MEDIA, MASS MEDIA, NOVOS MEDIA
E A CRISE DA CIDADANIA

Alexandre Sá1


Índice

Introdução

A tarefa de relacionar o tema da cidadania com a questão dos media tem hoje inevitavelmente como pano de fundo uma reflexão sobre a educação ou, mais genericamente, a formação para a cidadania. Tal reflexão resulta, antes de mais, da consciência de que a vivência e prática da cidadania, nas nossas democracias ocidentais, está hoje ferida por uma crise profunda. Esta crise manifesta-se em múltiplos fenómenos característicos da nossa vi-cívica, penetrando nela a tal ponto que a enumeração de alguns exemplos, embora inevitável para a sua ilustração, corre o risco de aparecer como supérflua e banal. Como exemplo privilegiado desta crise, poder-se-ia mencionar a dissolução dos vínculos sociais e familiares no anonimato das grandes metrópoles cosmopolitas, na linha do que uma ``crítica da civilização'' do início do século XX, alicerçada sobretudo no Declínio do Ocidente de Oswald Spengler, já tinha denunciado. Ou o desinteresse por uma ``vida pública'', o exclusivo investimento na vida privada, a que tal anonimato conduz. Ou a abstenção eleitoral como acontecimento decisivo para o funcionamento dos sistemas políticos nas democracias ocidentais, propiciando a concentração de votos em poucos partidos e a consequente consolidação de oligarquias partidárias. Ou o desaparecimento crescente da autoridade dos Estados e de qualquer tipo de vigilância diante da emergência de um mercado dominado por poderosas empresas multinacionais. Ou a marginalidade e o desenraizamento crescentes, resultantes dos fenómenos migratórios maciços decorrentes da situação pós-colonial. Ou ainda o desaparecimento daquilo a que, nos Estados Unidos da América, Michael Sandel chamou uma ``filosofia pública''2 , através da emergência de uma sociedade multicultural, dispersa por formas comunitárias de vida fechadas sobre si mesmas, que não encontra laços unificadores senão no funcionamento burocrático e procedimental de um Estado desvinculado, neutro e demissionário relativamente à decisão sobre questões polémicas e morais. Abordar a questão dos media no contexto desta crise da cidadania é, antes de mais, perguntar de que modo podem os media intervir neste horizonte político. E esta pergunta é tanto mais pertinente quanto mais se reparar que são em larga medida os media - os media a que poderíamos já chamar ``tradicionais'' e, dentro destes, sobretudo a televisão - a serem eleitos como os principais responsáveis, ou pelo menos uns dos principais responsáveis, da situação vigente. O mundo político ocidental tal como o vivemos hoje, e a vivência da cidadania com que ele se articula, é um mundo configurado pelos media. E a consciência desta configuração exige perguntar se os media são apenas meros media, meros instrumentos, meros ``meios'' ao serviço de um qualquer fim ou destino político, ou se, pelo contrário, a sua essência não é simplesmente instrumental, surgindo já como a execução de um fim e de um destino específicos. Será a televisão, como já antes fora para muitos a rádio, o meio pelo qual se instala um poder total e invisível, assim como a crise da cidadania que abre as portas dessa instalação? Será que Horkheimer e Adorno tinham razão quando escreveram, apenas dois anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, que ``os próprios nacional-socialistas sabiam que a rádio concedia uma figura à sua causa, como a imprensa escrita à reforma''?3 Ou será que os media são apenas instrumentos, certamente perigosos, mas regeneráveis e utilizáveis na construção de uma nova cidadania mais participativa, capaz de superar a crise que actualmente a caracteriza? Ou será que, por exemplo, como acreditava Karl Popper, é possível, através de medidas conjunturais de autoregulação, convencer as pessoas que fazem televisão de que participam ``num processo de educação de alcance gigantesco''?4 O problema aqui evocado intensifica-se ainda mais com o seu alargamento aos chamados novos media. Se os media ``tradicionais'', os mass media, poderiam facilmente ser acusados de mergulhar aqueles que os utilizam abundantemente numa solidão apática, quase autista, cortando os laços que poderiam alimentar uma cidadania comunicativa e participativa, os ``novos media'', possibilitados sobretudo pelo progresso da informática e pela rápida expansão da internet, podem ser vistos como os instrumentos capazes de finalmente tornar possível tal cidadania, fomentando a comunicação e publicidade generalizadas e, consequentemente, uma constante proximidade virtual que dissolva a eficácia das distâncias reais ou de qualquer tipo de barreiras naturais. Assim, mais do que assinalar a responsabilidade dos media ``tradicionais'' na presente situação política, importa perguntar em que medida os ``novos media'' encerram a possibilidade da ultrapassagem desta situação, trazendo em potência uma nova democracia e uma nova cidadania. É esta pergunta implícita que tece o fio condutor da reflexão que aqui se propõe.

