NOVAS CONFIGURAÇÕES DAS ELEIÇÕES NA IDADE MÍDIA

Antonio Albino Canelas Rubim, Universidade Federal da Baía



O tema da relação entre eleições e mídia aparece hoje, sem dúvida, como um dos mais significativos para a compreensão das novas configurações assumidas pela política na contemporaneidade, concebida como Idade Mídia. Cabe, por conseguinte, para a elucidação desta relevante temática, uma análise pormenorizada dos termos envolvidos na interação e, em seguida, uma tentativa de explicitar as consequências da atual tendência de imbricamento entre mídia e política.

O estudo centrado na interação entre mídia e política certamente na atualidade adquire mais interesse para as interfaces entre os campos da comunicação e da política, que as investigações antes predominantes da comunicação política, nas quais se realça o aspecto instrumental da comunicação e seu acionamento pela política, ou das políticas de comunicação, em voga nos anos 70 e 80, quando a ênfase recaía nos movimentos de reorganização societária das comunicações. Não que estas áreas percam importância acadêmica e interesse social, apenas se ressalta aqui um outro aspecto, que tem sido menosprezado, para uma necessária compreensão mais abrangente das essenciais conexões contemporâneas entre os campos da comunicação e da política.
 
 

Afinal o que vem a ser eleições?

Parece razoável começar a reflexão por esta instituição hoje quase natural(izada) da política. Em uma primeira aproximação, pode-se supor as eleições como um momento e um procedimento – ritualizado, periódico e legitimado - de escolha e investidura de dirigentes representativos para exercício de poder(es) na sociedade. Assim as eleições se aproximam e se diferenciam de outros procedimentos de escolha e investidura como a herança, a nomeação, a coaptação, etc.

A s eleições escolhem quem deve governar, quem vai ocupar lugares privilegiados de exercício de poder – seja ele executivo, legislativo ou, por vezes, judiciário – em instituições do Estado, da sociedade civil e, em circunstâncias infinitamente menos comuns, devido ao seu caráter não democratizado, do mercado. Assim não se escolhe propriamente o governo, mas através dos governantes, aqueles que estarão em lugares de comando. Isto é, em lugares e situações, nos quais se dispõe de modo privilegiado de parcela de poder para governar.

Esta distinção adquire sentido e importância, pois - se as eleições funcionam como procedimento social de distribuição, momentânea e periódica, do poder de governar -, esta distribuição transcende o episódio eleitoral, acontecendo cotidianamente através da persistente disputa do poder de governar, da governabilidade. Assim a escolha e investidura, via eleições, garante o lugar de poder e simultaneamente define o programa vencedor, mas não assegurar, nem dá garantias plenas de sua realização. Em situações democráticas, ela deve resultar destas permanentes disputas de poder.

Este momento e procedimento periódico de distribuição social de poder acontece porque em um regime de democracia cada cidadão, pelo menos formalmente, detém uma parcela de poder. Através do instrumento do voto, o cidadão delega parte deste poder ao seu representante político, que, reunindo um conjunto necessário de votos, adquire representatividade para ser escolhido governante. A idéia de representação – com todas as virtudes e defeitos que contém – aparece aqui como em essencial conexão como o ato eleitoral. Representação e eleições viabilizam-se, assim, mutuamente.

As eleições, em plenitude, emergem como invenção moderna. Elas têm como exigências fundantes uma política que se legitima de modo secular através deste caráter de representação. O governo e o governante tornam-se legítimos ao ser escolhido e ao representar os (interesses do) cidadãos.

As lutas sociais, especialmente as do século XIX e XX, conquistaram uma extensão da noção de cidadania – no início do período liberal clássico adstrita aos proprietários. Com isto, o sufrágio, antes censitário e elitista, tornou-se universal, primeiro para os homens e depois também para as mulheres na maioria dos países. Desta maneira, as lutas sociais dos trabalhadores e das mulheres fizeram das eleições um componente fundamental da política moderna, em sua fase tardia, e contemporânea. Em especial, em situações democráticas, nas quais as eleições competitivas aparecem como momentos e procedimentos socialmente privilegiados de distribuição de poder .1

Um dos problemas que podem advir deste processo de distribuição de poder, deixado funcionar isoladamente, parece ser a concentração de poder que ele gera, fazendo com que a política (quase) se restrinja e mesmo se identifique com os políticos profissionalizados. Esta distorção aproxima-se daquilo que Pierre Bourdieu perspicazmente intitulou de "monopólio dos profissionais" em uma análise do campo político .2

Sem menosprezar as possibilidades sociais de distorção e esquecer o caráter também problemático da idéia de representação e dos procedimentos eleitorais, constatados na atualidade 3 , pode-se afirmar as eleições como momento singular da política, em diversos sentidos.

As eleições - ao possibilitar e solicitar, através do acionamento do poder singular do cidadão, o envolvimento e decisão de todos, ainda que isto ocorra em termos episódicos e em modalidades muitas vezes problemáticas – obrigam a uma ampliação da política e permitem uma oxigenação do campo político. Neste momento, ao menos, todos podem fazer política, de modo solicitado socialmente. Mais que isto, se requer de todos um julgamento – aceita as premissas do funcionamento eleitoral – do campo político e, em especial, dos profissionais da política. Tal julgamento viabiliza em segmento uma nova delegação de poderes.

Esta exigência de ampliação da participação na política, sem o que o processo eleitoral pode se tornar ilegítimo, e a publicizada disputa de poder levam normalmente a um certa aceleração do ritmo da política, característico das eleições. Tal temporalidade acelerada da política – também existente em circunstâncias de conflitos e rupturas sociais pronunciados e excepcionais – tem uma relação direta com a situação de disputa e mudança de poder. Não por acaso, o aceleração do ritmo das eleições, por exemplo, mantém uma estrita correspondência com o grau de competitividade das forças em concorrência.

A mobilização das forças sociais e da cidadania, em geral, dependem deste grau de competitividade eleitoral, mas também decorrem deste caráter de tempo determinado e especificado para disputa de poder e da percepção social de um instante, no qual a interferência dos cidadãos se apresenta como mais viável. Neste momento parece mais possível fazer valer a cidadania, ainda que, muitas vezes, tal percepção não se alicerce em uma dinâmica consciente.

