O lugar da política na sociabilidade contemporânea

Antonio Albino Canelas Rubim1


Indice

O lugar da política na sociabilidade contemporânea

A política parece estar em um lugar problemático na sociabilidade contemporânea. Insistentemente ela tem sido instalada no registro da crise, quase em situação de não-lugar. O colapso das energias utópicas, a derrocada das grandes narrativas, a depressão dos sujeitos políticos, a insatisfação com as práticas de representação, as repetidas denúncias de corrupção, o desencanto com os políticos profissionais aparecem apenas como algumas das inúmeras interpelações endereçadas à política pela contemporaneidade.

A circunstância atual apresenta assim visível contraste com a emergência, a conformação e mesmo a exaltação da política acontecida na modernidade. O contraponto entre a situação contemporânea e a era moderna indica, mais uma vez, o estatuto problemático da política hoje e, em seqüência, coloca em cena uma das questões mais agudas a ser trabalhada: a crise da política aparece como um questionamento da política moldada na modernidade ou como um impasse da política ``tout court'' ?

A hipótese assumida e desenvolvida neste texto opta pela primeira alternativa, pois propõe que o registro da crise indica esgotamentos na atividade política, especialmente em sua modalidade conformada na modernidade, cuja herança marca ainda hoje a política que realizamos. A hipótese formulada tenta reter exatamente esse mal-estar derivado da inadequação entre uma atividade política, com formatação oriunda da modernidade, e uma contemporaneidade, conformada por outras espacialidades e campos de força.

Em tempo simultâneo, as novas configurações societárias - neomodernas ou pós-modernas - põem novos desafios em cena e possibilitam dar sentido às mutações em profundidade que hoje perpassam o campo político.

Este texto privilegia como alternativa interpretativa para a compreensão da mutações da política na atualidade, dentre outras possíveis, aquela que se centra na conexão contemporânea entre política, sociabilidade e comunicação, com destaque para a sua versão midiática, e nas ressonâncias societárias decorrentes dessa interação. Isso não significa que outras abordagens não possam ser significativas para a elucidação das transmutações políticas em processo. Trata-se apenas da escolha do enfoque privilegiado e possível de ser trabalhado neste texto.

A relação atual entre comunicação e política, reivindicada de modo reiterado nos estudos recentes, tem, quase sempre, se pautado por um tom sombrio, pois a política submerge como dilacerada pela mídia. A política espetacularizada de Schawzenberg2, a videopolítica de Sartori3, a transpolítica de Mafesolli4 e o fim da política de Baudrillard5, para citar apenas algumas vozes importantes e diferenciadas, parecem convergir em seu diagnóstico quase terminal para a atividade política. De um anterior estatuto instrumental - quando a comunicação está concebida como meramente determinada pela política, como acontece, por exemplo, na redução da comunicação ao âmbito da ideologia6 - a comunicação passa, sem mais, a reter um poder tal, que inverte a relação, subjugando e mesmo quase aniquilando a política.

Essas apressadas e unilaterais soluções para complexas questões (im)postas pela contemporaneidade parecem não se sustentar. Antes, este texto reivindica a densidade dos problemas, afirma a multiplicidade das modalidades de interação e acredita na existência de diversas possibilidades de resolução da relação entre política e comunicação, em uma situação, por vezes complementar, por vezes conflitiva, mas sempre tensa e em processo de persistente disputa. Uma remissão da relação entre comunicação e política ao ambiente da contemporaneidade torna-se essencial para a elucidação do tema.

Mídia e contemporaneidade: Idade Mídia

A rápida incursão deve se iniciar por uma afirmação forte: o estatuto não instrumental, nem meramente superestrutural da comunicação na atualidade. Afinal diversos movimentos confluem para indicar o caráter estruturante assumido pela comunicação, em especial pela mídia, na contemporaneidade. Como esquecer, por exemplo, a formidável convergência tecnológica hoje existente entre comunicação, telecomunicações e informática, anotada por inúmeros autores; a expansão gigantesca das indústrias de comunicação e cultura e a atividade viabilizadora da globalização, ensejada, em dimensões diversas, pelas mídias.

Aliás, há algum tempo, tem-se sugerido que a comunicação tornou-se componente essencial na dinâmica de funcionamento do capitalismo. A predominância da concorrência de marcas, em detrimento da concorrência de preços, característica do capitalismo avançado detectada por Sweezy e Baran7, afirma essa conexão imanente, pois a comunicação aparece como momento imprescindível para a realização da concorrência de marcas. Na era da exaltação ao mercado, ele já não se mostra capaz de transformar produtos em mercadorias sem recorrer às campanhas de comunicação.

Mas este caráter estruturante pode ser captado também para além de uma atenção com as marcas e os constrangimentos capitalistas da sociedade. Mc Luhan8, apesar de seu deslumbramento e determinismo tecnológicos, já havia percebido como a comunicação estrutura o social, fixado como Galáxia Gutenberg ou como Aldeia Global. A sua fórmula ``o meio é a mensagem'' insiste nisso, antes de qualquer outra coisa. Anterior a ele, Walter Benjamin9, em seu iluminado ensaio, sem submergir ao determinismo tecnológico, também afirmou a capacidade da comunicação, reproduzida tecnicamente, estruturar sensibilidades, produzindo socialmente uma nova estética.

A percepção do estatuto estruturante e das novas dimensões sociais engendradas pela comunicação, em sua etapa midiática, também permeia, em modalidades muito diferenciadas, outros autores10. Guy Debord11, com sua sociedade do espetáculo, e Jean Baudrillard12, com suas teses sobre o simulacro e a simulação, devem ser aqui lembrados, ainda que em ambos essa nova dimensão de sociabilidade engendrada pelas mídias esteja sempre no âmbito do reprovável que se contrapõe a um ``real'', que assegura (Debord) ou assegurava anteriormente (Baudrillard) o mundo, apesar das possíveis negativas dos autores a esse respeito.

O descobrimento desse novo mundo propiciado pela comunicação torna-se encoberto. Como Colombo, ainda não chegamos à América, apenas aportamos nas Índias. Esse novo mundo, possibilitado pelas navegações (virtuais), não pode ser descoberto nesse registro esquemático de verdades e falsidades fixadas, nem no âmbito de uma circunstância societária aprisionada em sua configuração moderna, mas supõe o risco de uma apreensão aberta e problemática do novo. Só com essa atitude o novo mundo pode ser descoberto.

