FIGURAS DAS MÁQUINAS CENSURANTES MODERNAS

Adriano Duarte Rodrigues, Universidade Nova de Lisboa

Artigo publicado na Revista de Comunicação e Linguagens 1, Março de 1985

 

 

«Nous admettons qu'à tout passage d'un système au système suivant plus élevé, donc qu'à tout progrès vers un stade supérieur d'organisation, correspond une nouvelle censure».

Freud, Introduction à la Psychanalyse

 

1. Introdução.

A censura não é processo de coacção da liberdade de expressão exclusivo do Antigo Regime nem dos regimes políticos totalitários. Em todo o caso, não é somente neste sentido que a vimos nos textos aqui reunidos. É a máquina intrínseca de todos os sistemas de poder.

Habitualmente, considera-se a liberdade de expressão como uma componente dos regimes democráticos e a censura como componente exclusiva dos regimes totalitários. Deste modo, uma vez instaurada a democracia política num país, estaria definitivamente e totalmente abolida a censura.

1.1. Omnipresença da censura.

Esta maneira generalizada de pensar não corresponde ao que se passa, por várias razões. Antes de mais, porque não existe sociedade sem censura. A censura é uma das dimensões intrínsecas de qualquer sistema de poder. Aquilo a que vulgarmente se chama o fim da censura não é senão a passagem de um estado de sociedade dominado por uma modalidade específica de censura para outro estado dominado por outra modalidade de censura.

Em todos os regimes políticos permanecem inteiras e indestrutíveis todas as modalidades de censura; apenas varia o predomínio ora de uma ora de outra modalidade.

1.2. Diversidade das modalidades da censura.

Podemos definir algumas destas modalidades. Há por exemplo a modalidade da censura guerreira, a modalidade despótica, a modalidade democrática. Na modalidade guerreira predominam os mecanismos estratégicos da defesa e do ataque em relação a um inimigo e da ordem interna destinada a preservar a coesão do tecido social. Tudo o que intentar contra esta ordem e contra esta estratégia é impensável ou condenado à morte. Na modalidade despótica, a ordem ditada pelo déspota é a proibição dos discursos que escapam ao seu controlo.

De facto, o poder pretende sempre fazer-nos crer que abole a censura imposta pelo regime inimigo. E que a censura é ao mesmo tempo a sua face odiosa e o perigo mortal que o espreita, que o persegue continuamente como um fantasma. O poder sabe que tem de censurar mas sabe também que no dia em que a censura se tornar insuportável ou simplesmente forem desvendados os seus processos os seus dias estão contados. O poder vive hoje do discurso mítico da liberdade de expressão plena, da pretensa transparência impossível dos seus processos.

1.3. Natureza mítica da liberdade de expressão.

A liberdade de expressão é um mito, antes de mais porque é um discurso legitimador do próprio poder. O poder sabe que só pode censurar impunemente, que só pode disciplinar e controlar efectivamente os discursos e as acções dos súbditos se o fizer em nome da utilidade social, do serviço público, em nome da maioria, em nome de Deus ou do capital ou de qualquer outra invenção mais ou menos generosa. Mas no fundo todas as razões vão sempre dar a esta: à razão soberana do censor que ocupa o lugar do poder, à razão da vontade de poder que todo o cidadão interioriza como a razão censurante. É esta uma das lições do excelente livro de Pierre Legendre de que Chaké Matossian publica a recensão neste número.

Mas a liberdade total de expressão e de acção, a plena transparência da palavra e do agir é também um discurso mítico na medida em que a totalidade ou a plenitude do dizer e do fazer equivaleria à própria negação da linguagem, à morte da palavra, ao silêncio total. Por que é que nós falamos, no fundo? Falamos precisamente porque nunca conseguimos dizer tudo, porque o tudo é o impossível, o impensável, porque o mundo não é transparente nem as palavras coincidem com as coisas. Falamos porque estamos condenados à permanente descoberta do que nos é desconhecido e que vamos descobrindo à medida que o enunciamos, que o dizemos. É que há um abismo intransponível entre as palavras e as coisas, entre o ser e o dizer. Neste abismo, nesta diferença e neste diferimento, nesta terra de ninguém que se estende diante de nós, é que precisamente se instala o poder, o outro da linguagem, com a espada censurante suspensa sobre as nossas cabeças, ao mesmo tempo proibindo e obrigando a dizer. É que censurante é tanto a proibição de dizer como a obrigação de dizer.

1.4. Processos e mecanismos censurantes.

Compreendemos relativamente bem a censura que corta a palavra, a censura do lápis azul dos funcionários de serviço da PIDE. Mas como compreender a censura moderna que obriga a dizer?

A censura do lápis azul é o processo inerente à legitimidade dos regimes despóticos e da tirania. É cortada a palavra que escapa aos ditames do tirano, qualquer que seja o nome que ele se atribui. É a censura do dizer, do enunciado, que se abate sobre o direito à vida cívica ou mesmo biológica do enunciador censurado.

A censura dominante nos regimes democráticos é aparentemente mais subtil. É a censura que obriga a dizer, a confessar os sentimentos, é a censura que obriga a suportar a tagarelice interminável que encontramos hoje em todos os meios de propaganda do poder e se derrama capilarmente pelo tecido social, nomeadamente através dos meios de comunicação de massa. Esta censura tem sobretudo horror ao silêncio.

Para o Estado Novo, era a palavra que era de facto perigosa; para o Estado democrático é o silêncio que é inquietante, perturbador, na medida em que representa o risco de deixar proliferar margens incontroladas pelas massas, pelas maiorias.