INFORMAÇÃO E CIDADANIA

(Notas para uma discussão)

 

Paulo Serra, Universidade da Beira Interior

Novembro de 1999

 

Resumo

            No texto que se segue começamos por delimitar o conceito de democracia a partir de dois princípios basilares: a transparência (da coisa pública) e a participação (política).[1]. Interrogamo-nos, em seguida, sobre os efeitos do chamado “excesso de informação” (information glut, data smog)[2] – que aparece como uma das características centrais da chamada “sociedade da informação” – sobre essa transparência e essa participação; defendemos a hipótese  de que esse “excesso de informação” pode ser uma das causas do abstencionismo político e cívico que se verifica nas sociedades actuais. Concluímos com uma breve consideração acerca das condições necessárias para que a informação se torne informação esclarecida, isto é, conhecimento.

 

 

1. A transparência como necessidade

           

“- Não é da nossa  incumbência darmos-lhe explicações. Volte para o seu quarto e aguarde. O processo já está a correr; o senhor será informado de tudo na devida altura. (...).”(Resposta dada a Josef K., acerca das razões da sua prisão, por um dos guardas que  uma manhã o vêm prender.) - Franz Kafka[3]

 

É possível vermos o conjunto da obra de Kafka – e o Processo em particular - como “o pressentimento duma máquina burocrática e tecnocrática perversa, duma máquina já fascista.”[4].

É igualmente possível vermos essa obra como um retrato anacrónico daquelas sociedades “punitivas” que dominam ainda nos séculos XVII/XVIII e em que a administração da justiça é feita totalmente à revelia do público e do próprio acusado.[5].

No entanto, se aqui evocamos o texto de Kafka é porque ele nos mostra, por antítese, a forma que a organização do Estado e a sua relação com o Cidadão deve assumir. Com efeito, desde o Iluminismo que elegemos a transparência como a condição necessária (ainda que não suficiente) da democracia.[6]. Transparência tem, aqui, um sentido muito preciso: ela refere-se à  “a publicidade  das decisões e actuações políticas” feita através dos media.[7]. A transparência não envolve apenas um direito (passivo) – o “direito à informação” – mas também um dever (activo): o dever de cada um dos Cidadãos exigir, a quem governa a coisa pública (seja qual for o nível e o domínio em que esse governo se exerce), que explique as suas acções e omissões.[8].  Que a transparência é a condição necessária à democracia prova-o, de facto – e como que confirmando, contra si próprio, o velho slogan marxista-leninista segundo o qual “Só a verdade é revolucionária” –, o facto de a maior “revolução” política do nosso tempo ter tomado justamente como divisa a palavra  “transparência” (glasnost). 

 

 

 

2. A participação como virtude

 

“Cuando, en el Protágoras platónico, Hermes le pergunta a Zeus si el sentido moral y la justicia deben distribuirse a todos los hombres o sólo aquellos que lo necesiten, como los demás conocimientos, Zeus contesta rotundo: “A todos, y que todos sean partícipes. Pues no habrá ciudades si sólo algunos de ellos participaran, como de los otros conociemientos. Además – prosigue – impón una ley de mi parte: que al incapaz de participar del honor y la justicia lo eliminen como a una enfermedad de la ciudad.” - Victoria Camps[9].

 

Descontando a boutade platónica da “eliminação” dos incapazes de participar no governo da polis, o texto de Platão citado por Victoria Camps ilustra bem a distinção entre a forma como os Gregos e os Modernos encaram a “liberdade” – uma distinção que aparece já tematizada em Benjamin Constant.[10]. Assim, se para os Modernos a liberdade é essencialmente independência, “liberdade negativa” (para utilizarmos a conhecida expressão de Isaiah Berlin), ou, como diz Victoria Camps, “el derecho de cada cual a no verse sometido a ninguna instancia que no sea la de la ley”, já nos Gregos a liberdade é entendida de forma positiva, como “la forma de exercer colectivamente la soberanía política, la posibilidad de participar activamente en las decisiones públicas” - valorizando-se claramente o “público” em relação ao “privado” e entendendo-se a democracia como “un régimen participativo, en el que los ciudadanos sentían que su voluntad tenía una influencia en las decisiones políticas.”[11].

