Um Livro sobre Nada: Poesia, Silêncio e Modernidade

 

Alessandro Sales [1]

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1.CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Em 1996, o poeta mato-grossense Manoel de Barros lançou, pela editora Record, um Livro sobre Nada. A designação em questão, sob a aparente naturalidade de uma poesia cuja matéria seria exatamente o nada, aponta, em direção inversa, ao estranhamento: como é possível um livro alicerçar-se em certa substância que, ao fim e ao cabo, é nenhuma? Ou, antes, isto é mesmo possível?

O desafio traçado, na concreção do seu sentido, parece esbarrar no paradoxo. Afinal, mesmo admitindo a viabilidade da presentificação do nada, do seu vazio, neste momento como poderá ainda ser nada, se já é algo além, ora ajustado sob moldura sólida e palpável?

Na abertura de sua obra, como Pretexto, diz o poeta:

[...]o nada de meu livro é nada mesmo. É coisa nenhuma por escrito: um alarme para o silêncio, um abridor de amanhecer, pessoa apropriada para pedras, o parafuso de veludo, etc etc. O que eu queria era fazer brinquedos com as palavras. Fazer coisas desúteis. O nada mesmo. Tudo que use o abandono por dentro e por fora. [2]

Manoel ratifica seu projeto e segue nos emudecendo com suas lições primeiras relativas à materialização do nada por meio da linguagem, “coisa nenhuma por escrito”. Pelos exemplos apresentados, choques semânticos jogam os sintagmas em  resolutas interrogações: onde encontrar um alarme para o silêncio, ou mesmo um parafuso de veludo?

É quando lembramos que o território em decurso de investigação assenta-se na poesia, organização muito especial de signos que se estabelece, particularmente, em função da subversão dos elementos componentes da ordem lingüística. Nesta direção, o poeta trilha a senda da transgressão verbal, dos deslimites do discurso. E por que o faz?


2.POESIA, SILÊNCIO E MODERNIDADE

A grande tensão que atravessa a literatura é o embate travado entre a linguagem e o real, conformado ao nível do problema da representação. Segundo Blanchot:

A palavra me dá o que ela significa, mas primeiro o suprime. Para que eu possa dizer: essa mulher, é preciso que de uma maneira ou de outra eu lhe retire sua realidade de carne e osso, que a torne ausente e a aniquile. A palavra me dá o ser, mas ele me chegará privado de ser. [3]

Eis o ponto: a linguagem poética não se contenta com o signo meramente  representativo, tão caro ao cotidiano. Ela quer mais, quer ir além. “Ela diz: Não represento mais, sou; não significo, apresento. [4] É esta a sua grande utopia: realizar a nostalgia de um tempo  edênico e nirvânico, mundo ainda não corrompido pelas injunções da representação, singela comunhão entre o homem e o real, ou, utilizando terminologias peirceanas, um mundo dessimbolizado, todo amparado na primeiridade.

Literatura: sempre-busca alimentada por poetas e escritores e cingida pela marca da impossibilidade. Isto porque, ao procurar sulcar a fronteira homem-real, valer-se-á a literatura, evidentemente, do verbo, da palavra, mas que, em si, é o exato fulcro de uma mediação de raiz que acaba por nos condenar a uma espécie de humanidade sígnica: “Uma mediação de raiz, algo incrustrado na própria natureza humana, [...] faz com que mesmo as artes, a literatura ou até a poesia fracasse (sic) sempre nesta empreitada de conciliação. [5]

O chão das letras é feito de antinomias e o alicerce maior sobre o qual se erige uma literatura é sua própria impossibilidade. [6] Ocorre, todavia, ser justamente este não, esta negação, a geratriz do seu movimento. Substância em infinito vir-a-ser, em irremediável devir, caracteriza a existência do literário, curva sinuosa, percurso irrefreável. E assim, ainda que se assinale como utopia (uma irrealização, portanto), é este o atributo que desafia e provoca a literatura: ela busca ser, embora, com efeito, esta efetuação não lhe seja factível. 

Clareiam-se, portanto, as distâncias entre a linguagem cotidiana e a poética. Para a primeira, a representação é sinônima de segurança, de certeza próxima, de relativa tranqüilidade, ao passo que a outra se instala em posição antípoda, ao se esquivar rumo à transgressão, ao corte da representação, quando busca utopicamente ser o que não é. 

