opinião" e "um campo de luta pela dominação legítima e de violência simbólica para imposição das suas definições legítimas". Para este autor, a empresa, que nas suas origens escapa duplamente ao espaço público (na medida em que as escolhas económicas são de natureza privada e não entram na esfera de debate público e o Estado não se imiscui no seu funcionamento), torna-se, a partir dos anos 70, actor dominante do espaço público através do "marketing publicitário" e do poder de influência das direcções de comunicação e relações públicas sobre, nomeadamente, os actores políticos (Floris, 1997,130-132).
Na Grã-Bretanha, o desenvolvimento das sondagens levou os investidores da publicidade a valorizarem o mercado da classe média, tendo sido as sondagens, ao mostrarem a presença da classe média, que levaram a publicidade a virar-se para esse mercado. (Curran,1994,64-68). O aumento do poder económico das classes médias, levou à produção, em larga escala, de bens de consumo. As agências de publicidade desenvolvem-se e o marketing torna-se o instrumento essencial da adaptação da imprensa aos gostos das audiências. Ora, este processo progressivo vai conduzir ao ressurgimento do Estado, agora como entidade reguladora dos media, através, nomeadamente, da criação do chamado "serviço público" de rádio e televisão. O Estado passa assim, de entidade perante a qual o público moderno exigia distanciamento, a entidade protectora desse mesmo público, entretanto sujeito a formas de alienação e de sujeição intelectual que já não provêm do Estado, mas sim dos novos actores que operam no espaço público.

3. O Estado e o serviço público
A intervenção do Estado nos media, primeiro na imprensa e mais tarde na radiodifusão [2] , foi sempre vista em duas vertentes contraditórias: por um lado, como um poder limitativo da liberdade de expressão e, por outro, como intervindo em defesa do pluralismo e da liberdade de expressão. No século XIX, os argumentos em defesa dos apoios do Estado à imprensa baseavam-se no seu papel na "promoção da instrução política, criação de hábitos políticos e formação cívica" (Curran,195-25).
É, geralmente, admitido pelos historiadores dos media que, no século XIX, a imprensa adquiriu independência numa luta que se desenvolveu contra o controle do Estado. Os historiadores não se entendem, porém, sobre de que tipo de independência se trata: jurídica, económica ou financeira, dado que a publicidade, na medida em que as suas receitas permitiram reduzir os subsídios oficiais, chegou a ser vista como um meio de libertar a imprensa do controle do Estado. Curran considera que se trata de uma visão ortodoxa que apenas pretende justificar a existência de publicidade nos media. No New Cambridge Modern History pode ler-se também que os "jornais financeiramente independentes se tornaram grandes órgãos de serviço público que deram poder ao povo e tornaram o governo responsável" (Curran,1995,8-9).
No século XIX a imprensa foi palco de batalhas políticas em toda a Europa. Cada grupo lutava pela liberdade de exprimir os seus interesses e também para suprimir os interesses de outros grupos. Na Grã Bretanha, a imprensa foi "um dos grandes instrumentos da liberdade, um quarto poder independente, o defensor vital do interesse público, eixo central da política cultural do país". Apesar de a batalha ser essencialmente política, as pressões económicas mostraram-se mais efectivas na limitação da diversidade de expressão do que a censura política. A liberdade de empresa não correspondeu sempre a liberdade de expressão, quer ao nível da imprensa, quer no que respeita à rádio e à televisão. Curran considera que, no século XIX, não se alcançou uma nova era na liberdade de imprensa; introduziu-se sim "um novo sistema de censura, mais efectivo que os anteriores, dado que as forças do mercado substituíram uma repressão legal falhada, no sentido da conformidade da imprensa com a ordem social estabelecida. As implicações políticas da dependência económica da publicidade foram ignoradas durante muito tempo. A compra de espaço nos jornais, por parte dos anunciantes, era vista como baseando-se em critérios de natureza económica relacionados com o mercado, o que é contrariado por documentos que atestam que eles escolhiam os jornais que melhor serviam os seus interesses. (Curran,1995,2-4). Na Grã-Bretanha, o século XIX viu crescer aquilo a que Curram chama a "era dos barões" que acompanha a industrialização da imprensa e transfere o seu controle para os homens de negócios, com o acentuar da vertente de entretenimento, sobretudo ao nível das revistas, exercendo um controle efectivo nos textos, fotografias e selecção de temas. Eram uma espécie de "políticos-jornalistas", editores e proprietários ao mesmo tempo, movidos pela conquista das audiências, às quais forneciam "estórias" de acidentes, crime, divórcios e outros casos humanos. O chamado "interesse público" é considerado de pouco interesse para mulheres e jovens e, por isso, tinha pouca cobertura (1995,57).
Como assinala Curran, os barões tiveram a particularidade de fazer da imprensa um poder contra os partidos políticos, na medida em que o crescimento do investimento publicitário a tornou muito cara. O crescimento da publicidade minou o modelo de controle político, e a independência face aos partidos e ao governo foi substituída por uma dependência face aos anunciantes que assim possuíam o poder de controlar os jornais e impedir o aparecimento ou o desenvolvimento de novos órgãos. Curran salienta o papel da "imprensa dos barões" na manutenção da cultura dominante e na ligação dos britânicos ao seu império, fomentando, por vezes um nacionalismo exagerado. (1995,63).
Após a 2ª. Grande Guerra a situação política internacional era propícia à intervenção do Estado no controle da informação, e a censura foi o meio encontrado para sobrevivência da administração face à deterioração provocada, nomeadamente, em sectores militares, pelos ataques ao Governo desferidos pela imprensa. Na Grã-Bretanha o Home Secretary foi investido de poderes de controle, a imprensa de esquerda perseguida e a imprensa comunista silenciada. Por outro lado, as restrições impostas ao papel diminuem a pressão comercial sobre a imprensa, ao mesmo tempo que aumenta o espaço dedicado aos "assuntos de caracter público", o que leva Curran a afirmar que a intervenção do Estado foi "mais libertadora que opressora" (1995,83).