Ora, a questão que hoje se coloca – e ela foi colocada há muito por Hannah Arendt[12] e, em certa medida, por Habermas[13] -, é a de saber em que medida é possível recuperar, para o nosso tempo, um conceito de liberdade que não se limite a um do not disturb meramente reactivo. Será possível – e como? - combinar uma liberdade negativa e individualista (que visa o bem-estar e a felicidade individuais) com uma liberdade positiva e cooperativa (que visa a igualdade e a justiça colectivas)? Isto porque ambos os conceitos de liberdade são igualmente importantes – e não se pode deitar fora um ou outro sem, de certo modo, amputar a nossa (definição actual de) humanidade (que exige não só uma “vida boa” como uma “boa vida”).[14].

Em relação à polis grega, as nossas sociedades são incomparavelmente maiores (quer em termos de espaço quer em termos do número de cidadãos), mais complexas (em termos de especialização, de diferenciação de funções e de conhecimentos) e mais mediatizadas (em termos de mediação tecnológica). A mediação (tecnológica) é, aqui, uma questão central: seria impossível, sem ela, por um lado, trazer até aos Cidadãos as diversas questões relativas à res publica, garantindo uma certa comunhão de ideias e atitudes, e, por outro lado, facilitar-lhes a abordagem dos problemas cada vez mais complexos da vida social, traduzindo o “especialês” em linguagem (mais ou menos) comum. Os media jogam, portanto, um papel essencial não só no que se refere à possibilidade de transparência como à de participação na vida política. Note-se, no que se refere ainda em relação a este último aspecto (participação) que, nas sociedades modernas - se não nos situarmos ao nível da pequena comunidade (por exemplo uma associação voluntária), em que a participação directa é possível e não exige (ou justifica) a mediação tecnológica “dura” (embora existam formas de mediação “soft”) - a participação é cada vez mais definida em termos de media, de tal forma que a ausência de visibilidade (dos indivíduos e das comunidades) nos media equivale, cada vez mais, a uma inexistência de facto.[15].

Para além destas modalidades de participação directa há todo o mundo da democracia representativa, de que a “crise” - e crise não significa, na presente situação, necessariamente um mal, antes pelo contrário - (a)parece hoje como cada vez mais evidente. Grave é que, a acompanhar esta “crise da representação”, se possa também falar hoje de uma “crise de participação”, isto é, de um crescente abstencionismo cívico e político que, ainda que com notáveis excepções,  remete os Cidadãos a um alheamento crescente em relação aos problemas colectivos - nomeadamente aos do âmbito das diversas pequenas comunidades (organizações e associações oficiais, semi-oficiais ou voluntárias) a que pertencem. Situação que leva Victoria Camps  à visão pessimista de que “Hoy se está confirmando plenamente la tesis weberiana según la cual la sociedad está dividida en dos clases de ciudadanos: los políticamente activos y los que sólo acuden a las urnas cuando hay que votar. O la idea de Schumpeter de de que la democracia no va más allá de ser una especie de mercado electoral.”. E se é verdade que, segundo Robert Dahl - para quem a democracia passou já, neste século, por duas fases (a primeira, a da consolidação das instituições democráticas, a segunda a da crescente complexidade das políticas públicas e a sua entrega as mãos  dos técnicos e peritos) - as telecomunicações anunciam uma nova (terceira) fase da democracia, que estreitaria finalmente as relações entre o demos e as elites que nos governam, incrementando a informação e a participação[16], não é evidente que tal esteja a acontecer.