O mapeamento desse novo mundo vem sendo tentado por inúmeros autores que, apesar das divergências existentes entre as diversas formulações, parecem convergir na visualização do contemporâneo como estruturado pelas redes comunicacionais. Não por acaso a atualidade tem sido reiteradamente nomeada por expressões com afinidade com o campo da comunicação. ``Aldeia Global'' (McLuhan, 1974), ``Sociedade da Informação'' (Lyon, 1988; Kumar, 1997, dentre outros), ``Sociedade Conquistada pela Comunicação'' (Miège, 1989), ``Capitalismo de Informação'' (Jameson, 1991), ``Sociedade Informática'' (Schaff, 1991), ``Sociedade da Comunicação'' ou ``Sociedade dos Mass Media'' (Vattimo, 1991), ``Era da Informação'' ou ``Sociedade Rede'' (Castells, 1996), ``Sociedade da Informação ou da Comunicação'' (Soares, 1996), ``Planeta mídia'' (Moraes, 1998) e ``Idade Mídia'' (Rubim, 2000)13. Todas estas denominações, entre muitas outras possíveis, têm sido insistentemente evocadas para dizer o contemporâneo.

Não cabe, nos limites deste texto, uma discussão das convergências e divergências do pensamento dos autores acima citados. Aparece com mais pertinência o registro de alguns traços que caracterizam a contemporaneidade como modo singular de ser e estar no mundo. A sociabilidade atual apresenta-se como tensa e complexa conjunção de: 1. espaços geográficos e eletrônicos; 2. convivências (vivências em presença) e televivências (vivências à distância); 3. tempo real e espaço planetário; 4. local e global, enlace, nesse caso, tão bem apreendido e sintetizado na expressão glocalidade e, enfim, de 5. realidade contígua e telerrealidade.

Além da recorrente nomeação, a enumeração dos traços conformadores da singular sociabilidade contemporânea coloca em evidência a atividade estruturante da comunicação. Dimensões inerentes à atualidade como os espaços eletrônicos, as televivênciais, o tempo real, o espaço planetário, o globalismo e a telerrealidade não podem ser concebidos, viabilizados e imaginados sem uma relação de imanência com a comunicação, em sua versão midiatizada.

A comunicação não só figura como um dos momentos de estruturação da atualidade. Ela configura-se como expressivo ambiente que envolve o mundo, tecendo e atravessando todo o social. Sua manifestação, notável e tentacular, torna-se visível através: 1. da expansão quantitativa da comunicação, observada pelo número de meios disponíveis, pelas tiragens e audiências, pela dimensão de redes em operação etc; 2. da diversidade das mídias existentes; 3. da mediação que realiza, tornando-se o modo dominante de experienciar e conhecer a vida, a realidade e o mundo; 4. da presença e abrangência das culturas midiáticas como circuito cultural dominante, que organiza e difunde socialmente comportamentos, percepções, sentimentos, ideários e valores; 5. da ressonância social da comunicação midiatizada sobre a produção da significação (intelectiva) e da sensibilidade (afetiva), social e individual; 6. da prevalência da mídia como esfera de publicização (hegemônica) na sociabilidade, dentre os diferenciados ``espaços públicos'' socialmente existentes, articulados e concorrentes; 7. da ampliação vertiginosa dos setores voltados para a produção, circulação, difusão e consumo de bens simbólicos; 8. do crescimento (percentual) dos trabalhadores da informação e da produção simbólica no conjunto da população economicamente ativa e 9. do alargamento do consumo e dos gastos, públicos e privados, com as comunicações.

A mídia, por conseguinte, estrutura e ambienta a contemporaneidade, faz a mediação, possibilitando o compartilhamento simbólico entre indivíduos em territórios distantes, e também cria uma nova dimensão da realidade: a telerrealidade. Esse novo mundo nasce com as redes midiáticas permanentes e se caracteriza por sua conformação quase imaterial, altamente simbólica. Instituições e indivíduos o habitam sob a modalidade de imagens sociais ou públicas. O novo mundo, apesar dessas marcas contrastantes com a substancialidade anteriormente requerida à realidade (contígua), deve ser assumido como tendo um estatuto de realidade. Em verdade, como já anotado, a realidade contemporânea resulta da complexa composição que envolve telerrealidade e realidade contígua. Tal estado de mesclagem, quase indistinção, apresenta-se como atualidade, em especial, nas cidades-metrópoles, lugares, por excelência, de viver o contemporâneo.

Assim como a era da navegações marítimo-geográficas inaugurou um novo mundo, também agora, por volta de 500 anos depois, vive-se, para o mal e para o bem, o limiar de um outro novo mundo, de espaço planetário e em tempo real, possibilitado pelas redes eletrônicas e televivenciais de comunicação. Esse novo mundo - descoberto através de navegações de outro tipo, as virtuais - aparece ainda hoje como zona quase inexplorada, nova fronteira do capitalismo, como demonstra a expansão acelerada da economia na Internet, e como lugar privilegiado das novas lutas políticas e emancipatórias da humanidade.

Mídia e contemporaneidade:
globalizações

A navegação na sociabilidade estruturada e ambientada pela mídia permite descobrir e aportar nas fronteiras de expansão do mundo contemporâneo. Uma das facetas mais significativas dessa expansão acelerada do mundo normalmente atende pelo nome de globalização. Desnecessário se alongar na afirmação do imanente enlace existente entre globalização e a explosão das comunicações na atualidade. Hobsbawm, por exemplo, considera que as revoluções dos transportes e das comunicações como essenciais para o movimento de globalização14.

Para iniciar essa outra viagem, cabe, de imediato, distinguir globalização do termo internacionalização. Por óbvio, toda globalização implica internacionalização, mas não se reduz a isso. Manoel Castells, percebendo a novidade da noção, sugere um outro componente vital:

``O novo não é tanto que a economia tenha uma dimensão mundial (pois isto ocorre desde o século XVII), mas que o sistema econômico funcione cotidianamente nesses termos. Neste sentido, assistimos não somente à internacionalização da economia, mas a sua globalização, isto é, a uma interpenetração das atividades produtivas e das economias nacionais em um âmbito mundial'' 15.

Desse modo, soma-se à internacionalidade, própria do espaço planetário, um acontecer cotidiano e, mais do que isso, uma cotidianidade marcada pela possibilidade de simultaneidade e de instantaneidade, de se realizar em tempo real. A mistura desses ingredientes conforma o caráter singular e contemporâneo do processo de globalização.