Neste ponto, podemos retomar a interrogação relativa ao porquê desta violação  efetivada pelo poeta. Fernando Segolin nos fala a respeito da percepção desta outra dimensão do signo, particularmente inquietante na medida em que “começamos a perceber que os seres humanos não falam e não falaram apenas para representar, que os seres humanos falam também para [...] reencontrar, para redescobrir alguma coisa que eles perderam. [7] Ora, na vertigem do signo poético, pelos seus vislumbres epifânicos, estão as marcas de um tempo que não mais existe, um tempo a-significante, vinculado à não-representação. Nesta idade, cerzida sob a eucaristia entre o homem e o real, o encontro, comunhão com o outro, era  inequívoco e natural, ao contrário dos tempos de linguagem, de mediação de raiz: “O que nos falta é exatamente o outro. Esse outro que o signo representativo promete, mas não nos dá. E uma das saídas para isso, uma das saídas para atenuar este desejo de encontro com o outro é a poesia. [8] Nesta senda, a poesia continua como possibilidade para o abrandamento da imanente fissura humana, preceito que declara o porquê do ato poético, bem como a imensa índole de humanidade que reveste signo tão especial.

De acordo com uma leitura peirceana, na medida em que a poesia não se satisfaz com a mera representação, mas, indo além, tenta encarnar o objeto, ela se assume como um quase-signo. Nele, os rastros de um mundo de primeiridade, de pura qualidade: “O signo poético-semiótico, que vela e revela a natureza da linguagem, que é um possível de formas, que é a linguagem (homem) nascendo – ou que a quase-propõe – é um proto-signo ou quase-signo” [9] . Este quase-signo, anti-representação, anti-definição, surge como sensação, impressão, possibilidade diante de nossos sentidos. A poesia se converte em presentificação, em corpo: “Um corpo que, agora, eu possa ter comigo como algo sensível, e não enquanto conceito. Um corpo que afeta, exatamente porque é corpo, não a minha mente, mas os meus órgãos sensórios. [10] . Estas palavras de Segolin trazem ao debate a questão do ícone.

O ícone, elemento das tricotomias de Peirce vinculado à primeiridade, se coloca como matéria primordial em estudos de estética realizados sob a ótica do filósofo norte-americano. Segundo Lúcia Santaella, “[...] porque não representam efetivamente nada, senão formas e sentimentos (visuais, sonoros, táteis, viscerais...), os ícones têm um alto poder de sugestão. Qualquer qualidade tem, por isso, condições de ser um substituto de qualquer coisa que a ele se assemelhe. Daí que, no universo das qualidades, as semelhanças proliferem. Daí que os ícones sejam capazes de produzir em nossa mente as mais imponderáveis relações de comparação. [11] Numa aproximação didática, uma vez que o ícone guarda relações de similitude, de analogia com um objeto, colocaremos a poesia justamente como um ícone que, insatisfeito com a vulgaridade da representação, busca, valendo-se dos instrumentos de que dispõe (a palavra em toda a sua subversão formal e conteudística), entranhar, personificar aquele referente. Esta é a base da teoria da iconicidade, de expressões peirceanas. Fechemos com Pignatari, enunciado que traduz, nos conceitos recém-afirmados, a chamada função poética de Jakobson:

A linguagem verbal – particularmente a linguagem simbólica peirceana – adquire a tão falada função poética, quando um sistema icônico lhe é infra, intra e super imposto. [12]

Todo este exposto nos permite pensar uma série de relações que se estabelece no derredor da palavra poética. Para o nosso empreendimento, de maneira concisa – apenas em nível de certas associações –, sustentaremos que podemos ler a poesia como utopia, já que almeja, no espaço do sempre, uma irrealização; também como loucura, pois que, ao perseguir esta irrealização, pelo modo com que a persegue (corte na representação), o nexo do pensamento tradicional é  subjugado e a  lógica do  discurso, posta em  xeque; como  uma infância, pois que, até ser devidamente “moldada” ao modus operandi do pensamento ocidental, a criança é incapaz de compreender a palavra como representação do mundo, e, pelo contrário, adora “entortá-la”, no que é freqüentemente repreendida pelos mais velhos; como um silêncio, tendo em vista ser esta a sua procura, pela palavra que, calando, tudo diz, ou que, pelo oposto, ao falar, tudo silencia – vestígios da era adâmica; ou, portanto, como uma morte, na mesma altura do seu silêncio, ou mesmo porque qualquer palavra é a morte do seu referente, e tudo vincado ao fato de que uma literatura, para se manter viva, precisa morrer.