4. Para uma teoria do serviço público
Foi na Grã-Bretanha, com a criação da British Broadcasting Company -BBC- em 1920, com um modelo de gestão para o qual o controle privado e a directa dependência do Estado se mostraram igualmente inadequados, que o moderno conceito de serviço público encontrou, primeiro, a sua inspiração e concretização. Como corporação pública a BBC tinha precedentes nos serviços de Água e Electricidade que criaram reputação como "serviços de utilidade pública" e levaram os britânicos a aceitar um modelo de gestão de uma empresa de comunicação que se apresentava com os mesmos objectivos de "serviço público". Por outro lado, a BBC beneficiou do descontentamento que se gerara, quer em relação ao mercado, quer em relação às forças políticas. Curran cita intervenções em defesa de um controle centralizado na organização de serviços de "interesse público" como a segurança social e o racionamento da comida durante a primeira Grande Guerra [3] .
A BBC surgiu como um modelo que recusava, quer o lucro como objectivo, quer o controle político do governo, em defesa de bons programas acessíveis a grande número de "consumidores”. "A BBC é um engenho do espírito" (Robson citado por Curran,1994,135). Apesar de alguns receios de que a BBC se tornasse uma agência de propaganda do governo, a corporação era vista, em 1930, como uma componente central da cultura britânica.
Politicamente, a BBC definia-se como "árbitro da acção do Governo", embora Curran considere que até cerca de 1939 se verificou uma "dependência velada" do governo. Mas a sua credibilidade foi reforçada durante a segunda Grande Guerra, tendo atingido o auge em 1946. Em 1955, a televisão comercial faz a sua aparição na Grã-Bretanha. "Começou um novo mundo" era o slogan que traduzia a competição que se viria a instalar, não só entre a BBC e a nova ITV, mas também dentro da própria BBC com a criação de diversos canais, o que não impediu que a ITV ganhasse a batalha das audiências e assumisse a tradição do "serviço público" herdada da BBC. Esta quebra do monopólio obrigou a BBC a procurar, cada vez mais, atrair o interesse do público, tendência que, aliás, vinha do pós-guerra através de um aligeiramento dos programas, "mais atentos à psicologia dos ouvintes", assumindo-se como " barómetro dos ouvintes".
Através da leitura de documentos produzidos por autoridades de tutela da radiodifusão de serviço público, organismos internacionais, grupos de trabalho e outros documentos avulsos, é possível extrair algumas ideias chave para a formulação de uma teoria do serviço público. Assim, ao nível do discurso de entidades responsáveis pelos conteúdos da radiodifusão pública, encontram-se preocupações de natureza cultural e de cidadania, paralelamente a preocupações com as audiências, sobrepondo-se estas, algumas vezes, à ideia de "serviço" que fizera escola a partir da época áurea da BBC. Nas definições de serviço público de radiodifusão, é possível assinalar a permanência de conceitos como "bem comum", "equilíbrio", "qualidade", "interesse nacional", dirigindo-se a "todas as secções da sociedade" e a "todas as partes do País", orientando-se para objectivos como "educar", informar", desenvolver o espírito crítico", contra o "sistema de mercado" e obrigando-se a proteger “a soberania do consumidor" (Curran,1995,295-298).
A análise histórica das relações do Estado com os media não permite identificar, com clareza, uma sua intervenção no sentido da protecção dos cidadãos contra a alienação provocada pela cultura de massas. Pelo contrário, não é raro encontrar, em documentos oficiais, sobretudo oriundos directamente do poder político, referências que apontam para preocupações de sentido contrário, isto é, de uma difusão de “produtos mediáticos” a um público cada vez mais alargado. A análise da documentação oficial apresenta alguns aspectos, a meu ver, significativos: por um lado, existe um discurso ao nível do Estado (parlamentos e governos), centrado em questões de natureza política, político-militar, técnica e jurídica (regulamentações e apoios económicos) preocupado, sobretudo, com o pluralismo da informação política e, por outro lado, um discurso, oriundo de grupos “ad-hoc” e de responsáveis pela radiodifusão, mais preocupado com a radiodifusão no seu todo, onde, a par de preocupações de natureza económica, se encontram reflexões sobre a cidadania, os direitos das minorias, a salvaguarda das culturas nacionais. Contudo, a contradição entre a lógica do mercado através da satisfação dos gostos do público (objectivo enunciado em, praticamente, todos os ducumentos sobre o serviço público) e a preservação da cidadania contra o consumismo e a massificação, não é resolvida.
O conceito de serviço público e a sua evolução posterior estão inscritos na própria história da BBC, sem dúvida o modelo que inspirou os serviços públicos de radiodifusão na Europa, que registaram, igualmente, as variações conceptuais do modelo britânico.
Em 1986 um relatório atribuía ao serviço público a obrigação de “proteger a soberania do consumidor contra um sofisticado sistema de mercado” (Curran,1995,295-98). No mesmo ano, o Annan Report assume o "desvio" do conceito de serviço público, ao colocar a ênfase na preocupação que os radiodifusores deverão ter com a "maioria dos grupos e interesses da sociedade" em vez da "liderança moral" antes atribuída à BBC. Por seu turno, o Peacock Commitee acentuou a tendência, estipulando que a BBC deveria orientar-se no sentido de "um sofisticado sistema de mercado baseado na soberania do consumidor" (Curran, 1995-229)
Christopher Bland, presidente da BBC, no relatório apresentado em Junho de 1997 ao Royal Television Society Fleming Memorial Lecture, [4] aponta para outro tipo de prioridades, ao enunciar como “quatro pilares do serviço público, a qualidade, a diversidade, a inovação, a diferenciação e a reflexão sobre a cultura nacional”. Debruçando-se sobre cada um destes pilares, Bland considera que a qualidade deve constituir o objectivo de todos os serviços públicos de radiodifusão, quer no que se refere às formas populares de televisão e de rádio, quer aos géneros mais “elitistas” da programação. O presidente da BBC interroga-se, contudo, sobre se a televisão de “alta qualidade” poderá alguma vez aspirar a ser considerada “arte”. Considerando a televisão essencialmente como uma “forma popular e efémera de comunicação”, Bland acrescenta que a radio e a televisão têm sido capazes de criar algo de qualitativamente diferente e duradouro. E aponta alguns exemplos de séries de radio drama, entre as quais “Orgulho e Preconceito”, “António e Cleópatra”, entre outras. Interrogando-se sobre as razões da raridade das produções de qualidade, responde com a natureza da experiência proporcionada pelo próprio meio televisivo. O teatro e o cinema constituem “experiências solitárias vividas na escuridão de uma sala”. A televisão, pelo contrário, é vista em comum com outros, “à luz do dia ou da noite, podendo ser interrompida pelo telefone, pelo cão, ou por alguém”. A rádio é, por seu turno, apreciada como possuindo duas virtudes particulares: por um lado, o seu caracter gratuito e por outro, o seu comprometimento com a imaginação. Por esse motivo, Bland considera que a “autêntica arte” e a “autêntica criatividade” são mais comuns na rádio que na televisão. Mas, em sua opinião, a televisão pode melhor que qualquer outro media, desenvolver uma “estória”, uma série dramática, do tipo “A Jóia da Coroa”.