 

3. A informação como excesso

 

“The vast accumulations of knowledge – or at least of information – deposited by the nineteenth century have been responsible for an equally vast ignorance. When there is so much to be known, when there are so many fields of knowledge in which the same words are used with different meanings, when every one knows a little about a great many things, it becomes increasingly difficult for anyone to know wether he knows what he is talking about or not. And when we do not know, or when we do not know enough, we tend always to substitute emotions for thoughts.” – T. S. Eliot [17]

 

Em coerência com a sua concepção cibernético-sistémica da sociedade (como dos organismos e das máquinas), Norbert Wiener – que pode, a muitos títulos, considerar-se como um dos founding fathers da “revolução da informação” na sua versão neo-iluminista – atribui, aos meios de comunicação (de informação), uma função “homeostática” (reguladora) essencial.[18]. Ora, queixa-se Wiener, na sociedade actual essa função “homeostática” encontra-se pervertida por interesses de outro género – Wiener refere-se especificamente ao poder e ao dinheiro -, que fazem com que a “informação comunitariamente disponível” vá diminuindo à medida que o tamanho das comunidades humanas vai aumentando (e, presume-se, seguindo a lógica de Wiener, também o seu grau de mediação tecnológica).[19]. A aceitarmos esta queixa de Wiener – que dá conta do desfasamento entre a lógica da sociedade e a dos media – temos de procurar as suas raízes nos inícios da Modernidade e na generalização da imprensa. Como faz notar John Thompson, a partir do século XV, os processos de produção, armazenamento e circulação da informação (das “formas simbólicas”) sofreram transformações essenciais, ligadas aos desenvolvimentos institucionais típicos da Modernidade, de entre as quais se destacam a produção e a reprodução das formas simbólicas numa escala cada vez maior, a transformação das formas simbólicas em mercadorias e a acessibilidade das formas simbólicas a indivíduos cada vez mais dispersos no espaço e no tempo.[20]. A história posterior ao século XV – com, para além dos livros,  as gazetas, os jornais, a penny press, as revistas, o cinema, a televisão, as redes telemáticas, etc. – não fez senão manter e aprofundar estas mesmas tendências e o desfasamento entre as duas lógicas atrás referidas.[21]. Ora – e é esta a nossa central – a “sociedade de informação” não é senão o culminar deste processo. 

            Submetida à  lógica do mercado, a “sociedade da informação” avança (não só no que se refere  ao hardware como ao software e aos conteúdos) num movimento incessante de upgrading[22] – há alguns anos Baudrillard falava, a propósito da “sociedade de consumo”, em “reciclagem cultural” - que faz com que o que se tem no momento nunca seja suficiente e tenha de ser renovado muito antes de esgotadas todas as suas possibilidades. Ora, se já no início do século Eliot se preocupava – e essa preocupação estende-se a autores como Valéry e Simmel - com a excessiva “acumulação de informação”, a “sociedade de informação” levou esse excesso a níveis dificilmente imagináveis no tempo de Eliot.

Num ambiente caracterizado pelo “excesso de informação”, a tarefa mais difícil para quem produz e pretende vender a informação é a de captar audiências. Esse objectivo – pelo qual passa a sua sobrevivência - obriga os media a desenvolverem estratégias de ataque como o choque (o sensacionalismo, a violência, o sexo...), a simplificação e o estereótipo (a fulanização, o maniqueísmo, o carácter agonístico, a novelização...), a segmentação e a especialização (a informação “à medida” do “cliente”), a feição “informercial” e “advertorial” (aquilo a que, por analogia, poderíamos chamar a “informação-espectáculo”).[23]. Esta “fusão” entre informação e publicidade é particularmente significativa, na medida em que a própria informação “séria”[24] tem vindo a ser colonizada por ela. Assim, e ao contrário do que aconteceu no passado - em que a “publicidade” era um suporte da “informação”, assumindo-se, uma e outra, como formas comunicacionais distintas e com objectivos distintos –  a informação vive hoje cada vez mais sob o signo da publicidade, indo ao ponto de se ter tornado, ela própria, publicidade.[25] A lógica é, agora, não publicitar a informação, mas fazer com que a informação se publicite a si própria – sob pena de não atrair os potenciais “clientes”. Este conjunto de características aponta globalmente para uma informação que, como refere Eliot, explora (predominantemente) a emoção em vez do pensamento, visa atrair em vez de fazer reflectir, glorifica o efémero em detrimento do permanente, exige a novidade e detesta o passado.

