AS NOVAS TECNOLOGIAS DA INFORMAÇÃO E A EXPERIÊNCIA

Adriano Duarte Rodrigues, Universidade Nova de Lisboa


1. As vantagens e as oportunidades das novas tecnologias da informação

A liberalização do acesso aos produtos culturais, o aumento da transparência dos poderes instituídos e o incremento da liberdade de expressão são as principais vantagens que costumam ser atribuídas às novas tecnologias da informação, às NTI. Pelo facto de porem à disposição de um grande número de utilizadores, a preços cada vez mais acessíveis, e de fazerem circular em profusão uma grande diversidade de produtos culturais, as NTI são vistas por muitos como um remédio para um dos males crónicos das sociedades humanas, o da disparidade de acesso aos bens culturais, aos meios de expressão e de exercício do poder.

Devido à sua natureza interactiva, as NTI põem finalmente à disposição de um número cada vez maior de cidadãos, independentemente do lugar em que vivem, a possibilidade, não só de reagir às mensagens e aos produtos culturais disponíveis nas redes, mas também de exprimir livremente as suas opiniões e de partilhar os seus saberes, contribuindo assim para uma participação, quase em tempo real, na criação cultural e para o exercício dos direitos e dos deveres da cidadania. Embora se trate ainda de experiências tímidas, os clubes literários cibernéticos de criação poética, ensaística e ficcionista assim como os debates por meio da internet sobre as mais controversas questões que dividem actualmente a opinião pública representam de algum modo o prenúncio de novas modalidades, mais espontâneas e mais alargadas, de criação cultural e de vida democrática.

Estariam assim instituídas ou, pelo menos, em vias de instituição as condições para a ultrapassagem dos impasses da massificação homogenizadora do pós-guerra e do consequente indiferentismo político, da era dos meios de comunicação de massa, nomeadamente do monopólio da televisão generalista. A recente diversidade e os recursos da interactividade que as NTI proporcionam acompanharia agora, sobretudo a partir dos meados dos anos oitenta, o processo de fragmentação e de segmentação dos públicos, respeitando assim os interessses e os desejos dos utilizadores, assim como os valores da participação política directa.

A abertura da televisão à iniciativa privada, a satelização, a digitalização, a cablagem, a instalação de redes de banda larga parecem de facto ter criado novas oportunidades para a instauração de uma sociedade mais transparente. Além de assegurarem a satisfação de funções de lazer e de divertimento, proporcionam a criação de condições para uma maior democracia política, para o acesso à cultura e à ciência de um maior número de cidadãos, assim como novas condições, mais eficazes e cómodas, para o exercício das actividades profissionais, económicas e empresariais.
 

2. As atitudes críticas

A contrariar esta visão optimista da evolução tecnológica, alguns autores continuam, no entanto, a olhar com desconfiança estas vantagens. O fundamento das críticas continua a ser o mesmo que, já nos anos quarenta, animava a Escola de Francforte, inspirando nomeadamente Horkheimer, Adorno e Marcuse, que sublinhavam, no seu requisitório, a correspondência entre a indústria cultural e os movimentos fascisantes.

Embora actualmente se apresentem a uma nova luz, tomando em consideração as novas circunstâncias criadas pelos recentes inventos técnicos, as críticas às NTI continuam hoje a sublinhar idêntica correspondência, na medida em que consideram que as vantagens da diversificação e da interactividade não passariam de vantagens ilusórias.

O recente incremento das novas tecnologias da informação não proporcionaria uma efectiva transparência nem uma maior participação e emancipação política, mas corresponderia a uma nova estratégia de dominação, jogando com os procedimentos indolores da sedução, estratégia que contaria doravante com a cumplicidade dos próprios cidadãos. A dominação poderia agora economizar, com vantagem, os dispositivos tradicionais da repressão e da violência para a imposição da conformidade aos modelos dominantes.

As mais recentes redes telemáticas não ofereceriam uma autêntica diversidade de modelos culturais e políticos, mas uma multiplicidade aparente, feita de variações dos mesmos modelos, interiorizados no decurso de um eficaz processo de inculcação ideológica, prosseguido ao longo das últimas décadas.