Prosseguindo naa definição dos quatro pilares, o presidente da BBC atribui ao serviço público a obrigação de dar cobertura a um largo espectro de vozes e de pontos de vista e a “não ser politicamente correcto”, porque isso seria uma “corrosiva forma de tirania”. Pelo contrário, acrescenta, o serviço público deve estar preparado para informar o público sobre todos os aspectos da vida do país, mesmo sobre alguns mais sombrios para os quais as pessoas não tenham ainda sido despertadas. O serviço público de radiodifusão é visto como tendo a missão de levar “a uma vasta audiência” os melhores padrões de qualidade “especialmente nos períodos em que a audiência é mais elevada”. Outro pilar do serviço público enunciado pelo presidente da BBC, é a inovação e a diferenciação face aos seus concorrentes, isto é, a procura de novas ideias, novos formatos, novos autores e novos actores que “refresquem a programação e que, fatalmente, irão ser copiados pelas estações concorrentes”, embora considere que há algumas iniciativas do serviço público que dificilmente serão mimetizadas pela concorrência, como as campanhas educativas e a universidade aberta, entre outras. Bland atribui ao serviço público de radiodifusão o dever de apoiar e fomentar a presença da cultura nacional além fronteiras, não permitindo que “a história e a cultura nacionais se percam numa homogeneizada miscelânea internacional”.
No seu relatório, o presidente da BBC enuncia também o que um serviço público de radiodifusão não deve ser. Em primeiro lugar, não pode seguir o mercado, nem correr atrás do que é popular. Mas isso não é incompatível com a procura das audiências que, segundo Bland, o serviço público deve satisfazer. E acrescenta que, quando era um monopólio, a BBC não se preocupava com as audiências; o que interessava era satisfazer os que faziam a BBC. Hoje não é assim, diz Bland, existe uma correlação entre as audiências e a taxa que a BBC lhes cobra. Por isso, a BBC tem de “procurar atingir e satisfazer a totalidade da sua audiência, ao nível geográfico e sócio-económico, quer na rádio, quer na televisão”. A BBC não pode negligenciar nenhum segmento da sua audiência, diz Bland (o que não acontece com os canais privados). A taxa é uma condição de sucesso da BBC e a sua eliminação ou a privatização da BBC impediriam a estação de prestar o serviço público, no sentido dos quatro pilares enunciados no relatório de Bland. Do mesmo modo, “o sistema de administração da BBC, bem como a sua relação com o Parlamento, com as correcções introduzidas no New Charter and Agreement”, contribuíram para melhorar grandemente o seu sistema de governo e a prestação do serviço público que lhe incumbe.
Mais recentemente (Janeiro de 1998), John Birt, director-geral da BBC proferiu um discurso no Institution of Electrical Engineers in London’s Strand cujo sentido, embora não dissonante com o de Bland, apresenta, contudo, algumas importantes “nuances”. De facto, sem deixar de enfatizar os “padrões culturais” e o “compromisso com a qualidade”, o director-geral da BBC recomenda aos seus profissionais “uma maior atenção aos interesses e gostos das audiências e um empenhamento em reflectir e satisfazer os seus gostos”. Birt mostra-se preocupado com os quinze novos canais comerciais de televisão e os vinte e um canais de rádio inatalados no Reino Unido no último ano, apesar de, como afirma, “95% das donas de casa sintonizarem a BBC pelo menos durante duas horas semanais”.
Em França, o projecto para o serviço público apresentado pela Radio France [5] enunciava as missões que lhe incumbem para além do “tríptico tradicional, cultivar, informar, distrair”: “acompanhar os ouvintes na sua vida quotidiana; favorecer a sua integração num mundo em que os indivíduos e as comunidades estão, cada vez mais fragilizados; vivificar a cidadania;” acrescentando que a “adaptação aos gostos do público constitui um dos princípios fundamentais do serviço público”, a par da sua universalidade (dirige-se a todos), igualdade (é acessível a todos), continuidade (não sofre interrupções), neutralidade (não favorece nenhum grupo, nenhuma corrente de pensamento, nenhum interesse particular). A Radio France distingue a “oferta do serviço público” da que é feita pelo sector privado, observando que, enquanto esta se preocupa, acima de tudo, com a audiência, o serviço público tem o dever de se interessar, antes de mais, pelo ouvinte e acrescenta que “a procura do lucro leva as radios comerciais a considerar, a maioria das vezes, o ouvinte como um consumidor”. A Radio France elege como marcas do serviço público, o “tom da antena”, “a originalidade e a inteligência da expressão”, a “preocupação com a criatividade”, “o respeito pelas pessoas”, a qualidade do som” e da realização”, “a ausência de bombardeamento publicitário ou de promoções insidiosas”. Através destas “marcas”, o ouvinte deve poder “reconhecer imediatamente o serviço público”. Decorrente destas convicções, surge o conceito que norteia a posição da  Rádio France face ao público: “nem uma radio de oferta pura que ignora a audiência, nem uma radio que apenas pretende satisfazer a “pura procura”, ignorando “alternativas ao mercado”. Financiada em cerca de 90% pelos fundos públicos, a Radio France é responsável “perante a colectividade nacional pelo bom emprego dos recursos que lhe são atribuídos”. Debruçando-se sobre a lógica de uma empresa de serviço público, os doutrinadores da Radio France reconhecem a “necessidade de um esforço constante de adaptação” e a “dificuldade de ultrapassar a competição que se exerce no seio do mercado publicitário e a concorrência de produtos destinados a seduzir o público”, atribuindo ao serviço público a “pesada tarefa de cultivar a diferença”. Para isso, recomenda o “reforço dos instrumentos que são hoje imprescindíveis ao desenvolvimento de qualquer empresa submetida à concorrência: estudos sobre o público, análise de produtos, promoção de canais e de programas, ligação aos ouvintes”.