Cidadania e comunicação

A nossa experiência de cidadania, a experiência de cidadania que emerge em articulação com o aparecimento do Estado moderno, assenta numa experiência de comunicação. O cidadão é, em sentido eminente, aquele que tem a capacidade de comunicar. E esta capacidade de comunicação encerra três aspectos que, nessa medida, se constituem como pilares da própria constituição que lhe é intrínseca. Em primeiro lugar, quem comunica tem de conseguir reservar para si uma esfera de interioridade inviolável, cuja intimidade garante, no âmbito da comunicação, a sua diferença em relação ao outro e a sua identidade consigo mesmo. Em segundo lugar, ele é, enquanto comunicador, caracterizado pela capacidade de justificar as diferenças que o identificam. Nesse sentido, tem a capacidade de discutir e criticar, de argumentar e acolher argumentos, de persuadir e ser persuadido. Finalmente, em terceiro lugar, na medida em que argumenta, e na medida em que a sua argumentação se traduz necessariamente como persuasão, ele é marcado pela sua capacidade de influenciar, numa influência cujos limites são, à partida, imprevisíveis. Na sua infinita diferença de escala, tudo é, à partida, objecto possível da influência do cidadão que critica, que discute, que comunica: os outros mais ou menos próximos, presentes nas relações de vizinhança ou profissionais, os desempenhos de uma região ou de um povo, os destinos da humanidade ou da própria história. Contudo, aquando da sua emergência histórica, o cidadão comunicativo não é imediatamente um cidadão influente. A capacidade de comunicar própria da cidadania desenvolve-se ainda durante a vigência do período político absolutista, preparando certamente a revolução, mas despontando em instâncias que não podem ser pura e simplesmente confundidas com o movimento revolucionário. Por outras palavras, a capacidade de comunicar desenvolve-se, à partida, despojada ainda da influência política que, por outro lado, não pode deixar de ambicionar alcançar. É ainda a vigência política do Estado absoluto que possibilita a emergência de uma esfera privada, de uma esfera moral que, man-se num plano infra-político, num plano incapaz ainda de influenciar ou de se contrapor a uma política guiada pelos critérios da razão de Estado, não pode, no entanto, deixar de se ir erguendo como a sua consciência crítica. É para a emergência de uma tal consciência que contribuem o aparecimento de associações e grupos de discussão, de clubes e lojas maçónicas, de uma crítica artística e literária, assim como o rápido desenvolvimento de uma imprensa escrita. A esfera pública do Estado, o monarca e a sua côrte, expõe-se assim em público, representando e oferecendo-se ao juízo crítico da consciência dos cidadãos, como se estivesse sobre um palco teatral. E tais cidadãos desenvolvem-se através da comunicação entre si, avaliando criticamente este mesmo Estado, nas suas aptidões e desempenhos. É na medida em que a figura representativa do monarca garante, na sua unidade pública, o espaço para a multiplicidade privada dos pontos de vista, e até para a sua discussão, que, por exemplo, se torna possível a Leo Strauss caracterizar Hobbes como o ``fundador''5 do liberalismo. Ou que Reinhart Koselleck pode afirmar que ``o individualismo de Hobbes é, enquanto pressuposto de um Estado ordenado, simultaneamente também a condição para o livre desenvolvimento do indivíduo''.6 O cidadão aparece assim, ainda no decurso do período político absolutista, através da emergência de um público crítico e comunicativo. Este surge através da expansão de uma progressiva esfera de discussão, confrontação e debate, onde se esboçam e desenvolvem o raciocínio e o argumento. O fim do absolutismo monárquico do século XVIII e a emergência do parlamentarismo alimentam-se justamente desta expansão, do alargamento do públi-e da crítica, e, consequentemente, da convicção de que a moral pode influenciar a política, ou seja, de que as diferenças de pontos de vista, assim como a sua discussão, não apenas podem, mas devem influenciar eficazmente decisões governamentais que, como tal, devem ser tomadas publicamente, à vista de todos, sem recorrer ao segredo exigido pelo critério exclusivamente político da razão de Estado. A partir da expansão de um público crítico e esclarecido, as instituições políticas fundamentais podem e devem ser a expressão da comunicação, da