Outra característica deste momento peculiar : a visibilidade social da política. Como as eleições, em situação democrática, acontecem periodicamente, este momento torna-se esperado socialmente, agendado antes de tudo por mecanismos do próprio campo político. Mais que isto, publicizado, porque pretende a participação de um contigente significativo da população, e percebido com interesse, pois se acredita em alguma possibilidade de intervir. Periodicidade, publicização e interesse garantem, deste modo, um agendamento manifesto e uma visibilidade especial para a política na sociedade.

Não parece inexplicável, nem casual que o momento eleitoral seja muitas vezes traduzido como festa e/ou solenidade, como cerimônia que, tendo um grau de excepcionalidade, requer ser vivida de maneira diferente da vida ordinária. Este caráter festivo ou solene apenas tornam manifesto a singularidade das eleições do momento da política.

A realização de eleições implica no acionamento de inúmeros componentes da política formatados na modernidade, tais como candidaturas, programas e partidos, em sua origem remota apenas um instrumento momentâneo existente para as eleições 4. Além disto, a eleição exige atos de campanha: comícios, inicialmente em ambientes fechados e depois abertos; passeatas; caravanas e embate corpo à corpo. André Jardin, por exemplo, descreve a pré-campanha realizada de porta à porta por Tocqueville com base em um lista de 627 eleitores, para se eleger deputado na circunscrição de Valognes, através do voto censitário, em 1839 5. A campanha, além disto, exige materiais políticos específicos: documentos, panfletos, cartazes, símbolos e jingles. Em sua versão moderna, ela acontece em espaços fechados ou, com a universalização do número de eleitores, abertos. As ruas e praças tornam-se os espaços (geográficos) por excelência da disputa eleitoral, auxiliados de modo incipiente pela nascente imprensa, com sua limitada repercussão, pelo menos, até meados do século XIX.

Independente do peso da imprensa, as eleições já na época moderna podem ser caracterizadas como um "foro comunicativo", no dizer de Alejandro Muñoz Alonso 6, pois, como momento singular da política, elas exigem de todos os seus atores – desde os conservadores aos revolucionários – um admirável investimento em comunicação, em suas estratégias, dispositivos e instrumentos. Afinal, trata-se de comunicar idéias e propostas, convencer, emocionar. Enfim de mobilizar mentes e corações em uma disputa, normatizada em ambiente público – dado aliás fundamental –, do poder político na sociedade. Deste modo, toda e qualquer eleição adquire este caráter de disputa comunicacional, mesmo quando inexistem mídias, em perspectiva relevante. Daí o caráter do momento eleitoral como instante sempre privilegiado para o estudo da comunicação e de suas relações com a política.
 
 

Uma nova circunstância comunicacional: a Idade Mídia

Não se trata, neste texto, apenas de afirmar as eleições como obrigatoriamente um fórum comunicacional. Tal formulação, além de possuir grande visibilidade e plausibilidade, já se encontra manifesta, como foi observado acima, na bibliografia existente acerca das interfaces entre comunicação e processo eleitoral. Cabe ir adiante e buscar entender quais as mutações que ocorrem neste imbricamento em face a uma nova circunstância comunicacional, como a que se vive hoje. Ou seja, quais as conexões presentes na atualidade entre eleições e comunicação, em uma situação de predomínio da sua modalidade midiática.

Necessário, antes de tudo, abandonar uma concepção unilateral da comunicação, que supõe, sem mais, a comunicação como mero instrumento submetido a uma lógica externa, no caso em pauta: política. Isto certamente vale, por exemplo, para o "jornalismo" político-opinativo dos "pasquins", tão relevantes para a Revolução Francesa, pois a lógica determinante desta comunicação provém, sem dúvida, do campo da política e não de alguma dinâmica imanente à imprensa. Indispensável se faz abandonar esta visão unilateral e, em boa dose, superada da comunicação. Desde algum tempo, a comunicação – além do caráter instrumental, em certa medida ainda possível de ser realizado por algumas de suas instâncias – se conforma em um campo social específico, adquirindo uma lógica inerente de funcionamento. A não assimilação desta mutação induz a uma percepção visivelmente equivocada e ultrapassada da comunicação.

Mais que um campo social específico em meio a uma conjunto de outros campos, com os quais mantém uma relação, a uma só tempo, de complementariedade e concorrência entre lógicas próprias, a comunicação, ao desenvolver sua modalidade midiática, se transformou em componente fundamental e estruturante daquilo que se denomina contemporaneidade. Alguns dos traços vitais da sociabilidade – modo de ser e estar no mundo – dita contemporânea fazem vislumbrar este caráter estruturador da comunicação na atualidade.

A contemporaneidade pode ser formulada como uma complexa e tensa convergência de espaços geográficos e virtuais, convivências e televivências, local e global. Os espaços geográficos – tão caros à modernidade, conformada inclusive na expansão dos territórios conhecidos – e virtuais – estes surpreendentes espaços descolados de territórios, que permitem a navegação e a descoberta de novos mundos (quase) desmaterializados – se conectam cotidianamente, propiciando a formatação de um espaço trançado, uma singularidade do contemporâneo. A vivência atual igualmente se singulariza como entrelaçamento cotidiano de convivências – que exigem interação presencial – e de televivências, modalidade de vivências à distância, possibilitados pela (inter)mediação sócio-tecnológica, quando o ausente torna-se "presente". A convergência entre o local e o global, por sua vez, singulariza a sociabilidade contemporânea como glocalidade, como conjunção (problemática) de traços globais e locais.

Fácil intuir como a comunicação perpassa e torna viável todas as convergências e esta singular sociabilidade, característica do mundo contemporâneo. Afirma-se aí seu caráter estruturante, sua condição de essencialidade , sua imprescindibilidade na atualidade para formatar este novo mundo. Não por acaso, persistentemente a contemporaneidade tem sido nomeada, descrita e explicada por referências ao ambiente comunicacional: "Aldeia Global" (Mc Luhan), "Era da Informação" (Manuel Castells), "Sociedade Informática" (Adan Schaff), "Sociedade da Informação" (David Lyon), "Sociedade da Informação ou da Comunicação" (Ismar de Oliveira Soares), "Sociedade Media-Centric" (Venício Lima) e "Planeta Mídia" (Dênis de Moraes).

