EXPERIÊNCIA,  MODERNIDADE  E  CAMPO DOS MEDIA

 

Adriano Duarte Rodrigues, Universidade Nova de Lisboa

Lisboa, 1999

INTRODUÇÃO

Tornou-se um lugar comum dizer que vivemos hoje numa sociedade mediática, que a realidade se tornou para nós, em grande medida, naquilo que os media seleccionam, tratam e difundem. Alguns autores falam de sociedade da informação para designar este mundo mediatizado em que hoje vivemos. De facto, a percepção que temos hoje do mundo tornou-se dependente de complexos e permanentes dispositivos de mediatização que marcam o ritmo da nossa vida quotidiana, sobrepondo-se cada vez mais não à nossa percepção imediata do mundo, mas também aos ritmos do funcionamento das instituições que formam os quadros da nossa experiência individual e colectiva.

São cada vez mais os complexos dispositivos técnicos de mediação que ajustam a nossa percepção do mundo às suas capacidades de simulação. Os governos programam as suas tomadas de decisão, os exércitos realizam as suas operações e os altos comandos militares fazem os seus briefings em função dos horários televisivos de maior audiência. As famílias organizam as suas refeições e as suas saídas de maneira a não perderem os seus programas televisivos favoritos. As editoras fazem depender as suas agendas editoriais da publicação de romances que serviram de roteiro às telenovelas e às séries difundidas nos horários de grande audiência. Os manifestantes escolhem os momentos e os locais de exibição dos seus protestos em função da presença e da localização de câmaras de televisão.

A omnipresença dos media acentuou-se ainda mais, durante os anos 90, com a rápida generalização da telemática e dos multimédias. Tanto a administração pública e as empresas como as famílias e os indivíduos passaram a depender do funcionamento de todo um conjunto de dispositivos que os põem em contacto permanente e quase instantâneo com o mundo dos negócios e da cultura, que organizam as actividades de lazer, o comércio e as relações sociais.

Desde que, no final dos anos 60, Daniel Bell utilizou a expressão “sociedade pós-industrial”, várias outras expressões têm sido propostas para designar a nossa época.[1] Cada uma destas designações sublinha um aspecto particular das transformações que têm marcado o nosso tempo e depende, por conseguinte, da perspectiva adoptada por cada autor para as entender. Mas a utilização das designações sociedade pós-industrial, pós-moderna, pós-racional, pós-iluminista, tal como a expressão fim da história, proposta por Fukuyama[2], possuem como lugar comum o facto de serem expressões negativas, de sublinharem o fim ou a perca das características da experiência do passado.

A única excepção que eu conheça a esta concepção negativa das designações epocais é a de “sociedade da informação”, que surgiu sobretudo a partir do final dos anos 80. Ao contrário das designações anteriormente evocadas, esta última expressão está associada a uma visão positiva e optimista das mudanças do nosso tempo.

Este optimismo é, no entanto, fundado numa crença de difícil aceitação, na crença no determinismo tecnológico, segundo o qual, graças aos novos dispositivos técnicos, conseguiremos finalmente ultrapassar as contradições económicas, culturais e políticas herdadas do passado e instaurar uma sociedade finalmente democrática, em que todos acabariam finalmente por ter acesso aos bens económicos, políticos e culturais. Segundo os autores que propõem designar o nosso tempo como a época da sociedade da informação, é graças às novas tecnologias da informação (NTI) que a nova sociedade emergente conseguirá não só resolver os problemas endémicos do sub-desenvolvimento, das disparidades económicas e sociais, mas propiciar as condições da transparência indispensável à democratização da vida cívica e à participação dos cidadãos na vida pública.

Esta visão eufórica é, no entanto, fundamentada na crença num futuro pelo menos problemático, crença que é infelizmente de difícil demonstração. Os indicadores disponíveis acerca dos primeiros resultados da informatização da sociedade não parecem justificar esta visão optimista. Pelo contrário. O fosso entre países ricos e países pobres não pára de se acentuar. As desigualdades, em vez de se atenuarem, agravam-se cada vez mais. A par de inegáveis processos democratizantes no acesso às decisões e à fruição dos produtos culturais, novas formas de dependência e de totalitarismo não cessam de se gerar. Às inegáveis libertações criadas pelas NTI, correspondem novas modalidades de escravização, condições de vida precárias, porventura mais subtis e sofisticadas, mas nem por isso menos dolorosas e  eficazes.