Em Setembro de 1996, foi publicado no âmbito da União Europeia um relatório sobre a radiodifusão de serviço público [6] no qual se identificavam cinco princípios básicos: caracter nacional; acessibilidade a toda a população; satisfação das diferentes necessidades de grupos e minorias; estatuto de monopólio com controle de uma autoridade pública responsável perante o público; natureza não comercial, (admitindo aqui algumas excepções); financiamento apenas através de fundos públicos (que podem revestir várias formas) e de actividade comercial limitada e estritamente regulamentada. A natureza não comercial do serviço público de radiodifusão é definida como devendo dar prioridade aos aspectos culturais ou políticos sobre os económicos e comerciais, com regulação e controle através de instrumentos legais que enquadrem os seus diferentes aspectos. O citado relatório reconhece as importantes diferenças ao nível dos diversos países na aplicação destes princípios e aponta os casos da Espanha em que o serviço público da televisão (TVE) é largamente subsidiado pela publicidade, até ao modelo oposto praticado pelos sistemas de radiodifusão pública que não possuem qualquer tipo de publicidade, sendo subsidiados apenas por fundos públicos. O mesmo relatório debruça-se sobre o perigo da “intervenção política” que considera constituir um factor a afectar, negativamente, o serviço público. Essa intervenção política está, na óptica do relatório, relacionada com o facto de o financiamento do serviço público depender de controle político exercido por governos ou parlamentos. O relatório constata que a intervenção do poder político levou a um  afastamento do público face ao serviço público e considera esse factor uma das principais razões do sucesso da radiodifusão privada. No capítulo dedicado aos aspectos culturais do serviço público, The Red Book constata que, apesar da “reconhecida necessidade de preservação da cultura europeia, em toda a sua riqueza e diversidade, a contribuição e o potencial do serviço público de radiodifusão para a promoção dessa cultura não são reconhecidos. Apesar de reconhecer  a importância dos “produtos audiovisuais como vectores de cultura”, as políticas europeias para este sector tratam o audiovisual como “uma indústria da qual enfatizam a dimensão económica”. O relatório conclui que é “ingénuo esperar que “todos os produtos audiovisuais são, indiscriminadamente, potenciais vectores de cultura”, acrescentando que a comercialização do sector audiovisual trouxe um abaixamento geral da qualidade e as audiências são tratadas como consumidores em vez de cidadãos.
Trata-se, como atrás refiro, de uma abordagem do serviço público de radiodifusão que privilegia a vertente cultural o que a distingue das abordagens feitas ao nível do discurso político. Esta vertente é também visível nas recentes recomendações do Conselho da Europa, as quais, embora incidindo sobre aspectos particularizados [7] , enunciam um conjunto de princípios de natureza cultural. O Conselho da Europa faz uma chamada de atenção para a necessidade de “educar para os media” como forma de criar um público com capacidade crítica que exija serviços de qualidade. Os Estados devem promover a educação para os media como uma responsabilidade partilhada entre eles próprios, os responsáveis dos conteúdos e os diversos sectores da sociedade. O Conselho da Europa coloca a hipótese de vir a lançar “um plano de acção destinado à educação para os media electrónicos (televisão, rádio e Internet e outros meios de acesso codificado como, por exemplo, os jogos vídeo) e recomenda aos Estados membros que tomem “medidas concretas para aplicação das linhas directivas, mas considera que a responsabilidade pela emissão de imagens violentas é dos próprios media e apela à sua auto-regulação”.
Em Portugal a discussão sobre o serviço público de radiodifusão é relativamente recente e circunscreve-se, principalmente, a círculos políticos, e, mais raramente, profissionais. Documentos elaborados no âmbito de comissões ad-hoc, geralmente de iniciativa governamental, limitam-se a fazer o cotejo dos dispositivos legais contidos, nomeadamente, nas leis da rádio e da televisão e nos estatutos das empresas públicas do sector. O relatório encomendado pelo governo sobre a televisão de serviço público [8] , elaborado por uma comissão constituída por juristas, profissionais, universitários e especialistas, aponta a necessidade de “devolver ao serviço público a identidade que lhe é própria, com recuperação dos seus valores específicos: forte componente informativa e cultural, enquanto factor de aperfeiçoamento da cidadania e expressão da identidade nacional; intervenção acrescida no estímulo da criação de obras portuguesas; salvaguarda de uma ética de antena e de empresa, tanto no domínio da programação como no do relacionamento com os consumidores e outros agentes económicos.” Por seu turno, o Secretário de Estado que tutela os media, Arons de Carvalho, disse, recentemente, [9] que “não existe em Portugal uma definição de serviço público enraizada, acrescentando que “uma programação que satisfaça as necessidades informativas, culturais e recreativas dos diversos públicos, com qualidade e de forma que sirva de referência aos operadores privados, traduz não apenas a definição mais clássica de serviço público, como a sua principal razão de ser. Para Arons de Carvalho, “a programação enquadrável neste conceito abrange todos os géneros, desde uma peça do melhor teatro a uma sitcom mais ligeira”. Noutra intervenção pública [10] , o citado membro do governo reconhece a “função primordial do mercado” à qual acrescenta o “interesse público dos media”, motivo que invoca para “justificar os incentivos estatais que assegurem a sua função”. O Secretário de Estado mostra-se preocupado com “recentes acontecimentos em torno dos media [11] e da vida privada das personalidades públicas que, em sua opinião, conduziu, “de repente”, “a generalidade da opinião pública, sempre muito pouco sensível ao poder moderador de um bom serviço público ou de uma instância reguladora..., a olhar para a comunicação social “como algo que deve ser limitado e sobretudo, que não pode ser abandonado às regras do mercado”.
Também em Portugal se verificam, pois, as “nuances” referidas anteriormente no que respeita, por um lado ao discurso oriundo da esfera política e, por outro, das esferas intelectuais e profissionais, sendo que, ao nível do discurso político, as preocupações são, sobretudo de natureza política, principalmente as relativas ao pluralismo partidário e à vida privada das pessoas públicas.

