ÉTICA E INFORMAÇÃO: ALGUNS PARADOXOS ÉTICOS DA “SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO”

Paulo Serra, Universidade da Beira Interior

1. Introdução

Um dos pressupostos fundamentais que, de forma mais ou menos explícita, enforma os actuais discursos acerca das “virtudes” da “sociedade da informação” — bem como as políticas que decorrem de tais discursos — é o de que um homem melhor informado é, necessariamente, um homem moralmente melhor; e que, em consequência disso, uma sociedade de homens melhor informados é necessariamente uma sociedade mais justa. Tais discursos filiam-se, assim, no projecto dos enciclopedistas e dos iluministas em geral — com excepções notáveis como Rousseau e Kant [1] —, bem expresso na afirmação com que Diderot traça, como um dos objectivos centrais da Encyclopédie, o de “[permitir] que os nossos descendentes, tornando-se mais instruídos, se tornem ao mesmo tempo mais virtuosos e mais felizes”. [2]

Pretendemos, no que se segue, mostrar que esta posição conduz pelo menos a dois paradoxos.

Primeiro paradoxo: o “excesso de informação” que caracteriza a actual “sociedade da informação” não só não torna o agir mais “virtuoso” como tende mesmo a impossibilitar o agir em geral, substituindo-o por uma reactividade mais ou menos pavloviana de que a expressão mais clara é aquilo a chamaremos a “esteticização generalizada da existência” que, e ao contrário do defendido por autores como Lipovetsky, representa não o “regresso da ética”, de uma ética “pós-dever”, mas a verdadeira liquidação da mesma. Assim, quanto mais “informados” estamos, menos sabemos não só como devemos mas como podemos agir. 

 Segundo paradoxo: se é certo que toda a ética não pode deixar de tomar em consideração a existência do Outro, não parece menos certo que a mediatização do Outro, a transformação do Outro em “informação” e “imagem” envolvida, nomeadamente, naquilo a que o mesmo Lipovetsky chama a “filantropia mediática” , representa não uma forma de ampliar e aprofundar  essa ligação intersubjectiva, essa “aproximação” ao Outro, mas antes a sua anulação de facto como Outro. Assim, quanto mais a “informação” aproxima os Outros de nós, mais nos afasta desses mesmos Outros enquanto Outros.

De ambos os paradoxos pretendemos concluir que, a haver um “regresso da ética”, ele tem de ser procurado não nas “tecnologias da informação”, por muito revolucionárias e performativas que elas sejam mas, precisamente, numa limitação dessas tecnologias e da informação para dar lugar a uma aproximação ao/do Outro no sentido em que ela foi e tem vindo a ser tematizada por filósofos como Merleau-Ponty, Emmanuel Lévinas e François Julien.

2. A informação e a orientação existencial

A infinitude e a abertura da experiência do sujeito moderno, disperso por uma multiplicidade de contextos, relações, práticas e conhecimentos sempre novos e mutáveis, e que o são cada vez mais rapidamente, vai implicar que a questão ética quer na sua versão antiga, “como viver uma vida boa?”, quer na sua versão moderna‑kantiana, “que devo fazer?” seja precedida da questão simultaneamente menos radical mas muito mais ampla “como viver?”. Uma e outra parecem, à primeira vista, a mesma questão. Puro engano. Enquanto a questão ética dá como adquiridas as respostas a toda uma série de aspectos da vida, reservando‑se para os domínios muitos precisos e problemáticos da relação do sujeito consigo próprio e com os outros, para aquilo a que costuma chamar‑se a “esfera moral”, a segunda questão nada dá como adquirido; desde as questões mais comezinhas da vida quotidiana até às questões decisivas relativas à vida e à morte, tudo se torna problemático e exigindo solução. [3] Como responde a modernidade a este carácter problemático da totalidade da existência? Recusado o “discurso do mestre” [4] , a modernidade responde a tal carácter problemático com a proliferação, em quantidade e em profundidade, daquilo a que Giddens chama os “sistemas periciais” e de que cujos resultados a Encyclopédie fornece, precisamente, uma primeira sistematização , nos quais o sujeito procura todos um conjunto de informações, conselhos e orientações mais ou menos “científicos” e, assim, supostamente “seguros” e “fiáveis”. [5] O recurso às informações, conselhos e orientações provenientes dos “sistemas periciais” não elimina, no entanto, tal carácter problemático. E isto por uma tripla razão:

i) Desactualização: num mundo em permanente mudança, todas as informações, conselhos e orientações se encontram permanentemente desactualizados, tornando impossível ao sujeito fixar‑se em qualquer forma mais ou menos estável. E se é verdade que este império do fluxo sobre a forma é, como muito bem viram Bergson e Simmel, uma das características essenciais da vida, e não apenas da vida “moderna” – não dizia já Heraclito, há mais de dois mil e quinhentos anos, que não podemos banhar‑nos duas vezes nas mesmas águas de um rio? – não é menos verdade que, na sociedade moderna, todos os processos se aceleraram até à vertigem. [6]

ii) Contradição: o que é verdade para uns especialistas não o é para outros, o que hoje é verdade já não o será amanhã uma situação de que o exemplo dos regimes alimentares é, quiçá, um dos mais ilustrativos. 

iii) Parcialidade: tendo os sistemas periciais um carácter especializado como sublinha Giddens, ninguém consegue ser “perito” senão em uma ou duas áreas, sendo “leigo” em todas as outras , as informações, conselhos e orientações que deles provêm não permitem uma visão unitária ou unificada acerca da realidade, que permanece, na sua maior parte, opaca a cada um dos sujeitos. [7]

A situação do homem moderno é, assim, afectada por uma incerteza radical. [8] Sendo verdade que muitos dos sujeitos respondem a essa incerteza escolhendo, assumindo o risco que a escolha envolve, parece no entanto existir, na sociedade moderna, uma percentagem crescente de indivíduos que ou se recusam pura e simplesmente a escolher, remetendo‑se à abulia e ao abstencionismo perante todas as escolhas ou, o que é o mesmo, preferem deixar que outros, mais afirmativos e mesmo autoritários, escolham por eles, como acontece nas diversas formas de fundamentalismo e autoritarismo. Essa abulia, esse abstencionismo e essa recusa da responsabilidade têm, na actualidade, a sua expressão mais clara na esteticização generalizada da existência ou, em termos kierkegaardianos, numa verdadeira absolutização do “estádio estético” em relação aos restantes “estádios” da existência, nomeadamente ao “ético”. [9] Esta esteticização generalizada mostra também, de forma clara, que a perturbadora “banalidade do mal” de que fala Hannah Arendt [10] tem, como contraponto, uma “banalidade do bem” não menos perturbadora.

3. A ética mediática

Pode defender‑se, como Lipovestsky, que a absolutização do “estético” não acarreta o “fim da moral”, mas antes o advento de uma nova ética que marca o fim do imperativo categórico e a emergência das sociedades “pós‑moralistas” ou “pós‑dever” — uma ética “indolor”, “da responsabilidade”, “dialogada”, “sem obrigações nem sanções”, apostando num “altruísmo indolor” e numa generosidade “fácil e distante” que tendem a assumir a forma da “filantropia mediática”. [11] E ver‑se mesmo, neste novo tipo de “ética”, um indício do “regresso da moral” e do “despertar da ética” e isto depois de décadas em que a ética foi encarada, pela contracultura juvenil, como o elemento mais “repressivo” e “reaccionário” da cultura dominante.

No entanto, a questão que se coloca é a de saber se ainda poderemos chamar ética a esta nova “ética”, a esta “ética mediática”. A nossa resposta a tal questão é claramente negativa – e isto por duas ordens de razões.

Em primeiro lugar, se admitirmos, com Kant, que a ética se refere à questão “que devo fazer?”, e que esta questão é uma questão que cada um deve intimamente colocar a si próprio e a que deve responder de forma autónoma e racional — ainda que possamos não aceitar a ideia kantiana de uma racionalidade abstracta e sem limites —, então aquilo a que hoje vulgarmente se chama “ética”, a ética que “regressa”, nada tem de propriamente ético: trata‑se, na maior parte dos casos, de um conjunto de regulamentações mais ou menos piedosas, elaborado por comissões de “especialistas” oriundos de diversas áreas científico‑profissionais e cuja finalidade é, no fundo, a de aliviar cada um dos sujeitos da responsabilidade e da dor das escolhas pessoais, transferindo essa responsabilidade para uma espécie de “contrato social” acerca do qual ele não teve a mínima palavra a dizer. Aliás, o próprio Lipovestsky reconhece, de forma algo contraditória, que o “regresso da moral” e o “despertar da ética” de que hoje tanto se fala não representam, na maior parte dos casos, senão a afirmação crescente de “uma ética por procuração”, de “uma ética sem cidadãos”. [12]  