A minha proposta tem sido a de caracterizar o nosso tempo como a época da autonomização do campo dos media. Esta expressão tem, pelo menos, a vantagem de relacionar o actual domínio da informação mediática com as transformações que ocorreram no âmbito da experiência moderna do mundo.

Com esta designação pretendo dar conta, ao mesmo tempo, das continuidades e das rupturas do nosso tempo em relação ao projecto da modernidade. A fim de melhor fazer compreender esta relação, considero hoje imprescindível inseri-la numa reflexão sobre a experiência do mundo, domínio que começarei portanto por tentar compreender.


Para uma teoria da experiência

A experiência compreende um conjunto de saberes formados de crenças firmes, fundamentadas no hábito, ao contrário do saber científico que é fundamentado numa indagação racional metodicamente conduzida. Parto da hipótese de que os saberes da experiência são inalienáveis, uma vez que não podemos prescindir deles, embora não possam ser fundamentados racionalmente por proposições científicas de natureza apodíctica.

Deverei começar por esclarecer que o domínio da experiência não se confunde com o domínio da experimentação. Enquanto a experiência capacita o seu possuidor para compreender sempre novas situações, ainda não experimentadas, a partir de uma sabedoria adquirida que fornece modelos e esquemas de comportamento razoáveis adequados às diferentes situações da vida, a experimentação incide sobre fenómenos novos ainda não compreendidos ou, pelo menos, insuficientemente compreendidos. Através da experimentação poderá evidentemente adquirir-se uma nova experiência, mas a experiência é independente da experimentação que está eventualmente na sua origem.

É a experiência que produz aquilo a que Pierre Bourdieu dá o nome de habitus, «sistemas de disposições duráveis e transponíveis, estruturas estruturadas predispostas para funcionarem como estruturas estruturantes, isto é, enquanto princípios geradores e organizadores de práticas e de representações que podem ser objectivamente adaptadas à sua finalidade sem suporem que sejam visados, de maneira consciente, fins e o domínio expresso das operações necessárias para os atingir.»[3]

1.1        Os domínios e as dimensões da experiência

A experiência compreende três domínios fundamentais e originários, os domínios da experiências de si próprio, dos outros e do mundo natural. Na sua origem indistintos, estes diferentes domínios da experiência vão-se a pouco e pouco autonomizando, na sequência do processo de maturação reflexiva que se desenrola, tanto ao nível filogenético, da espécie, como ao nível ontogenético, de cada um dos indivíduos.

É a este processo de maturação reflexiva que dou o nome de autonomização dos domínios da experiência. Ao nível simbólico da linguagem, este processo traduz-se na autonomização das três pessoas gramaticais, das esferas do “eu”, do “tu” e do “ele, correspondentes respectivamente à criação das esferas da subjectividade, da intersubjectividade e da objectualidade. São as categorias que permitem designar respectivamente os domínios da experiência de si, dos outros e do mundo natural.[4] Sabemos que é uma das estruturas gramaticais que a criança descobre mais tarde no processo de apropriação da linguagem.

Em cada um destes domínios, a experiência consiste na posse de um conjunto de saberes, não fundamentados racionalmente, mas que têm a característica de serem razoáveis por serem fundamentados em crenças firmes, enraizadas no hábito. De facto, a experiência diz-me, antes de mais, um conjunto de coisas indiscutíveis, tais como a certeza da minha existência, da existência dos outros e da existência dos objectos e dos fenómenos do mundo natural.

Haverá alguma razão apodíctica, indiscutível, para aceitar estas evidências? Não.  A razão diz-me que tudo o que me rodeia poderia não passar de uma ilusão enganadora. E, no entanto, não posso dar um passo se não aceitar como indiscutível a existência das coisas que me rodeiam, em nome do bom senso, de uma sabedoria constitutiva do senso comum. Por isso, Descartes, até no momento em que procurava pôr em dúvida todas as certezas não fundadas racionalmente, teve de as aceitar provisoriamente (par provision) simplesmente para poder continuar a submetê-la à dúvida metódica.[5]

O mesmo tenho de admitir acerca da existência de mim próprio e dos outros. Que garantias racionais tenho para aceitar como indiscutível a minha existência e a existência dos outros seres humanos? Não há nenhuma razão apodíctica que me diga que a minha existência e a dos outros não passa de um efeito enganador da minha percepção provocado por qualquer espírito maligno apostado em me enganar. E, no entanto, até para poder considerá-las como evidências enganadoras, tenho de partir da crença na sua existência.