Podemos também estabelecer relações com este objeto partindo de seus sinais negativos, caracteres que, aliás, brotam não só de alguns dos campos semânticos há pouco apresentados (e a eles permanecem enredados), como também do raciocínio central outrora discutido: a literatura é um não-ser, uma negação, uma impossibilidade, um nada portanto.  A literatura, já sabemos, é um paradoxo.

É necessário mencionarmos que estas enleadas temáticas, despertadas pela questão fundante da representação, têm sido motivo de análises e reflexões. Alguns teóricos e críticos elaboraram idéias apoiadas em tais direcionamentos, configuradas em trabalhos que investigaram uma ou algumas das vias comentadas (a utopia, a loucura, a infância, o silêncio, a morte, a negação, o paradoxo...), procurando inclusive estabelecer caminhos e correlações entre elas. Estes referenciais, inscritos sob a égide do problema da representação na literatura e de seus possíveis efeitos, vão conformar caminhos teóricos que aqui chamaremos (como parece corrente) de poéticas do silêncio. 

Queremos ainda contextualizar o termo mais profundo de toda esta reflexão dentro da chamada literatura moderna. Neste caminho, Michel Foucault nos ajuda a melhor perceber e compreender a natureza deste quadro proposicional, quando investiga, no tempo histórico, a configuração a priori do espaço de saber – uma epistémê, conforme definiu – que o possibilita e o alicerça. Vejamos a seguinte citação:

Ora, ao longo de todo o século XIX e até nossos dias ainda – de Hölderlin a Mallarmé, a Antonin Artaud – a literatura só existiu em sua autonomia, só se desprendeu de qualquer outra linguagem, por um corte profundo, na medida em que constituiu uma espécie de contradiscurso e remontou assim da função representativa ou significante da linguagem àquele ser bruto esquecido desde o século XVI. [13]

Em linhas gerais, podemos dizer que o filósofo refere-se ao fato de a linguagem literária moderna ter rompido com a epistémê clássica, preponderante nos séculos XVII e XVIII e fundante de uma teoria biunívoca de significação – o regime dos signos era binário e representar era sinônimo de significar. O contradiscurso literário quebra, rasga a representação  característica da era clássica (da qual, digamos de passagem, estamos ainda visivelmente impregnados). Indo além, Foucault refere-se ainda à epistémê renascentista, século XVI (limite cronológico de sua elaboração), na qual o conhecimento se dava pela decifração das palavras que estariam inscritas na superfície das coisas (particularmente mediante associações comparativas), de sorte que, nesta “prosa do mundo [14] , não havia espaço entre as palavras e as coisas: a representação clássica não passava de uma sombra distante. Assim, o “ser bruto esquecido desde o século XVI”, linguagem de intuição, de fascinação, de luz, é, em alguma medida, retomado na epistémê moderna.

            A escritura moderna, tensão entre a mera palavra e sua potência de utopia, é um dos vértices de Roberto Machado na recente pesquisa Foucault, a Filosofia e a Literatura, a qual põe a nu o pensamento do filósofo francês no que toca à literatura. Na leitura de Machado:

A questão da literatura moderna – que é essencialmente uma questão de linguagem – é de como ultrapassar, transgredir, contestar o limite da obra, da razão, do sentido. A experiência literária da linguagem, se é uma experiência trágica, radical, é transgressora com relação à obra: subverte, contesta, ameaça a obra, fazendo-a ir além dos limites estabelecidos. Mas, por outro lado, não pode deixar de ser obra. Daí o estatuto paradoxal da obra literária: ela é obra que põe em questão seus limites como obra, que enuncia sua própria impossibilidade, que nega a idéia da obra; é uma experiência negativa, uma expeiência de negação, que, ao mesmo tempo, é sua própria realização como obra. [15]


3.UM CERTO LIVRO SOBRE NADA

Cabe-nos agora, para este instante, repor Barros, o Livro sobre Nada e seus paradoxos.