            Em segundo lugar, seja na sua versão antiga seja na sua versão moderna, a ética envolve sempre, como realidade ou como ideal normativo, a consideração da existência do Outro — basta pensarmos nas “virtudes” propostas pela ética antiga ou nas fórmulas do imperativo categórico que nos mandam universalizar a norma de acção ou tratar os outros como fins. Ora, a “filantropia mediática”, longe de representar um aprofundamento dessa consideração da existência do Outro representa, tendencialmente, a sua anulação e, assim, a da própria ética. Por um lado, e de um ponto de vista estritamente “qauntitativo”, na medida em que, sendo o tempo e a atenção de cada um dos sujeitos “bens” necessariamente limitados, todo o tempo e toda a atenção dedicados à “informação” — mesmo quando essa informação se refere ao “Outro” — redunda em diminuição do tempo e da atenção dedicados ao Outro, a começar pelo Outro que nos é mais próximo. Por outro lado, e mais importante do que o anterior, na medida em que a “filantropia mediática”, ao transformar o Outro numa “informação” que tende, cada vez mais, a deixar de ser “imagem” figurada/linguística para ser “imagem” literal/tecnológica, envolve uma objectivação e uma “apreensão” do Outro que acaba por o anular enquanto Outro. [13]  

4. Repensar o ético

Se, como acontece com todas as fábulas, quiséssemos extrair uma “moral” do que dissemos até aqui, diríamos que o “regresso da moral”, na “sociedade da informação”, só pode passar senão por uma recusa pelo menos por uma limitação da informação, por muito “científica” ou “séria” que ela seja — para colocar, em seu lugar, a experiência directa, pessoal, carnal, do Outro ou, como também poderíamos dizer, do próximo. Qual o sentido deste “regresso” — eis a questão para cuja resposta procuraremos adiantar, a seguir, algumas indicações a partir de dois textos, um mais recente, outro mais antigo, de François Julien e de Merleau‑Ponty [14] ; se no primeiro o que está em causa é o Outro como ser vivo, e não só como homem, no segundo o que está em causa é o Outro como estrangeiro.

O ponto de partida e a pedra de toque do texto de François Julien é a pequena história de um rei chinês, contada por Mencius, filósofo chinês do século IV a.C. [15] , e da qual ressalta essa  “reacção ao intolerável”, esse “sentimento do insuportável” face à infelicidade e ao sofrimento do Outro que, na opinião de Mencius e do próprio Julien, pode “fundar” [16] a moral e cuja propagação ou extensão — seja no próprio sujeito, de uma para todas as outras experiências, seja na sua relação com os outros, dos mais próximos para os mais distantes —, pode permitir a universalidade da mesma. [17] Quanto ao texto de Merleau‑Ponty, ele põe em evidência a via para o “universal lateral” aberta pela “experiência etnológica” que, pondo‑nos em contacto com outras culturas, promove a “incessante colocação à prova de si pelo outro e do outro por si”, permitindo‑nos “aprender a ver como estrangeiro o que é nosso, e como nosso o que nos era estrangeiro” [18] ;  ou, em termos mais kantianos, um caminho — ainda que não imperativo mas atractivo [19] — para um cosmopolitismo aberto e tolerante. [20]

Mas, argumentaria qualquer “ideólogo da informação” mais ou menos imaginativo, não serão as “tecnologias da informação” — com as suas capacidades ilimitadas de apresentar e representar a infelicidade, o sofrimento e a alteridade do Outro, de os traduzir em “imagens reais”, como agora se diz — a maneira mais eficaz de promover a “reacção ao intolerável” e a aceitação da alteridade de que falam Mencius‑Julien e Merleau‑Ponty? E ainda com a vantagem de o fazerem em doses maciças e com intensidades que o “mundo da vida” torna incomportáveis?