Este conjunto de saberes que tenho de aceitar como seguros, pelo hábito, e não porque a razão me dê provas categóricas da sua verdade, e que tem a ver com a existência de mim próprio, dos outros e do mundo natural, constitui aquilo a que dou o nome de dimensão ontológica da experiência.

Mas a experiência não me leva apenas a ter de aceitar a existência de mim próprio, dos outros e do mundo natural. Leva-me igualmente a pressupor que, até prova em contrário, aquilo que ocorre no mundo, aquilo que os outros dizem e fazem, aquilo que experiencio em mim próprio não visa a minha destruição nem a minha desagregação, não atenta contra a minha integridade nem contra a integridade dos outros seres. Este conjunto de saberes que, tal como os primeiros, tenho de aceitar por hábito como seguros e que têm a ver com a crença na precedência do bem sobre o mal, do que respeita a integridade dos seres sobre o que a viola, constitui a dimensão ética da experiência.

A experiência leva-me, enfim, a aceitar que as configurações que dão forma às coisas, aos discursos e às acções não se equivalem, mas se distinguem por me causarem ora prazer ora desprazer, segundo critérios que não têm outro fundamento a não ser o da interiorização de regras interiorizadas pelo hábito. Ao conjunto dos saberes que me permitem distinguir entre as formas agradáveis e as desagradáveis, entre as que me dão prazer e as que me dão desprazer, constitui aquilo a que dou o nome de dimensão estética da experiência.

1.2        Confiança e sistema de expectativas

O conjunto das dimensões da experiência é absolutamente indispensável à sobrevivência tanto da espécie como de cada um dos indivíduos, e está na base daquilo a que poderíamos dar o nome de confiança, de um sistema de regras impostas pela sabedoria prática, de cujo domínio depende a crença, não só na existência do mundo natural, do mundo dos outros e do meu mundo próprio, mas também das dimensões ontológica, ética e estética da sua experiência.

Tendo em conta aquilo que eu sei acerca da marcha que estes três mundos têm seguido até agora, podemos confiar em que eles continuarão a decorrer no futuro de uma determinada maneira, segundo modalidades relativamente previsíveis. Esta confiança depende de uma realidade, não empírica mas a priori. E está na origem das categorias da experiência, fundamento daquilo a que dou o nome de sistema de expectativas.

O sistema de expectativas apresenta as características de naturalidade da praticidade, fundamento da reciprocidade e da  mutualidade. Enquanto a reciprocidade da experiência consiste na correspondência entre as minhas expectativas e as expectativas dos outros, a mutualidade da experiência tem a ver com o facto de cada um saber que os outros também sabem que eu sei que as coisas decorrerão de futuro de determinada maneira e que os outros também o sabem e que sabem que eu sei.

Porque é que eu me dirijo a um determinado local todos os dias pela manhã para apanhar um determinado transporte público que me levará, por exemplo, ao local do meu trabalho? Porque sei que é nesse local que esse transporte público pára a uma determinada hora e que o seu motorista também o sabe e que sabe que as pessoas que, como eu, pretendem apanhá-lo a essa hora também sabem que é nesse local que esse transporte público pára. Porque sei que que uns e outros não se limitam a sabê-lo, mas conformam também o seu comportamento com esse saber? Haverá alguma razão para fundamentar esses saberes mútuos e a conformidade dos comportamentos a esses saberes? Há e não há. Há a razão de que, até agora, tem sido assim que as coisas costumam acontecer. Mas não há nenhuma razão categórica ou absoluta que evite que as coisas deixem de acontecer desse modo no futuro. Ninguém poderá garantir de facto que, a partir de hoje, a empresa de transportes públicos mude o roteiro da linha, que nessa manhã os condutores entrem em greve, que haja um tremor de terra que destrua a rua onde esse transporte público costuma passar ou que o mundo acabe entretanto.

O sistema de expectativas constitui um sistema simbólico e é com base nele que, por um lado, regulo a minha vida de acordo com aquilo que considero razoável e adequado ao comportamento dos outros e ao desenrolar dos fenómenos da natureza e que, por outro lado, interpreto os comportamentos dos outros e os fenómenos da natureza de acordo com aquilo que me habituei a esperar desses comportamentos e desses fenómenos.

1.3        Experiência e memória. Reconhecimento e familiaridade

Como vimos, pelo facto de ser um conjunto de saberes fundados no hábito, a experiência depende dos mecanismos da memória, da capacidade de rememoração que os humanos possuem, da capacidade de rememorar, no presente, o passado e de prever o futuro, a partir da rememoração presente do passado. É portanto fundamentalmente constituída por dois processos de sinal contrário: o processo de rememoração e o processo de previsão.