Esta verdadeira e problemática Idade Mídia pode ser detectada através de múltiplas dimensões forjadoras e marcantes da atualidade: a gigantesca expansão quantitativa da comunicação; a proliferação e desenvolvimento de novas modalidades e sócio-tecnologias de comunicação; a consolidação da comunicação como modo expressivo de experenciar a realidade-mundo; a transformação cultural propiciada pela comunicação com a constituição do circuito cultural dominante hoje: as indústrias da cultura; a instituição de uma dimensão de publicização hegemônica na sociedade e, enfim, como já indicado, a comunicação como estruturante e ambiente da contemporaneidade.

Esta nova circunstância, ao reorganizar a sociabilidade, configura um novo ambiente, no qual agora acontecem as eleições. Natural imaginar que nelas devem acontecer transmutações, muitas já historicamente produzidas, muitas ainda em andamento e muitos por serem inauguradas. Tais alterações, certamente profundas, buscam sintonizá-las com esta nova circunstância societária, com as complexas convergências que se manifestam; com os múltiplos espaços que se abrem, metaforicamente nomeados aqui de rua e tela; com a diversidade de possibilidades de vivências que afloram; com as tensões e impasses surgidas com a glocalidade; enfim com os singulares e problemáticos contornos adquiridos pela sociedade contemporânea.

A nova circunstância das comunicações impede, por conseguinte, qualquer tratamento unilateral, seja ele meramente instrumental, seja ele redutor. A comunicação agora não pode, sem mais, ser identificada com sua possibilidade instrumental e com sua dimensão de mensagem. Na contemporaneidade, a comunicação já não é somente isto.
 
 

Eleições e (Idade) Mídia

Indispensável colocar a reflexão acerca das relações entre eleições e comunicação nesta nova constelação analítica, que tem como horizonte a idéia de que se vive hoje uma atualidade, na qual a sociabilidade toma a formatação de Idade Mídia. Expressões como "campanhas modernizadas" 7 devem ganhar sentido mais profundo apenas se referidas a esta nova circunstância societária e comunicacional.

A questão de quais as novas configurações das eleições na Idade Mídia se instala no cerne desta reflexão. Ainda que as respostas a crucial questão não estejam plenamente formuladas, posto que este processo encontra-se em desenvolvimento, pode-se propor algumas possibilidades e hipóteses, acompanhando formulações de autores que, diversas vezes, percebem tais mutações, mesmo que de maneira fragmentária, porque não conseguem inserir essas novas configurações na constelação sócio-comunicacional que lhes dá um sentido mais profundo e rigoroso.

Alejandro Alonso, por exemplo, estudando campanhas eleitorais e mídia, chega a uma importante constatação: "Puede decirse que si durante el siglo pasado y el primer tercio del XX los mítines eran la esencia de cualquier campaña electoral, ahora ese papel central lo desempeñan los medios y, especialmente, la televisión"8. O autor chega inclusive a escrever que, dentre os recursos de uma campanha eleitoral na atualidade, as mídias, transformadas em grande foro, apresentam-se como o mais importante. Independente de um concordância plena com estas formulações, o que o autor nos diz pode ser retomado, em uma constelação analítica mais apropriada, como indicadores significativos de passagem a esta nova circunstância societária e comunicacional, na qual os espaços virtuais e as televivências, engendradas pelas mídias, ocupam lugares sociais cada vez mais relevantes, inclusive na política e nas eleições.

A tela – objeto-síntese destes espaços virtuais conectados em redes – emerge como novo e privilegiado espaço de disputa a ser ocupado pela política. Ela, antes habitante habitual dos espaços geográficos, se vê desafiada a operar de maneira crescente em registro virtual. Cabe relembrar que a virtualidade e a televivência, na perspectiva aqui anunciada, devem ser considerados como tendo estatuto de realidade, como dimensões indissociáveis da sociabilidade contemporânea, não comportando, em nenhuma hipótese, sua depreciação, por assimilação à irrealidade, a uma realidade de segundo grau ou a qualquer outra modalidade hierarquicamente inferiorizada de realidade, sem mais. Em resumo, o desafio colocado à política pode ser formulado como necessidade de novas configurações, que, adequadas, invadam estes novos e privilegiados espaços sociais.

No próprio segmento eleitoral surgem historicamente novos formatos na tela para o exercício da política. Os horários e debates eleitorais, assumindo formas variadas; o noticiário e outras faixas da programação perpassadas incorporam-se aos espaços que a política está desafiada a trabalhar e a conformar como seus.

Tais espaços virtuais, em decorrência de sua singularidade e novidade, têm suas exigências e requisitos, os quais a política deve se obrigar a compreender para poder se locomover nestes espaços de maneira simultaneamente adequada às "gramáticas" da tela e adaptada à sua lógica imanente. A diferença entre lógicas, provenientes de campos sociais distintos, pode se manifestar neste instante em todo esplendor como complementariedade ou tensão. A mídia, ao exigir respeito às suas "gramáticas", indispensáveis a uma tradução e transito necessários ao seu espaço, pode subrepticiamente exportar sua lógica específica, repleta de interesses próprios, buscando impor seu poder ao campo político. Este, na contramão, ao assimilar a "gramática" da mídia, qualificando sua ocupação do virtual e preservando sua lógica imanente, pode instrumentalizar o campo das mídias, buscando submetê-lo a seu poder de decisão.

A profissionalização das campanhas eleitorais responde a esta nova circunstância e aos requisitos da tela, ainda que suas "gramáticas" não estejam confeccionadas em plenitude, como se observa, de forma escancarada, com relação à internet 9 . A profissionalização da campanha decorre das exigências do novo espaço a ser ocupado, da especificidade de suas "gramáticas", mas também de novos componentes, que surgem e somente adquirem sentido nas sociedades ambientadas pela mídia, tais como as sondagens de opinião, em suas mais variadas modalidades. Estes novos componentes, que se somam aos recursos tradicionais da política, forjada na modernidade, também exigem profissionais especializados.