5. A globalização e a convergência
A emergência de conglomerados de comunicação transnacionais, o impacto social das novas tecnologias, especialmente as associadas ao satélite, o fluxo assimétrico dos produtos de informação e comunicação dentro do sistema global, que caracterizam o mundo actual, nos planos, económico, político e comunicacional (sobretudo este último), levaram à criação da “sociedade global da informação” e conduziram ao aumento das desigualdades no acesso aos canais de comunicação. (Thompson,1995,149)
O documento sobre a sociedade global da informação [12] da autoria de um grupo de trabalho constituído no seio do Conselho da Europa, dirigido por Martin Bangemann, traça um programa de acção para esta “nova revolução industrial gerada pelas tecnologias da informação e comunicação”. Esta nova sociedade global da informação baseia-se em sistemas de comunicação combinados com avançadas tecnologias da informação que permitem “remover constrangimentos de tempo e de distância, através de telefone, satélites, cabos, transportando “serviços básicos” como correio electrónico, vídeo interactivo, oferecendo soluções adequadas a grupos de utilizadores”. Para instalar a sociedade da informação, o documento aponta dez medidas que vão desde preocupações com o emprego e o ensino à distância, até à criação de redes de saúde, controle electrónico de tráfico terrestre e aéreo, redes de administração pública e acesso aos serviços on-line em todos os lares. No capítulo V, o grupo de trabalho recomenda, expressamente, que o financiamento da sociedade da informação seja atribuído ao “sector privado e às forças do mercado”, reservando para o sector público um papel que “não deverá provocar o aumento das despesas públicas” e que deverá consistir no “desenvolvimento de aplicações em áreas de sua própria responsabilidade, as quais serão susceptíveis de gerar ganhos de produtividade e uma melhoria na qualidade dos serviços, os quais, se forem bem dirigidos, conduzirão a poupanças”. No plano jurídico, o grupo de trabalho alerta para a necessidade de evitar o “risco de fragmentação do Internal Market provocado pela emergência de novas regulações nacionais”, defendendo à outrance leis competitivas que mantenham uma abertura total dos mercados dentro da UE. Nesse sentido, “as regulamentações aplicáveis aos conteúdos dos produtos audiovisuais devem contribuir para a livre circulação desses produtos dentro da UE. No capítulo dedicado aos aspectos culturais, o relatório expressa a convicção de que a sociedade da informação “será uma oportunidade para a disseminação dos valores culturais europeus e para a valorização da herança comum” e reconhece que “os produtos culturais, especialmente o cinema e os programas de televisão, não podem ser tratados como outros produtos: eles constituem meios privilegiados de identidade, pluralismo e integração, mantendo a sua especificidade dentro dos formatos dos novos produtos e serviços multimedia.”
Relativamente a documentos anteriores elaborados no seio de instituições europeias, o relatório Bangemann, além de acentuar o pendor técnico e económico e apesar dos enunciados de intenções sobre as questões culturais e sociais, não só ignora o conceito de “serviço público”, como desvaloriza o papel do Estado. Esta circunstância foi reconhecida por Mike Feintuck [13] , professor da Universidade de Hull, ao lamentar que “demasiadas vezes a justificação para a regulação” seja feita “em termos omissos” relativamente ao conceito de “interesse público”. O mesmo autor recorda que “no coração da teoria liberal-democrática está o conceito de cidadania” e que, “se efectivamente a cidadania implica participação na sociedade, pode dizer-se que, numa era em que a participação efectiva está, cada vez mais, relacionada com o acesso aos media como primeiro fórum para a comunicação política e cultural, então o acesso aos media tornou-se, ele próprio, um pré-requisito para a efectiva soberania”, o que, neste contexto, implica “receber os respectivos outputs mas também “a capacidade de fornecer imputs e influenciar a agenda”.
Como afirma Thompson, o desenvolvimento dos conglomerados de comunicação conduziu à formação de largas concentrações de poder económico e simbólico, controlados por entidades privadas, de uma maneira assimétrica, envolvendo grandes recursos e perseguindo interesses corporativos difundidos na “arena global” (1995-160). Numa tentativa de analisar os quadros teóricos que enquadram os modelos de globalização, este autor recorre à tese do “imperialismo cultural” de Herbert Schiller (1995,165) segundo a qual a globalização da comunicação foi criada para atender aos interesses das grandes companhias transnacionais sediadas nos EUA, actuando em colaboração com interesses políticos e militares ocidentais, especialmente americanos. Este processo provocou “novas formas de dependência” que levam à “destruição das culturas tradicionais”, provocada pela “invasão dos valores ocidentais”. Nesta perspectiva, a “venda maciça de programas em que predominam os valores do consumismo”, “suplanta motivações tradicionais e modelos alternativos de formação”.(1995,160-165). Trata-se de uma visão fortemente influenciada pelo marxismo que recolhe apoios e críticas. As críticas vêm, sobretudo, de estudos sobre os processos de recepção que negam o seu carácter unilateral apontando a sua complexidade. Thompson propõe um método para o enquadramento teórico da globalização que passa pela reconstrução histórica do processo, seu desenvolvimento e interrelação com as quatro “formas de poder”, ”simbólico, económico, político, coercivo”. Reconhecendo a complexidade das relações entre estes poderes, Thompson  afirma que a tese de Schiller enfatiza o poder económico, colocando o poder simbólico como seu instrumento. Thompson salienta o impacto social dos “produtos” da globalização e as condições da “apropriação”, afirmando que enquanto a difusão é global, a recepção é individual e depende de uma série de factores, entre os quais, o contexto em que se verifica e o background do receptor. Thompson interroga-se sobre as consequências da “apropriação localizada dos produtos globalizados”, nomeadamente, sobre o estímulo que poderão representar para “certos conflitos e mudanças sociais” e coloca a questão de saber se a globalização é causa de “perda de referências” (1965, 173-4).