É no presente que a ocorrência de factos evocadores de outros factos do passado provoca o processo de rememoração que identifica, nos factos presentes, as marcas do passado. A rememoração é por isso factor daquilo a que dou o nome de reconhecimento e de familiaridade. É também no presente que a ocorrência da factos provocadores de determinados efeitos provoca o processo de previsão ou de antecipação, no presente, dos efeitos futuros dos factos presentes.

Estas duas dimensões da memória correspondem àquilo a que dou o nome de natureza prometeica e de natureza epimeteica da experiência. A primeira equivale à capacidade de previsão dos acontecimentos futuros, de modo a aproveitar atempadamente os momentos oportunos e a evitar os perigos, os escolhos, ou os momentos nefastos que possam vir a acontecer, no futuro. Esta dimensão prometeica está associada às qualidades de vigilância do experiente. Por seu lado, a natureza epimeteica da experiência é a característica que leva a saber tirar partido da ocorrência dos instantes imprevistos, de modo a tirar partido deles a posteriori. Deste ponto de vista, a experiência pode ser representada como uma cabeça de Janus: está voltada, ao mesmo tempo, para o passado e para o futuro.[6]

1.4        Processos e objectos da experiência

Até agora falámos indiscriminadamente de objectos, factos, coisas para designarmos os objectos da experiência. Chegou o momento de distinguir esses objectos e esses factos.

O objecto primeiro da experiência é a sensação, a percepção sensorial que partilhamos com os outros seres vivos. Já os escolásticos diziam que nada pode existir no intelecto que não esteja primeiro nos sentidos, a não ser o próprio intelecto: «nihil in intelectu quin prius in sensu, nisi intelectus ipse.» É com base na sensação que distinguimos  a rugosidade, a lisura ou a moleza, o frio ou o calor, a luminosidade, a espessura, o odor, o som estridente ou suave dos objectos. Sabemos que, pelo menos, algumas das características dos objectos de que temos a sensação não correspondem às que eles possuem, na medida em que dependem da constituição dos nossos sentidos. A razão contraria a sensação de que o Sol gira em torno da Terra e um pau direito mergulhado na água aparece-me como se estivesse quebrado. Apesar disso, a experiência diz-me que tenho de confiar nos meus sentidos para poder sobreviver, não só enquanto indivíduo, mas também  enquanto membro da espécie humana. É a sensação que me leva a evitar os objectos nocivos e a procurar aqueles que me aparecem como benéficos para a minha integridade individual e para a sobrevivência da minha espécie.

O segundo objecto da experiência é a sensibilidade, que percepciona as qualidades sensíveis e constrói um espaço ou um meio e um tempo ou uma memória corporal sensível, relacionando entre si as sensações e distinguindo-as segundo graus diferentes, segundo as categorias da quantidade e da qualidade.

O terceiro objecto da experiência é o sentimento, que avalia as sensações de acordo com o prazer e o desprazer que me proporcionam, em função daquilo a que Jean-Luc Ferry chama «a dialéctica do desejo, que nasce do encontro da sensação e do sentimento.».[7]

O quarto objecto da experiência é o conceito, constructum formado a partir da abstracção das propriedades comuns que a razão encontra nos objectos da sensação, da sensibilidade e do sentimento.

1.5        Os dispositivos mediáticos

Os órgãos dos sentidos são portanto dispositivos que desencadeiam sensações, os processos sensoriais que me tornam, de algum modo, presente o mundo. Chamarei, por isso, dispositivos aos órgãos dos sentidos, porque são eles que dispõem o mundo de acordo com a maneira como estão constituídos e porque colocam o mundo à minha disposição.

Os órgãos dos sentidos são dispositivos naturais porque a sua constituição e o seu modo de funcionamento nascem connosco, não resultam da invenção nem do fabrico humanos. Já chegamos ao mundo apetrechados com eles. Os dispositivos naturais constituem o primeiro sistema mediático, são os mecanismos originários da nossa relação ou mediação ao mundo. Dão-nos a sentir os objectos do mundo, ora como agradáveis ora como desagradáveis, provocando aquilo que designamos por sentimentos de prazer e desprazer.