Fernando Azevedo, em texto acerca da modernização das campanhas eleitorais no Brasil, propôs quatro indicadores deste processo: a profissionalização da campanha, o uso das sondagens de opinião, a utilização da mídia, em especial da televisiva e a personalização da campanha eleitoral 10. Excluindo este último tópico, todos os outros realçam novas formatações de realização da política, mais especificamente em seu momento eleitoral em uma situação em que a tela, tomada enquanto metáfora do espaço virtual, e as novas circunstâncias societárias e comunicacionais já estão instaladas de modo substantivo.

Mas as novas configurações e formatos da política não se restringem à tela. A rua – compreendida como síntese dos espaços geográficos tão característicos da política na modernidade – e a convivência encontram-se na atualidade assaltadas e irremediavelmente contaminadas pela política midiatizada, transportada pela tela. Marshall Mc Luhan, a este respeito, pontificou: "Há surgido una nueva forma de vida política en la que la sala de estar se convierte en colegio electoral"11 .

Nesta perspectiva, os espaços geográficos compartilhados publicamente e até aqueles privadas – como na citação acima – sofrem o impacto de sua fricção com os espaços virtuais. A tela conecta e incorpora a rua, resignificando-a, ao apanhá-la em sua rede, como acontecimento para ausentes, como (tele)realidade 12. Mesmo os atos de rua não capturados se resignificam, pois a onipresença do teia midiática, ao envolver tudo e todos, induz a que os atos adquiram e busquem produzir sentido não apenas para seu entorno físico-social, mas também para um (sempre possível e muitas vezes desejado) compartilhamento à distância, espacial e temporal. Comícios, passeatas, carreatas, outros atos político-eleitorais e até mesmo o simples corpo-à-corpo cada vez mais pretendem e absorvem um "efeito de mídia" 13. Tal "efeito", quando construído de modo intencional e não inconsciente, aciona diferenciados dispositivos de produção: espetacularização, critérios de noticiabilidade, contradições e contrastes inscritos na realidade, além de outros procedimentos possíveis.

A probabilíssima reconfiguração dos atos retidos na metáfora rua e dos atos convivenciais nas eleições contemporâneas pode obedecer a pretensões muito diferentes. Pode significar um amesquinhamento ou dinamização destes atos ou dos atos de produção de sentido, inscritos na tela. Pode ainda pretender um ruptura ou uma sintonia fina entre tela e rua. Um análise de campanhas eleitorais parece indicar que uma estratégia de imbricamento forte entre tela e rua, pode dinamizá-las mutuamente e em sequência potencializar e politizar com mais vigor a campanha eleitoral.

Os estudos da interação entre eleições e mídia, perpassado por todas estas convergências e tensões características da contemporaneidade, pelas dimensões de tela e rua e seu entrelaçamento, têm uma ampliada possibilidade de angulações e de objetos específicos. Um tentativa de definir um campo de possibilidades, certamente incompleto, deve elencar os estudos voltados: 1. aos discursos político-eleitorais, 2. aos cenários político-eleitorais – aqui incluídas as agendas/tematizações, os atores/imagens, as atmosferas/climas sociais, etc – , 3. às formatações político-eleitorais acionadas e 4. às dinâmicas de conflito e integração existentes em os campos da política e das mídias.
 
 

Eleições e (Idade) Mídia no Brasil

A mutação eleitoral, derivada da presença da mídia e mais precisamente de uma nova sociabilidade ambientada por ela, aconteceu nas décadas de 50 e 60, principalmente nos Estados Unidos, pois na Europa o processo encontrou maiores dificuldades, tais como: as repercussões da II Guerra Mundial, a tradição partidária/ideológica mais consolidada, a rarefeita expansão da televisão e seu controle quase sempre estatal, dentre outros. A situação americana, ao contrário, potencializa esta mutação. Alguns dados falam por si só: a televisão começa a ser usada em 1948; em 1952, ela tem seu primeiro grande ano; em 1956, 99,6% dos lares assistem as convenções partidárias; em 1960, 20 milhões vêm a publicidade paga, enquanto 115 milhões assistem os debates, sendo que 55% da população adulta acompanhou todos os debates e 80% viu, pelo menos, um deles 14.

Se estas novas configurações políticas e especialmente eleitorais emergiram nos anos 50 e 60 nos EUA e posteriormente na Europa 15 , o mesmo não acontece no Brasil, pois a ditadura militar, imposta em 1964, interditou tal processo, através da repressão e censura políticas. Cabe, entretanto, lembrar que a ditadura não teve apenas esta postura de negação, sempre lembrada dada a sua brutalidade. Ela também de modo intencional tomou iniciativas, buscou criar os alicerces sócio-tecnológicos para o desenvolvimento da mídia, em uma lógica de indústria cultural, e começou a conformar uma Idade Mídia no país 16. Tais iniciativas, muitas vezes esquecidas, visavam a integração do país, estando obviamente subordinadas à ideologia da segurança nacional. Elas buscavam fortalecer o controle e a dominação ideológica do país, além de desenvolver uma produção e distribuição de bens culturais, sob a êgide do mercado capitalista. Assim o desenvolvimento de um verdadeiro sistema nacional e integrado de comunicações acontece "... a partir do surgimento das redes – networks – de televisão, e isso já no início da década de 1970, portanto, há menos de trinta anos"17 .

O contraste entre o desenvolvimento de uma sociedade ambientada pela mídia no Brasil, incentivado pela ditadura militar, e a interdição da política transitar em plenitude no país terminam assim por impedir o florescimento do processo de mutações na âmbito das formatações da política e das eleições e inclusive o aparecimento no país de estudos de comunicação e política. "Este impedimento da política livremente se realizar na sociedade e em seus novos espaços (virtuais) de sociabilidade, engendrados pelas mídias, determinou, por conseguinte, que a eclosão significativa desta temática de estudos guardasse um íntima conexão com a redemocratização do país e, em especial, com os embates eleitorais, que, neste novo contexto, se realizam em uma sociedade na qual a comunicação se tornou ambiente constitutivo da sociabilidade" 18. Esta íntima conexão entre retorno a uma situação democrática, por óbvio, também se produz em relação às manifestações dos primeiros experimentos das novas configurações da política e das eleições no Brasil.

A eleição para presidente em 1989 torna-se então emblema destas novas configurações da política. Decerto que na campanha pela Diretas Já em 1984 e nas eleições que se seguem ao fim da ditadura em 1985 experimentos começam a ser engendrados, mas a eleição presidencial de 1989 pode ser tomada, para efeito de demarcação de fronteiras, como marco inicial das novas configurações da política e das eleições no país. Para uma rápida demonstração das diferenças inscritas e manifestas no processo eleitoral, basta compará-la a última eleição livre para presidente acontecida antes da instalação da ditadura militar no país.