Apesar de sua utilização generalizante, o termo, em um uso mais rigoroso, deveria acionar sempre um plural: globalizações. Como diversos autores têm observado o processo de globalização, desigual e combinado, afeta de modo distinto as diferentes regiões do planeta e os diversos campos da sociedade contemporânea. José María Gómez16, por exemplo, assinala a capacidade de fragmentação e de exclusão inerente ao processo de globalização, o qual, de modo simultâneo e tenso, integra e exclui, totaliza e fragmenta17. A globalização nessa perspectiva gera situações de intensa desigualdade entre regiões e mesmo no interior de um determinado território. Renato Ortiz18, por outro lado, preocupado com os descompassos existentes nos movimentos diferenciados de globalização presentes nos variados campos sociais, assinala que tais ritmos discrepantes decorrem da natureza dos campos envolvidos, e propõe somente aplicar a noção de globalização às dimensões econômica e técnica do processo, reservando o termo mundialização para a cultura, devido ao significado ocupado pelo lugar nesse horizonte.

As globalizações, no entanto, procedem de modo desigual também quando referidas a um mesmo campo social. Evidentemente funcionam com dinâmicas diferenciadas o processo de globalização do capital financeiro, altamente volátil e fluido, e aquele realizado pelo setor industrial, certamente em ritmo mais lento. Isso para não lembrar, ainda no campo econômico, as substantivas barreiras impostas à migração da mão de obra, que buscam bloquear ou minorar a globalização da força de trabalho19. O sólido muro existente entre os Estados Unidos e o México merece destaque neste aspecto.

As comunicações, enquanto conformadas como conjunto convergente de mídias, instalam-se como instrumento socio-tecnológico viabilizador de parcela significativa das globalizações em curso20. As redes informáticas de informação aparecem como imprescindíveis para as movimentações financeiras de capitais nas bolsas de todo o mundo. Nessa perspectiva, elas estão inseridas no cerne dos processos de globalização mais acelerados.

O mesmo não acontece analisando-se outras angulações possíveis para o processo. Em um recorte mais cultural, quando as comunicações estão intimamente imbricadas com a cultura, o ritmo do movimento tende a se desacelerar ou ser a dificultado por uma série de obstáculos. As culturas das mídias, circuito cultural dominante na contemporaneidade, apesar de sua marca internacional-popular21, que propicia fluxos simbólicos compartilhados por amplos segmentos sociais na sociedade contemporânea, não resultam sempre em uma mera homogeneização, como chegou a se pensar inicialmente, mas podem apresentar como resultado também a emergência de fluxos culturais locais. Mike Featherstone, idealizando essa percepção, chegou a escrever:

``Assim, uma conseqüência paradoxal do processo de globalização, a percepção da finitude e da ausência do planeta e da humanidade, não é produzir homogeneidade, e sim familiarizar-nos com a maior diversidade, com a grande amplitude das culturas locais''22.

A idealização apontada no autor pode ser detectada na assertiva que afirma o caráter de obrigatoriedade da emergência da diversidade das culturas locais, olvidando que ela apresenta-se como possibilidade, que pode ou não se realizar em circunstâncias dadas. A afirmação também desconhece a desigualdade de potência, quase sempre presente, entre os fluxos internacionais-populares, ancorados em robustas indústrias transnacionais de cultura, e os fluxos locais, muitas vezes destituídos de suportes de tal magnitude.

Mas pode-se aceitar que a dinâmica propriamente cultural, quando não totalmente abandonada, em geral interdita uma homogeneização, sem mais, e faz emergir fluxos locais expressivos que marcam a cultura e a comunicação.

A força do lugar, como insiste Milton Santos23, impregna a cultura e transforma o processo de globalização em mundialização, como sugere Renato Ortiz, ou em movimento de glocalização, conforme reivindicam inúmeros autores, pois aos fluxos e estoques internacionais-populares ou globais mesclam-se, em menor ou maior grau, com fluxos e estoques locais, ocasionando a possibilidade de rejeições, assimilações e hibridações24. A glocalização deve ser retida, enfim, como tensão em permanente movimento.

A noção de glocal tenta dar conta desse caráter complexo e tenso. Massimo Canevacci, por exemplo, assim comenta a noção:

``Essa palavra nova, fruto de recíprocas contaminações entre global e local, foi forjada justamente na tentativa de captar a complexidade dos processos atuais. Nela foi incorporado o sentido irrequieto do sincretismo. O sincretismo é glocal. É um território marcado pelas travessias entre correntes opostas e freqüentemente mescladas, com diversas temperaturas, salinidades, cores e sabores. Um território extraterritorial'' 25.

A trajetória desenvolvida até aqui permite intitular mais rigorosamente o processo em estudo utilizando-se o termo glocalizações. Parece sugestivo recorrer a ele também para compreender a dinâmica e as novas fronteiras da política no mundo contemporâneo. Antes disso, no entanto, torna-se necessário um retorno à política com seus impasses e desafios novos provenientes da idade mídia contemporânea.

Política e Idade Mídia

O equacionamento privilegiado das novas configurações do campo político nesta circunstância histórica e midiática peculiar deve acompanhar e dar ênfase às suas inovadoras espacializações sociais (instituições), aos registros de funcionamento acionados e aos formatos adquiridos pela política. A Idade Mídia redimensiona a política, resignificando-a: como uma política realizada em redes eletrônicas (telepolítica); através do aparecimento de novos ingredientes políticos e pela redefinição do funcionamento e dos formatos da política realizada em territórios, espaços geográficos determinados (aqui representados pela metáfora da rua), pela virtualidade da sua possível absorção em redes midiáticas (definidas pela noção metafórica de tela). Uma discussão mais aprofundada de todos esses tópicos pode ser encontrada em meu livro recentemente publicado sobre comunicação e política26.

Tomando em consideração o quadro analítico esboçado, pode-se detalhar a hipótese que inspira este texto. Tal hipótese especificada pode ser formulada do seguinte modo: os enlaces entre política e comunicação (re)adequando-se nesta circunstância de ambiente formatado pelas mídias, possibilitam a emergência de novas configurações da política, pois ela se vê afetada pela presença de novos espaços e ingredientes, e pela redefinição de alguns de seus antigos componentes, desenvolvidos desde os primórdios da modernidade, criando assim um desconforto para política formatada para os espaços modernos e simultaneamente impondo novos desafios à atividade política.

No mundo glocalizado, a dimensão pública do espaço eletrônico, constituído pela comunicação midiatizada, quaisquer que sejam seus suportes sociotecnológicos, torna-se lugar essencial de luta política por poderes, associando-se aos espaços geográficos - ruas, praças, parlamentos, palácios de governo, etc. - tradicionais locais de embate da política. A recente escolha da mídia, equipamento sociotecnológico que dá alguma materialidade ao espaço eletrônico, como alvo prioritário de incursões de lutas pelo poder político, apenas confirma essa percepção atualizada.

A existência desse outro espaço de realização da política, sem dúvida, introduz inúmeros problemas hoje essenciais ao rigoroso entendimento da transmutação da política e da emergência de uma midiatização da política, ou melhor, de uma política midiatizada.