O Livro Verde para a Convergência das Telecomunicações, Media e Tecnologias da Informação e Implicações na Regulação [14] , da autoria de Martin Bangemann e Marcelino Oreja, recuperou e actualizou recomendações contidas no relatório Bangemann. A palavra-chave passa a ser a “convergência” que aparece definida como “a capacidade de diferentes plataformas de canais transportarem, essencialmente, espécies semelhantes de serviços, isto é, a possibilidade do uso conjunto de instrumentos como o telefone, a televisão e o computador pessoal”. Trata-se de um documento essencialmente preocupado com as questões da regulação, sobretudo em evitar que a convergência conduza a novas regulações, defendendo que as leis actualmente em vigor sejam revistas “à luz da convergência”. Ao resumir os benefícios da convergência, o Livro Verde aponta a “criação de emprego, o crescimento, a escolha do consumidor e a diversidade cultural”. O documento dedica uma alínea ao que chama “objectivos de interesse público” (Cap.IV.3) no qual reconhece “a importância cultural dos serviços públicos de radiodifusão”, apontando a necessidade de uma “reapreciação do seu papel na era da convergência”, sobretudo no que se refere ao seu financiamento através de fundos públicos, o qual, a manter-se, deverá sujeitar-se às regras da concorrência e da liberdade de circulação de serviços, consignadas no Tratado de Amesterdão. O documento aponta a “necessidade de definir claramente” o que é o “interesse público”, considerando que os objectivos de “uma política cultural própria” devem ser da responsabilidade de cada Estado-Membro, o que, “historicamente, tem cabido aos serviços públicos de radiodifusão”. Acrescenta, também, que, durante o corrente ano, será preparado um Livro Verde especialmente dedicado aos “aspectos culturais dos novos serviços audiovisuais e de informação”.
Nos documentos que tenho vindo a citar, os serviços públicos de radiodifusão são deixados na penumbra, ou melhor, o seu papel num mundo de convergência e globalização confina-se a uma dimensão nacional, de acordo com políticas a definir por cada Estado, sobretudo no que se refere às formas de financiamento e à definição das políticas de conteúdos, culturais e outras. Os aspectos jurídicos, isto é, a regulação deverá ser feita ao nível da União Europeia segundo um modelo que consigne a “partilha de responsabilidades entre a Comunidade e os Estados Membros e, dentro de cada Estado, entre as autoridades nacionais, regionais e locais”. Por seu turno, as legislações nacionais sobre estas matérias deverão adaptar-se aos novos enquadramentos requeridos pela globalização e pela convergência.
Como o próprio Livro Verde reconhece, ficam por responder numerosas questões, sobretudo as que se referem aos “serviços”, “às novas maneiras de fazer negócio” e à “interacção com a sociedade”.
Ao nível da radiodifusão e considerando o papel do Estado, aponta-se para um modelo de um Estado supranacional representado pela União Europeia que deverá assumir competências ao nível da criação de instrumentos de regulação para vigorarem no espaço geográfico da União, as quais competiam antes a cada Estado. Esses instrumentos de regulação constituem-se como autênticas “magnas cartas” da sociedade global da informação e abrangem, não apenas os serviços públicos de radiodifusão, mas todo o “mercado” dos produtos da globalização e da convergência. O Livro Verde enuncia cinco princípios de regulação para os sectores afectados pela convergência: a regulação deve limitar-se a objectivos claramente identificados; deve responder às necessidades dos utilizadores; deve basear-se em necessidades claramente identificadas; deve assegurar a participação de todos (públicos e privados) na sociedade da informação (Cap.V.1.).
Existe, pois, de uma tendência para o nivelamento entre o sector público e o sector privado, ambos operando num mercado ferozmente concorrencial. As próprias preocupações políticas que orientaram, até agora, a intervenção do Estado ao nível da radiodifusão, encontram-se esbatidas nos documentos da “sociedade da informação”. A preocupação está centrada nos aspectos técnicos e jurídicos dos “produtos” da globalização e da convergência. Ao mercado caberá estabelecer, com a sua dinâmica própria, a regulação das questões económicas e financeiras. A este propósito são significativas as palavras do fundador da Nestcape: “para regular, a Internet, os governos europeus hesitam agora entre o controle jurídico e a auto-regulamentação do sector privado” e “cada produtor de lixo da informação pensa ter alguma coisa interessante para partilhar. Inicialmente, todos pensavam que a Internet e a comunicação global serviriam para aproximar entre si culturas e eliminar diferenças sociais. Porém, a net serve também para reforçar grupos étnicos, políticos e religiosos. A Internet dá a esses grupos a possibilidade de superar fronteiras geográficas que até agora eram monopólio do Estado. Os membros desses grupos comunicam, entre si em vez de falarem com os vizinhos. Estamos a assistir ao nascimento de uma nova sociedade e não sabemos como ela será”. De facto, como ele também diz, “a técnica informática reflecte as profundas contradições de uma sociedade com uma clivagem cada vez mais acentuada entre ricos e pobres. Teoricamente, a técnica está em condições de superar essa clivagem. Porém, a prática é que não é fácil” [15] .
Relativamente às preocupações contidas na Resolução 9/96 do Parlamento Europeu [16] , que consideram “dever um verdadeiro canal de serviço público de qualidade ter por objectivo encarar o telespectador como um cidadão e actor relativamente à informação moderna e não simplesmente como um espectador ou consumidor”, [17] a Resolução sublinha que “o principal objectivo dos poderes públicos, no contexto da emergência da sociedade da informação, deve ser permitir aos indivíduos orientar e utilizar a informação para fins individuais ou colectivos, como destinatários e como autores, e não para controlar os indivíduos” [18] .