Falávamos da abertura da obra do poeta, na qual, já fundado em deslocamento e transfiguração sígnicas, o Pretexto de Livro sobre Nada nos conduz, na esfera da produção de sentido e em continuidade aos efeitos provocados pelo título da obra, ao próprio non sense, à seara do paradoxo – a um silêncio, portanto. Ora, este silêncio se evidencia (e se diferencia) na medida em que sucedemos à leitura dos capítulos Arte de infantilizar formigas, Desejar ser, O livro sobre nada e Os Outros: o melhor de mim sou Eles. Nestas quatro veredas, a trilha que poderá desvelar o silente nada de Manoel. Realizemos mais esta viagem, cumprindo, no seu decurso, algumas aproximações com a primeira parte de nossa exposição. [16]

Arte de infantilizar formigas, abrindo a obra e dando início à lista de “inconexos”, apresenta passagens da infância do autor. A relação com o universo infantil é essencial nesta parte do livro e vai insinuar vários fatores, entre eles, a valorização da pequenez, da simplicidade, das insignificâncias (o nada?). Manoel dignifica “coisinhas sem santidade” como os “urinóis enferrujados” apregoados pelo avô (que era, aliás, “o próprio indizível pessoal”), bem como garças, rolinhas, rãs, lagartos, trastes, formigas, violetas e outras “coisas imprestáveis”.

            Aqui, o escritor se vale bastante do prefixo negativante des para caracterizar o paroxismo da ilogicidade (em cuja base, sabemos, está o seu nada-tudo) como podem atestar os dois primeiros versos do livro, após o Pretexto:

As coisas tinham para nós uma desutilidade poética.
Nos fundos do quintal era muito riquíssimo o nosso dessaber. [17]

            Segue promovendo mais sobressaltos por meio da confecção de “brinquedos com palavras”. Para tanto, “o truque era só virar bocó [18] (primeira menção linear aos loucos, os esquizos tão distantes dos ditames da representação – este tema é central na última parte do livro). Como, digamos, passatempo lingüístico, apreendamos o trecho que faz referência ao capítulo: “Para infantilizar formigas é só pingar um pouquinho de água no coração delas [19] . Aqui, cabe propor que estas formigas sejam mesmo os signos verbais, que precisariam ser infantilizados (eis o ponto de máximo da relação com o universo infantil: a criança é incapaz de entender as palavras como representações do mundo – como afirmamos anteriormente –, daí sua facilidade em delas fazer “brinquedos”) mediante uma imagem (“pingar um pouquinho de água no coração”) que podemos traduzir de diversas formas, mas que invariavelmente verterá numa impossibilidade. Trata-se de uma operação metalingüística em que  o poeta nos faz chegar à própria arte que tece, uma Arte de infantilizar formigas.

            Esta consciência do signo poético e de todo o seu potencial irrompe, transborda pelos significantes de Desejar Ser. Na epígrafe do capítulo, Barros invoca Vieira em suas Paixões Humanas:

O maior apetite do homem é
desejar ser. Se os olhos vêem
com amor o que não é, tem ser. [20]

Em suma, o homem só será (homem) – possibilidade inscrita na esfera do desejo e do alimento, isto é, daquilo que vai movimentar a condição humana – quando ele for capaz de enxergar não o que é, mas justamente o que não é. E, para tanto, seu olhar não pode ser qualquer um, mas um olhar com amor. Se lembrarmos que a poesia é exatamente quando e até onde ela consegue não ser – fundamento que, como dissemos, marca o signo poético e o traveste de profunda humanidade –, é devido considerarmos que o homem é poesia, ou que a poesia é propriamente humana, segundo a bela epígrafe. Na medida pois em que esta parte da obra, é metalingüística, isto é, a poesia fala da e apresenta a própria trama poética (conforme um duplo de linguagem), teremos o homem falando de sua precisa humanidade, na proporção em que a tece e a demonstra na malha dos versos.