discussão e do debate, do argumento e do raciocínio, que ao próprio público são intrínsecos. É neste sentido que Guizot pode justificar a instituição parlamentar do seguinte modo: ``A característica do sistema que não admite, em lado nenhum, a legitimidade do poder absoluto é a de obrigar todos os cidadãos a procurarem sem cessar, e em cada ocasião, a verdade, a razão, a justiça, que devem regular o poder de facto. É o que faz o sistema representativo: 1) através da discussão que obriga os poderes a procurarem a verdade em comum; 2) através da publicidade que põe os poderes ocupados com essa investigação sob os olhos dos cidadãos; 3) através da liberdade de imprensa, que provoca os cidadãos a procurarem eles mesmos a verdade e a dizê-la ao poder''.7, por outro lado, a discussão presente no forum parlamentar assegura também o alargamento do público e da crítica. A publicidade da discussão parlamentar, através dos meios ao serviço de uma comunicação generalizada, não apenas garante uma vigilância sobre as actividades parlamentares e governativas por parte dos cidadãos criticamente formados, como cultiva entre estes cidadãos o hábito de raciocinar política ou publicamente. É a própria comunicação que forma os cidadãos enquanto tais, enraizando neles o hábito de participar em discussões cívicas, de votar, de pensar e de argumentar como se fossem eles mesmos governantes ou parlamentares.

Cidadania e mass media

O fim do absolutismo monárquico, exigido pela emergência de um público crítico e comunicativo desenvolvido sob a sua sombra, inaugura, no entanto, um problema fundamental para a própria comunicação. A contestação à representação do Estado pelo monar-implica a adesão a um princípio político identitário, a um princípio de identidade entre povo e Estado, a uma democracia cujo mais claro exemplo se encontra na obra de Rousseau. Já não é o povo enquanto representado pela pessoa pública do príncipe, mas o povo enquanto idêntico a si mesmo, o povo mesmo na sua identidade, que é soberano. E se o povo se identifica imediatamente com o soberano, prescindindo de qualquer mediação representativa, tal quer dizer que ele deve ser a partir de si mesmo uma unidade, a qual não pode admitir no seu seio a heterogeneidade de diferenças sempre perturbadoras. Assim, se a contestação ao absolutismo monárquico surge a partir de um público crítico, marcado por diferenças intrínsecas e pela sua discussão, a democracia que se lhe segue, longe de assentar na variedade cosmopolita e multicultural das diferenças entre os homens, longe de basear-se no diálogo e na comunicação entre as diferenças, encontra na educação o instrumento apropriado para a exclusão da heterogeneidade, assim como para aquilo que é, no fundo, uma encoberta manipulação das consciências; como diz expressamente Rousseau, para a formação dos homens não ``tais como são'', mas ``como temos necessidade que sejam''.8 Os media, os meios de comunicação, adquirem assim, nas sociedades democráticas que se seguem ao absolutismo monárquico, um carácter ambivalente. Por um lado, eles apresentam-se, em teoria, como os meios para a afirmação e para o cultivo das diferenças, para a discussão e argumentação em torno de tais diferenças, para a propagação do grupo, à partida restrito, do público crítico. Mas, por outro lado, apropriados pelo projecto democrático, eles tornam-se, na prática, num instrumento de dissolução dessas mesmas diferenças, num meio de homogeneização do pensamento, da opinião, da vontade, e mesmo do sentimento. Por um lado, na sua autocompreensão e autojustificação, os media determinam-se como meios essenciais para a formação de um público crítico abrangente, interveniente e bem informado, capaz de assumir a influência política a que um público crítico mais restrito não poderia aspirar. Por outro, deles resulta uma multidão estilizada sob o cunho de uma figura típica, uma espécie de golem moldado sob a referência de um pensamento e de um corpo padronizados. Surge assim o pensamento uniformizado pelos chavões estéreis e vazios do ``politicamente correcto'', na banalidade inconsequente dos slogans contra a miséria, a fome, a guerra, as privações, o sofrimento, o fanatismo, a discriminação. Ou o corpo uniformizado pela imposição de um padrão estreito de beleza, sacrificado à genética, aos cosméticos, à cirurgia estética, à dieta, à anorexia, ao body building. Em ambos os casos, trata-se