6. Problematização de alternativas
O caracter fragmentário e qualitativamente desigual da documentação produzida nas instâncias internacionais, tornam-na, por vezes, contraditória, na medida em que pretende conciliar, por um lado, objectivos de estandartização requeridos pela sociedade global da informação com a preservação das culturas regionais e os interesses dos consumidores/cidadãos e, por outro, a livre circulação de todo o tipo de “produtos da globalização” com a protecção dos direitos das minorias.
As teorias liberais tradicionais substimaram os perigos da dependência económica dos media e não foram capazes de prever os limites que seriam impostos ao conceito de soberania nacional pela acção crescente de instituições, operando numa esfera global, factores que caracterizam a globalização e a convergência, isto é, a sociedade da informação. Os grandes grupos de comunicação são actores-chave na produção e distribuição de bens simbólicos, o que remete para uma reflexão sobre a liberdade de expressão, que não pode ser feita apenas numa escala nacional. Thompson propõe o estabelecimento do “princípio da regulação do pluralismo” que recupere a “tradição liberal da independência face ao Estado”, mas também face aos grupos que dominam o sector da comunicação, o que passa pela criação de condições para a emergência de grupos independentes, desconcentração dos recursos da indústria dos media, clara separação entre a produção (sobretudo no que se refere à informação política) e o poder (dentro e fora da empresa ou grupo) e uma legislação que não seja apenas restritiva, mas favoreça a criação e o desenvolvimento de empresas de comunicação fora dos grandes grupos. Em suma, Thompson preconiza a criação de um espaço “entre e para além” do Estado (o espaço institucional já não é nacional) e do mercado e preconiza uma reflexão profunda sobre a “dimensão internacional da comunicação” (1995,240-244).
Thompson não desenvolve a questão de saber como poderão sobreviver esses pequenos grupos numa escala global, à qual é duvidoso que grupos de dimensão média a uma escala nacional possam aceder se não se juntarem a outros, de modo a atingirem uma dimensão que os torne competitivos [19] .
Qualquer solução terá sempre de equacionar, com clareza, a questão do financiamento dos media (e dos produtos da globalização) e, sobre isso, não existem muitas alternativas: ou se deixa que o mercado opere a selecção dos que irão sobreviver na arena global, ou o recurso aos fundos públicos surge como inevitável, o que coloca, por outro lado, a questão da organização e gestão das empresas às quais serão atribuídos esses fundos.
Um serviço público a uma escala global apresenta-se, a meu ver, como uma alternativa. Como refere Zoe Lanara [20] a longa tradição europeia do serviço público de radiodifusão constitui uma oportunidade para a Europa, na medida em que “a sociedade europeia não pode ser confinada a um conceito de radiodifusão, no qual o que conta são as leis do mercado e os constrangimentos publicitários e em que elementos essenciais de informação, educação e cultura têm um valor meramente simbólico”. Só o serviço público de radiodifusão pode ser “um forum de debate democrático”, “proporcionar o acesso de todos a eventos com significado”, ser uma referência de qualidade”, “desenvolver um espírito de inovação”, “ser um forum de cultura; reforçar os valores da identidade europeia nos planos cultural e social”, ser um instrumento de investigação tecnológica e de desenvolvimento”.
Retomando os objectivos enunciados no preâmbulo deste trabalho, considero que, apesar da profusão de documentos e da existência de um debate, sobretudo em instâncias europeias e internacionais, mantêm-se em aberto as questões de fundo, como sejam soluções para a preservação dos valores da cidadania, da liberdade de expressão e do respeito pela diversidade cultural. Por outro lado, as soluções que parecem esboçar-se apontam no sentido de uma diminuição do papel dos Estados nacionais e da sua subordinação às directivas emanadas dos fóruns políticos internacionais. O serviço público de radiodifusão é, claramente, subalternizado, sendo deixada ao mercado a regulação da sobrevivência económica e às instâncias internacionais a regulação jurídica.