O primeiro poema se constitui de um único verso, e diz:

Com pedaços de mim eu monto um ser atônito. [21]

O que indica, entre outras leituras, uma possível experimentação da perplexidade, do espanto, daquilo capaz de nos deixar atônitos. É uma advertência, uma informação que devemos levar até o fim deste tópico. Vejamos o sexto cântico:

Carrego meus primórdios num andor.
Minha voz tem um vício de fontes.
Eu queria avançar para o começo.
Chegar ao criançamento das palavras.
Lá onde elas ainda urinam na perna.
Antes mesmo que sejam modeladas pelas mãos.
Quando a criança garatuja o verbo para falar o que
não tem.
Pegar no estame do som.
Ser a voz de um lagarto escurecido.
Abrir um descortínio para o arcano. [22]

O primeiro verso faz referência aos primórdios, em segura associação à era adâmica, da não-representação. Pouco depois, o poeta insinua algo como uma morte, caminho para um fim que, antes, seria (re)nascimento, uma vez que deseja “avançar para o começo”, os primódios que há pouco mencionara. Por este retorno às origens, o reencontro com o universo infantil ou mesmo dos homens primitivos, fato asseverado em todos os versos seguintes. É quando tornar-se-á factível, “Pegar no estame do som” e “Ser a voz de um lagarto escurecido”, choques semânticos que novamente nos jogam, conforme alertou, na perplexidade, no paradoxo. Contudo, todas estas impossibilidades são efetivamente afirmadas pela substância poética, desde que tornemos àquela morte primeira, “Quando a criança garatuja o verbo para falar o que / não tem.”, estação em que podemos abrir uma fresta para o mistério, fenda que nos desvela o que não se representa, olhar amoroso dirigido, como queria Vieira, ao não-ser.

Tomemos agora um trecho do canto oito:

...
Pertenço de fazer imagens.
Opero por semelhanças.
Retiro semelhanças de pessoas com árvores
de pessoas com rãs
de pessoas com pedras
etc etc.
Retiro semelhanças de árvores comigo. [23]
...

O poeta nos confia sua arte e apresenta um dos meios de que se vale para “operar” com as palavras. E o faz através de suas imagens, no passo em que, entre elas, estabelece relações de semelhanças, de similaridades. O processo do autor não é, portanto, lógico ou simbólico, mas, como quer Pignatari, analógico, de iconização do signo verbal.

            Passemos, por último, ao canto catorze, poema central da obra:

O que não sei fazer desmancho em frases

Eu fiz o nada aparecer

(Represente que o homem é um poço escuro
Aqui de cima não se vê nada
Mas quando se chega ao fundo do poço já se pode ver
o nada)

Perder o nada é um empobrecimento. [24]

Eis a menção direta ao nada, o nada de que trata o livro e sobre o qual, paradoxalmente, ele está arquitetado. Antes de tudo, o poeta avisa: o que não sabe fazer, ele faz pela frase, “desmanchando” o ato em frase, possibilitando pois o impossível. E o nada pode aparecer. Nos versos seguintes, lacrados dentro de parênteses, o rumo para este nada: o homem como um poço escuro. De cima, na sua superfície, não se vê nada (observemos a relevância desta negativa que afirma e confirma o nada, que o coloca como matéria de algo, de alguma coisa). No entanto, se o homem quiser ver o nada, terá de chegar ao fundo do poço, sendo que o poço é ele mesmo. Ao atingir o fundo, o âmago deste poço, isto é, de si próprio (linguagem), revelar-se-á o nada ao homem. Produz-se aí uma imagem especular, espelho que metaforiza a própria representação conforme as seguintes polarizações: cima do poço/fundo do poço, superfície do homem/âmago do homem, nada se vê/vê-se o nada, afirmação da representação/negação da representação. Tudo isto é corroborado pelo termo que, ironicamente, abre a terceira estrofe.

O nada, visível como nunca, é a utopia do não, coberta e velada pela palavra cotidiana, pelo verbo da superfície, de onde pouco ou nada se vê e que, óbvio, comprova a representação. Portanto, pela via simétrica, sob o véu, o nada do homem, sua diferença, seu não-ser, sua humanidade. Entre as duas pontas, percorrendo e fertilizando este espaço de tensão, vertendo e invertendo teses e antíteses, retesando e desequilibrando a linha dos paradoxos, a poesia de Manoel de Barros.