O contraste, enfatizada a perspectiva comunicacional, entre o Brasil de 1989 e o de 1960 tem contornos brutais. Parecem ser dois Brasis. No país de 1960, apenas 30% da população vivia nas cidades; existiam poucas estradas nacionais, como a Rio-Bahia, recém inaugurada; a precariedade dos transportes e das telecomunicações dificultavam em muito a interação entre cidades e regiões do país; os jornais, o rádio (um pouco menos) e a televisão funcionavam como veículos eminentemente locais; as transmissões televisivas se restringiam a oito capitais (São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Salvador, Fortaleza e Curitiba), com 18 emissoras e "cerca de 100 mil aparelhos no Rio e São Paulo"19 .

Vinte anos depois, em 1980, a população já se tornara majoritariamente urbana (67%). A população economicamente ativa tinha quase duplicado (93%), enquanto que o setor secundário da economia cresceu 263% e o terciário 167%, tornando o Brasil um país urbano, industrial e de serviços20. No país existiam agora 235 emissoras de televisão, 25 milhões de receptores, cinco redes nacionais e 94% da população estava potencialmente atingida pela televisão 21. Pesquisas realizadas em 1989 e 1990, com amostragem nacional, indicavam que 86% e 89% dos entrevistados, respectivamente, tomavam conhecimento dos acontecimentos políticos através da televisão 22. Além disto, o país encontra-se conectado através de estradas e redes de telecomunicações.

Alguns dados mais podem mostrar a imensa transformação das eleições. Em 1960, votaram cerca de 15 milhões de pessoas, na época 20% dos brasileiros, pois analfabetos, soldados e jovens entre 16 e 18 anos não votavam. Em 1989, cerca de 82 milhões foram às urnas, algo em torno de 60% da população, quase dois terços deles semi-analfabetos ou analfabetos 23.

Nestas circunstâncias tão distintas, as campanhas também sofreram mutações e aconteceram em formatos muito diferenciados. Em 1960, ela se pautou pelos espaços geográficos, apesar das dificuldades: comícios, caravanas, contato direto marcaram a campanha de Jânio e Lott, além de notícias e inserções nas precárias mídias de então, dado que não havia horário eleitoral gratuito, apenas pago. Já em 1989, o horário eleitoral gratuito tornou-se a vedete e o eixo da campanha, associado às pesquisas, ao marketing e aos debates eleitorais. Os comícios, as passeatas, as caravanas, as carreatas e o contato direto também aconteceram, mas agora em outra conjunção de formatos e sentidos. A interação entre a tela e a rua marcou a intensidade deste retorno da escolha direta de presidente da República. A eleição acontecendo isolada certamente potencializou o poder acionado da mídia e ainda mais reduziu a intervenção do campo político. Apesar disto, a politização da eleição foi bastante significativa 24.
 
 

A política e a mídia nas recentes eleições presidenciais

Conforme o assinalado anteriormente, a política e os processos eleitorais podem ser estudados em diferentes angulações e pelo acionamento de uma multiplicidade de procedimentos metodológicos. Refletir sobre as iniciativas e atitudes, complementares ou conflituosas, ensejadas pelos campos da política e das mídias nos momentos eleitorais, sem dúvida, aparece como uma das possibilidades analíticas mais interessantes para iluminar as contemporâneas relações existentes entre estes dois campos sociais 25.

A preocupação de compreender os imbricamentos, as sintonias e os confrontos, entre estes campos tem relevância evidente si se quer esclarecimentos acerca das novas configurações da política e das eleições, mais especificamente, em uma contemporaneidade ambientada pelas mídias. A literatura existente sobre as atuais relações entre comunicação e política, nesta perspectiva maior de interação entre campos sociais, mesmo que muitas vezes não refira explicitamente esta noção, navega em horizontes largos e contrastantes. Alguns autores sugerem uma situação de dominância da política, na qual se amesquinha a comunicação, pelo silenciamento ou através de sua concepção como puramente instrumental, não se atribuindo a ela nenhuma capacidade de impactar de maneira significativa o campo político 26. No extremo oposto, fala-se de uma submissão persistente da política à mídia e até do fim da política em uma sociedade transbordante de mídia, algo tão ao gosto dos comunicólogos, em especial os orientados por um olhar pós-moderno.

Em meio a estas posições unilaterais, inúmeras outras possibilidades e resultados deste entrelaçamento podem ser vislumbradas. Stefan Reiser, atento a uma questão com certa similitude com esta, ainda que instalada em fronteiras mais circunscritas, propõe a noção de interdependência ao estudar as interferências da política e da mídia na determinação de agendas e temas em instantes eleitorais, descartando explicitamente o mero predomínio da política ou da mídia 27. Tal postura coincide com a proposição de premissas e procedimentos já inscrita em textos anteriormente publicados, nos quais se sugere que - ao invés de encarar a dominância permanente da política ou da mídia nesta relação como algo já dado de antemão, predefinido (para) sempre – se busque, através de procedimentos rigorosos e sistemáticos, investigar como esta predominância, em contínua disputa, se alterna dinamicamente, e se locomove em um campo de forças sociais, que, ao reunir política e mídia, as insere em uma circunstância histórico-social mais abrangente e lhes dá sentido e poderes para esta tensa conexão, porque sempre simultaneamente conflituosa e complementar 28.

Aceita esta tensão permanente, manifesta ou latente e a cotidiana disputa pela hegemonia na relação entre os campos, em decorrência da possibilidade sempre presente de alternâncias na predominância, torna-se viável elaborar uma interpretação das recentes eleições presidenciais brasileiras dentro de uma ótica analítica atenta ao comportamento e às atitudes dos campos da política e das mídias, ao cotejamento da interdependência e do confronto destas iniciativas nos diversos momentos eleitorais em estudo.