Teríamos no entanto de retorquir ao nosso “ideólogo da informação” que, por um lado, o que está em causa quer na história de Mencius quer no contacto etnológico de Merleau‑Ponty não é tanto a quantidade quanto a qualidade de uma experiência do Outro, e que, por outro lado, por muito aperfeiçoadas que sejam as “imagens” do Outro produzidas/trazidas pelas “tecnologias da informação”, elas envolvem sempre, como já dissemos,  a objectivação do Outro e, assim, a sua anulação como Outro.

Ao que acrescentaríamos que não é despiciendo pensar que as “tecnologias de informação” têm, neste aspecto, um papel totalmente contrário ao suposto pelo nosso “ideólogo da informação”: o de tranquilização, de anestesia, de narcose face ao sofrimento, à infelicidade e à alteridade reais do Outro. [21]

5. Conclusão

Restará contudo uma questão, quiçá a mais decisiva: não representa esta ética baseada em “virtudes” como a piedade, no caso de Mencius‑Julien e a tolerância, no caso de Merleau‑Ponty, uma “ética mínima” — e mesmo “negativa” — que, mais do que apontar o que devo fazer, me aponta o que devo evitar? Certamente; mas talvez este carácter mínimo da ética seja a condição máxima que a universalidade do ético — e o ético, como bem viu Kant, ou é universal ou não é, pura e simplesmente — pode assumir na “sociedade da informação”: uma sociedade que se apresenta fragmentada em comunidades e “éticas das virtudes” não só diferentes como, muitas vezes, antagónicas — e aqui residirá a parte de verdade do chamado “comunitarismo” — mas, simultaneamente, unificada mediante uma multiplicidade de redes mundiais de informação e comunicação que, apesar de tudo, dão a ver os seres humanos como uma totalidade para a qual deve valer um mesmo conjunto de exigências morais, por muito reduzido que ele seja [22] — e aqui reside a parte de verdade do chamado “liberalismo” ou, como talvez fosse preferível chamar-lhe, do universalismo ético.


[1] E de acordo com os quais ou há uma verdadeira antinomia entre ética e informação, no caso de Rousseau, ou não é possível generalizar, ao domínio da ética, os resultados de qualquer informação ou saber, no caso de Kant.

[2] Diderot, “Encyclopédie”, in Encyclopédie ou Dictionnaire Raisonné des Sciences, des Arts et des Métiers, Vol. 14 (Tomo 5 do original), Milão, Franco Maria Ricci, 1977, p. E, 99, itálicos nossos. Cf. também D’Alembert, “Discours Préliminaire des Éditeurs”, Vol. 13 (Tomo 1 do original), ibidem, pp. i-xlv. Esta não é, aliás, uma crença exclusiva dos enciclopedistas e dos iluministas em geral; como sublinha Isaiah Berlin num dos seus ensaios, toda a tradição filosófica assenta na ideia de que “a realidade é cognoscível e que o conhecimento e apenas o conhecimento liberta, e o conhecimento absoluto liberta em absoluto”. Isaiah Berlin , “Historical inevitability”, in Four Essays on Liberty, Oxford, Oxford University Press, 1969, p. 80.

[3] Como refere Giddens: “A modernidade é uma ordem pós-tradicional, na qual a pergunta ‘Como hei-de viver?’ tem de ser respondida através de decisões diárias acerca de como comportar-se, o que vestir e o que comer — e muitas outras coisas —, bem como interpretada no desenvolver temporal da auto‑identidade.”  Antony Giddens, Modernidade e Identidade Pessoal, Oeiras, Celta, 1994, pp. 12-13.

[4] Até pela sua impossibilidade prática, dada a complexidade e a diversidade crescentes dos domínios da existência do homem moderno e dos conhecimentos a eles atinentes.

[5] Cf. Antony Giddens , op. cit., p. 16.

[6] Situação que é tematizada, por Giddens, em termos de “desenfreamento” — quer quanto ao ritmo quer quanto ao âmbito e à profundidade das mudanças. Cf. ibidem, p. 14. 

[7] Ibidem, pp. 26 ss.