Um dos debates fundamentais a esta política à distância - ou telepolítica - localiza-se na questão dos procedimentos de tradução da política nas linguagens e culturas, de intenso teor audiovisual, da comunicação midiática. Essa adequação pode ser entendida em tons radicalmente distintos, que variam desde a suposição de uma mera transposição, sem alterações, da política ao espaço eletrônico, até, em pólo oposto, a crença de uma inevitável subordinação da política às gramáticas (tele)midiáticas, as quais terminariam por ``despolitizá-la'', isto é, destituir a política de sua lógica e eficácia intrínsecas. Entre esses dois extremos, emerge uma infinidade de alternativas outras.

Nesse pólo limite, no qual parece acontecer presumivelmente a desconstrução da política pela comunicação midiática, muitas vezes instala-se a recorrente tese acerca da espetacularização da política pela atuação das mídias. Em geral, a espetacularização aparece como identificada, sem mais, com a absorção midiatizada da política. Em outros momentos e textos, tal identificação já foi rechaçada, afirmando-se, pelo contrário, a realização da política midiática através do acionamento de inúmeros dispositivos, inclusive, mais apenas por vezes, o espetacular.

Analiticamente se requer a importante distinção entre as linguagens e culturas midiáticas, inerentes indispensáveis ao trânsito na mídia, e a lógica mercantil dominante na comunicação midiatizada, hoje subsumida ao capital. A pleiteada distinção, apesar de essencial, não pode ser realizada com tranqüilidade, pois a lógica mercantil tende no capitalismo a impregnar fortemente as culturas, principalmente, e mesmo as linguagens das comunicações midiatizadas, tornando a distinção um esforço analítico árduo.

A tradução da política para a dimensão pública dos espaços eletrônicos conformados e operados pela mídia, aqui designada como telepolítica, não esgota, nem contempla todas as mutações da política ocasionadas por sua realização em ambiente tecido pelas redes comunicacionais.

A telepolítica e esse ambiente fazem emergir, simultaneamente, um conjunto de novos ingredientes que agregam-se e passam a compor o campo político atual, por mais relutância que alguns de seus representantes tenham a esse respeito. Esse campo da política, agora tensa conjunção de componentes oriundos da modernidade e da contemporaneidade, incorpora, por exemplo, em listagem não exaustiva: as sondagens de opinião, o marketing político, o marketing eleitoral, etc.

Os novos ingredientes, antes de serem desqualificados como intrusos e portadores de quase onipresença da mídia, a telepolítica, estes novos componentes políticos, para além deles mesmos, afetam em profundidade a política que se realiza em seus tradicionais lugares: nas ruas, praças, parlamentos, etc.

Primeiro porque a existência dessa complexa constelação redefine os nichos ocupados por cada um dos elementos na ``ecologia'' da política atual. Tal reorganização, no entanto, não significa, sem mais, que a política das ruas seja eclipsada ou meramente substituída pela tela e por suas formatações políticas afins. Em vez disso, podem ocorrer redefinições, nas quais o reposicionamento dos elementos depende sempre de campos de forças singulares existentes.

Rua e tela ou ``plaza y platea'', como diz María Cristina Mata 27, não se eliminam ou se sobrepõem com o aniquilamento do outro. Antes realizam tensas interações políticas, através das quais remanejam hierarquicamente suas espacializações, adquirindo posições de poder, continuamente movimentadas pelas mutações dos campos de força, expressos em acontecimentos singulares. Rua e tela redefinem mutuamente seus poderes, conteúdos, formatos em movimento. Néstor García Canclini, por exemplo, assinala:

``Quiero aclarar, por último, que analizar sólo la política como `videopolítica' llevaría a sobrestimar la capacidad manipuladora de los medios. La política también ocurre en otros espacios, en las instituiciones clásicas y en microescenas cotidianas. Pero no podemos desconocer que ocurre mucho más en los medios que en el pasado, y que esta acción de los medios ha relativizado la acción de partidos y sindicatos. Es muy difícil que forme parte de la política nacional algo que además de ocurrir en la calle no pase en las fábricas, en organizaciones de base y no pase también por los medios, si los medios no se hacen eco de estos hechos. Aunque se reconozcan otras instancias, creo que el problema está en cómo esas instancias se relacionan con los medios'' 28.

Além deste jogo permanente de reposicionamentos, as políticas da rua e da tela podem, em circunstâncias determinadas, ao ser colocadas em sintonia, tornarem-se afinadas e assim potencializar seu desempenho, não mais eivado de contradições, mas em processo dialógico com um horizonte de complementariedade. Aqui poder-se-ia sugerir um movimento de potencialização da realização da política 29.

As ressonâncias políticas da tela sobre a rua transcendem este jogo de ``ecologias'' e, em segundo andamento, perpassam o próprio movimentar da rua e dos outros lugares afins da política moderna. Em sintonia fina com a contemporaneidade, percebe-se que o sentido produzido pela mobilização na rua em sociedades globalizadas, na maioria das vezes, não se realiza em plenitude, se apenas se retém o significado advindo e circunscrito à rua. Extrapolando estas fronteiras, tal sentido hoje produz-se na interlocução entre rua e suas adjacências eletrônicas.

Buscar e produzir ``efeitos de mídia'' nos acontecimentos de rua, praça, parlamento, etc. aparece como dispositivo fundante da produção de sentidos políticos na atualidade. Um ato vale politicamente não só - ou mesmo primordialmente - pelo efeito induzido nas suas circunstâncias convivenciadas, mas (também) pelas repercussões que produz à distância na realidade-mundo, através da mediação operada pela comunicação midiática. Em outras palavras, pelo ``efeito de mídia'' que se consegue ``introduzir'' no ato.

Desse modo, as críticas arremessadas aos acontecimentos políticos que buscam se produzir também - ou principalmente - para a dimensão pública midiatizada, além de serem consideradas impertinentes, desnudam uma incompreensão profunda da natureza compósita da sociabilidade contemporânea e do novo ambiente da política.

Os ``efeitos de mídia'' podem ser construídos pelo acionamento de uma diversidade de dispositivos de produção de sentidos. Dentre eles destacam-se recorrências à espetacularização, adequações às gramáticas telecomunicacionais, aproximações às lógicas midiáticas de representação da realidade/mundo, investimentos em critérios de noticiabilidade, radicalização de contrastes inscritos na realidade etc.

Assim, o impacto desse ambiente de comunicação, dessa Idade Mídia, conforme esse sistema de hipóteses, faz emergir novas e polissêmicas configurações da política que, para o mal ou para o bem, ocupam espaços eletrônicos (telepolítica), trazem à cena novos ingredientes e redefinem os antigos componentes da política moderna, condensados metaforicamente na expressão ``rua''.