O Cidadão que procura (ou a quem é oferecida) uma informação “séria” depara-se com uma dupla dificuldade: por um lado, e em virtude da prevalência daquilo a que Giddens chama os “sistemas periciais”, e que incidem sobre aspectos tão comezinhos como a comida, a saúde, a educação, os transportes, etc., mas também sobre os diversos temas da agenda política – prevalência que se repercute nos próprios media -, torna-se-lhe difícil escolher entre informações “sérias” mas igualmente bem fundamentadas e contraditórias entre si, o que o coloca numa situação de incerteza (Gidens fala em “risco”) permanente[26]; por outro lado, e dado o “mar de informação” (de produtos informacionais) em que a própria informação “séria” se encontra imersa, torna-se-lhe cada vez mais difícil (e mesmo doloroso) distinguir aquilo entre o essencial (o relevante) e o acessório (o irrelevante).[27]. Assim sendo, é verdade que o Cidadão tem cada vez mais “informação” – mas também é verdade que percebe cada vez menos o que se passa na coisa pública (esta é-lhe cada vez menos transparente) e tem cada vez menos capacidade para decidir (é-lhe cada vez mais difícil participar). O abstencionismo – político e cívico – seria, assim, uma resposta (ou, pelo menos, uma das respostas possíveis) a este “excesso de informação”, a esta “iluminação” que ofusca.

 

4. O regresso aos “clássicos”[28]

 

Num mundo caracterizado pelo “excesso de informação”, mais importante do que procurar e coleccionar informação é a tarefa de a reduzir, a tarefa de seleccionar e interpretar a informação relevante - e, assim, transformá-la em conhecimento.[29].

Era esta precisamente a solução que, há quase mil anos, nas suas Cartas a Lucílio, Séneca propunha para o “excesso de informação” que poderia resultar do facto de lermos de forma indiscriminada e interminável, à semelhança dos que se dedicam a “viajar continuamente” e a “constantes deslocações”, sem se fixarem em nenhum lugar (autor) de confiança e sem reflectirem sobre o que lêem.[30]. Para evitar essa dispersão, a leitura deve acompanhar-se necessariamente da escrita, para que “a pena venha a dar forma às ideias coligidas das leituras”, permitindo fixar o que é importante para nós, ao mesmo tempo que nos obriga a concentrar em nós próprios, num verdadeiro “exame de consciência” (de auto-análise).[31] A escrita é, assim, uma arma indispensável para combater o defeito da stultitia, provocada pelo excesso de “saber” (informação), pelo “aparato de conhecimentos supérfluos”, pela “necessidade de saber mais do que o necessário” que, segundo Séneca, não é senão “uma forma de intemperança”, e que não pode deixar de tornar as pessoas “pedantes, palavrosas, inoportunas”, amigas de se ouvir, incapazes de aprender o indispensável porque andaram estudando coisas inúteis.”[32]. E, utilizando as três metáforas - tradicionais já na sua época -, da colheita de néctar (e da produção de mel) pela abelha, da digestão e da assimilação dos alimentos, e da adição dos números numa soma, diz Séneca que, de forma análoga, “devemos operar nos alimentos da inteligência, sem permitir que as ideias recebidas se conservem tal qual, como corpos estranhos. Assimilemo-las; se assim não for, elas podem perdurar na memória, mas não penetram na inteligência.”.[33].