[8] Giddens fala, a propósito, do “risco” e do “clima de risco” que afecta tudo e todos na modernidade. Ibidem, pp. 110-111.

[9] Lembremos que, para Kierkegaard, ao estádio “estético” corresponde a figura do sedutor, de que o modelo é D. Juan, e que se caracteriza pela procura incessante do prazer; já ao estádio “ético” corresponde a figura do homem casado, caracterizado pelo trabalho sério e honesto, o matrimónio, a constituição de uma família e a educação dos filhos. Cf. Sören Kierkegaard, Either/Or, New Jersey, Princeton University Press, 1971. Acima de um e outro estádio encontra-se, no entanto, o “estádio religioso” – que corresponde, ele sim, ao exercício pleno da liberdade e àquilo a que, em rigor, poderíamos chamar o domínio do ético. Para uma visão de conjunto dos três “estádios da existência” e da filosofia kierkegaardiana cf. Sören Kierkegaard, Ponto de Vista Explicativo da Minha Obra como Escritor, Lisboa, Edições 70, 1986. Acrescente-se ainda, em relação a esta questão, que a própria informação, ao transformar-se cada vez mais em publicidade, acompanha e  reforça a esteticização generalizada da existência.

[10] Cf. Hannah Arendt, Eichmann à Jérusalem (Rapport sur la Banalité du Mal), Paris, Gallimard, 1997.

[11] Uma passagem que Lipovetsky resume da seguinte forma: “A era moralista tinha por ambição a disciplina do desejo, nós exacerbamo-lo; ela exortava aos deveres de cada um para consigo mesmo e para com os outros, nós convidamos ao conforto. A obrigação foi substituída pela sedução, o bem-estar tornou-se Deus e a publicidade o seu profeta.” Cf. Gilles Lipovetsky, O Crepúsculo do Dever. A Ética Indolor dos Tempos Modernos, Lisboa, D. Quixote, 1994, p. 62. As qualificações entre aspas pertencem ao filósofo francês.

[12] Ibidem, p. 260.

[13] Acerca da “informação” e da “imagem” como estratégias de objectivação e apreensão do Outro, visando anular a transcendência que é a sua condição constitutiva e reconduzi-lo à imanência do Mesmo, ao Cogito, cf.: Emmanuel Lévinas, “Diachronie et représentation”, in Jean Greisch, Jacques Rolland, Emmamnuel Lévinas: L’Éthique comme Philosophie Première, Actes du Colloque de Cerisy-la-Salle, 23 août-2 septembre 1986, Paris, Les Éditions du Cerf, 1993; Emmanuel Lévinas, Totalité et Infini, Paris, Kluwer Academic, 1994; Jean-Paul Sartre, L’Être et le Néant. Essai d’ontologie phénoménologique, 3ª Parte, Cap. I, ponto IV, Paris, Gallimard, 1995, pp. 292-341.

[14] Referimo-nos aos seguintes textos: François Julien, Fonder la Morale. Dialogue de Mencius avec un Philosophe des Lumières, Paris, Bernard Grasset, 1995; Maurice Merleau-Ponty, “De Mauss a Claude Lévy-Strauss", in Signos, S.  Paulo, Martins Fontes, 1991, pp. 123-135.

[15] “Um rei duvidava da sua capacidade de fazer o bem dos seus súbditos. Para o convencer disso, o sábio lembra uma anedota a seu respeito. Enquanto estava sentado na sala se audiências, esse rei teria visto passar, ao pé das escadas, um boi que conduziam ao sacrifício. Não podendo suportar o ar amedrontado do animal, semelhante a um inocente conduzido ao local do suplício, ele ordena que o libertem. ‘Devemos renunciar ao sacrifício? Perguntam então os seus funcionários. – Impossível, responde o rei, basta substituir esse boi por um carneiro’.” François Julien, op. cit., p. 11.

[16] Não no sentido de servir de “fundamento” ou “primeiro princípio”, como também se diz, mas no sentido de assegurar a legitimidade.

[17] “Pois a moralidade é como um fogo que começa a arder, como uma fonte que começa a espalhar-se (...). É por isso que esta única reacção ao insuportável que o príncipe experimentou um dia ao ver um boi amedrontado a ser conduzido ao  sacrifício — desde que ela fosse completamente desdobrada — bastaria para fazer reinar a paz no mundo.” François Julien, op. cit., p. 16.