de uma progressiva incapacidade não apenas de diferenciação, mas sobretudo de discussão e de justificação da diferença. É sob o signo desta ambivalência que os media ganham, no século XX, a sua forma como mass media. Eles tornam-se então instrumentos, veículos de uma massificação. O aparecimento dos mass media insere-se assim num projecto que, já na sua formulação, é paradoxal: o aparecimento da sociedade como uma ``massa crítica''. E esta natureza paradoxal do projecto político que lhes está subjacente desencadeia, como consequência intrínseca ao seu próprio desenvolvimento, aquilo a que se poderia chamar o próprio desaparecimento da criticidade. A própria ideia de massa encerra em si mesma a tendência democrática para a homogeneização, ou seja, para a anulação das diferenças possibilitantes da comunicação. Assim, o aparecimento de meios como a rádio e, sobretudo, a televisão, cujo fim se traduz numa massificação da comunicação, não pode deixar de ter como resultado a aniquilação da comunicação propriamente dita. Por outras palavras, a tentativa de expandir o público crítico, alargando-o a toda a sociedade através dos mass media, acaba por ter como consequência inevitável não o desaparecimento da sociedade enquanto massa não crítica, mas a própria massificação daquilo que originariamente fora um público mais crítico e, entre si, mais diferenciado. A consciência da massificação operada pelos mass media é simultânea ao seu aparecimento. A massa é, por exemplo, nas palavras de Ortega y Gasset, justamente ``o conjunto de pessoas não especialmente qualificadas''. Massa é o homem que ``se sente bem ao sentir-se idêntico aos demais''. 9sentido, o homem massificado é aquele que não se diferencia e que, consequentemente, não comunica, não discute nem debate a sua diferença. A analítica da quotidianeidade por Heidegger, a analítica do ``se'' (das Man), detem-se justamente no tipo de comunicação do homem massificado, caracterizando-a como um Gerede, um ``falatório'', uma comunicação que efectivamente o não é, na medida em que, longe de consistir na discussão da diferença e do novo, se reduz apenas à repetição do igual: ``Na utilização dos meios de transporte públicos, no uso dos meios de informação (jornais), cada um é como o outro. Fruímos e divertimo-nos como se frui; lemos, vemos e julgamos sobre literatura e arte como se vê e julga; mas também nos retiramos da ``grande multidão'' como se se retira; achamos ``escandaloso'' aquilo que se acha escandaloso''.10unilateralidade dos mass media, da rádio e da televisão, longe de estimular o confronto e a discussão, o raciocínio e a comunicação na horizontalidade de um mesmo plano, impedem uma verdadeira comunicação, confundindo-a com a estrutura vertical e unidireccional que é própria da propaganda e da manipulação nos mais variados domínios, desde o político ao comercial. Assim, o sentimento fundamental, a Grundstimmung estimulada pelos mass media é justamente o contrário de um empenho, de uma participação comunicativa. Ela consiste numa curiosidade saltitante e desvinculada, na ``ausência de poiso'', na Aufenthaltlosigkeit a que o ``falatório'' conduz: ``O falatório rege também os caminhos da curiosidade, ele diz aquilo que se tem de ter lido e visto. O estar-em-todo-o-lado-e-em-nenhuma-parte da curiosidade está entregue ao falatório'' .11 E essa curiosidade, longe de consistir na abertura à novidade que a comunicação genuína possibilitaria, consiste justamente na eliminação do novo, na substituição da comunicação por uma mera recepção e repetição do que já sempre foi dito, pensado ou sentido. Daí que Horkheimer e Adorno, numa formulação sintomaticamente não muito distante de Heidegger, escrevam que ``a curiosidade é o inimigo do novo''.12 Os mass media caracterizam-se, enquanto ``meios de comunicação'', pela sua unilateralidade e verticalidade. Deste modo, eles eliminam o diálogo, a discussão, a crítica e a confrontação de diferenças próprios de uma comunicação genuína. Tal quer dizer que só aparentemente podem aparecer como os construtores de uma sociedade de comunicação. Em sua substituição, eles constituem aquilo a que Guy Debord chamou a sociedade do espectáculo. Configurada pelos mass media, tal sociedade surge, enquanto sociedade, como uma relação. Mas a relação espectacular é justamente caracterizada por Debord como uma relação não comunicacional. Neste sentido, ela é ``o contrário do diálogo''.13esta relação não dialógica e, neste sentido, não comunicacional pode ser determinada justamente pela mediação de media que, longe de fomentarem uma cidadania participativa, interveniente e crítica, se constituem como um obstáculo que impede o diálogo e a discussão: ``O espectáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediatizada pelas imagens'';14`O que liga os espectadores não é senão uma relação irreversível ao centro mesmo que mantém o seu isolamento O espectáculo reúne o separado, mas reúne-o enquanto separado''.15-se-ia então que os mass media, essencialmente espectaculares, são ``meios'' não na medida em que surgem como veículos de um contacto e de uma comunicação, mas justamente na medida em que estão entre dois sujeitos potencialmente comunicadores como um obstáculo que impede a comunicação propriamente dita. A sociedade configurada pelos mass media é assim uma sociedade de espectáculo mascarada como sociedade de comunicação. Ela é, nesta medida, uma sociedade falsificada. E esta falsificação traduz-se também numa falsificação dos mass media enquanto ``meios de comunicação'': no facto de eles serem promotores de uma uniformização e tipificação, aniquilando as diferenças e a discussão das diferenças, ao mesmo tempo que se autojustificam e compreendem como instrumentos de extensão da crítica, da informação e da comunicação a toda a sociedade. Por seu lado, os próprios cidadãos formados pelos mass media são também contaminados por tal falsificação. Estes entendem-se co-formados criticamente na medida em que são, em geral, bem informados, seguros dos seus valores e princípios, e intransigentes quanto às exigências da sua consciência. Mas, nessa intransigência, eles entendem-se como responsáveis exclusivamente perante si, perante a sua intimidade, não se preocupando com a crítica, o raciocínio e as justificações destinadas a uma persuasão dialógica. Fiéis a si mesmos, tais cidadãos não se expõem, não argumentam, não transigem, nem se abrem à discussão. E este desaparecimento da discussão tem também uma tradução institucional. Tal tradução consiste justamente numa crise das instituições democráticas, sobretudo da instituição parlamentar, a qual se vê despojada da discussão e da crítica enquanto princípios que lhe servem de fundamento. É sobretudo Carl Schmitt quem, já no tempo do parlamentarismo de Weimar, caracteriza do seguinte modo a situação histórica ocidental: ``Os partidos surgem hoje já não como opiniões em discussão, mas como grupos de poder social ou económico uns contra os outros, calculam os interesses e as possibilidades de poder de ambos os lados e fazem, com base neste fundamento factício, compromissos e coligações. As massas são ganhas através de um aparelho de propaganda cujos maiores efeitos repousam num apelo aos interesses e paixões mais imediatos. O argumento, no sentido autêntico, que é característico da discussão genuína, desaparece'' .16

Cidadania e novos media

Se a preponderância dos mass media privou as democracias ocidentais do princípio que as justificava e fundamentava - a crença na eficácia da discussão e da crítica -, os novos media, assentes sobretudo na expansão da internet, parecem ser capazes, à partida, de restaurar este princípio fundamental. A comunicação possibilitada pela rádio ou pela televisão era essencialmente unilateral e vertical. Um homem diante de um televisor não é senão um receptor, caracterizado pela imobilidade e pela passividade, reduzindo a sua actividade ao minimum de escolher esporadicamente, através de um telecomando, o canal a ser observado. Neste sentido, aproveitando as distinções estabelecidas por Debord, dir-se-ia que, na televisão, nada é comunicação e tudo é espectáculo. Melhor dizendo: dir-se-ia que, na televisão, mesmo a informação ou a comunicação aparece sob a forma do espectacular. Contudo, se o homem diante da televisão é não um comunicador, mas um espectador, e se o é na medida em que é passivo e isolado, esta passividade e este isolamento são ultrapassados, por exemplo, na consulta de um site na internet, na redacção de um e-mail, ou numa conversa on line através de um canal como o IRC (International relay chat). Esta ultrapassagem da passividade e do isolamento do espectador dos mass media, ultrapassagem essa que é em si mesma incontestável, fomenta a esperança de que o utilizador dos ``novos media'' possa