TRADIÇÃO E MODERNIDADE

Adriano Duarte Rodrigues, Universidade Nova de Lisboa


Considerar a oposição entre tradição e modernidade é já uma herança moderna, uma vez que é em relação ao processo de ruptura inaugurado pela modernidade que os ideais em relação aos quais ela se demarca são definidos como tradicionais, tal como é em relação aos ideais da tradição que os projectos de ruptura em relação a esses ideais são definidos como modernos.

O facto de a modernidade se definir a si própria como um ideal de ruptura é sintomático da natureza ambivalente da sua lógica, uma vez que só podemos conceber um ideal de ruptura, na medida em que permanece o modelo em relação ao qual pretendemos romper. Se os ideais tradicionais deixassem de existir, se fossem completamente substituídos pelos da modernidade, deixaria também de ter sentido a afirmação da modernidade, na medida em que esta se define como ruptura para com eles.

Por outro lado, falar de herança moderna equivale, ao mesmo tempo, a reconhecer o destino tradicional da modernidade, a reconhecer, por conseguinte, a impossibilidade da sua consumação. É por isso que a modernidade tem como destino a sua própria neutralização, ao cabo de um processo em que os modelos modernos da experiência não podem deixar de se tornar, por sua vez, também tradicionais. É este destino tradicional da modernidade que se consumou historicamente com a falência das sucessivas vanguardas. À medida que os modelos vanguardistas se iam impondo, iam também sendo aceites como normas do gosto, em relação às quais se impunha, por sua vez, um novo movimento de ruptura. É em função deste processo que as obras modernas adquirem uma natureza efémera, tendem a definir-se como modas, sendo a realização dos projectos modernos atravessado por uma lógica dissuasora: uma vez realizados, todos os projectos modernos sofrem inevitavelmente os efeitos do desencantamento e da consumação do gesto que os gerou. As sociedades arcaicas pressentiam e contornavam muitas vezes esta lógica paradoxal da realização dos seus projectos, ao evitarem a serialização dos objectos artesanais. Nalgumas sociedades, o hábito de desenhar na areia era uma maneira de evitar que perdurasse a obra desenhada, para além do instante da sua criação.

Pelo menos, as razões lógicas que acabámos de enunciar - a necessidade de constante e inalienável referência à tradição e o destino tradicional da realização dos modelos modernos - fazem com que a modernidade seja um ideal ambivalente e constitua um projecto habitado em permanência por uma crise endémica, marcada por uma necessidade intrínseca de permanente ultrapassagem dos seus valores, das suas normas e dos seus modelos. É por isso que a tradição e a modernidade são duas faces de uma mesma moeda, estabelecendo entre si uma relação especular: moderno é tudo o que se demarca em relação àquilo que permanece como tradicional, tal como tradicional é tudo o que se demarca em relação àquilo que se apresenta como moderno.

Mas há ainda uma outra razão para a natureza ambivalente do projecto da modernidade, a das suas modalidades de legitimação. A ruptura a que a modernidade pretende proceder tanto pode ser feita em nome de uma plenitude ancestral perdida que se pretende restaurar, a cuja pureza originária se pretende voltar, como pode ser feita em nome de uma plenitude por vir. O retorno do arcaico é por isso muitas vezes uma manifestação de modernidade. Estes dois sentidos antitéticos dilaceraram, desde sempre, os projectos da modernidade, tendo dado origem a duas modalidades antagónicas, às modalidades romântica e progressista, sucedâneos seculares das vertentes profética e de messiânica da modalidade religiosa de legitimação.

Na sua versão faustiana, os promotores dos ideais modernos ocidentais tentaram iludir sistematicamente os diferentes aspectos desta ambivalência lógica dos projectos de ruptura, encarando-os como uma etapa histórica destinada a substituir os ideais tradicionais, uma vez atingido o estatuto de maioridade que a tradição impediria de alcançar. Contrapunham assim às coacções impostas pelos ideais da tradição o processo moderno de emancipação do sujeito. O homem moderno acederia assim, finalmente, ao estatuto de sujeito do seu próprio destino, no termo de um trabalho incessante de esclarecimento, atingindo deste modo o livre domínio, tanto sobre o mundo natural, como sobre o mundo social e sobre o seu mundo interior, domínio que a tradição impediria de alcançar, devido a toda a espécie de peias em que ela armadilharia a acção humana e por toda a espécie de concepções infantilizantes com que ela ofuscaria a visão racional e adulta do mundo.