Política e globalizações

A política como modo de resolver a questão do poder político, no dizer de Castoriadis, apesar de inventada na Grécia, adquire seus contornos significativos na modernidade. Dentre suas inúmeras características, duas devem ser agora destacadas: a adequação de suas modalidades e formatos de desenvolvimento aos espaços geográficos propícios às convivências e a preponderância de uma dinâmica nacional para a sua realização.

Essa circunscrição marcadamente nacional das conformações da política fica evidente quando se rememora as principais instituições do campo da política nascidas na modernidade: o Estado-nação, os parlamentos, os partidos, os sindicatos, as entidades associativistas etc. Também os ritos - eleições, por exemplo - , os espaços públicos e a opinião pública privilegiam nitidamente os horizontes nacionais. Autores como Octávio Ianni, Renato Ortiz e José María Gómez, para lembrar apenas alguns, já anotaram as fronteiras nacionais adquiridas pela política moderna.

A glocalização do mundo e especificamente da política redefine também o lugar da política. Ela desatualiza e relativiza locais de atuação, cria novas instâncias passíveis de atuação política, reorganiza a ecologia do sistema de poder político existente e, enfim, obriga a política a enfrentar uma complexa gama de novos desafios. Assim a crise atual da política também deriva da glocalização em curso. Ianni, a este respeito, escreve: ``A globalização desafia radicalmente os quadros de referência da política, como prática e teoria''30.

O Estado-nação, instituição central da política moderna, tem seu poder e soberania deprimidos pela crescente interdependência dos países, pelo nascimento de pactos macro-regionais, pela emergência de legislações globais e pelo surgimento de instituições transnacionais, políticas ou não. Com as políticas públicas nacionais constrangidas, perdem força os parlamentos, os partidos e as instituições instaladas e atuantes no espaço-nação. Mas longe se está do esgotamento destas instituições políticas nacionais. Renato Ortiz reconhece que: ``Preferencialmente, a política continua a ser uma prática demarcada pelas imposições nacionais''31. José María Gómez, mais enfático, afirma:

``Como já se disse, embora cresça a importância e o papel das organizações internacionais regionais e globais, corporações transnacionais, movimentos subnacionais, movimentos sociais e organizações não-governamentais, o Estado e o sistema de estados permanecem no coração da política mundial e no centro dos debates sobre a natureza, alcance e orientação - dominante ou alternativa - das mudanças, de todos os tipos, que operam hoje em escala planetária''32.

Desse modo o Estado-nação continua a reter significativa parcela de poder no jogo político nas sociedades contemporâneas, apesar de ter seu lugar vivamente redefinido e deprimido no contexto da política atual33.

A perda de poder do Estado-nação em uma circunstância de globalização atinge inclusive um dos seus mais relevantes potenciais: sua dominância na capacidade de constituir identidades, componente vital de uma era política plena de nacionalismos. A respeito dessa temática, Renato Ortiz observa: ``A modernidade-mundo multiplica os referentes identitários, retirando, porém, do Estado-nação a primazia de defini-los''34.

A questão do lugar da política surge como essencial nesse novo mundo. Renato Ortiz, por exemplo, depois de voltar a afirmar as fronteiras nacionais da política moderna, escreve:

``A rigor, um dos dilemas do mundo contemporâneo consiste em responder corretamente à pergunta: qual o lugar da política? Já não é mais suficiente confiná-la no contorno do Estado-nação. A globalização coloca pois um desafio: imaginar a política dentro de parâmetros universais e mundializados'' 35$.$

Ianni, nessa mesma sintonia, chama a atenção para a alteração significativa do lugar da política em uma circunstância globalizada. Em suas palavras:

``...desloca-se radicalmente o lugar da política. Ainda que se continue a pensar e agir em termos de soberania e hegemonia, ou democracia e cidadania, tanto quanto de nacionalismo e Estado-nação, modificaram-se radicalmente as condições `clássicas' dessas categorias, no que se refere às suas significações práticas e teóricas'' 36$.$

A política deve ocupar então um novo lugar, mas sua delimitação aparece como problemática, pois está em jogo a singularidade do impacto e do processo de globalização no campo político.

Hobsbawm, em sua longa entrevista, chama a atenção para essa peculiaridade:

``Ainda que se possa dizer que há uma tendência histórica natural para a globalização nas áreas de tecnologias, comunicações e economia, isto certamente não vale para a política. Estamos comparando aspecto diferentes do mundo, aspectos que não se desenrolam de maneira similar'37$.$

Páginas adiante, ele volta ao assunto para assinalar que a existência de organismos e autoridades internacionais decorre de decisões políticas deliberadas e não de um desenvolvimento automático da economia ou da tecnologia. Pouco depois, Hobsbawm afirma: ``Este é um problema que irá dominar o século XXI''38.

A singularidade da globalização da política deve reter, por conseguinte, essa persistência do papel do Estado-nação e de uma dinâmica nacionalizada. A política, diferente do que acontecia na modernidade, já não pode ter sua localização primordial no espaço nacional e no Estado-nação, mas não deve subestimá-los, pois esses se mantêm vigentes, ainda que relativizados. Em verdade, o lugar da política contemporânea deve ser pensado como perpassado por contrastes e tensões advindos de um momento histórico de transição, no qual fluxos, interesses, demandas globais e nacionais se entrecruzam em disputa. José María Gómez anota dois destes contrastes: a coexistência de uma economia cada vez mais desterritorializada e uma política territorializada e a persistência da soberania nacional em uma situação de crescentes decisões políticas globais39. Mas esses contrastes observados não o impedem de assumir que:

``os processos de globalização mudam radicalmente o contexto da política contemporânea, transformam suas condições, conseqüências e atores, expandem os horizontes da ação (sentidos, valores, constituição de sujeitos e identidades, alianças, antagonismos, etc.) e interpelam as categorias com que habitualmente são pensados seus principais problemas, dilemas e desafios''40$.$

Em resumo, diferentemente da economia e da técnica que aparecem como mais rapidamente globalizáveis, ou da cultura, que retendo a força do lugar, torna-se híbrida, glocalizando-se, a política tende a associar o global e o local com o nacional, em decorrência do significado adquirido por ele na tradição política moderna.

A afirmação da defasagem histórica entre a criação de instituições políticas e o novo mundo, a constatação da decadência da política (representativa) tradicional e a insistente reivindicação da necessidade de uma nova política, expressas por Tarso Genro 41, nesse contexto, parecem ganhar plenamente sentido. Almejar e inclusive construir uma política que se conforme em sintonia com a nova era, com a sociabilidade estruturada e ambientada pela mídia e pelos processos de globalizações (ou melhor, glocalizações) torna-se uma possibilidade de atualização da política e de, por conseguinte, encontrar um lugar mais pertinente para essa atividade essencial para a sociedade e seu governo.

