PARA UMA GENEALOGIA DO DISCURSO DA GLOBALIZAÇÃO DA EXPERIÊNCIA


Adriano Duarte Rodrigues, Universidade Nova de Lisboa


Setembro de 2000

1- Introdução

A modernidade é, de certo modo, um projecto de libertação progressiva em relação aos diferentes tipos de coacções e de constrangimentos que limitam a experiência humana tradicional e, sendo a experiência determinada pelos quadros do espaço e do tempo, é em relação a estes quadros que o homem moderno pretende, antes de mais, libertar-se. Não admira por isso que a modernidade prossiga a ultrapassagem, por um lado, das fronteiras que definem o horizonte da experiência e a contêm dentro dos quadros físicos e culturais concretos da comunidade de pertença e, por outro lado, da temporalidade, de que a morte é o limiar definitivo fixado pela lei natural inexorável.

É à prossecução deste duplo projecto libertador que responde a aceleração exponencial que, ao longo destes últimos três séculos, caracterizou o processo de invenção técnica. Deste ponto de vista, as actuais redes telemáticas não são mais do que um aprofundamento deste objectivo e deste ideal.

Apesar da sua origem eufórica, este projecto iluminista acabaria por revelar uma face particularmente inquietante, tanto por razões históricas, devido a efeitos perversos da sua realização, como por razões fundamentais, devido às antinomias lógicas do próprio projecto da modernidade. Nietzsche foi talvez um dos mais eloquentes representantes da filosofia da suspeita, segundo a qual as pretensões libertadoras modernas não passariam de uma manifestação da vontade de poder e de uma eficaz estratégia de servidão1. Max Weber, por seu lado, considerava a racionalidade moderna como um processo de desencantamento e de consequente perda de referências axiológicas2.

1.1- Das antinomias lógicas da modernidade globalizadora

Uma das antinomias do projecto da modernidade pode ser formulado com o célebre slogan de Maio 68: «é proibido proibir», slogan que traduz a dificuldade com que se encontra qualquer projecto emancipador, em nome do qual se podem legitimar todas as servidões.

Uma outra antinomia tem a ver com a própria definição da modernidade enquanto ruptura emancipadora para com a tradição. A modernidade torna-se assim o próprio fundamento legitimador da tradição, uma vez que só se poderá sustentar enquanto a tradição se mantiver e na medida em que ela se mantiver.

É por isso que, ao instituir-se como ideal legitimador do discurso e da acção, a modernidade não pode deixar de se tornar por sua vez também tradicional. Foi esta antinomia que esteve na origem, ao longo de toda a sua realização histórica, tanto da aceleração dos processos vanguardistas como da sua crise letal.

Estas antinomias lógicas do projecto moderno tornam efectivamente a globalização uma experiência impossível. Só pode ser globalizado aquilo que é fragmentado. A partir do momento em que, por hipótese absurda, desaparecessem os particularismos e as diferenciações, também desapareceria qualquer hipótese de globalização, não havendo de facto mais nada para globalizar.

1.2- Das realizações históricas perversas da modernidade globalizadora

Mas foi sobretudo nas primeiras décadas do século XX que as realizações históricas do projecto da modernidade tornaram particularmente clara a consciência dos seus efeitos perversos. Depois da descoberta, desde a segunda metada do século XIX, de que o preço a pagar pelo desenvolvimento técnico era demasiado elevado para as massas desenraizadas do proletariado industrial, seguiram-se, desde as primeiras décadas do século XX, duas experiências particularmente traumatizantes: o holocausto e a hecatombe nuclear. Pela primeira vez na história, tornava-se evidente que um dos efeitos possíveis da performatividade técnica é a destruição planetária. A partir dos campos de extermínio e da hecatombe de Hiroshima e Nagasaki, nunca mais seria possível dissociar a globalização do espectro da destruição total.

Um dos alvos da capacidade de extermínio alcançado pela tecnologia é a própria experiência. As fronteiras que delimitam as diferentes modalidades de experiência do mundo e formam um mosaico de culturas são os primeiros alvos da modernidade, considerados anacrónicos e freios dos projectos racionais de autonomia e libertação.

Deste modo, a consumação do objectivo globalizante do desenvolvimento técnico abate as fronteiras susceptíveis de impedir a progressão da dominação e da barbárie. A esperança da sobrevivência e da emancipação acabaria por ser seriamente abalada e passaria a depender dos mecanismos do terror, da ameaça permanente da destruição do próprio agressor. Como sabemos, foi precisamente esta lógica dissuasora que determinou a estratégia da guerra fria.