É esta concepção histórica e faustiana do iluminismo, característica da modernidade ocidental, que é hoje posta sistematicamente em questão e relativizada, a partir de uma concepção crítica mais serena.

Para este questionamento da concepção histórica da modernidade ocidental contribuiram as chamadas filosofias da suspeita que mostraram a coalização dos projectos emancipatórios com a vontade de poder, com as novas modalidades de dominação burguesa sobre o mundo vivido. Como sabemos estas críticas da modernidade tiveram em Nietzsche um dos mais importantes inspiradores e foram retomadas depois, já no nosso século, por Horkheimer e Adorno 1 . Mas foi a autonomização das diferentes dimensões da experiência, com a constituição dos domínios cognitivo, técnico, ético e estético, enquanto esferas autónomas de elaboração, imposição, gestão e sancionamento de valores próprios, assim como a natureza dos processos de legitimação dos discursos e das acções que passaram a vigorar em cada um destes domínios que, a meu ver, levaram à consumação dos ideais da modernidade. O aprofundamento da autonomização das diferentes esferas da experiência acabou por levar a uma redefinição dos ideais modernos, fzendo com que eles deixassem de ser encarados como uma etapa histórica do processo de emancipação do sujeito, para passarem a ser vistos como projectos de modernização de cada uma dessas esferas. Deste modo, tal como diz Habermas 2, aquilo que era um meio converteu-se num fim em si mesmo, acabando por se ir perdendo até a memória dos objectivos emancipadores que estiveram na origem dos ideais da modernidade. De facto, ao longo dos últimos três séculos, os próprios ideais de emancipação foram sendo cada vez mais esquecidos, acabando por se substituir a postura moderna da experiência por modelos de modernização para os quais, como dizia Martin Heidegger 3, se arregimentou não só o mundo natural mas também o mundo vivido. Esta viragem está associada à denúncia das perturbações letais que os processos de modernização acabaram por provocar sobre o meio ambiente, assim como de insidiosas coacções sobre os processos de emancipação do sujeito. O stress e as condições muitas vezes infra-humanas da vida nas grandes metrópoles, o esgotamento dos recursos naturais, os atentados contra o meio ambiente, as novas formas de imposição de escolhas alheias à livre decisão dos cidadãos, o fim de um espaço público, onde os processos de livre discussão deveriam legitimar as escolhas políticas, e a sua substituição por processos mediáticos instrumentais de sedução 4 são alguns dos inúmeros exemplos de um novo tipo de coacções que pesam sobre a experiência do homem moderno e que contradizem os ideais de emancipação em nome dos quais estas novas formas de coacção acabaram por se impor à generalidade dos homens de hoje.

Considerar a modernidade como uma dimensão da experiência, e já não como uma etapa histórica destinada a substituir a tradição, faz com que contrapor hoje as sociedades tradicionais às sociedades modernas se tenha convertido numa postura simplista e redutora. Na sequência da revisão crítica do processo de modernização, ambas as modalidades da experiência, tanto a tradicional como a moderna, deixaram de ser vistas como etapas epocais para passarem a ser encaradas como modalidades distintas da experiência que coexistem num mesmo espaço e numa mesma época.

Mas para compreendermos adequadamente esta viragem actual na maneira de encarar as relações entre as duas modalidades da experiência, vejamos primeiro as suas características fundamentais.
 
 

1. As modalidades tradicionais da experiência

O termo tradição vem do latim traditio, do verbo trans-dare, dar completamente, de um lado ao outro. É o prefixo trans, que aparece igualmente em transparecer, transmitir, tramitar, transferir, transvasar, que lhe confere o sentido de totalidade. Traditio tinha para os latinos um duplo sentido que viria a especificar-se nas línguas latinas modernas com a invenção de dois termos distintos: tradição e traição. Traditio é assim, em latim, a doação, a entrega, a transmissão completa, de um lado ao outro, tanto do saber do mestre aos seus discípulos como de uma pessoa ou de um sentimento. Para compreendermos a assimilação originária dos dois sentidos de traição e de tradição, recordemos que ainda hoje costumamos dizer que alguém trai os seus sentimentos, através do seu comportamnto, quando, sem querer ou involuntariamente, os dá a ver ou os revela, tanto mais completamente quanto mais os pretende guardar secretos.

A tradição é uma modalidade totalizante da experiência. Caracteriza-se, antes de mais, pela assimilação das diferentes dimensões ontológicas da realidade. Para as modalidades tradicionais da experiência, aquilo que é verdadeiro é simultaneamente belo e bom. Esta assimilação impede a distinção entre a realidade e a sua representação. Não há autonomia do discurso nem da imagem em relação às coisas que representam. Daí as proibições e os tabús que incidem sobre a designação e o fabrico de imagens de realidades interditas, como é o caso da divindade, do totem, de pessoas ou de objectos sagrados.