recuperar as qualidades de cidadania perdidas pela expansão dos mass media. Segundo esta esperança, é sobretudo a comunicação on line, possibilitando uma comunicação sem barreiras ou distâncias de ordem natural, que significa a definitiva realização de uma comunicação generalizada e global, superando, ao mesmo tempo, quer a redução dos comunicantes a um grupo restrito e fechado, sustentado pelas afinidades e semelhanças entre os seus membros, quer o desaparecimento da comunicação propriamente dita às mãos da unilateralidade e da verticalidade dos mass media.17perspectiva, a uma espécie de democracia plebiscitária, assente num parlamentarismo representativo meramente formal, suceder-se-á, com os ``novos media'', uma efectiva democracia directa, onde todos podem discutir e comunicar com todos, onde a comunicação se torna efectivamente global, onde a proximidade, tornando-se absoluta, deixa de ser a mera relativização ou negação de uma distância sempre presente. A transformação operada pelos ``novos media'' em relação à passividade originária do espectador é, por outro lado, também acompanhada pela transformação dos próprios mass media. A multiplicação das hipóteses de escolha, a diversificação da oferta, implica também uma relativa ultrapassagem desta passivilidade, pelo menos na exigência de selecção a que inevitavelmente conduz. A passividade é já relativamente superada na medida em que o utilizador escolhe o canal de televisão que observa, de entre uma enorme variedade de canais possíveis, do mesmo modo como escolhe o site da internet que visita, eleito a partir da possibilidade de visitar toda a rede. A esperança de que os novos media, assim como a transformação dos mass media ``tradicionais'', contribuam para o ressurgimento da cidadania adquire então uma configuração mais precisa. Tal esperança assenta em dois aspectos distintos. Em primeiro lugar, ela baseia-se na multiplicação das hipóteses de escolha do utilizador dos novos media e mass media e, consequentemente, na eliminação da quase pura passividade que caracterizava o espectador diante dos mass media ``tradicionais''. Em segundo lugar, ela funda-se no aparecimento, através da internet, da possibilidade de comunicar globalmente, discutindo qualquer assunto com qualquer um. A questão com que aqui nos confrontamos pode então ser explicitamente formulada. Ela interroga-se sobre a possibilidade de estes dois aspectos conjugados se constituirem como razões suficientes para admitir os novos media como potenciais motores de uma renovação da cidadania. Na resposta a esta questão, é forçoso reconhecer, antes de mais, que, se os mass media ``tradicionais'' se confundiam facilmente com uma técnica de propaganda, procurando configurar uma escolha como a única escolha efectivamente possível, os novos media caracterizam-se justamente pela dispersão de uma infinidade de escolhas, e pelo cultivo no homem de uma atitude diferente da mera passividade receptora. Contudo, se é indiscutível que os novos media multiplicam as possibilidades de escolher, não pode deixar de permanecer problemático que tal implique já o aparecimento da comunicação, do diálogo, da discussão ou, o que é o mesmo, da reflexão deliberativa que, por uma exigência intrínseca, deve sempre anteceder toda a escolha que o seja efectivamente. Do mesmo modo que, para Aristóteles, não é possível uma escolha sem deliberação, ou seja, não é possível haver efecticamente proairesis sem bouleusis18 , é imprescindível estar consciente de que a pura e simples multiplicação das hipóteses de escolha não significa necessariamente a multiplicação de possibilidades diferenciadas subjacentes a essas mesmas escolhas. Pelo contrário: várias escolhas podem surgir como múltiplas configurações do mesmo. E, diante desta possibilidade, torna-se manifesto que as esperanças de encontrar uma nova cidadania através dos novos media devem fundar-se não apenas na multiplicação das escolhas, mas no cultivo de diferenças efectivas subjacentes a essas mesmas escolhas, ou seja, no estabelecimento de uma efectiva comunicação, discussão e crítica, nos e através dos ``novos media'', entre os seus utilizadores. E é esta efectividade da comunicação através dos ``novos media'' - de uma comunicação que seja efectivamente real, e não meramente aparente - que não está, de modo nenhum, adquirida. Importa aqui porventura estabelecer a distinção entre a comunicação