Para este longo processo de interiorização dos modelos culturais contribuiria aliás a própria lógica dos mais recentes inventos tecnológicos. Em virtude da sua natureza sistémica, os novos inventos apresentar-se-iam agora como dispositivos, como técnicas naturalizadas, organizadas de acordo com a estrutura e o modo de funcionamento dos seres vivos.

O progressivo processo de miniaturização apresentar-se-ia como a manifestação mais evidente desta naturalização da técnica e prestar-se-ia particularmente bem à sua incorporação, tornando assim cada vez mais imperceptíveis a sua estrutura, a sua lógica e o seu modo de funcionamento. Atingido o nível sistémico, o funcionamento dos novos dispositivos técnicos seria cada vez mais autónomo em relação à capacidade de compreensão do utilizador. A experiência técnica tornar-se-ia assim cada vez mais uma experiência alienante, na medida em que seríamos votados a um devir de utilizadores ou de usuários de dispositivos de que só uma minoria compreenderia a estrutura e o funcionamento.

Os críticos sublinham, de entre as consequências desta mutação técnica, a profunda alteração das modalidades de percepção tanto do mundo natural e do mundo das relações sociais como do mundo subjectivo.

De facto, até à generalização do funcionamento das NTI, a percepção do mundo natural fundava-se na adequação ou na correspondência das coisas percepcionadas com a nossa representação, a percepção das relações sociais dependia das instituições sociais que estruturavam as comunidades de pertença e de referência, a percepção de nós próprios era estruturada, de maneira relativamente estável, a partir do lugar que ocupávamos no seio das instituições sociais.
 

3. As novas condições de percepção

As novas tecnologias da informação alterariam radicalmente estes processos de fundamentação da nossa percepção, pelo facto de implicarem a tecnicização generalizada da totalidade da nossa experiência, tanto da nossa experiência do mundo natural como da experiência do mundo social e do mundo da experiência de nós próprios.

Deste modo, a percepção do mundo natural estaria a tornar-se o resultado da própria performatividade técnica, convertendo-se cada vez mais numa realidade virtual. A realidade perderia a sua transcendência, deixaria, por conseguinte, de ser aquilo que nos resiste, para se tornar progressivamente naquilo que é tecnicamente realizável.

As relações sociais deixariam de estar delimitadas dentro das fronteiras das comunidades concretas onde se desenrola a convivência directa e imediata, alimentada pela memória dos tempos fortes vivenciados em comum; passariam a alargar-se progressivamente até aos limites das redes telemáticas, independentemente da natureza simbólica e da espessura da experiência comum. Tornar-se-iam relações assépticas, aleatórias e efémeras, dependentes, já não da experiência vivida em comum, mas da performatividade da conexão às redes telemáticas. As relações sociais já não seriam relações entre pessoas concretas, não só com uma história pessoal, mas com uma individualidade corporal e distintiva, mas conexões de bites, sem história nem espessura corporal, ao sabor da navegação aleatória através das redes telemáticas.

Os próprios limites da experiência da vida individual, da experiência da vida e da morte, estariam em vias de se tornar fluidos e movediços, na medida em que dependeriam cada vez mais da performatividade e das virtualidades das técnicas da vida. Não admira por isso que a identidade individual se esteja a tornar cada vez mais uma questão controversa, como o demonstra o recente e interminável debate acerca da definição das fronteiras que marcam tanto o início como o fim da vida. A nossa própria identidade estaria, por conseguinte, a tornar-se aleatória e fluida, ao sabor das relações efémeras e conjunturais definidas pela nossa conexão às redes telemáticas. Os debates acerca da paternidade e da maternidade, na sequência da generalização do uso das técnicas da reprodução medicalmente assistida, são a prova eloquente das mutações que estão a ocorrer no domínio da percepção da experiência individual e da definição da identidade pessoal.
 