1.3- Da impossibilidade da globalização da experiência

É com esta ameaça que estamos ainda hoje imaginariamente confrontados e para a qual não é previsível qualquer resposta, tanto de natureza lógica como de natureza institucional. É certo que se fazem ouvir os apelos a um novo contrato social que se imponha, não aos cidadãos que partilham uma mesma cultura, mas aos homens irmanados pela partilha do mesmo planeta. Mas, como já muito bem lembrou Kant, no final do século XVIII, a totalidade não pode ser experienciada, é uma simples ideia que ultrapassa qualquer capacidade de experiência. Mesmo que fosse logicamente pensável, um contrato social de âmbito planetário, apesar de urgente perante a globalização do potencial destruidor alcançado pela tecnologia, só poderia vir a ser concluído tarde demais, depois de a isso sermos coagidos, na sequência precisamente do desastre “global”. Não só porque a globalidade é uma experiência impossível, é uma ideia pura, uma realidade discursiva que ultrapassa qualquer capacidade humana de experiência, mas também porque não é razoável esperar que a humanidade inteira respeite um imperativo categórico sem primeiro saborear o fel dos revezes que a irresponsabilidade e a negligência da própria acção provoca3.

2- As etapas da globalização

É particularmente importante considerar a génese da globalização numa época marcada pela amnésia, pelo esquecimento das origens, provocada pelo deslumbramento perante as actuais capacidades performativas da técnica. Antes de tentar definir a natureza da globalização, começarei, por conseguinte, por colocar a questão genealógica: como emerge, que processos produzem a globalização, um tipo experiência que, como acabámos de ver, é impossível de experienciar?

É através da invenção de dispositivos artificiais que a modernidade procura abater as fronteiras espaciais e ultrapassar as limitações temporais da experiência humana. Podemos por isso associar as diferentes etapas deste processo à invenção dos instrumentos e dos utensílios, das máquinas e dos dispositivos telemáticos. Cada um destes tipos de tecnicidade é uma cristalização dos dispositivos naturais, da faculdade humana de percepção e de perspectivação da experiência do mundo, autonomizando-a assim artificialmente em relação aos quadros espaciais e temporais da percepção natural. Cada uma das etapas técnicas prossegue maneiras diferentes de ultrapassagem das fronteiras que coagem a experiência natural, prolonga, exterioriza e aperfeiçoa a experiência humana do mundo para além das fronteiras do seu enraizamento natural.

A cada uma destas etapas corresponde a constituição de uma civilização particular. “Ir-se das leis da morte libertando”, arrancar-nos às amarras espaciais que prendem e delimitam o destino humano, registar, transmitir e recuperar a experiência acumulada através das gerações, para além da sua existência natural, são processos globalizantes da modernidade, utilizando as promessas, não de projecção e de sobrevivência num outro mundo, mas de realização neste mundo dos recursos da razão instrumental.

2.1- A modernidade globalizadora originária do neolítico e a invenção de utensílios e instrumentos

O neolítico foi a primeira etapa verdadeiramente globalizante da experiência, o primeiro momento da modernidade. Intimamente associado à domesticação do fogo, à invenção da metalurgia, das técnicas agrícolas, da charrua e da roda, o neolítico libertou a experiência em relação aos ciclos sazonais. Com a invenção da escrita alfabética alcançava-se a ultrapassagem das barreiras que confinavam a palavra e a memória dentro das fronteiras das comunidades de vida e das fronteiras temporais da morte natural. Foi esta libertação da memória e da palavra que desempenhou o primeiro e talvez mais decisivo processo de globalização, ao libertar a experiência dos limites imposto pelo ciclo das estações, da vida mortal dos indivíduos e das gerações. Os inventos técnicos, destinados a alargar a intervenção do homem para além do espaço da sua comunidade, e a preservar a memória, para além do tempo da vida biológica das gerações, representou uma primeira tentativa de libertação dos constrangimentos que pesam sobre a experiência humana. Esta etapa está assim intimamente associada à tecnicidade instrumental e utensilhar. As primeiras civilizações prosseguiram de facto já um indiscutível processo de alargamento dos horizontes da experiência, tanto individual como colectiva, e podem por isso ser consideradas como autênticos processos de globalização. A história da humanidade pode ser doravante encarada como uma longa caminhada de maturação e aprofundamento deste processo. Realizações globalizantes encontramo-las desde a Antiguidade com a constituição dos impérios de Alexandre Magno, romano, carolíngeo.