Bibliografia

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Recomendação nº. R (97) 20 do Comité de Ministros aos Estados membros sobre o discurso do ódio, adoptada em 30 de Outubro de 1997; Projecto de Recomendação sobre a representação da violência nos media electrónicos e Projecto de recomendação sobre os media e a promoção de uma cultura de tolerância.

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Livro Verde para a Convergência das Telecomunicações, Media e Tecnologias da Informação e Implicações na Regulação , Bruxelas, 3 de Dezembro de 1997

Resolução do Parlamento Europeu sobre a sociedade da informação, adoptada em 19.09.96



[1] J. Habermas, l’Espace Public, Archéologie de la publicité comme dimension constitutive de la société bourgeoise, Payot, 1978 (ed. orig., 1962)

[2] O termo “radiodifusão” (broadcasting) é a designação genérica usada para identificar os “serviços de comunicação electrónica qu usam a rádio e a televisão e cuja distribuição e recepção se efectua por terra, por cabo ou por satélite”. Abrange não apenas “notícias e programas de informação, mas também entertenimento”, incluindo “filmes, séries, jogos, espectáculos e outros géneros semelhantes que contribuem para a socialização e comunicam valores e atitudes relevantes”.(Zoe Lanara in The Red Book, Trade Union views on public broadcasting, A EURO-MEI paper, Setembro, 1996).

[3] ”Numa economia de mercado, os consumidores só podem comprar o que lhes é oferecido e isso não corresponde, necessariamente aos seus interesses, mas sim às perspectivas de lucro do produtor”,( op. cit. pag.135)

[4] Christopher Bland, Public Service past; Public Service future- the BBC in the next 75 years, Fleming Lecture, Junho, 1997

[5] Un project pour la Radio France, 1996

[6] Zoe Lanara, The Red Book, Trade Union views on public broadcasting, A EURO-MEI paper, Setembro, 1996).

[7] Recomendação nº. R (97) 20 do Comité de Ministros aos Estados membros sobre o discurso do ódio, adoptada em 30 de Outubro de 1997; Projecto de Recomendação sobre a representação da violência nos media electrónicos e Projecto de recomendação sobre os media e a promoção de uma cultura de tolerância.

[8] Comissão de Reflexão sobre o Futuro da Televisão, 1996, Relatório Final

[9] in Público 26.01.97

[10] O Futuro da Televisão, ciclo de debates organizado pelo Fórum Portucalense, Setembro, 1997

[11] Referência à morte da Princesa Diana ocorrida em Agosto de 1997

[12] Recommendations to the European Council, Europe and the global information society, Brussels, 26 May, 1994

[13] Feintuck M, Regulating the Media Revolution: In Search of the Public Interest, 1997 (3) The Journal of Information, Law and Technology (JILT)

[14] Livro Verde para a Convergência das Telecomunicações, Media e Tecnologias da Informação e Implicações na Regulação , Bruxelas, 3 de Dezembro de 1997

[15] Mark Andreessen, fundador da Netscape in DN, 01.02.98

[16] Resolução do Parlamento Europeu sobre a sociedade da informação, adoptada em 19.09.96

[17] Parágrafo I dos “considerandos” da Resolução

[18] Ponto 10 das propostas da Resolução

[19] No recente Congresso dos Jornalistas realizado em Lisboa de 24/2 a 1/3, num painel dedicado aos “patrões” da comunicação social, foi veementemente apontada, por Francisco Pinto Balsemão e pelo Coronel Luís Silva responsáveis por dois dos maiores grupos de comunicação social portugueses, a necessidade de, em vez dos 9 grupos que actualmente operam nesta área, se caminhar para a fusão de alguns deles, de modo a restarem, no máximo, apenas 2. Só assim, disse FPBalsemão, “teremos capacidade competitiva a nível internacional”.

[20] Zoe Lanara, Declaration of  The EBU in The Red Book, 1996