            Mergulhemos agora na porção que nomeia o livro. Trata-se de uma série de aforismos em que estão expostos versos aparentemente ilógicos, paradoxais:

Tudo que não invento é falso. [25]

Tem mais presença em mim o que me falta. [26]

Meu avesso é mais visível que um poste. [27]

Ao mesmo tempo, o autor tece considerações sobre seu fazer poético que parecem denotar firme consciência do solo lingüístico, como em

As palavras me escondem sem cuidado. [28]

Neste último caso, por detrás da máscara vocabular, o ser, mas também o poeta (o nada?), de modo que, neste simples verso, a presença do drama humano, o confronto em foco: o simbólico versus o icônico, o terceiro versus o primeiro. Mais:

Uma palavra abriu o roupão para mim. Ela deseja que eu a seja. [29]

A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos. [30]

 Em ambas as linhas, a alusão às frinchas na representação, à eucaristia utópica homem-real – ora, este item do livro leva, ao cabo de sua leitura, a um verdadeiro paradoxo dos sentidos. Experienciemos, de modo particular:

O que sustenta a encantação de um verso (além do ritmo) é o ilogismo. [31]

Neste ponto, parece-nos, a ponte sobre a qual melhor transita o nada de Manoel refere-se à clara tensão que se instala entre a tradição da palavra e a palavra sem tradição, entre o simbólico e o icônico, entre o absoluto da linguagem e o absurdo da poesia, entre o ser e o nada. O silogismo aristotélico e representacional, a lógica que costumeiramente alicerça a linguagem, é questionado em prol de uma impossibilidade tornada possível, de uma negação – a poesia, seu ilogismo, sua analógica. [32]

Finalmente, comentemos algo da última parte do livro, Os Outros: o melhor de mim sou Eles. Neste momento, a atenção está voltada para a alteridade, a partir da identificação do poeta com os artistas e, especialmente, com os loucos, andores humanos da contra-representação, muitas vezes estereotipados e expurgados pelo corpo social.

São interessantíssimos os casos em primeira pessoa, como o do filósofo de beco Bola-Sete, que afirmava querer “fazer uma biografia do orvalho [33] , ou o do louco andarilho que dizia: “Andando devagar eu atraso o final do dia [34] . Inusitado outrar-se: o autor se traveste de louco para criar sua poesia, descolada, óbvio, do signo tradicional. Como se agora estivesse afiançado o absurdo poético, mas tão somente por tratar-se de um discurso da loucura, em nova operação metalingüística.

            Já no poema a seguir, intitulado A. B. do R., surge um famoso personagem:    

Artur Bispo do Rosário se proclamava Jesus. Sua obra era ardente de restos: estandartes podres, lençóis encar-didos, botões  cariados,  objetos mumificados, fardões da Academia, Miss Brasil, suspensórios de doutores – coisas apropriadas ao abandono. Descobri entre seus objetos um buquê de pedras  com flor. Esse Artur Bis-po do Rosário acreditava em nada e em Deus. [35]

Arthur Bispo do Rosário se proclamava Jesus”: ele não precisava ser ou muito menos desejar ser; ele simplesmente era. Dispensava, portanto, quaisquer intermediários,  mediadores ou equivalentes. Além do mais, valorizava insignificâncias. Mas é no instante em que o poeta lhe descobre “um buquê de pedras com flor”, que não pairam mais dúvidas: “Artur Bispo do Rosário acreditava em nada e em Deus”. Se, numa primeira leitura, tomamos os dois vocábulos (“nada” e “Deus”) como semanticamente opostos, numa visão mais aplicada podemos inquirir se nada e Deus não estão, pelo contrário, muito próximos – são, bem dizer, sinônimos. Afinal, nos meandros da mente extasiada de Bispo do Rosário e de seus desconcertantes discursos, fulgura o encontro de que já tanto falamos, com o nada, ou melhor, com Deus. Os loucos, poetas.


4.CAMINHOS E CONCLUSÕES

Livro sobre Nada é uma obra instigante, a começar pelo título. Nossa hipótese é de que possa constar como autêntica representante da chamada literatura moderna, o que é uma restrita prerrogativa. O autor demonstra – observamos na leitura – segurança e orientação com respeito ao  solo que pisa – o da linguagem, da palavra como negação da representação, como contradiscurso.

A partir desta geografia positiva, o poeta busca fazer o signo verbal encarnar, paradoxalmente, o nada. Esta peleja desliza e transparece ao longo dos capítulos e de seus diferentes leit-motifs, na proporção em que o autor discorre sobre a infância e suas insignificâncias, o fazer poético e sua transfiguração, os aforismos enquanto produção do sem-sentido, os loucos e sua insensatez. Neste decurso, parece-nos, o silente nada de Manoel gradativamente assume e se traveste de caminhos temáticos próprios e específicos (a infância, a utopia, o paradoxo, a loucura).