Encontramos o reflexo discursivo da ambivalência do projecto emancipador universalizante originário na narrativa bíblica da Torre de Babel. Trata-se do mais espantoso monumento literário das antinomias da modernidade globalizante, associando-as à emergência da logomáquica confusão das línguas, que guarda hoje toda a sua actualidade na era da telemática.

2.2- A concepção iluminista da modernidade globalizadora e a viragem maquínica

Para a emergência da etapa maquínica da globalização contribuíu de maneira decisiva a invenção do relógio mecânico. A invenção de Giovanni di Dondi, no século XIV, autonomizou tecnicamente o tempo em relação à experiência humana da temporalidade, processo de que o iluminismo do século XVIII viria a formular os princípios fundamentais4. A constituição de saberes disciplinares, fundamentados em procedimentos racionais metodicamente conduzidos, e de saberes técnicos, independentes do seu enraizamento numa comunidade de vida, corresponde à emergência de uma nova modalidade de desterritorialização da experiência, a do maquinismo industrial. Foi a etapa do alargamento das fronteiras do mundo até aos confins do planeta, a dominação do Novo Mundo, com a consequente submissão e destruição de inúmeras culturas autóctones.

3- A globalização da modernidade tardia

Se comecei por recordar rapidamente alguns aspectos fundamentais destes marcos históricos do devir globalizante do passado foi para mostrar que a globalização não é propriamente uma experiência do nosso tempo, mas um processo que se situa na continuidade de uma génese técnica que tem as suas raízes na longa história da modernidade, entendida como ruptura em relação às coacções e aos constrangimentos do espaço e do tempo que delimitam a experiência tradicional5.

O processo de globalização do nosso tempo situa-se, por conseguinte, na continuidade das etapas precedentes da modernidade, apesar de apresentar, como veremos, aspectos indiscutíveis de ruptura em relação à lógica que presidiu à autonomização da experiência das etapas precedentes. Definir a especificidade da globalização do nosso tempo exige, por conseguinte, a compreensão da natureza dos actuais dispositivos telemáticos e a sua distinção em relação à natureza dos inventos técnicos que, no passado, prosseguiram o alargamento dos horizontes da experiência e a sua emancipação em relação aos quadros espaciais e temporais concretos do seu enraizamento.

Pelo facto de consumar a autonomização da experiência técnica, a telemática inverte a relação da experiência humana com o espaço e com o tempo. As técnicas precedentes tornavam possível a deslocação através de espaços cada vez mais distantes, aumentando a capacidade de deslocamento, ao passo que a telemática dissuade a deslocação. Com a telemática, as relações entre espaços distantes torna-se tanto mais fácil, rápida e confortável quanto menos nos deslocarmos e mais nos conectarmos às redes telemáticas.

As técnicas precedentes aceleravam os ritmos da experiência, mas mantinham o diferimento e a duração dos processos, ao passo que a telemática tende para a instantaneidade, para a anulação da duração. É esta natureza instantânea do seu funcionamento que subtrai o seu mundo à experiência humana e torna imperceptível a sua tecnicidade, o facto de se tratar de um mundo simulado artificialmente. É a este modo maquínico de funcionamento e à sua autonomização em relação à experiência humana da temporalidade que Janice Caiafa se refere. Ao denunciar a natureza incontornável da duração na constituição da experiência efectivamente humana, num belo texto recentemente publicado, escreve: «É preciso um lapso de tempo para que a experiência se dê. E é na dimensão da experiência que o desejo se inscreve, assim como a criação poética. (...) Os aontecimentos se esvaziam ao serem consumidos.»6.

É precisamente a natureza imperceptível do seu funcionamento que torna a telemática um dispositivo naturalizado, um análogo quase perfeito dos dispositivos naturais. Só podemos dar conta da modalidade de globalização do nosso tempo se compreendermos este modo de funcionamento naturalizado. Já não se trata de permeabilidade dos territórios concretos, de relações entre culturas particulares, como nos processos de globalização das etapas precedentes da modernidade, mas da formação de territorialidades abstractas, constituídas por afinidas heterogéneas, efémeras e invisíveis, que se fazem e se desfazem no próprio instante em que surgem, ao acaso das conexões permitidas pela permutabilidade das redes telemáticas.

Não é, por conseguinte, propriamente a globalização da experiência humana que está em jogo na sociedade da informação telemática; é a globalização de uma modalidade reticular e abstracta de experiência, autónoma em relação à experiência humana do mundo, experiência reticular que depende do nível de performatividade tendencialmente naturalizada e imperceptível da técnica telemática.