A primeira análise das iniciativas diz respeito à conjuntura da eleição de 1989. Neste momento, o campo político ou mais especificamente os políticos, apesar do recente efervescência da Constituinte e seu desfecho com a elaboração da Constituição "Cidadã" de 1988, encontram-se desgastados pelas promessas não cumpridas da "Nova República" e pelo reiterado fracasso e uso politiqueiro de planos de combate à inflação e de estabilização (da moeda), a exemplo do que acontece com o Plano Cruzado, aquele que mais galvanizou as esperanças dos brasileiros no instante imediatamente posterior ao final da ditadura militar. O descontentamento com o governo Sarney, com a explosão inflacionária, com a sobrevivência das velhas lideranças políticas gestadas pela ditadura, dentre outros motivos, solapavam o campo político.

O panorama eleitoral irá expressar com fidelidade a ausência de alternativas hegemônicas e a fragmentação do campo político, enfim o momento de transição possível vivido pala sociedade brasileira. A irrupção eleitoral de Collor e de Lula indica, antes de tudo, o signo de mudanças prevalecente na época, o fastio com os políticos profissionais "tradicionais" e uma ansiedade por novidades políticas, ainda que em perspectivas muito distintas. Enquanto a novidade de Lula implica, em radicalidade, na superação da ditadura e na busca de um justiça social no país, a outra, representada por Collor, ao se alimentar do ressentimento dos "descamisados" contra a injustiça, inaugura, em nível nacional, uma possibilidade política de privilegiamento do mercado como princípio regulador e motor da sociedade, em detrimento do estatal e do público, em moldes neo-liberais marcantes e inovadores para a política brasileira, além de introduzir, como tentativa, uma política configurada pela existência de um padrão midiático no país. Não por acaso, Collor acionou e esbanjou marketing, sondagens de opinião, produção de imagem pública, etc. Hoje parece consenso que tais inovações de Collor - se fracassaram posteriormente em virtude de uma personalidade atabalhoada e de equívocos de seu transito na política - persistiram no ambiente nacional, seja contaminando o ideário e o comportamento (neo-liberal) de outros políticos, seja alterando e atualizando as configurações e formatos da política, em sintonia com a ambientação midiática da sociedade. A "Rede Povo" de Lula, contraponto político-ideológico-eleitoral das concepções colloridas, em perspectiva diversa, também qualificou e atualizou a formatação da política em novas configurações.

Por fim para esta rápida panorâmica do campo político, cabe assinalar que, apesar da importância indiscutível das decisões a serem tomadas naquele instante, a especificidade de um eleição "solteira", apenas para presidente, promoveu um acionamento algo limitado do campo político, porque não mobilizado em plenitude para uma disputa mais ampliada, envolvendo simultaneamente outras instâncias de poder, e certamente também porque deprimido pelo manifesto desgaste dos políticos naquela conjuntura eleitoral.

Em contraste com esta parcial retração do campo político, a intervenção do campo das mídias manifestou-se em intensidade nos idos de 1989. A mídia, através de seu noticiário e de outros tipos de programas de forte apelo de audiência, como as telenovelas, agendou temas, que se tornaram centrais na eleição, como aqueles referidos à desqualificação dos políticos, do Estado e dos servidores públicos, emblematicamente simbolizadas na tematização dos "marajás", avassaladora na época. Na trilha aos "marajás" vem seu caçador , tornando escandalosamente manifesta a produção midiática de imagens públicas e políticas, com formidável incidência na eleições. A hipótese de que este cenário midiático-eleitoral em algum sentido funcionou como uma antecipação do olhar neo-liberal na sociedade e política brasileiras não parece improvável.

A potencialização do campo das mídias manifesta-se evidente: a eleição "solteira"; a expectativa de uma experimento inédito de eleição presidencial em uma sociedade ambientada pela mídia; a legislação eleitoral que permite sem restrições a utilização das "gramáticas" midiáticas, desenvolvidas na país em um patamar técnico altamente qualificado; a competente elaboração estratégico-plástica das campanhas, em especial, a de Lula e de Collor e, por fim, as interferências explícitas, e inclusive comprometedoras, de parte da mídia em episódios como o seqüestro de Abílio Diniz e a edição veiculada do último debate entre Collor e Lula. Todo este conjunto de iniciativas demonstram a significativa atuação, a interferência ativa e o caráter determinante do campo das mídias naquele evento eleitoral. Ainda assim, realçado o enorme papel da mídia, não dá para aceitar afirmativas que, unilateralmente, a destacam do campo de forças forjado socialmente na interação entre mídia e política e atribuam a ela todo poder decisório nas eleições e sobre a política em 1989 29.

As conclusões primeiras para esta interação entre os dois campos incluem em seu elenco o impacto da novidade do acionamento eleitoral da mídia, sua potente intervenção e as debilidades (conjunturais) do campo político. A política realizada em espaços virtuais se expressa pela primeira vez no Brasil de maneira tão contundente, assim como os interesses e o poder de interferência política de algumas das mídias, hegemônicas em seu campo. O capital político detido pela mídia e sua não submissão incondicional ao campo político ficam em 1989 nitidamente manifestos.

A circunstância das eleições de 1994 mostra modificações, mas preserva ainda, na mudança, o caráter de transição vivido no país, mesmo que já apresentando traços evidentes da possibilidade de se realizar, mais uma vez, uma transição pelo alto, no estilo "modernização conservadora", tão persistente enquanto cruel tradição em nossa história social. O campo político, ferido e renovado pelo mobilizador "impeachment" de Collor, pelo quase letárgico plebiscito e pela inoperante, mas esclarecedora, "reforma constitucional", assiste entretanto uma redefinição e uma recomposição relevante de suas forças, inaugurando composições políticas há pouco improváveis.

Esta recomposição, principalmente aquela que acontece sob a égide neo-liberal, apesar da aparente derrota desta proposta junto com o monumental e inédito impedimento de um presidente, viabiliza, pelo menos, duas intervenções fundamentais do campo político nas eleições de 1994: a draconiana legislação eleitoral que objetiva controlar as "gramáticas" midiáticas, impedindo em muitos casos seu acionamento, e aquela que produz o que se demonstrou ser o grande diferencial na competição eleitoral de 1994: o Plano Real, esboçado de maneira explícita com um calendário marcadamente eleitoral. A eleição "casada"; a legislação eleitoral; as novas composições políticas, com destaque para a aliança entre PSDB e PFL, e o Plano Real, em especial, alteram profundamente o cenário de indefinições e de possibilidades variadas que se havia aberto no pós-"impeachment", quando estoques neo-liberais e de cunho social se entremeavam aleatoriamente na conjuntura, temas como a fome transitavam e repercutiam na sociedade e na mídia e Lula emergia como possível vencedor das eleições. Tais variáveis forjam, juntamente com outras, a vitória de FHC.