É a modalidade tradicional da experiência que preside às visões do mundo que, ainda hoje, continuam a dar sentido e conferem legitimidade aos discursos e às acções espontâneas da vida quotidiana e do senso comum, que dão sentido à experiência do homem inserido na sua comunidade de pertença. A censura que continua ainda hoje a atingir os discursos julgados inconvenientes dos pontos de vista social, político e sexual manifesta a permanência da visão tradicional da experiência, segundo a qual se confunde a realidade designada com a sua representação discursiva e imagética.

Pelo facto de, para a modalidade tradicional da experiência, o sentido ser total, una e indivisível, os domínios cognitivo, técnico, ético e estético não são autónomos, mas formam um todo indissociável, sem solução de continuidade, relacionando-se entre si através de processos analógicos, em função da observação das semelhanças e das diferenças que apresentam as aparências das coisas.

Da observação destas analogias se constitui uma sabedoria que abarca a totalidade da experiência do mundo e se transmite através das gerações. É aos mais velhos que compete transmitir esta sabedoria, através de processos qu asseguram a continuidade de uma cadeia ininterrupta e contínua de transmissão. É a inserção nesta cadeia de transmissão e a partilha dessa sabedoria transmitida através das gerações que mantém a identidade e a coesão tanto individual como colectiva, no seio da comunidade de pertença.

Este processo de transmissão é feito em momentos privilegiados, mas alimenta-se no decurso da própria vida quotidiana, através de posturas, de uma hexis, ao longo de toda a vida. É por isso que, mais do que a transmissão explícita de conhecimentos ou de saberes formais, discursivamente formulados, a tradição é uma sabedoria que se transmite implicitamente, através da observação e da imitação de posturas, de atitudes, das regras.

É, por conseguinte, a inserção na cadeia de transmissão que confere legitimidade e sanciona positivamente o direito e até o dever de falar e de agir. É esta cadeia que define o lugar das narrativas míticas na transmissão predominantemente oral da sabedoria tradicional. Como diz François Lyotard, é o facto de ter sido destinatário da palavra que confere o direito e o dever de a transmitir, que torna destinador dessa mesma palavra. Mas é também por ter sido destinatário da palavra que alguém é reconhecido socialmente, adquire um nome e ocupa um determinado lugar que lhe confere uma determinada identidade 5.

É na aprendizagem da língua materna que encontramos o modelo por excelência da transmissão e da universalidade desta aprendizagem da tradição. É por isso que compreender a maneira como se transmite a língua materna permite entender a natureza inultrapassável da modalidade tradicional da experiência. Da língua materna recebemos os modelos estruturantes da identidade individual e colectiva assim como asseguramos a coesão da cultura a que pertencemos. Esta função assegura-a a língua através da inculcação de esquemas ou de modelos nos quais nos habituamos a distinguir e a associar os objectos do nosso mundo próprio e do mundo dos outros.

É particularmente sugestiva a maneira como as regras da língua materna se impõem aos falantes e como se constitui a competência linguística dos falantes. O cumprimento das regras da língua é independente do seu conhecimento formal explícito. Tal como acerca do tempo que, segundo Santo Agostinho, sabemos o que ele é se não nos perguntarem e já não sabemos se nos perguntarem o que é, assim também as regras da língua materna: sabemos aplicá-las adequadamente, mas esta competência não depende da nossa capacidade de explicitação 6. A nossa competência das regras da língua materna consiste num saber pré-discursivo, interiorizado ao longo do processo de socialização. Ao contrário do que se passa com a aquisição do domínio das regras noutros domínios da experiência, em que a competência consiste no conhecimento explícito e formal das regras e o seu domínio precede o seu desempenho, no domínio da linguagem é o desempenho que precede a explicitação formal das suas regras e é independente dessa competência 7. Daí também a autonomia e a criatividade com que os falantes aplicam as regras da linguagem.
 

2. As modalidades modernas da experiência

Modernus é um termo de invenção relativamente recente; só aparece, como adjectivo, no século VI e só nos meados do século XIX começa a aparecer sob a forma substantivada que hoje utilizamos. Neste termo, encontramos o radical indo-europeu mod- ou med- que aparece, por exemplo, no grego, em medomai e, no latim, em medicina, medicamentum, modicus. A dar crédito a Emile Benveniste, o termo servia originariamente para indicar a paragem ou o estancamento de um curso desregrado, da hubris, tanto dos fluxos do corpo que põem em risco a saúde do corpo, como do fluxo dos comportamentos, no domínio jurídico, ou do fluxo dos acontecimentos, no domínio histórico 8. É pois um retorno à justa medida, à contenção de um processo desregrado que, a não ser contido, seguiria um caminho perigosamente incontrolável.