Estes conselhos, que Séneca dirige a Lucílio – pelo facto de lhos dirigir – chamam-nos a atenção para um outro aspecto relevante: a importância, que parece hoje maior do que nunca, da relação humana – e da relação pedagógica (mestre-discípulo) em particular – na selecção e interpretação da informação (e na transformação desta em conhecimento). Depararmos aqui, no entanto, com aquela que nos parece ser uma das contradições fundamentais da “sociedade da informação”: a de ir eliminando as mediações humanas entre o sujeito e a informação ao mesmo tempo que torna essas mediações cada vez mais necessárias. O que coloca desde logo a questão de sabermos se, num mundo que, quer quanto à forma quer quanto à substância, deixou há muito de ser “clássico”, é ainda possível qulaquer “regresso”.

 

 

 

 

Universidade da Beira Interior

Novembro de 1999

Paulo Serra

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] Utilizamos, ao longo do texto, as definições (latas) de política como “organização e gestão do público” (ou “interesse comum”) e de público como “o que “transcende os interesses privados ou corporativos”. Cf. Victoria Camps, El Malestar de la Vida Pública, Barcelona, Grijalbo, 1996, pp. 180-181 e 187.

[2] “Information glut” é uma expressão frequentemente utilizada em Theodore Roszack, The Cult of Information, Cambridge, Lutterworth Press, 1986 (Cf. pp. 162 ss); “data smog” e “information glut” são partes essenciais logo do título do livro de David Shenk, Data Smog: Surviving the Information Glut, S. Francisco, HarpeEdge, 1997.

[3] Cf. Franz Kafka, O Processo, Lisboa, Livros do Brasil, s/d, pp. 5-7. O que está em jogo no que se segue não é, obviamente, uma análise de O Processo de Kafka; esse texto servir-nos-á tão-só como pretexto. Poderíamos ter escolhido outro texto qualquer - por exemplo sobre a Rússia de Estaline, a China de Mao, a Alemanha de Hitler...

[4] Gilles Deleuze e Félix Guattari, O Anti-Édipo. Capitalismo e Esquizofrenia, Lisboa, Assírio e Alvim, s/d, p. 315.

[5] “Na França, como na maior parte dos países europeus – com a notável excepção da Inglaterra – todo o processo criminal, até à sentença, permanecia secreto: ou seja, opaco não só para o público mas para o próprio acusado. O processo desenvolvia-se sem ele, ou pelo menos sem que ele pudesse conhecer a acusação, as imputações, os depoimentos, as provas. Na ordem da justiça criminal, o saber era privilégio absoluto da acusação.” Michel Foucault, Vigiar e Punir, Petrópolis, Vozes, 1997, pp. 35 ss.

[6] Como refere Jean Starobinski a propósito de Diderot, “Un même exigence de manifestation totale commande la dialectique, l’esthétique et ‘l’encyclopédistique’ de Diderot: tout doit être montré, exprimé, mis en lumière. Il n’y a ni masques ni pudeur qui tiennent: “Il faut divulguer tous ces secrets, sans exception”; (...). La comparaison, pliusieurs fois reprise, qui fait de l’Encyclopédie un paysage varié, exposé en pleine lumière, nous révèle le lien étroit qui associe, dans l’esprit de Diderot, l’extériorisation du savoir er l’esthétique de la présence généreuse et variée (...).”Jean Starobinski, “L’arbre du savoir et ses métamorphoses”, in Encyclopédie de Diderot et D’Alembert. Essais et Notes, Vol. 18, Milão, Franco Maria Ricci, 1979, p. 304. Recorde-se igualmente que a obra mestra de Starobinski sobre Rousseau se chama, significativamente, La Transparence et l’Obstacle. Cf. Jan Starobinski, Jean-Jacques Rousseau: La Transparence et l’Obstacle, Paris, Gallimard, 1985 (or. 1971). Assim, não é por acaso que toda a obra de Kafka se joga num ambiente de penumbras, de locais esconsos, de obscuridades que, por contraste, não fazem senão ressaltar tal falta de transparência.