como factum e a comunicação propriamente dita, ou seja, entre o simples facto de um contacto comunicativo entre sujeitos, por um lado, e a eficácia, a mútua influência que pressupõe a discussão e a persuasão, por outro. A comunicação através dos ``novos media'' é hoje, enquanto simples factum, indesmentível. Neste sentido, os novos media manifestam já, face à rádio ou à televisão, uma ruptura significativa e de consequências hoje ainda não inteiramente mensuráveis. Dir-se-ia que, diante da redescoberta da comunicação pelos novos media, a posição da rádio, e mesmo da televisão, é de defesa e resistência. E só uma tal resistência justifica a espiral de degradação a que, sobretudo no âmbito televisivo, é possível hoje abertamente assistir. A sociedade do espectáculo defende-se, usando, numa espécie de acção guerrilheira, qualquer recurso como arma. Ela agarra-se a tudo, cunhando-lhe a marca do espectacular. Talvez a espectacularização daquilo que é, em absoluto, não espectacular, a espectacularização da vida privada e quotidiana, signifique hoje a eclosão de uma derradeira e desesperada operação de resistência. Pense-se, por exemplo, no êxito generalizado por toda a Europa de um programa televisivo de entretenimento como o Big Brother, o qual está longe de ser acidental. Seja como for que se considere o significado de tais fenómenos, é possível dizer com segurança que, através dos novos media, a comunicação avança e o espectáculo retrocede. Contudo, neste recuo do espectáculo, importa reparar sobretudo na natureza da comunicação possibilitada pelos ``novos media''. A internet consiste, no fundo, numa teia virtual em que a distância não apenas é minimizada, mas é absolutamente abolida. E é-o na medida em que, através de possibilidades indeterminadas de conexão, tudo se pode ligar imediatamente a tudo. Não há aqui lugar nem para a distância espacial, nem para a sequência temporal. Tudo habita o mesmo espaço virtual, não havendo centro, nem margens, nem posição relativa. E tudo se liga a tudo, tudo é simultâneo a tudo, nada havendo de encadeado ou sucessivo. E é neste horizonte virtual da internet que se abre também a possibilidade de conversar on line. Ao contrário dos espectadores de um programa televisivo, cuja participação é apenas requerida eventual e esporadicamente - como no caso da participação num concurso, numa entrevista ou numa intervenção telefónica -, os utilizadores da internet podem comunicar entre si em tempo real. Os canais de chat, os quais se constituem como fora de discussão sobre os mais variados temas19 , reproduzem a estrutura de conexões da web e são, nessa medida, considerados como um jogo inócuo ou um atributo marginal das possibilidades da internet. Contudo, são eles que certamente, pelas suas implicações, terão mais consequências para o tema da cidadania. É neles que se alimenta a esperança de pôr qualquer pessoa, em tempo real, a comunicar com qualquer outra em qualquer parte do planeta. Deste modo, eles parecem poder restaurar plenamente, e sem dificuldades de ordem material, um modelo de cidadania assente no diálogo e na discussão. Interessa, portanto, dedicar uma maior seriedade à natureza desta forma de comunicação. Trata-se, como se disse, de uma comunicação sem barreiras naturais. E esta inexistência de barreiras naturais traduz-se num duplo aspecto. Por um lado, ela significa que deixa de haver limites físicos à conversação, que deixa de haver uma distância natural a impedir a comunicação, podendo finalmente aparecer um forum de discussão global. Por outro lado, ela significa - e este aspecto é fundamental - que a própria natureza das pessoas que comunicam, a identidade natural que as constitui, desaparece. O facto de, nos canais de chat, aqueles que comunicam se esconderem por detrás de alcunhas, de nicknames, podendo jogar com a construção de identidades variadas e distintas, longe de ser acidental, consiste justamente na manifestação deste desaparecimento. E é diante deste desaparecimento que não pode deixar de surgir a pergunta: será possível uma efectiva discussão a partir de uma ausência de posição? Por outras palavras: será possível discutir diferenças sem haver identidades capazes de alimentar tais diferenças? O sujeito que comunica é já, na medida em que comunica e discute, abrindo-se a ser persuadido e transformado, um sujeito que devém. Na sua identidade, longe de estar