Encontramos este ideal da modernidade em todas as épocas e em todas as culturas, sendo fácil encontrar manifestações explícitas deste ideal, em todas as sociedades, pelo menos desde a revolução neolítica. Chegaram até nós os ecos do confronto entre a mentalidade tradicional e a mentalidade moderna nos relatos bíblicos da luta fratricida entre Caim e Abel, da construção da Torre de Babel, do Dilúvio, assim como na Teogonia atribuída a Hesíodo ou na Odisseia de Ulisses. Mas é o aparecimento do pensamento racional na antiga Grécia, a partir do século VIII a.C., que, de maneira explícita e irreversível, marca a viragem moderna ocidental, com o surgimento de um ideal de indagação da verdade independente das visões míticas herdadas da tradição. Quando Aristóteles formula a célebre máxima "in medio stat virtus", devemos entender o termo "medium" no sentido etimológico de "modernus".

As diferentes dimensões ontológicas da realidade autonomizam-se, dando origem a uma visão secularizada e desencantada do mundo. Autonomiza-se igualmente a representação tanto discursiva como imagética em relação à realidade representada. De um todo, uno e indiviso, o mundo objectiva-se, no sentido etimológico do tempo, enquanto entidade fenoménica que está perante nós, ao conhecimento do qual acedemos enquanto sujeitos, fazendo uso metodicamente conduzido da razão. É esta autonomização dos processos de representação que está na origem do pensamento racional e do desenvolvimento do conhecimento científico autónomo em relação não só à sabedoria ancestral de natureza mítica, mas também ao saber técnico instruental e às normas estéticas da sua representação.

Mas, como observa Hannah Arendt, é o cristianismo, e em particular o dogma da incarnação, que funda a concepção ocidental de modernidade. Ao imanentizar o sentido da história, definindo-o como um processo linear, de natureza cumulativa, como uma linha que se desenrola ou se desdobra ao longo da temporalidade humana, o cristianismo contribuiu de maneira decisiva para cortar as amarras com o mito que aferrolhavam a razão humana e travavam a inspecção autónoma tanto dos fenómenos do mundo natural como dos fenómenos do mundo social e do mundo intrasubjectivo.
 

3. As relações entre a tradição e a modernidade

O facto de, como vimos, as modalidades tradicional e moderna da experiência se reflectirem mutuamente, de coexistirem no seio de uma mesma sociedade e numa mesma época, põe o problema das relações que estabelecem entre si.

Pelo facto de a modernidade se definir como ruptura, A tradição representa a única fonte possível de sentido. Mas não é o sentido explicitamente recordado que alimenta o sentido dos ideais modernos; é o sentido da arché, que foi esquecido, obliterado pela ruptura moderna. O arcaico não cessa por isso de retornar no moderno, através de um processo que podemos designar como processo de reminiscência ou de anamnese. Encontramos a manifestação deste processo nos modelos da moda, nos quais vemos emergir regularmente o antigo como modelo do novo, instaurando-se assim uma espécie de ciclo constituído pelo retorno pendular de formas esquecidas e que tinham sido anteriormente recusadas.
 



 

1 Cfr. nomeadamente Max Horkheimer e Theodor W. Adorno, La Dialectique de la Raison, Tel, ed. Gallimard, 1974

2 Jürgen Habermas, Le Discours Philosophique de la Modernité, Paris, ed. Gallimard, 1988, p. 1 e ss.

3 Martin Heidegger, La Question de la Technique, in Essais et Conférences, Paris, Gallimard,

4 Cfr. Jürgen Habermas, L'Espace Public. Archéologie de la Publicité comme Dimension Constitutive de la Société Bourgeoise, Paris, ed. Payot, 1978.

5 Cfr. Jena-François Lyotard, La Condition Post-moderne, Paris, ed. de Minuit.

6 Cfr. Santo Agostinho, Confissões, cap. XIV.

7 Cfr. John R. Searle, Les Actes de Langage, Paris, ed. Hermann, 1972 (or.: Speech Acts, Cambridge Univ. Press, 1969).

8 Cfr. Emile Benveniste, Vocabulaire des Institutions Indo-européennes, Paris, ed.de Minuit.