Neste sentido, a telemática não é já um utensílio, um instrumento ou uma máquina. É um dispositivo lógico, disposto à maneira de um sistema ou de uma rede que, pelo menos potencialmente, se estende ao conjunto da realidade que ele próprio produz à medida da sua natureza e do seu modo de funcionamento. A sua constituição tende para a realização quase perfeita da metáfora organicista da técnica; está disposta de acordo com o próprio funcionamento do organismo dos seres vivos. É por isso que o homem, ao manipular os utensílios ou ao utilizar os instrumentos, podia compreender a maneira como estavam estruturados, intervir directamente no seu fabrico e no seu aperfeiçoamento, ao passo que os dispositivos telemáticos escapam à compreensão do seu utilizador.

A organização da máquina era analítica; o seu princípio de funcionamento e a conexão entre os seus elementos podiam ser facilmente analisados, na medida em que a sua estrutura dependia da solução de compatibilidade entre elementos técnicos relativamente autónomos. Podíamos utilizar, por exemplo, um elemento do motor de avião no motor de um automóvel ou numa turbina e o operário podia intervir na reparação de eventuais perturbações no funcionamento das suas partes. As redes telemáticas, por seu lado, são dispositivos lógicos, cibernéticos, e por isso a sua organização e o seu modo de funcionamento são sintéticos. A sua estrutura e o seu funcionameno escapam à compreensão dos seus utilizadores7.

Radicaliza-se assim a autonomia entre a compreensão da sua organização, que exige uma competência técnico-científica especializada, em relação à competência prática do seu manuseamento. Enquanto o funcionamento dos utensílios, dos instrumentos e das máquinas exploram os princípios mecânicos que determinam o funcionamento dos nossos órgãos dos sentidos, a estrutura e o funcionamento das técnicas cibernéticas são de natureza lógica e, por isso, são análogos à estrutura do nosso sistema nervoso central, do nosso cérebro. O seu funcionameno não é já análogo ao funcionamento dos nossos órgãos dos sentidos; é algorítimico, obedecendo aos processos formais algébricos.

Se queremos compreender a natureza do actual ideal moderno de globalização temos, por conseguinte, de começar por compreender a metáfora cognitiva que os dispositivos telemáticos procuram realizar. É este projecto de realização da metáfora cognitiva da experiência que faz com que, por um lado, a experiência humana do mundo tenda a confundir-se com a experiência técnica e, por outro lado, a realidade tenda a confundir-se com os efeitos de realidade produzidos pelos dispositivos telemáticos.

4- Consequências da globalização reticular

As consequências da constituição desta modalidade reticular da globalização, na sequência da viragem cibernética da experiência técnica, repercutem-se a todos os níveis da experiência humana do mundo.

Os valores económicos virtualizam-se e deixam de ter qualquer relação com a economia real, com as leis do mercado que regulam a relação entre a produção e o consumo, passando a depender dos fluxos aleatórios da informação que circula através das redes telemáticas. As conexões rizomáticas possíveis substituem as regras e as normas. O aleatório prevalece ao racionalmente projectado ou, melhor dizendo, à racionalidade da experiência humana do mundo.

Deixa, por conseguinte, de ter sentido o confronto entre projectos capitalistas e projectos socialistas de sociedade, dicotomia herdada da racionalidade maquínica e que a lógica reticular telemática neutraliza, enquanto dicotomia lógica de um mesmo eixo semântico. O jogo aleatório das combinatórias do sistema telemático explora as virtualidades lógicas dos mundos possíveis, incomensuráveis em relação a qualquer projecto racional humanamente concebível. É esta neutralização das dicotomias herdadas do maquinismo industrial que está na origem dos fenómenos generalizados do indiferentismo político que se manifesta nomeadamente no absenteismo e na dificuldade de mobilização em torno de projectos que até há algumas décadas movimentavam as massas.

Deste modo, é o princípio de realidade que se encontra alterado e, neste sentido, é a natureza do mundo que está em jogo na actual concepção da globalização. Não é, por conseguinte, o mundo humano, o mundo da experiência humanamente possível que é hoje globalizado, mas um mundo virtual produzido pelas redes telemáticas, mundo que escapa a qualquer possibilidade de experiência. Não admira por isso que os empresários, os presidentes dos bancos nacionais, os líderes dos organismos internacionais ou dos governos nacionais confessem sinceramente que não compreedem as razões da inflação, da explosão da violência ou dos atentados terroristas. Trata-se, de facto, de uma outra economia, de uma outra política, de uma outra justiça, de uma outra violência. A sua existência situa-se não no quadro da experiência humanamente possível, mas no quadro da experiência tecnicizada e virtual das redes telemáticas, uma realidade diferente daquela que é humanamente compreensível e regulável através de regras humanamente possíveis. Trata-se de uma outra lógica, que decorre da constituição do mundo virtual das redes cibernéticas da informação.