Todos os seres vivos vêm ao mundo apetrechados com dispositivos naturais, mas no homem eles não se encontram completamente determinados à nascença. Para poderem desencadear as respostas aos estímulos do mundo envolvente, necessitam da aprendizagem de modalidades de mediação inventadas, do enxerto, da interiorização ou da incorporação de dispositivos mediáticos artificiais, inventados pelas sucessivas gerações, que constituem aquilo a que damos o nome de cultura do povo em que os indivíduos nascem e a que pertencem.

Mas os dispositivos mediáticos artificiais, embora complementam os dispositivos naturais, estabelecem com eles relações de descontinuidade. É a este hiato ou a este fosso entre os dispositivos naturais e os dispositivos artificiais que damos o nome de pulsão, processo gerador ou desencadeador de um domínio específico da experiência do homem a que damos o nome de desejo. O desejo é, deste ponto de vista, o resultado da falta ou da ausência do objecto para que tendem, no homem, os dispositivos naturais.

1.6        Meio ambiente, Mundo vivido e Quadros do sentido

A  experiência não é, por conseguinte, uma realidade homogénea, mas diferenciada, uma vez que se desenrola, antes de mais, num determinado meio ambiente, a que os alemães costumam dar o nome de Umwelt. O meio ambiente forma a componente primeira daquilo a que damos o nome de quadro ou contexto situacional da experiência e que condiciona a comunicação ou interacção com o mundo.

Os quadros ou contextos situacionais têm uma importância determinante para a discriminação dos objectos da percepção, em função da sua relevância para a constituição do sentido. A característica fundamental dos quadros da experiência é o facto de intervirem como factores de naturalização da percepção. Apesar de distinguirem aquilo que se situa dentro das suas fronteiras daquilo que está para além das suas fronteiras, a sua intervenção não é propriamente objecto da percepção, mas fundo sobre que os objectos do mundo se situam e do qual recebem, para nós, uma forma perceptível.

Todos os seres vivos possuem quadros delimitadores do seu meio ambiente ou do ecossistema dentro do qual a sua sobrevivência é possível e fora do qual não poderiam sobreviver, dentro do qual interagem e do qual recebem toda a espécie de estímulos conectados com os dispositivos naturais de que estão apetrechados ou equipados. Fora do seu Umwelt, os seres vivos não poderiam sobreviver.

O homem também possui o seu Umwelt; também interage com o seu ecossistema. Mas, ao contrário dos restantes seres vivos, incorpora-o no seu próprio ser, leva-o ou transporta-o consigo, não estando por isso completamente determinado pelos estímulos que dele recebe. Daí a capacidade que tem de se apropriar do mundo, de o modelar de acordo com projectos por si concebidos e inclusivamente de o reconstituir artificialmente. Tem além disso a capacidade de converter as interacções que estabelece com o meio ambiente num sistema de significações, num conjunto organizado de interacções dotadas de sentido, que têm a propriedade notável de poderem suscitar respostas, mesmo na ausência dos estímuos naturais a que se referem. É ao resultado desta conversão que damos o nome de Mundo vivido ou, para utilizarmos a expressão alemã consagrada por Husserl, de Lebenswelt.

Às fronteiras do quadro ou do contexto situacional do Lebenswelt dão os anglo-saxónicos o nome de frame ou de quadro do sentido.[8] É por isso que, para o homem, não é apenas o meio ambiente que constitui o quadro em que se desenrola a sua experiência. Abarca igualmente o conjunto das marcas por ele próprio projectadas para delimitar a sua prórpia experiência, o seu Lebenswelt.

Com propriedade de termos, só podemos falar de frame ou de quadro do sentido para referirmos as fronteiras delimitadoras da experiência humana. Este quadro delimita o conjunto das interacções sensatas e razoáveis daquelas que seriam insensatas e sem sentido. Assim, por exemplo, é pelo facto de se situar dentro do quadro do sentido daquilo a que poderíamos chamar uma cerimónia que não estranhamos que os homens vistam terno e gravata e que as senhoras usem vestidos longos, comportamentos completamente insensatos, por exemplo, numa praia.

Para dar a entender o funcionamento dos quadros da experiência, costumo dar como exemplos o palco de um teatro, a capa de um livro, a moldura de um quadro, o ecrã do cinema, da televisão ou do computador. Cada um destes exemplos é uma marca ou uma materialidade delimitadora de um espaço, dentro do qual se constitui um mundo próprio, distinto daquilo que está fora desse mundo, mundo que tem a propriedade de tornar razoável um determinado conjunto de práticas significantes que, fora delas, seriam desprovidas de razoabilidade.