Após essa rápida incursão na singularidade do movimento de globalização da política, cabe tentar descrever, em linhas gerais, alguns dos novos componentes que conformam o jogo político. Em primeiro lugar, assinale-se a emergência de temas reconhecidos politicamente como globais. José María Gómez elenca alguns deles: o meio ambiente, os direitos humanos e a democracia política42. Outros poderiam ser facilmente aqui incluídos, a exemplo do narcotráfico. Em segundo lugar, anote-se que esses temas e outros, políticos ou não, transitam e tornam-se compartilhados através da existência de uma dimensão pública instituída globalmente pelas redes midiáticas. Tal dimensão pública global tem importante incidência na política contemporânea e aparece como instituição vital ao jogo político na atualidade. Winfried Scharlau, dentre os muitos exemplos que poderiam ser rememorados, observa como a presença midiática atuou como catalisadora das manifestações estudantis da Praça da Paz Celestial43. Por fim, em terceiro lugar, deve-se elencar os numerosos e novos atores políticos conformados pela nova circunstância societária.

Octávio Ianni, no seu já clássico livro A sociedade global, lista os novos agentes dos poderes globais44. Dentre eles comparecem: a Organização das Nações Unidas - ONU e instituições congêneres; o Fundo Monetário Internacional - FMI, o Banco Mundial, o Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento - BIRD e instituições financeiras afins; as empresas transnacionais; as indústrias da comunicação e da cultura, como suas redes mundializadas, e a sociedade civil global.

Podem ser acrescidos a esta lista os pactos macro-regionais, que algumas vezes apenas expressam acordos entre nações, mas que outras vezes adquirem importantes dimensões supranacionais, como acontece com a Comunidade Européia. Também os chamados ``regimes internacionais''45 podem ser somados a listagem dos poderes globais, pois transformam-se em parâmetros e constrangimentos significativos para a intervenção política. Através desses acordos, nos quais convergem expectativas, instituem-se normas e valores que podem ser considerados ``politicamente corretos'' e tendencialmente universais, tais como: democracia, direitos humanos, liberdade, direitos da mulher e das minorias, individualismo, preservação do meio ambiente, etc46. A conotação ocidental de tais valores e relevantes contratendências, entretanto, (ainda?) limitam a vigência global de alguns desses ``regimes internacionais''. Enfim, um último ator político reivindicado por diversos autores: a cidadania planetária47.

Para se ter uma idéia, ainda que apenas numérica, certamente aproximada e um pouco defasada, do crescimento desses novos atores políticos podem ser citados os dados extraídos do livro Democracy and global order: as entidades intergovernamentais passaram de 37, em 1909, para 300, em 1989, e as organizações não-governamentais subiram de 176, em 1909, para 4624, em 198948.

Outras mutações devem ser lembradas, além daquelas analisadas no plano nacional ou as pertinentes aos atores, temas e dimensão pública, que configuram dimensões globalizadas. Também o local, na nova circunstância societária, encontra-se transformado, inclusive em sua atividade política. Na contemporaneidade, o local encontra-se perpassado cotidianamente e em tempo real, especialmente nas cidades-metrópole, por fluxos nacionais e globais, passando a conter e considerar no dia-a-dia dados provenientes desses estoques. Movimentos sociais localizados, como o MST brasileiro e os neo-zapatistas mexicanos49, sabiamente não só utilizam a proteção possibilitada pela dimensão pública e pelos valores globais para empreender suas lutas reivindicatórias, como vêm atuando em fina sintonia com o contemporâneo, ao articularem eficazmente o local, o nacional e o global. Com isso, potencializam sua intervenção política, pois ampliam sua zona de atuação, suas modalidades de atividade, seu leque de alianças e apoios e suas fontes de legitimidade. Assim as lutas políticas locais adquirem outros sentidos, dado que se inscrevem em linhas de força nacionais e globais, sendo reterritorializadas, através de fluxos, sendo a maioria deles de natureza simbólica e midiática.

A quase onipresença desses fluxos permitem e muitas vezes legitimam também descolamentos entre o local e o nacional. Forças locais, que antes se encontravam subjugadas à dinâmica do Estado-nação, podem forjar novas identidades, ganhar expressão e emergir no cenário global, apoiadas justamente na existência desse novo panorama político, no qual se destacam dimensões supra-nacionais.

O novo cenário possibilita, portanto, o nascimento de uma gama de novas estratégias políticas. Algumas com grande capacidade de articular intervenções locais, nacionais e globais, como as anteriormente citadas, outras plenamente instaladas em horizonte globalizado, como acontece com a atuação de entidades da sociedade civil global, como o Greenpeace e a Anistia Internacional, que, apesar disso, realizam tonalidades diferenciadas de atividade política50. Entretanto, todas essas estratégias retém um componente comum: a intrínseca conexão da intervenção política com os recursos de comunicação, que as tornam sintonizadas com as demandas e circunstâncias contemporâneas, como vimos, estruturadas e envolvidas por um intenso ambiente midiático. A rigor, poderíamos melhor denominar essas estratégias de político-midiáticas. Nessa conformação, elas conseguem assimilar o espaço eletrônico pleno de televivências, no qual ocorrem parte significativa das disputas políticas hoje; a dimensão glocalizada que marca esses embates; e estarem atentas às mídias, esses novos e nada desprezíveis atores políticos contemporâneos. Aqui parecem se reencontrar, não sem tensões, a política, a mídia e o glocal.

Desafios contemporâneos

Os deslocamentos acontecidos no lugar da política na sociabilidade contemporânea, como foi insistentemente lembrado, colocam novas desafios à política. De início, o desafio pode ser expresso como busca de lugar adequado e sintonizado com circunstâncias societárias contemporâneas, envolvidas por um ambiente marcadamente midiático e glocalizado. Em seqüência, o desafio aparece como investimento necessário à política para ocupar o(s) novo(s) lugar(es) e se realizar enquanto atividade essencial para o governo da sociedade. Esses desafios estão umbilicalmente associados a outro, fundamental para a política e para a sociedade atuais: a democracia.

Hobsbawm fala da possibilidade de controlar o mercado, aparentemente todo poderoso nos tempos (neo-liberais) recentes, recorrendo-se à política51. Jacques Levy observa que, diante das dificuldades de auto-regulação do mercado, fica evidente a necessidade de apelar ao político, apesar de reconhecer a ausência de uma dimensão propriamente política constituída no mundo atual52. O imperativo da regulação da sociedade (e do mercado) coloca a política em cena e, mais que isto, aponta o lugar essencial da democracia na constelação que está sendo inaugurada.