Como só é humanamente possível experienciar8 e perspectivar o mundo a partir da delimitação de horizontes espaciais e temporais sensorialmente percepcionados, não podemos propriamente experienciar este mundo virtual globalizado. Só podemos aperceber-nos dos seus efeitos ou converter-nos em objectos dos seus efeitos. Pelo facto de escaparem ao nosso controlo e de se nos imporem de maneira inelutável, como se de um princípio de realidade se tratasse, o ideal da globalização apresenta-se sob a forma de um discurso tecnicamente determinista, cujos imperativos se impõem a tudo e a todos como se de um destino inevitável se tratasse. Não admira por conseguinte que, a partir de 1994, ano em que Al Gore projectou as high ways da informação como o grande desafio do nosso tempo, os governos do mundo inteiro tenham passado a assumir como óbvia a implementação da sociedade da informação.

A globalização reticular consiste na abertura, não das fronteiras das nações e das culturas, como no tempo do maquinismo industrial, regulado pelas leis dos Estados-nação, mas das fronteiras dos mundos possíveis, abertura virtualmente realizada graças à performatividade simuladora da cibernética. Não é portanto através da deslocação mas pela conexão à rede que esse mundo virtual está à nossa disposição e que nos dispõe de maneira quase natural9. Podemos por isso viajar através do mundo globalizado a um ritmo mais rápido do que o do nosso pensamento, ao ritmo quase instantêneo da conexão às redes telemáticas.

Podemos dizer que o actual processo de globalização é invertido em relação ao das civilizações do passado, quando curiosamente o alargamento das fronteiras do nosso mundo não tinha o nome de globalização, mas de relações interculturais. Aquilo que hoje é globalizado não o mundo da experiência humana, mas um mundo simulado que a telemática realiza.

Apesar de não ser possível propriamente uma globalização experiência, os dispositivos telemáticos têm repercussões sobre a nossa experiência, de que destacarei algumas das que incidem sobre os domínios económico, cultural e político.

4.1- As consequências económicas

Uma das consequências mais evidentes da actual globalização mediática tem a ver com as suas incidências no domínio da economia, em geral, e na esfera do emprego, em particular. O aumenta do desemprego de trabalhadores não especializados ou de trabalhadores especializados em domínios ligados às técnicas tradicionais não é compensado nem em volume nem ao mesmo ritmo pela criação de novos empregos no domínio das novas tecnologias da informação. A formação e a adaptação dos trabalhadores às novas tecnologias são processos demorados que exigem mudanças de atitudes e de mentalidades. Estas mudanças dão-se durante um período mais ou menos longo, o que contrasta com a rapidez com que evolui a mudança tecnológica no domínio da telemática.

O segundo fenómeno tem a ver com o facto de a localização das empresas deixar de depender de um território concreto, em função do local em que reside a mão de obra ou em que se encontram as matérias primas. A localização das empresas torna-se cada vez mais abstracta, porque se torna uma realidade reticular que escapa às regulamentações dos Estados-nação, constituídas no quadro da tecnicidade maquínica. O novo tipo de empresas situa-se num espaço etéreo criado pelas próprias redes cibernéticas. Onde estão localizadas hoje as empresas de tele-produção e de tele-venda? Não estão em nenhum território geograficamente delimitado, mas no espaço da internet, numa nova modalidade de território, no mundo virtual da informação mediática.

Estes dois fenómenos, o da substituição do trabalho humano pelo trabalho de máquinas automatizadas e o da natureza cibernética ou reticular dos novos espaços empresariais, fazem com que o mundo da economia escape cada vez mais ao controlo da vontade dos cidadãos, em geral, e dos Estados, em particular. Os Estados são assim cada vez mais obrigados a desregulamentar o funcionamento das empresas, a libertá-las dos mecanismos de controlo por parte das autoridades políticas instituídas, deixando assim o seu futuro flutuar, ao sabor apenas da livre concorrência.

Estes fenómenos conjugam-se para levar à falência as empresas que não podem integrar as novas técnicas da informação mediática e não são por isso capazes de tirar partido da aceleração da concorrência.