É pelo facto de, na capa de um livro que estamos a ler, se indicar que se trata de um romance de ficção científica que aceitamos como razoáveis e verídicas acções que se desenrolam, por exemplo, no século XXV, na galáxia Alfa, acções completamente inverosímeis e insensatas no quadro de uma viagem ao longo da estrada que tomo todos os dias para ir da minha casa para o trabalho. É pelo facto de existir um palco, que delimita uma determinada acção dramatúrgica, que aceito como verosímil e me deixo emocionar, por exemplo, com a história de Romeu e Julieta, história completamente insensata se acontecesse numa das ruas da cidade onde moro.

A experiência é assim o resultado da intervenção de um quadro que está lá para desempenhar uma função de fronteira, de separador de mundos. Os Gregos davam a esta fronteira o nome de parergon e os literários chamam-lhe paratexto. É uma espécie de porta que serve tanto para abrir como para fechar o mundo do sentido. A sua natureza não é significante como as materialidades que encerra, mas simbólica. As materialidades em que se investe a experiência são significantes, na medida em que as posso traduzir sempre por outras materialidades, mas as marcas que delimitam essas materialidade significantes e lhes conferem razoabilidade ou sentido possuem a ambivalência que podemos atribuir às funções de uma porta, que tanto serve para abrir como para fechar, ou de uma ponte, que tanto liga como separa as duas margens de um rio. É precisamente esta ambivalência que caracteriza a natureza simbólica dos quadros do sentido, da experiência.[9]

Normalmente, respeitamos os quadros do sentido, apesar de não nos darmos habitualmente conta e enquanto não nos dermos conta da sua presença nem dos seus efeitos. No momento em que nos apercebemos deles, o sentido desloca-se e tende a desmoronar-se ou, pelo menos, a ser posto em crise. É a partir dessa deslocação que se constitui um novo quadro de sentido que compreende ou abarca o primeiro no interior das suas fronteiras.

É a este processo que damos o nome de desconstrução do sentido. Pode ser propositadamente desencadeado, como no caso das vanguardas estéticas, que procuram romper com os quadros habituais da percepção das formas significantes e do sentido por ela constituídos. Assim, por exemplo, o chamado apropriadamente teatro do absurdo rompe sistematicamente as fronteiras do palco dentro das quais é suposto desenrolar-se a acção dramatúrgica, dentro das quais se constitui a identidade das personagens, distinta da identidade dos actores, assim como a verosimilhança da narrativa. Mas há também inúmeros exemplos espontâneos destes processos de desconstrução dos quadros do sentido no decurso da nossa vida quotidiana. É o caso, por exemplo, do discurso do apresentador do telejornal, que rompe com o quadro delimitador do espaço próprio ao sentido do telejornal, no momento em que se dirige directamente ao telespectador, por ocasião de uma avaria, ou para abrir um diálogo com um correspondente ou um convidado.[10]

Para sentirmos a natureza violadora do frame destas práticas desconstrutoras, imaginemos o caso em que, no momento em que abraço um amigo, lhe explicito o sentido do meu gesto, dizendo que é dessa maneira as pessoas amigas costumam cumprimentar-se. O sentido do meu abraço deslocar-se-ia para dar origem a um outro sentido em que o primeiro seria enquadrado. Pelo mesmo facto, o sentido do meu abraço presente tenderia a desmoronar-se. É também por essa razão que o meu comportamento presente pode denunciar ou trair sentidos diferentes e eventualmente antagónicos em relação ao sentido daquilo que dizem os meus enunciados.

1.7        Modalidades da experiência

Depois desta tentativa de abordagem sistemática das diferentes componentes da experiência, vou abordar a distinção entre as duas modalidades, tradicional e moderna, da experiência. Esta distinção vai permitir compreender melhor a relação entre a sabedoria da experiência e os saberes científicos.

À guisa de esclarecimento preliminar, deverei esclarecer que, ao falar de tradição e de modernidade, não me estou a referir a nenhum período histórico determinado. Experiência tradicional e experiência moderna não se sucedem mas coexistem, em maior ou menor grau, em todos os tempos e em todas as sociedades. Trata-se portanto de ideais-tipos, para utilizarmos a terminologia de Max Weber. São conceitos construídos para dar conta de duas maneiras distintas e, em grande medida, opostas de experienciar o mundo e que se manifestam em crenças, legitimações, atitudes, discursos, comportamentos.