[7] “Más que como autogobierno, que es una forma obsoleta e irreal de definir la democracia, ésta deberia definir-se como la transparencia de lo público. (...) la publicidad de las decisiones y actuaciones políticas, intrínseca al funcionamento democrático, encuentra en los medios de comunicación la condición de su posiblilidad. Una política es democrática se se muestra sin opacidades ni engaños.” Victoria Camps, op. cit., p. 180.

[8] Noutra passagem do seu livro diz Victoria Camps: “El deber de un gobierno democratico es ser transparente,  hacer público lo que hace. También el deber ciudadano –y, en especial, el de los representantes del ciudadano: el parlamento – es egixirle al gobierno que explique por qué hace lo que hace o deja de hacer lo que deja de hacer.” Idem, pp. 49-50.

[9] Victoria Campos, op. cit., p. 192.

[10] Victoria Camps refere-se, concretamente, ao texto de Benjamin Constant “De la libertad de los antiguos comparada com la libertad de los modernos”.

[11] Idem, p. 51. Deixamos de lado a questão de saber se a forma como Benjamin Constant e outros autores (por exemplo H. Arendt) descrevem a democracia ateniense corresponde fielmente à realidade histórica (Não denuncia Platão a manipulação retórica das assembleias? Não havia partidos previamente definidos para aprovar determinadas decisões? Os interesses “egoístas” não teriam um peso importante em muitas dessas decisões?...) – já que não estamos aqui preocupados com a discussão da realidade histórica, nem com as perversões de um “tipo-ideal”, mas com o “tipo-ideal” propriamente dito.

[12] Cf. Hannah Arendt, The Human Condition, Chicago, The University of Chicago Press, 1989.

[13] Cf. Jürgen Habermas, Théorie de l’Agir Communicationnel, Paris, Fayard, 1987.

[14] A escolha de uma ou outra posição extremas acaba, aliás, por conduzir à sua própria negação: a primeira, porque esquece que a comunidade condiciona sempre, de uma forma ou outra, a vida individual (não querer escolher com os outros é sempre deixar que outros escolham por mim); a segunda porque não permitiria ao indivíduo qualquer motivação para a acção (se não houver vantagem pessoal em escolher com os outros, não é um formalismo ético qualquer que me levará a escolher). A esta dialéctica entre o individual e o colectivo chamava Hegel, justamente, “astúcia da Razão”.

[15] Não é, portanto, por mero acaso ou capricho que o protesto popular ou a comunicação do político são, invariavelmente, cronometrados para a hora do noticiário.

[16] Idem, p. 169. Victoria Camps propõe, como solução para a “crise da política”, o que chama  “el paso de la política a la sociedad”: a transferência, para as iniciativas (solidárias) de indivíduos e grupos (associações voluntárias, nomeadamente), de muitas das atribuições que hoje competem ao Estado e que, em grande parte, este não consegue desempenhar de forma cabal, introduzindo constantemente novos elementos de injustiça e desigualdade. Idem, p. 58. A questão está em saber se o Estado está disposto a tal transferência  e se ela captará a adesão dos Cidadãos.

[17] T. S. Eliot, “The perfect critic”, in The Sacred Wood. Essays on Poetry and Criticism (or. 1920), disponível em http://www.columbia.edu/acis/bartleby/ eliot.

[18] “Uma das lições do presente livro é que qualquer organismo é mantido (held together) na sua acção pela posse de meios para a aquisição, uso, retenção e transmissão de informação. Numa sociedade demasiado grande para o contacto directo dos seus membros, estes meios são a imprensa (press), tanto no que diz respeito aos livros como aos jornais, à rádio, ao sistema telefónico, ao telégrafo, aos correios, ao teatro, ao cinema, às escolas e à igreja.” Norbert Wiener, Cybernetics: or Control and Commmunication in the Animal and the Machine, Cambridge-Massachusetts, The MIT Press, 1965, p. 161.