Como os mecanismos da concorrência não são evidentemente uma realidade inteiramente nova, poderíamos ser levados a considerar que estes mecanismos da concorrência são idênticos aos do capitalismo da era industrial e a pensar que corresponderiam à regulação do mercado que asseguraria a sobrevivência das melhores empresas e o desaparecimento das piores. Mas a concorrência que decorre das novas realidades tecnológicas não é exactamente da mesma natureza da que nos habituámos a observar nas sociedades industriais do passado. A invenção técnica inverte-se em relação à sua realização, dissuadindo o próprio processo de modernização: os novos dispositivos telemáticos já estão obsoletos e ultrapassados no próprio momento em que são adoptados e incorporados pelas empresas.

A aceleração da invenção técnica cria, de facto, hoje uma situação paradoxal de difícil gestão. Uma empresa corre constantemente o risco de já estar ultrapassada, no momento em que se moderniza e adopta uma nova tecnologia. No momento em que um invento é realizado já um outro mais recente está pronto para o substituir. Este mecanismo paradoxal não existia na época industrial, em que os inventos levavam anos e até décadas a ser implementados. Deste fenómeno decorre um mecanismo dissuasor. É um mecanismo que não atinge apenas as empresas e as instituições, mas que pode ser facilmente sentido pelos indivíduos. Se quisermos adquirir o equipamento informático mais recente, o mais provável é nunca adquirirmos nenhum, dada a velocidade a que os equipamentos informáticos evoluem. Apesar de já ser hoje evidente, este mecanismo tenderá a acelerar-se ainda mais no futuro.

No estádio actual, os efeitos mais notórios deste mecanismo são provavelmente os das fusões permanentes, ao nível planetário, das empresas que mais tecnologia informática incorporam. As fusões correspondem à estratégia de gestão da dissuasão da modernização, num contexto de desregulamentação generalizada.

A crise dos mecanismos de regulação por parte do Estado e a natureza planetária do funcionamento da economia fazem com que os modelos políticos que foram implementados com o desenvolvimento das sociedades modernas entrem hoje em profunda crise. Que instância política tem hoje autoridade sobre as redes planetárias da informação, em geral, e sobre a internet, em particular? Como evitar que as redes da informação atentem contra os direitos dos cidadãos e contra a vontade das comunidades humanas, como identificar e contrariar hoje o seu uso para finalidades criminosas? É para responder a perguntas deste género que muitos autores advogam hoje a criação de uma autoridade planetária, escolhida livremente pelos cidadãos do mundo inteiro, que institua novas formas de regulação ajustadas às novas realidades tecnologicas. Mas como suscitar a consciência crítica e mobilizar a humanidade se um dos efeitos da globalização telemática é a imperceptibilidade e a naturalidade da sua natureza e dos seus efeitos?

4.2- As consequências culturais e políticas

As consequências da globalização não se repercutem, por conseguinte, apenas no domínio da economia. Afectam igualmente os domínios da experiência cultural e da experiência política.

Nos primeiros anos de implementação da globalização da informação mediática muitos pensaram que iríamos finalmente assistir a um processo de homogeneização cultural, ao abatimento de todas as fronteiras, ao aparecimento da “aldeia global”, profetizada, nos anos 60, por MacLuhan.

De facto, as mesmas canções começavam a ser cantadas e ouvidas em todos os continentes, difundidas pelas rádios e pelas televisões do mundo inteiro. Os mesmos filmes passaram a ser estreados, ao mesmo tempo, nas capitais dos países do mundo inteiro. Os mesmos modelos de vestuário começavam a vestir populações dos cinco continentes. Cadeias de fast food, como Mac Donald e Pizza Hut, instalaram-se nos países do mundo inteiro e criaram um gosto planetário. A partir destas novas experiências começou a pensar-se que a indústria cultural passaria doravante a determinar o gosto, as atitudes, os hábitos e os comportamentos de um novo tipo de homem, do homem globalizado.

As culturas particulares, que até então tinham ditado a diversidade dos gostos, dos valores, das normas e dos comportamentos de cada um, tornar-se-iam assim progressivamente caducas e anacrónicas, votadas ao desaparecimento perante a penetração do mercado mundial pela indústria cultural.

Foi esta a visão que dominou até ao final dos anos 80, altura em que se consumaram as transformações tecnológicas da globalização mediática, com a cobertura do planeta com satélites de telecomunicações, com a criação da internet e com a implantação das grandes cadeias de produção e de consumo da indústria cultural. Foi a época em que se sonhou com a queda de todos os muros que separaram, durante milénios, as comunidades humanas e o fim das distinções dos particularismos culturais. A queda do muro de Berlim consumava, precisamente em 1989, este processo de globalização ao mesmo tempo económica, cultural e política.