1.7.1       A modalidade tradicional da experiência

À modalidade originária da experiência damos o nome de tradicional, por se tratar de uma maneira de experienciar o mundo que é formada por saberes que são fundamentados no facto de serem transmitidos, e não em razões autónomas da tradição. É o facto de terem sido dados, recebidos e retribuídos, segundo a expressiva categorização do potlatch feita por Marcel Mauss, que os fundamenta. É esta mesma lógica, intimamente associada à discursividade narrativa, que predomina precisamente na modalidade tradicional da experiência.

Para a tradição, os dispositivos de mediação ao mundo não acedem à consciência reflexiva do homem, fazendo com que a percepção que temos do mundo nos apareça como natural e indiscutível. É por isso que também não há lugar para a emergência da questão comunicacional. Tanto os dispositivos naturais como os dispositivos artificiais de mediação ao mundo não aparecem como objectos da experiência, mas como quadros naturalizados da sua constituição. Não admira, por isso, que a oralidade seja o dispositivo de mediação privilegiado da tradição e que a linguagem seja encarada como mero instrumento de comunicação, não acedendo ao nível de objecto de questionamento. Há uma relação indiscutível de conaturalidade entre as palavras e as coisas.

Como a própria etimologia do termo sugere, por tradição entende-se a maneira de fundamentar as crenças e as convicções na transmissão de uma sabedoria naturalizada pelo facto de se ter perdido a memória da sua origem.[11] É esta amnésia da sua origem que a impõe precisamente de maneira indiscutível a todos.

Para a modalidade tradicional da experiência, não existe distinção clara, mas continuidade e homologia, entre os diferentes domínios e as diferentes dimensões da experiência. Há continuidade entre a experiência de si, dos outros e do mundo natural, assim como há homologia entre as dimensões ontológica, ética e estética da experiência. Esta homologia e esta continuidade traduzem-se na confusão entre o domínio da natureza e o domínio da cultura. E esta é uma das razões fundamentais para que a experiência tradicional parta de uma relação de continuidade entre os dispositivos naturais e os dispositivos artificiais de mediação. É por isso também que a oralidade representa o meio de comunicação privilegiado da tradição. De facto, a invenção da escrita pressupõe já um elevado estádio de autonomização dos dispositivos artificiais, em particular da mediação da escrita, em relação aos dispositivos naturais de mediação.

De entre todos os domínios da experiência, o da língua materna é o que melhor representa a modalidade tradicional, aquele que escapa a qualquer trabalho desconstrutor da modernidade. É por isso que não precisamos de uma aprendizagem formal das suas regras para as conhecermos, as dominarmos e as experienciarmos. É por isso que recusar a submissão às suas regras equivaleria, pura e simplesmente, a uma recusa da experiência do mundo. Não é que equivaleria apenas a subtrair-nos ao convívio dos outros; equivaleria a uma recusa, pura e simples, da experiência do mundo natural e de nós próprios. Pela simples razão de que é na língua materna que recebemos os quadros em que fazemos entrar o mundo para o podermos apreender, de ser dela que recebemos a matriz ou os quadros a priori que permitem apreender e discernir os objectos que nos rodeiam. É, por conseguinte, da língua que recebemos as distinções da experiência sensorial do mundo.

Mas, além da experiência da língua materna, a experiência afectiva, nomeadamente amorosa, constitui também um dos domínios irredutíveis da experiência tradicional. Qualquer processo de fundamentação racional do afecto equivale inevitavelmente ao seu desmoronamento. Por isso, Pascal dizia que «o coração tem razões que a razão desconhece.»

1.7.2       A modalidade moderna da experiência

A modalidade moderna da experiência corresponde a um processo complexo de ruptura para com a tradição[12] e de autonomização[13] dos diferentes domínios e das diferentes dimensões da experiência, com a consequente ruptura entre a esfera da natureza e a esfera da cultura.

1.7.2.1      A autonomização das dimensões da experiência

A experiência bíblica de Job e o aparecimento da tragédia grega dão conta, de maneiras diferentes, do mesmo processo de autonomização das diferentes dimensões da experiência. Traduzem, de maneira dramática, a tomada de consciência, escandalosa para a modalidade tradicional da experiência, de que não há homologia, mas autonomia entre a verdade, a bondade e a beleza dos seres, de que nem sempre a verdade é bela e boa, de que nem sempre a beleza é verdadeira e boa, de que nem sempre a bondade é verdadeira e bela. Como é possível, para o homem da tradição, aceitar que Job, justo e bom, seja feio, esteja coberto de chagas, desprezado de todos, ao passo que os maus sejam ricos, belos e adulados de todos? Por seu lado, a tragédia grega põe em cena a impossibilidade de conciliar a realização pessoal dos desejos com os imperativos do dever impostos pelos deuses.