Queremos neste instante, apontar caminhos para uma empreitada futura, de porte adequado, na qual sugeriríamos anotar e pensar, minuciosamente, os recursos textuais, pragmáticos, semióticos, de que o escritor se valeu na trilha pela radicalização e corporificação do signo verbal. Como pôde Manoel de Barros virar a linguagem até atingir o seu avesso? Ou, antes, ele efetivamente o conseguiu? Como pois presentificou algo que é transcendência?

Indo adiante, seria interessante encontrar elementos para situar Livro sobre Nada como  moderno. Isto feito, e na medida em que se esclarecem os meios semióticos pelos quais o autor o fez, estaria Livro sobre Nada promovido a uma reduzida lista de obras que, ao lidarem tão conscientemente com a  linguagem, solicitam para si a realização de uma impossibilidade, de uma utopia que, em última instância, diz respeito à própria condição de nossa humanidade.



5.BIBLIOGRAFIA

BARROS, Manoel de. Livro sobre Nada. Rio de Janeiro: Record, 1996.

BLANCHOT, Maurice. A Parte do Fogo. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas: Uma Arqueologia das Ciências Humanas. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

GAMA, Rinaldo. O Guardador de Signos: Caeiro em Pessoa. São Paulo: Perspectiva: Instituto Moreira Salles, 1995.

MACHADO, Roberto. Foucault, a Filosofia e a Literatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

PIGNATARI, Décio. Semiótica e Literatura. 3. ed. São Paulo: Cultrix, 1987.

SANTAELLA, Lúcia. O que é semiótica. São Paulo: Brasiliense, 1983.

SEGOLIN, Fernando. Conversa sobre Poesia. Cópia xerográfica fornecida pelo autor.



[1] Mestrando em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), bolsista do Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq). Autor de Risco dos Instantes, poesias, Imprensa Universitária UFC.

[2] Barros, Livro sobre Nada, p. 7.

[3] Blanchot, A Parte do Fogo, pp. 310-311.

[4] Ibidem, p. 316.

[5] Gama, O Guardador de Signos, p. 123.

[6] Blanchot, por exemplo, afirma que “a literatura se edifica sobre suas ruínas”. V. op. cit., p. 292. Ainda segundo Blanchot, “esse paradoxo é para nós um lugar-comum”.

[7] Segolin, Conversa sobre Poesia, pp. 5-6.

[8] Ibidem, p. 6.

[9] Pignatari, Semiótica e Literatura, p. 64.

[10] Segolin, op. cit., p. 17.

[11] Santaella, O que é semiótica, p. 64.

[12] Pignatari, op. cit., pp. 155-156.

[13] Foucault, As Palavras e as Coisas, p. 60.

[14] Ibidem, “A Prosa do Mundo”, pp. 33-60.

[15] Machado, Foucault, a Filosofia e a Literatura, p. 42.

[16] Sempre que nos utilizarmos pela primeira vez de algum poema ou verso do livro, colocaremos a referência na nota de rodapé. Noutras situações, a referência dar-se-á simplesmente por meio de aspas e da grafia em itálico, particularmente quando nos valermos de pequenos trechos da obra que não constituam propriamente um verso ou um poema.

[17] Barros, op. cit., p. 11.

[18] Id. Ibid.

[19] Ibidem, p. 29

[20] Ibidem, p. 36.

[21] Ibidem, p. 37.

[22] Ibidem, p. 47.

[23] Ibidem, p. 51.

[24] Ibidem, p. 63.

[25] Ibidem, p. 67.

[26] Id. Ibid.

[27] Ibidem, p. 68.

[28] Ibidem, p. 69.

[29] Ibidem, p. 70.

[30] Id. Ibid.

[31] Ibidem, p. 68.

[32] No contraponto à lógica da linguagem, configurada simbolicamente, está a analógica da poesia, estabelecida a partir de ícones. V. Pignatari, op. cit., “A Ilusão da Contigüidade”, pp. 143-158.

[33] Barros, op. cit., p. 81.

[34] Ibidem, p. 85.

[35] Ibidem, p. 83.