[18] Maurice Merleau-Ponty, “De Mauss a Claude Lévy-Strauss", op. cit., pp. 129-130. 

[19] A distinção entre “imperativa” e “atractiva” para caracterizar, respectivamente, a ética dos modernos e a ética dos antigos, é introduzida por Henry Sidgwick. Cf. Charles Larmore, op. cit., p. 46 e passim.  

[20] Quer a posição de Mencius-Julien quer a de Merleau-Ponty pressupõem, aqui, uma relação com o Outro que não se confunde, obviamente, com a atitude objectivante/apreensiva acima referida – mas antes uma atitude de abertura e de receptividade em relação ao Outro que quer Merleau-Ponty quer Lévinas vêem consubstanciada no dizer e no ouvir que só a conversação face a face possibilita. Veja-se, a propósito, a seguinte citação de Merleau-Ponty, claramente dirigida contra a posição do L’Être et le Néant de Sartre: “O outro transforma-me em objecto e nega-me, eu transformo o outro em objecto e nego-o, diz-se. Na realidade o olhar do outro não me transforma em objecto, e o meu olhar não o transforma a ele em objecto, a não ser que um e outro nos retiremos para o fundo da nossa natureza pensante, que façamos de cada um de nós um olhar inumano, que cada um sinta as suas acções não retomadas e compreendidas, mas observadas como as de um insecto. É por exemplo o que acontece quando eu suporto o olhar de um desconhecido. Mas, mesmo então, a objectivação de cada um pelo olhar do outro não é sentida como penosa senão porque ela toma o lugar de uma comunicação possível.” Maurice Merleau-Ponty, Phénoménologie de la Perception, Paris, Gallimard, 1995, p. 414. E, recorrendo a um exemplo, acrescenta Merleau-Ponty: “Se entro em contacto com um desconhecido que não disse ainda uma única palavra, eu posso crer que ele vive num outro mundo em que as minhas acções e os meus pensamentos não são dignos de figurar. Mas diga ele uma palavra, ou tenha apenas um gesto de impaciência, e cessa desde logo de me transcender: eis aí a sua voz, os seus pensamentos, o domínio que eu cria inacessível.” Ibidem. De Lévinas veja-se por exemplo a seguinte citação: “A intriga da proximidade e da comunicação não é uma modalidade do conhecimento. O desaferrolhar da comunicação – irredutível à circulação de informação que a supõe – realiza-se no Dizer. Ele não tem a ver com os conteúdos que se inscrevem no Dito e são transmitidos para a interpretação e a descodificação efectuadas pelo Outro. Ele está na descoberta arriscada de si, na sinceridade, na ruptura da interioridade e no abandono de todo o abrigo, na exposição ao traumatismo, na vulnerabilidade.” Emmanuel Lévinas, Autrement qu’Être ou au-delà de l’Essence, Paris, Kluwer Academic, 1990, p. 82.

[21] Cf. Marshall McLuhan, Understanding Media. The Extensions of Man, especialmente o capítulo 4, “The Gadget Lover: Narcissus as Narcosis”, pp. 1-47. Ainda que com o objectivo de enfatizar, mais do que o papel da imagem, o papel do movimento, da “imagem em movimento”, também Benjamin diz, ao falar do cinema: “O cinema é a forma de arte correspondente à vida cada vez mais perigosa que levam os contemporâneos. A necessidade de se submeter a efeitos de choque é uma adaptação das pessoas aos perigos que as ameaçam.” Walter Benjamin, “A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica”, Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, Lisboa, Relógio d'Água, 1992, p. 107.

[22] É em relação a este aspecto que se coloca, precisamente, a questão recorrente dos “direitos humanos”. Ora, nessa questão, o importante não está em saber se há ou não direitos “universais”, já que negá-los seria negar a própria pertença de todos à humanidade, por muita abstracta que pareça tal noção — mas em saber quais são ou podem ser tais direitos. Estamos convencidos que as virtudes da piedade e da tolerância são um bom ponto de partida para a resposta a tal questão.