A mídia atuou em todos os episódios políticos pré-94, destacando-se com uma participação ativa no impedimento de Collor. Ela igualmente expressou, de alguma maneira, o cenário ambivalente em muitos sentidos do governo Itamar. Mas esta dinâmica, que contemplava o diverso, ainda que desigualmente, entrou em colapso como a aceitação e apoio incondicionais ao Plano Real, que passou a caracterizar toda a programação dos espaços virtuais: eventos esportivos, como a Copa do Mundo; material noticioso; novelas; shows musicais; etc, sem contar com a milionária campanha publicitária, que, exuberante, preencheu a mídia.

As conclusões segundas sugerem a tentativa das frações dominantes no campo político, agora mais rearticuladas, de domesticar a mídia em sua intervenção política, seja através de seu controle legislativo externo draconiano, seja pela sua assimilação por um projeto social e ideológico compartilhado, expresso no fim da inflação, na estabilidade, enfim no Plano Real. Aliás, este plano acaba demonstrando a capacidade de intervenção da política sobre a mídia e, em especial, a possibilidade de um reversão e construção políticas de cenários eleitorais, em prazos bastante exíguos.
 
 

Último experimento realizado: as eleições de 1998

Depois das duas experiências eleitorais em uma sociabilidade de tecedura midiática, acontece no ano passado um terceiro experimento que, mantendo traços dos anteriores, traz a novidade de se realizar em um momento terminal da transição. Isto é, em uma circunstância na qual as ambiguidades e possibilidades de uma transição se afunilam em torno de um projeto dominante cada vez mais hegemônico: a inserção do país em uma globalização, sob a égide neo-liberal.

O refinamento e construção desta alternativa dominante deriva da capacidade de aglutinação da aliança PSDB-PFL em torno de FHC, forjando um poderoso bloco político-ideológico e também fisiológico, que passa a comandar como um trator a política na sociedade brasileira, inclusive "ganhando" o dispositivo da possibilidade de reeleição presidencial. Tal intervenção política reconfigura todo o cenário eleitoral e determina suas perspectivas, incluindo a plausível continuidade do governo FHC.

O expediente da reeleição propicia a singular - e inédita no país - situação de se conviver como um partícipe legitimado do processo que ocupa dois papéis simultânea e ambiguamente em uma preocupante duplicidade de candidato e governante. Esta dupla exposição certamente introduz uma desigualdade, competitiva e de acionamento de recursos, não desprezível no processo eleitoral. Tal desigualdade torna-se ainda mais gritante, quando uma legislação eleitoral – no Brasil sempre casuística, porque não permanente e deliberada em antecedência a cada eleição – reduz o tempo do horário eleitoral gratuito de televisão e rádio e reduz ainda mais a campanha nestes espaços ao "distribuir" – em verdade, diminuir – os dias da semana dedicados à campanha presidencial. Tem-se assim uma exposição rádio-televisiva sumamente diminuta e sem ritmo para a disputa presidencial. Ainda outra importante intervenção do campo político que marcou o processo de 1998: a redução deliberada de candidaturas há apenas duas efetivas, estando uma delas em localização somente minimamente viável.

A intervenção do campo das mídias se fez, antes de tudo, em total sintonia com as forças dominantes do campo político. A adesão da mídia foi assim indiscutível. A tradição oficialista e governista da mídia no país outra vez se realizou. Mais que isto, ficou patente uma afinidade ideológica entre setores dominantes na política e boa parcela da mídia em torno do Plano Real e das proposições neo-liberais para o Brasil. Esta afinidade eletiva não derivava, entretanto, exclusivamente de uma convicção ou afiliação ideológica, mas de uma crônica dependência do Estado (endividamento, financiamento de negócios, etc) e de interesses na privatização de estatais, especialmente do ramo das telecomunicações, coincidentemente (?) realizada em ano eleitoral. Por fim, outra gritante intervenção da mídia: o quase silenciamento acerca de um episódio tão transcendente para o país e estados como as eleições. Em algumas redes o assunto praticamente não existiu, tendo emissoras se omitido deliberadamente de acompanhar sequer a agenda das candidaturas. Prova de bom jornalismo ?

As terceiras conclusões que podem ser tiradas da interação entre política e mídia parecem apontar para uma "Santa Aliança" de seus setores dominantes, expressão e resultado de uma transição realizada, outra vez, por cima. Uma "Santa Aliança" que, ao invés de disputar uma eleição, buscou ao máximo impor uma lógica de eleição já realizada e portanto sem motivações para ser publicizada. Ao invés de informações, profundo silêncio sobre a eleição e as (graves) questões nacionais. Esta parece ter sido a estratégia hegemônica: silêncio e continuidade como discurso único e única alternativa para o país.

Ao transitar pelos últimos experimentos eleitorais presidenciais ficaram manifestos possíveis e circunstanciais entrelaçamentos entre o campo da política e o campo das mídias e a nova situação vivenciada pelo Brasil. A conformação de um bloco dominante, que perpassa e articula estes dois campos também foi evidenciada, ressaltando-se a conclusão do processo de transição vivido pelo país. A absorção do impacto inicial do poder da mídia e sua assimilação como instante da nova política configurada também parece nítida, inclusive pela modelagem acontecida na campanha eleitoral. Por fim, a preocupante tentativa de liquidação da política realizada publicamente, em ruas ou telas, explode como uma marca de uma atualidade, tentada insossa e sem alternativas, senão a realização do dominante. Mas a vida é bela e muitas vezes cheia de surpresas.
 