A democracia na atualidade se vê traspassada por um intenso paradoxo, como perspicazmente percebeu Tullo Vigevani: ``No momento mesmo que o valor democracia parecia universalizar-se, ele tende a ver drasticamente reduzida sua importância''. O autor, aliás, considera esta ``talvez a questão central da política nas próximas décadas'' 53.

A instalação e o desenvolvimento da democracia nos espaços eletrônicos, com a democratização das mídias e suas redes, e nos espaços geográficos, para além das fronteiras nacionais 54, passam a ser requisitos fundantes da possibilidade de ser falar em democracia na contemporaneidade. Sem estas democratizações não existe efetivamente democracia hoje.

Ainda que possa se acreditar, sem mais, que a informação globalizada sem fronteiras, característica marcante de uma sociedade midiatizada, possa ter um poder democratizante e corrosivo para os regimes autoritários fechados55, certamente isso não basta para equacionar de modo satisfatório o tema da democracia dos espaços eletrônicos. A exigência da pluralidade política e ideológica torna-se aqui imprescindível. O controle da sociedade sobre as mídias também. Portanto, novas modalidades democráticas de governo do espaço eletrônico e dos espaços geográficos globalizadas tornam-se essenciais para conformar uma nova situação radicalmente democrática.

Mas algumas possibilidades estão dadas como assinalam alguns autores. Thesing fala de novas modalidades de participação política permitidas inclusive pelas mídias56. Tarso Genro, seguindo Pietro Ingrao, diz da possibilidade de conjunção da democracia representativa com momentos de democracia direta, viabilizados pelas mídias57. Vigevani, citando outros autores, chega a falar em uma democracia cosmopolita58. Finalmente José María Gómez reivindica uma globalização ``por baixo''59. Todos eles, para não lembrar aqui outros autores, põem em cena a necessidade e a possibilidade de aprofundamento da democracia nos espaços eletrônicos e geográficos, para além do Estado-nação. Isto requer um governo planetário democrático e um espaço eletrônico glocalizado democratizado, como também novos formatos, novas instituições, novos temas e novos atores políticos.

Em resumo, este texto buscou tematizar as profundas mutações em curso na política contemporânea. A dissociação entre a política, formatada principalmente na modernidade, e as condições societárias transformadas pela transição da modernidade para uma contemporaneidade, marcada por uma ambiente midiatizado e glocalizado, originou, conjuntamente com outros fatores, uma crise na política. A superação dessa crise depende da capacidade da política de compreender e de se instalar nos novos lugares, especialmente nos espaços eletrônicos e globais, moradas contemporâneas de intenso poder político. A invenção de novas instituições, novos rituais, novos formatos, novos atores, novas temáticas, novas estratégias político-midiáticas-glocais, novas modalidades de realização da democracia passa assim a ser fundamental para a inauguração de uma nova política, sintonizada com o tempo e o espaço contemporâneos.