A partir do final dos anos 80, esta visão começou a ser posta em causa. Em vez da homogeneização esperada, foi ao aparecimento de novas clivagens e de novas fronteiras que assistimos. De facto, em vez de assistirmos ao desaparecimento das culturas particulares, observamos antes hoje o recrudescimento dos particularismos nacionais, o surgimento e a autonomização de novas nações, assim como ao incremento de manifestações culturais diversificadas. As guerras religiosas e nacionalistas, em vez de esmorecerem, intensificaram-se, com a formação de novas nações, em nome de culturas cuja origem remonta por vezes à pré-história e que tinham ficado adormecidas durante séculos.

Em vez da situação monolítica dos primeiros tempos, é portanto a uma situação paradoxal que assistimos com a consolidação da globalização telemática.

A globalização tem ainda uma outra consequência cultural notável, a de alargar e de amplificar indefinidamente o quadro da experiência e do sentido das actividades e dos particularismos culturais.

O sentido da experiência decorre do quadro que delimita as suas formas. Um mesmo gesto, uma mesma palavra, uma mesma imagem, um mesmo acontecimento adquirem sentidos diferentes consoante o contexto da recepção. O actual alargamento exponencial do contexto da experiência abre um horizonte praticamente ilimitado de sentidos, acabando assim uma mesma manifestação cultural por adquirir tantos sentidos quantos os quadros de referência em que é situada.

É esta diversidade de sentidos que atribuímos aos fenómenos que faz com que, apesar de a indústria cultural repercutir praticamente no mundo inteiro as mesmas manifestações culturais, elas são vividas de maneira sensivelmente diferente em cada uma das comunidades humanas, em função da sua experiência própria do mundo.

É por isso que é hoje cada vez mais evidente a distinção entre o domínio da informação e a esfera da comunicação. Apesar da informação ser cada vez mais globalizada, atingindo a totalidade do planeta, a esfera da comunicação é cada vez mais enraizada na experiência concreta de cada uma das comunidades humanas e das suas culturas, levando mesmo ao exacerbamento da diversidade da experiência.

5- Conclusão: a natureza discursiva da globalização

Não é, por conseguinte, possível uma experiência global. Só é humanamente possível experienciar e perspectivar o mundo a partir da delimitação de horizontes espaciais e temporais sensorialmente percepcionados. Só temos a experiência daquilo que os nossos dispositivos sensoriais são capazes de percepcionar; a globalidade escapa a toda a possibilidade de experiência. Aquilo que se globaliza, como efeito do projecto da modernidade, é um mundo simulado produzido em função do nível de performatividade dos dispositivos telemáticos.

Aquilo a que hoje se dá o nome de globalização é portanto uma estratégia discursiva, uma operação de marketing destinada a armadilhar o presente em nome da miragem de um futuro de contornos problemáticos. A experiência sempre continuou a ser delimitada pelos quadros espaciais e temporais que definem toda a experiência humana possível. É esta experiência humana parcelar, fragmentada e plural que confere sentido às informações que nos chegam de toda a parte do mundo e que assimilamos de maneira sempre diversificada, em função da nossa experiência particular do mundo.

A performatividade dos dispositivos telemáticos, em vez de anular a heterogeneidade dos sentidos da experiência e as diversidades culturais, exacerbam-nas. Ao amplificarem as suas manifestações e ao conferirem-lhes uma visibilidade planetária, produzem um novo tipo de territórios culturais. São territórios virtuais de natureza abstracta, na medida em que, por um lado, não estão situados num espaço concretamente definido, mas se situam no espaço virtual das redes e, por outro lado, não pressupõem uma totalidade da experiência vivida partilhada. É em função desta sua natureza abstracta que as solidariedades que se estabelecem no quadro destas territorialidades virtuais são efémeras, aleatórias, volúveis.


Obras citadas:

Apel, K-O. - A necessidade, a aparente dificuldade e a efectiva possibilidade de uma macroética planetária da (para a) humanidade, in Revista de Comunicação e Linguagens, Lisboa, ed. Cosmos, nº 15/16, Julho de 1992.

Aristóteles – A Ética de Nicómaco.

Caiafa, J. - Nosso Século XXI. Notas sobre Arte, Técnica e Poderes, Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2000.

Cordelier, S. – A Globalização para lá dos Mitos, Lisboa, Bizâncio, 1998.

Gimpel, J. - A Revolução Industrial da Idade Média, Lisboa, Publ. Europa-América, 1986.

Lyon, D. – A Sociedade da Informação, Oeiras, Celta, 1992.