[19] Diz Wiener: “O sistema que mais que todos os outros contribuiria para a homeostasia social é atirado directamente nas mãos daqueles que estão mais directamente envolvidos no jogo / do poder e do dinheiro, e que nós já vimos constituírem um dos principais elementos anti-homeostáticos na comunidade. Não admira então que as comunidades maiores, sujeitas a esta influência disruptiva, contenham cada vez menos informação comunitariamente disponível que as comunidades mais pequenas, para não falar dos elementos humanos de que todas as comunidades são constituídas. Tal como na alcateia, embora, esperemos, em menor grau, o Estado é mais estúpido do que a maior parte dos seus componentes.” Idem, pp. 161-162.

[20] John B. Thompson, The Media and Modernity. A Social Theory of the Media, Cambridge, Polity Press, 1996 (or. 1995), p. 10. O desfasamento (relativo, pelo menos) entre a lógica da sociedade e a lógica dos media é também realçado por Victoria Camps, no livro que temos vindo a citar.   

[21] Não se depreenda, da nossa análise, a pretensão de que “não deveria ser assim” – já que estamos convencidos de que não poderia ser de outro modo. Aliás, casos como os do “o serviço público de televisão” – que fazem com que, de forma geral, os contribuintes paguem, caro, serviços que de públicos nada têm (quando não são totalmente governamentalizados, eles obedecem a uma lógica comercial mais ou menos envergonhada, colocando-se numa posição totalmente ambígua e insustentável a médio prazo) – fornecem-nos bons exemplos do resultado a que normalmente chegam tais pretensões.

[22] Retomamos esta expressão de David Shenk, op. cit., pp. 80 ss.

[23] Idem, p. 164.

[24] No presente contexto entendemos por informação “séria” a que visa facultar, aos Cidadãos, o conhecimento dos assuntos referentes ao “interesse comum” (os problemas, as alternativas em presença, os interesses em confronto, etc.).

[25] Como faz notar Baudrillard, esta forma “inarticulada, instantânea, sem passado, sem futuro, sem metamorfose possível”, sendo a última, domina todas as restantes, de tal forma que “todas as formas actuais de actividade tendem para a publicidade, e na sua maior parte esgotam-se aí.” Jean Baudrillard, Simulacros e Simulação, Lisboa, Relógio D’Água, 1991, p. 113.

[26] Cf. Anthony Giddens, Modernidade e Identidade Pessoal, Oeiras, Celta Editora, 1994 (or. 1991), nomeadamente pp. 126 e ss.

[27] Porquê O Diário de Notícias em vez da Maria? Porquê a secção de política de um jornal em vez das secções do fait-divers ou do “social”? Estas são perguntas em relação às quais a generalidade dos cidadãos não terá, seguramente,  facilidade em responder...

[28] O “regresso aos clássicos” – ainda que num sentido e com objectivos distintos dos a seguir explicitados - é a proposta essencial da obra The Closing of the American Mind (or. 1987), de Alan Bloom (Cf. A Cultura Inculta, Lisboa, Europa-América, s/d).

[29] Parafraseamos aqui o dito de Eli Noam segundo o qual  “Almost anybody can add information. The difficul question is to reduce it.” Apud David Shenk, op. cit., p. 181.

[30] Como diz Séneca, “Estar em todo o lado é o mesmo que não estar em parte alguma!”, sendo a demasiada abundância de livros “fonte de dispersão”. Lúcio Aneu Séneca, Cartas a Lucílio, 2 (1-3), Lisboa, Gulbenkian, 1991, p 3.

[31] Séneca, op. cit., 84 (2-3). p. 379.

[32] Cf. Séneca, op. cit., Carta 88 (36-37), p. 426.

[33] Séneca, op. cit., Carta 84 (6-7), p. 381.