4. O confronto entre as visões eufórica e pessimista das NTI

Para os optimistas, as críticas que acabámos brevemente de descrever relevariam de uma atitude passadista, de ressaibos conservadores, e seriam movidas pela nostalgia de uma sociedade ultrapassada. Denotariam uma incapacidade de adaptação às novas condições tecnológicas. Tratar-se-ia de uma atitude historicamente recorrente de resistência à inovação, atitude que costuma aparecer sempre que novas tecnologias vêm pôr em causa a experiência tradicional, por alterarem visões do mundo e modelos comportamentais profundamente enraizados.

Tal como no passado, também agora estas atitudes estariam destinadas a desaparecer, à medida que os novos dispositivos técnicos fossem sendo naturalizados, à medida que fossem sendo inventados e assimilados, pelos indivíduos e pelas sociedades, visões do mundo e esquemas comportamentais mais adequados às novas condições por eles proporcionadas.

Uma vez que, passado o tempo da surpresa e da novidade, os novos dispositivos técnicos iriam sendo integrados positivamente em novos hábitos e numa nova experiência cultural, a tarefa urgente seria, portanto, para os optimistas, não a crítica, assimilada à resistência nostálgica em nome da manutenção de valores ultrapassados, mas a militância incondicional assimiladora do novo. Importaria por isso implementar, não o questionamento e a crítica, mas projectos de promoção das NTI nas escolas, nas famílias, não só nos meios urbanos, tradicionalmente mais abertos a toda a espécie de inovações, mas sobretudo nas mais longínquas aldeias e lugarejos.

Como os optimistas encaram as NTI como remédio para todos os males da descriminação, as tradicionais políticas de solidariedade entre os países ricos e o terceiro mundo deveriam passar agora pela instalação de redes informáticas nas comunidades mais deprimidas, esperando desse modo o advento de uma nova ordem mundial.
 

5. Para uma ultrapassagem das aporias da técnica e da modernidade

O confronto entre optimistas e críticos é inultrapassável, por ser ditado pela aporia constitutiva da experiência técnica e, por conseguinte, da modernidade. Por isso, mais do que tomar partido por uma ou por outra atitude, aquilo que importa é compreender a natureza das mudanças em curso, evitando tanto as atitudes ingénuas do determinismo tecnológico, dos que confiam na técnica para a solução dos problemas ecnonómicos, culturais e políticos, como as atitudes passadistas de resistência à inovação.

A tecnicização generalizada do mundo vivido tende a converter a dimensão simbólica da experiência numa questão de gestão, como se as relações aos mundos natural, social e subjectivo fossem doravante o resultado da intervenção técnica, devolvendo à sua performatividade as decisões e a responsabilidade das suas consequências. Deste modo, a visão eufórica dos que adoptam a atitude optimista consiste na pretensão de converter a experiência numa dimensão meramente gestionária. Reservar para o domínio da decisão política apenas a constituição e a manutenção das redes não releva apenas de uma atitude determinista ingénua; parte do pressuposto errado de que a sociabilidade poderá alguma vez resultar do funcionamento dos dispostivos técnicos.

Para a integração dos novos dispositivos técnicos não basta por isso uma atitude voluntarista, militante e promocional. Pressupõe a reelaboração e a refundação da identidade individual e colectiva assim como dos valores da sociabilidade a partir de um questionamento acerca dos fundamentos da experiência da vida em comum.

Os inventos técnicos realizam a coexistência de sentidos contraditórios da experiência e apresentam por isso novas possibilidades de realização do imaginário, deslocando incessantemente os investimentos ficcionais. Daí a sua força encantatória. Estar aqui e acolá, ser e não ser ao mesmo tempo. A presença e a ausência, o passado, o presente e o futuro são dados simultaneamente, graças à performatividade virtual das NTI.

A apropriação humana destas capacidades técnicas não é por isso uma mera aprendizagem da manipulação técnica dos dispositivos; pressupõe uma indagação e um questionamento acerca das faculdades imaginárias da experiência, das suas dimensões ontológica, ética e estética.