Minc, A. – L’Après-crise est commencé, Idées, Paris, Gallimard, 1982.

Mumford, L - Le Mythe de la Machine, vol. 1 La Technologie et le Développement Humain, Paris, Fayard, 1973 e vol. 2 Le Pentagone de la Puissance, Paris, Fayard, 1974.

Nietzsche, Fr. – Considérations Intempestives, Paris, Flammarion.

Nietzsche. Fr. - Obras Escolhidas de Nietzsche, vol. VI Para a Genealogia da Moral, Lisboa, ed. Círculo de Leitores, 1997.

Nora, S. e Minc, A. – L’Informatisation de la Société, Paris, La Documentation Française, 1979.

Rodrigues, A.D. – Estratégias da Comunicação. Questão Comunicacional e Formas de Sociabilidade, Lisboa, ed. Presença, 1997, 2ª ed.

Rodrigues, A.D. – As Técnicas da Comunicação e da Informação, Textos de Apoio, Lisboa, ed. Presença, 1999.

Simondon, G. – Du Mode d’Existence des Objets Techniques, Paris, Aubier, 1989.

Weber, M. – L’Ethique Protestante et L’Esprit du Capitalisme, Paris, Plon, 1964.

Weber, M. – Economie et Société, Paris, Plon, 1971.

1 Ver em particular de Friedrich Nietzsche,Obras Escolhidas de Nietzsche, vol. VI Para a Genealogia da Moral, Lisboa, ed. Círculo de Leitores, 1997; Considérations Intempestives, Paris, Flammarion.

2 Max Weber utiliza o termo Entzauberung para caracterizar um processo cujas origens vislumbra já nas profecias do judaismo: «na história das religiões, encontra o seu ponto final este vasto processo de “desencantamento “ (Entzauberung) do mundo que tinha começado com as profecias do judaismo antigo e que, associado ao pensamento científico grego, rejeitava todos os meios mágicos de alcançar a salvação como outras tantas superstições e sacrilégios.» (Max Weber, L’Ethique Protestante et l’Esprit du Capitalisme, Paris, ed. Plon, 1964, página 120-121; ver igualmente as páginas 143, 191 e 194.)

3 Faço aqui alusão às dificuldades de instauração de uma macroética tal como a propõe nomeadamente Karl-Otto Apel – A necessidade, a aparente dificuldade e a efectiva possibilidade de uma macroética planetária da (para a) humanidade, in Revista de Comunicação e Linguagens, Lisboa, ed. Cosmos, nº 15/16, Julho de 1992, páginas 11-26.

4 Acerca do papel central da invenção do relógio mecânico, no século XIV, por mestre Giovanni di Dondi, ver nomeadamente Lewis Mumford, Le Mythe de la Machine, vol. 1 La Technologie et le Développement Humain, Paris, Fayard, 1973, páginas 382-383 e vol. 2 Le Pentagone de la Puissance, Paris, Fayard, 1974, páginas 236-237. Ver igualmente Jean Gimpel, A Revolução Industrial da Idade Média, Lisboa, Publ. Europa-América, 1986, páginas 155 e ss. Abordei esta questão no meu livro Estratégias da Comunicação, Lisboa, ed. Presença, 1997, 2ª ed. páginas 44 e ss.

5 Ver sobre esta questão a obra inultrapassável de Gilbert Simondon, Du Mode d’Existence des Objets Techniques, Paris, Aubier, 1989, 2ª ed.

6 Janice Caiafa, Nosso Século XXI. Notas sobre Arte, Técnica e Poderes, Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2000, páginas 18-19.

7 Para um aprofundamento da natureza da tecnicidade e das diferentes etapas da sua génese, ver a obra já citada de Gilbert Simondon, 1989, 2ª ed.

8 Utilizo o termo experienciar e não experimentar Por experienciar entendo a faculdade de adoptar comportamentos de acordo com regras que conhecemos mas que não sabemos que conhecemos, ao passo que entendo experimentar como a adopção de procedimentos de descoberta de fenómenos acerca dos quais não sabemos que regras seguir para os entender e manipular. De certo modo, a experiência é o oposto da experimentação: não precisamos experimentar aquilo de que somos experientes, que experienciamos. Procurarei mostrar à frente que esta distinção tem consequências particularmente interessantes para entendermos a natureza daquilo a que hoje damos o nome de “globalização da experência”.

9 A disposição é precisamente o efeito do “dispositivo”, como já muito bem vira Aristóteles, na Ética a Nicómaco, a propósito da techné.