cristalizado, ele acolhe em si múltiplas possibilidades. Mas este sujeito que, na sua identidade, é muitos, distingue-se de um feixe de muitos que, num jogo cacofónico de conversas simultâneas, sem estrutura, nem encadeamento, nem argumento, submerge a identidade de um sujeito que perde densidade e consistência. E é neste afogamento da identidade, nesta emergência de um eu puramente epidérmico, na absoluta transparência que a ausência de conteúdo permite, que a questão regressa: será possível efectivamente discutir, raciocinar e criticar, estabelecer diferenças numa cidadania activa e participante, sem partir do vínculo a identidades diferenciadoras? Mesmo sem procurar responder definitivamente a tais questões, parece ser, pelo menos, prudente apontar para uma resposta negativa. E tal negação não pode deixar de pôr em causa as perspectivas mais optimistas sobre a possibilidade de encontrar nos novos media o instrumento privilegiado para a instauração de uma cidadania caracterizada pela comunicação global, pela transparência das instituições políticas ou pelo estabelecimento de um forum de discussão a uma escala planetária. É ainda cedo para medir o alcance das transformações operadas pelos novos media e, por outro lado, é indiscutível que estes trazem em potência transformações de uma riqueza incomparável, quando confrontadas com as possibilidades abertas pelos mass media ``tradicionais''. Contudo, importa sobretudo, na confrontação com tais possibilidades, evitar um deslumbramento anestesiante, um optimismo superficial ou um messianismo de vistas curtas. Entre todas as indefinições e incertezas, próprias de uma era de transição, há uma verdade que sobressai: a abertura de uma nova comunicação e, com ela, de uma nova cidadania, a possibilidade da ultrapassagem da crise da cidadania que nos é contemporânea, a ser possível, não será o resultado automático nem do aparecimento de novos, nem da reconversão de velhos media. Talvez mais do que novas possibilidades, os novos media encubram ainda novos e mais graves perigos. E, diante destes, querer uma salvação automática é pura e simplesmente participar na ingenuidade multiforme que boicota, alegre e ligeiramente, e sem sequer ter disso consciência, a sua possibilidade. Não pode ser entregue ao automatismo da técnica aquilo que só ao homem cabe cumprir.

Notas de rodapé

... Sá1
Instituto Filosófico da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra
... pública''2
Cf. Michael SANDEL, Democracy's Discontent. America in search of a public Philosophy, Cambridge, Massachusetts, Harvard University Press, 1996.
... reforma''?3
Max HORKHEIMER, Theodor ADORNO, Dialektik der Aufklärung, in Theodor ADORNO, Gesammelte Schriften, vol. 3, Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1998, p. 182
... gigantesco''?4
Karl POPPER, John CONDRY, Televisão: um perigo para a denocracia, trad. Maria Carvalho, Lisboa, Gradiva, 1999, p. 26
... ``fundador''5
Cf. Leo STRAUSS, Anmerkungen zu Carl Schmitt, Der Begriff des Politischen, in Heinrich MEIER, Carl Schmitt, Leo Strauss und Der Begriff des Politischen: Zu einem Dialog unter Abwesenden, Estugarda, Weimar, Metzler, 1998, p. 108
... indivíduo''.6
Reinhart KOSELLECK, Kritik und Krise, Frankfurt, Suhrkamp, 1997, p. 19
... poder''.7
GUIZOT, Histoire des origines du governement representatif em Europe, cit. Por Jürgen HABERMAS, Strukturwandel der Öffentlichkeit, Frankfurt, Suhrkamp, 1990, p. 176
... sejam''.8
Jean-Jacques ROUSSEAU, Économie Politique, Ouevres complètes, I, Paris, Seuil, 1971, p. 281
... demais''.9
José ORTEGA Y GASSET, La rebelión de las masas, Madrid, Revista de Occidente, 1958, pp. 52-54
... escandaloso''.10
Martin HEIDEGGER, Sein und Zeit, Tübingen, Max Niemeyer, 1996, pp.126-127
... .11
Idem, p. 173
... novo''.12
Max HORKHEIMER e Theodor ADORNO, Dialektik der Aufklärung, p. 323
... diálogo''.13
Guy DEBORD, La société du spectacle, Paris, Gallimard, 1992, p. 23
... imagens'';14
Idem, p. 16
... separado''.15
Idem, p. 30
... .16
Carl SCHMITT, Die geistesgeschichtliche Lage des heutigen Parlamentarismus, Berlim, Duncker & Humblot,1996, p.11
... media.17
Cf. George GILDER, Life after Television. The coming Transformation Media and american Life, Nova York, Norton, 1992
...bouleusis18
ARISTÓTELES, Ética a Nicómaco, III, 4, 1112a15-16
... temas19
Para uma análise interessante do fenómeno do chat, veja-se T. MALDONADO, Critica della