 

Notas:

1. Ver, dentre outros: NOHLEN, Dieter. Elecciones y sistemas electorales. Caracas, Nueva Sociedad, 1995, 165 p.
2. BOURDIEU, Pierre. "A representação política. Elementos para uma teoria do campo da política". In: ___. O poder simbólico. Lisboa/Rio de Janeiro, Difel/Bertrand Brasil, s.d., 163-207.
3. Ver, por exemplo, TOURAINE, Alain. O que é democracia ? Petropólis, Vozes, 1996, especialmente nas páginas 76-92.
4. Os partidos na sua atual concepção de organização política com vida permanente, somente nasce com os partidos socialistas. Ver CERRONI, Umberto. Teoria do partido político. São Paulo, Ciências Humanas, 1982, 74 p.
5. JARDIN, André. Alexis de Tocqueville. Paris, Hachette, 1984.
6. ALONSO, Alejandro Muñoz. "Campañas electorales y medios de comunicación". In: ___. Política y nueva comunicación. El impacto de los medios en la vida política. Madrid, Fundesco, 1989, p.129-150.
7. A noção de "campanhas modernizadas" está esboçada em MANCINI, Paolo e SWANSON, David. "Politics, media and modern democracy: introduction". In: SWANSON, David (org.) Politics, media and modern democracy: an international study of innovations in electoral campaigning and their consequences. Wesport/London, Praeger, 1996, p.1-26.
8. ALONSO, Alejandro. Ob. Cit. p.136.
9. Dentre as preocupações centrais da pesquisa em andamento - "Novas configurações da política na Idade Mídia" - encontra-se a investigação de como a política tem se realizado nas novas mídias, entre elas, a internet.. Nesta perspectiva, análises empíricas da convergência política e internet têm sido desenvolvidas, estudando-se os sites partidários brasileiros, em momentos políticos não-eleitorais e eleitorais, quando se pesquisam também os sites de candidaturas. A investigação destas novas mídias aparece com fundamental, pois nelas ainda não se formatou e convencionou um "padrão gramatical" próprio, adequado ao suporte sócio-tecnológico já existente, mas também em dinâmica mutação.
10. AZEVEDO, Fernando. "Espaço público, mídia e modernização das campanhas eleitorais no Brasil". Texto apresentado na VII Encontro Anual da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação - COMPÓS. São Paulo/PUC, 01 a 05 de junho de 1998, 10p.
11. MC LUHAN, Marshall apud ALONSO, Alejandro. Ob. Cit. p.129.
12. Ver SODRÉ, Muniz. A máquina do narciso. Rio de Janeiro, Achiamé, 1984, p.32-41.
13. Ver RUBIM, Antonio Albino Canelas. Mídia e política no Brasil. João Pessoa, Editora UFPb, 1999.
14. Ver KRAUS, Sidney e DAVIS, Dennis. Comunicación masiva: sus efectos en el comportamiento político. México, Trillas, 1991, p.51-101.
15. Para uma reflexão sobre este impacto de um ponto de vista europeu, ver: SCHWARTZENBERG, Roger-Gérard. O estado espetáculo. Rio de Janeiro, Difel, 1978.
16. Ver: RUBIM, Antonio Albino Canelas. "Democracia, cultura e comunicação no Brasil". In: Intercom. Revista Brasileira de Comunicação. São Paulo, (53):51-58, julho a dezembro de 1985.
17. LIMA, Venício. "Os mídia e a política". In RUA, Maria das Graças e CARVALHO, Maria Isabel V. de (orgs.) O estudo da política. Brasília, Paralelo 15 Editores, 1998, p.210.
18. RUBIM, Antonio Albino Canelas e AZEVEDO, Fernando Antonio. "Mídia e política no Brasil: textos e agenda de pesquisa". In: Lua Nova. São Paulo, (43): 189-216, sendo a citação da página 189. Neste artigo encontra-se vasta bibliografia sobre o tema da mídia e política no país.
19. FEDERICO, Maria Elvira B. História da comunicação - rádio e tv no Brasil. Petropólis, Vozes, 1982, p. 85.
20. Dados retirados de: GUIMARÃES, César e VIEIRA, Roberto Amaral A. "Meios de comunicação de massa e eleições (um experimento brasileiro)". In: Comunicação & Política. Rio de Janeiro, 2(9):147-158, 1988.
21. RUBIM, Antonio Albino Canelas. Mídia e política no Brasil....p.16.
22. MÓISES, José Álvaro. "Democratização e cultura política de massa no Brasil". In: Lua Nova. São Paulo, (26):24, 1992.
23. RUBIM, Antonio Albino Canelas. Mídia e política no Brasil...p. 16.
24. Sobre a comparação entre as eleições de 1960 e 1989, ver RUBIM, Antonio Albino Canelas. "Mídia, dimensão pública e eleições presidenciais". In: ____. Mídia e política no Brasil...p.15-36 e LIMA, Venício. Ob. Cit. p.210-214, especialmente.
25. A noção de campo social, originalmente formulada por Pierre Bourdieu, foi aplicada à comunicação por, dentre outros, Adriano Duarte Rodrigues. Ver: RODRIGUES, Adriano Duarte. O campo dos media. Lisboa, Veja, s.d. 189 p. e RODRIGUES, Adriano Duarte. Estratégias da comunicação. Lisboa, Presença, 1990, 223 p. O texto trabalha com uma formulação livremente diferenciada deste conceito.
26. Tal atitude parece ser ainda a predominante entre os cientistas políticos brasileiros. Ver: LIMA, Venício. Ob. Cit.
27. REISER, Stefan. "Política y medios masivos de comunicación en la campaña electoral". In: THESING, Josef e HOFMEISTER, Wilhelm (orgs.) Medios de comunicación, democracia y poder. Buenos Aires, Centro Interdisciplinario de Estudos sobre o Desarollo Latinoamericano/Fundação Konrad Adenauer, 1995, p.165-187.
28. Ver, por exemplo: RUBIM, Antonio Albino Canelas. "Comunicação, política e sociabilidade contemporâneas". In: ___ (org.) Idade Mídia. Salvador, Edufba, 1995, p.107-146.
29. A análise dos momentos eleitorais de 1989, 1994 e 1998 tem como ponto de partida a bibliografia, já razoável, existente sobre estes episódios eleitorais, especialmente a que trabalha em um viés das interações então existentes entre comunicação e política. Como se optou por não citar sempre esta bibliografia, sua referencia pode ser encontrada principalmente em RUBIM, Antonio Albino Canelas e AZEVEDO, Fernando Ob. Cit. e secundariamente em RUBIM, Antonio Albino Canelas. Mídia e política no Brasil.