Notas de rodapé

... Rubim1
Universidade Federal da Bahia
... Schawzenberg2
SCHAWZENBERG, Roger-Gérard. O estado espetáculo. Rio de Janeiro, Difel, 1978.
... Sartori3
SARTORI, Giovanni. Homo videns. Roma-Bari, Gius.Laterza & Figli Spa, 1997.
... Mafesolli4
MAFESOLLI, Michel. A transfiguração do político. Porto Alegre, Sulina, 1997.
... Baudrillard5
BAUDRILLARD, Jean. As estratégias fatais. Rio de Janeiro, Rocco, 1996.
... ideologia6
Alguns autores podem ser aqui evocados. Ver ALTHUSSER, Louis. Os aparelhos ideológicos de estado. Rio de Janeiro, Graal, 1985 e GRAMSCI, Antonio. Obras escolhidas. Lisboa, Estampa, 1974.
... Baran7
SWEEZY, Paul e BARAN, Paul. O capitalismo monopolista. Rio de Janeiro, Zahar, 1974.
... Luhan8
MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo, Cultrix, 1974.
... Benjamin9
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. In: LIMA, Luiz Costa (org.). Teorias da cultura de massa. Rio de Janeiro, Saga, 1969, p....
... autores10
Renato Ortiz, por exemplo, afirma o caráter constitutivo desempenhado pelos meios de comunicação na formação da modernidade-mundo. Ver: ORTIZ, Renato. Mundialização, cultura e política. In: DOWBOR, Landislau; IANNI, Octávio e RESENDE, Paulo-Edgar (orgs.) Desafios da globalização. Petrópolis, Vozes, 1999, p.273.
... Debord11
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro, Contraponto, 1997.
... Baudrillard12
BAUDRILLARD, Jean. Simulacres et simulation. Paris, Éditions Galilée, 1981.
... 2000)13
Ver: LYON, David. The information society: issues and illusions. Cambridge, Polity Press, 1988; KUMAR, Krishan. Da sociedade pós-industrial à pós-moderna: novas teorias sobre o mundo cos Inc, 1996-1998 (três volumes); SOARES, Ismar de Oliveira. Sociedade da informação ou da comunicação? São Paulo, Editora Cidade Nova, 1996; MORAES, Dênis de. Planete mídia. Campo Grande, Letra Livre, 1998 e RUBIM, Antonio Albino Canelas Rubim. A contemporaneidade como idade mídia. Trabalho apresentado no V Congresso da Associação Latino-americana de Investigadores da Comunicação - ALAIC. Santiago do Chile, 26-29 de abril de 2000.
...ao14
HOBSBAWM, ERIC. O novo século (entrevista a Antonio Polito). São Paulo, Companhia das Letras, 2000, p.71.
... mundial''15
CASTELLS, Manoel. A economia informacional, o nova divisão internacional do trabalho e o projeto socialista . In: Caderno CRH. Salvador, (17):5-34, julho- dezembro de 1992. A citação está na página 8.
...omez16
GÓMEZ, José María. Globalização da política - mitos, realidades e dilemas. In: GENTILI, Pablo (org.) Globalização excludente. Desigualdade, exclusão e democracia na nova ordem mundial. Petrópolis, Vozes, 1999, p.128-179. Ver também: GÓMEZ, José María. Política e democracia em tempos de globalização. Petrópolis - Buenos Aires, Vozes - Clacso, 2000.
... fragmenta17
Ver também: BAUMAN, Zygmunt. Globalização. As consequências humanas. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1999.
... Ortiz18
ORTIZ, Renato. A mundialização da cultura. São Paulo, Brasiliense, 1994.
... trabalho19
Hobsbawm assinala a atual coexistência entre gloabalização e controle dos fluxos migratórios. Ver: HOBSBAWM, Eric. ob. cit. p.73.
... curso20
GÓMEZ, José María. Globalização da política - mitos, realidades e dilemas...p.137, por exemplo.
... internacional-popular21
ORTIZ, Renato. Ob. cit. p. 105-145.
... locais''22
FEATHERTONE, Mike. O desmanche da cultura. Globalização, pós-modernismo e identidade. São Paulo, Nobel, 1997, p.124.
... Santos23
SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo: razão e emoção. São Paulo, Hucitec, 1996.
...oes24
CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas hibridas. São Paulo, Edusp, 1998.
... extraterritorial''25
CANEVACCI, Massimo. Sincretismos. Uma exploração das hibridações culturais. São Paulo, Nobel, 1996, p.25.
...itica26
RUBIM, Antonio Albino Canelas. Comunicação & política. São Paulo, Hacher, 2000.
... Mata27
Para uma perspectiva interpretativa similar a esta, ver o interessante texto de MATA, María Cristina. ``Entre plaza y la platea''. In: SCHMUCLER, Héctor e MATA, María Cristina (orgs.) Política y comunicación. Córdoba, Catálogos, 1992, p.63-75.
... medios''28
CANCLINI, Néstor García. Cultura y comunicación: entre lo global y lo local. La Plata, Universidad Nacional de la Plata, 1997, p.59.
...itica 29
Acredito que isto possa ter acontecido durante as eleições presidenciais brasileiras de 1989, particularmente na campanha do candidato Luiz Inácio Lula da Silva. Ver: RUBIM, Antonio Albino Canelas. Mídia e política no Brasil. João Pessoa, Editora da UFPb, 1999.
... teoria''30
IANNI, Octávio. A política mudou de lugar. In: DOWBOR, Ladislau; IANNI, Octávio e RESENDE, Paulo-Edgar (orgs.) Desafios da globalização. Petrópolis, Vozes, 1997, p.17.
... nacionais''31
ORTIZ, Renato. Digressão: cultura, cidadania e política. In: ___. Um outro território. Ensaios sobre a mundialização. São Paulo, Olho d'água, s/d, p.126.
... planetária''32
GÓMEZ, José María. Globalização da política - mitos, realidades e dilemas...p.171-172.
... atual33
A bibliografia sobre as redefinições contemporâneas do Estado-nação hoje já aparece como vasta. Ver, por exemplo: CORSI, Francisco Luiz. A globalização e a crise dos estados nacionais. In: DOWBOR, Landislau; IANNI, Octávio e RESENDE, Paulo-Edgar (orgs.) ob. cit. p.102-108; ALMEIDA, Lúcio Flávio de. Entre o local e o global: poder e política na atual fase de transnacionalização do capitalismo. In: DOWBOR, Ladislau; IANNI, Octávio e RESENDE, Paulo-Edgar (orgs.) ob. cit. p.175-186.
... defini-los''34
ORTIZ, Renato. Mundialização, cultura e política. In: DOWBOR, Landislau; IANNI, Octávio e RESENDE, Paulo-Edgar (orgs.) ob. cit. p.274.
... 35
ORTIZ, Renato. Mundialização, cultura e política...p.275.
... 36
IANNI, Octávio. ob. cit. p.20.
... similar'37
HOBSBAWM, Eric. ob. cit. p.70.
... XXI''38
HOBSBAWM, Eric. ob. cit. p.88.
... globais39
GÓMEZ, José María. Globalização da política - mitos, realidades e dilemas...p.155 e 159, respectivamente.
... desafios''40
GÓMEZ, José María. Globalização da política - mitos, realidades e dilemas...p.140.
... Genro41
GENRO, Tarso. O futuro por armar. Democracia e socialismo na era globalitária. Petrópolis, Vozes, 1999.
...itica42
GÓMEZ, José María. Globalização da política - mitos, realidades e dilemas...p.162.
... Celestial43
SCHARLAU, Winfried. Medios de comunicación, globalización y democracia. In: THESING, Josef e PRIESS, Frank (orgs.) Globalización, democracia y medios de comunicación. Buenos Aires, Centro Interdisciplinario de Estudos sobre el Desarollo Latinoamericano - CIEDLA, 1999, p.414.
... globais44
IANNI, Octávio. A sociedade global. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1993, especialmente nas páginas 125-146 e 35-52.
... internacionais''45
KRASNER, Stephen. Transforming international regimes. In: OLSON, William (org.) The theory and practice of international relations. Englewood Cliffs, Prentice Hall, 1991.
... etc46
VIGEVANI, Tullo. Globalização e política: ampliação e crise da democracia? In: DOWDOR, Landislau; IANNI, Octávio e RESENDE, Paulo-Edgard (orgs.) ob. cit. p.289.
...aria47
Ver, por exemplo: VIEIRA, Liszt. Cidadania e globalização. Rio de Janeiro, Record, 1998.
... 198948
HELD, D. Democracy and the global order. Cambridge, Polity Press, 1995.
... mexicanos49
Sobre os neo-zapatismos, ver: RUBIM, Antonio Albino Canelas. Neozapatismo: guerra de imágenes. In: Etcétera. Semanario de política e cultura. México, (199):18-28, 21 de dezembro de 1996 e RUBIM, Antonio Albino Canelas. Neozapatismo: política na Idade Mídia. In: Contexto Internacional. Rio de Janeiro, 19(1):151-173, janeiro-junho de 1997.
...itica50
Para uma discussão das estratégias diferenciadas destas entidades, consultar: RUBIM, Antonio Albino Canelas. Política midiatizada: entre o global e o local. In: Comunicação e Sociedade (no prelo)
...itica51
HOBSBAWM, Eric. ob. cit. p.87.
... atual52
LEVY, Jacques. Entre sociedade civil e sociedade política. In: SANTOS, Milton; SOUZA, Maria Adélia ${}^{a}$ de e SILVEIRA, Maria Laura (orgs.) Território. Globalização e fragmentação. São Paulo, Hucitec, 1994, p.221-232.
...ecadas'' 53
VIGEVANI, Tullo. ob. cit. p.293.
... nacionais54
Ver sobre isso: THESIN, Josef. ob. cit. p.22.
... fechados55
SCHARLAU, Winfried. ob. cit. p.42.
...idias56
THESING, Josef. ob. cit. p.23.
...idias57
GENRO, Tarso. ob. cit. p.44.
... cosmopolita58
VIGEVANI, Tullo. ob. cit. p.295.
... baixo''59
GÓMEZ, José María. ob. cit. p.173.