Esta autonomização das dimensões da experiência é fundamentalmente um processo de secularização ou de dessacralização da experiência, processo a que Max Weber daria o nome de “desencantamento” (Entzauberung).[14] De facto, a experiência passou a ser desencantada, na medida em que o homem moderno sabe que o seu destino depende de si próprio e não é governado de maneira transcendente, como num jogo de fantoches, por forças divinas. A esta dessacralização corresponde por isso uma imanentização da experiência do mundo.

Mas a modernidade é também um processo emancipador em relação às coacções da tradição, a partir do momento em que o homem toma consciência de que a tradição exerce uma força coerciva que trava o processo de autonomização individual, impedindo a realização de projectos autónomos em relação à sabedoria herdada do passado. Esta emancipação está intimamente associada ao projectualismo e ao individualismo, características da modernidade.

O traço dominante da experiência moderna é, no entanto, o da natureza específica da fundamentação legitimadora da acção e do discurso. Em vez do apelo à tradição, traduzida na transmissão do conjunto dos valores e das crenças herdados do passado, a modernidade apela para um tipo diferente de racionalidade, para uma indagação racional, metodicamente conduzida, dos fenómenos inerentes tanto ao domínio da experiência de si, como aos domínios do mundo natural e dos outros. É este ideal de racionalidade metódica que está na origem da diferenciação moderna dos domínios e das dimensões da experiência, diferenciação que, como veremos na segunda parte, vai conduzir à autonomização e institucionalização progressiva dos diferentes campos sociais.

Uma das características decorrentes desta autonomização moderna em relação às coacções da tradição, é a deslocalização da experiência. Os quadros e os contextos situacionais que delimitam a experiência tradicional são geograficamente delimitados e formam aquilo a que podemos dar o nome de fronteiras culturais concretamente enraizadas em territórios de pertença. Estas fronteiras concretas correspondem ao lugar em que os indivíduos nascem, crescem, são socializados, casam, trabalham e morrem. As relações de sociabilidade são sobretudo marcadas pela instituição familiar e manifestam-se nomeadamente pela coabitação, no mesmo lugar, da família alargada. Mas, com a modernidade, os quadros da experiência deixam de estar concretamente delimitados pelas fronteiras locais, abrindo-se a interacções que ultrapassam essas fronteiras para se tornarem progressivamente independentes da partilha do mesmo lugar.

Este processo de deslocação das relações de sociabilidade não tem sempre a mesma natureza. Assim, nos séculos XVII e XVIII, deu lugar à experiência das viagens, à descoberta de outros continentes, de outros povos, de outras culturas, de outras visões do mundo. No século XIX, traduziu-se pelo desenraizamento das comunidades rurais emigradas para os centros industriais. No nosso tempo, dá lugar ao desenvolvimento das interacções, instantâneas e em todos os sentidos, através das redes telemáticas, factor daquilo a que hoje damos o nome de globalização da experiência do mundo.

Mas, através de todas estas realizações diferenciadas, encontramos sempre um processo de deslocalização, característica dos quadros modernos da experiência. A família alargada deixa de fixar os quadros da experiência total do mundo, abrindo-se a experiência a novos quadros de sociabilidade, mais ténues, menos fixos, mais aleatórios, mas nem por isso necessariamente menos intensos e mobilizadores.

Em vez de definida por quadros estáveis, em torno dos laços familiares, da propriedade da terra, da partilha de uma história comum, do reconhecimento recíproco e mútuo da identidade do lugar ocupado por cada um, num sistema de interacções herdado do passado, a experiência moderna passa a depender da capacidade de cada um a construir e delimitar o seu próprio quadro de vida, das suas escolhas e dos seus gostos, assim como da pretensão de cada um construir a sua própria identidade e a fazê-la reconhecer e respeitar pelos outros.

A intensidade e a natureza da sociabilidade deixam de depender dos quadros concretos das fronteiras do local e passam a variar de acordo com os projectos de investimento individual.

Deste modo, a emergência da paixão amorosa como critério de realização da experiência de si equivale a uma autonomização e a uma valorização das relações de intimidade em detrimento da forma contratual do casamento e da família, correspondendo ao surgimento da família nuclear, com a consequente institucionalização e autonomização de classes de idade, da infância, da adolescência, da idade activa e da velhice. A intensidade e a natureza da sociabilidade deixam por isso de depender dos quadros concretos das fronteiras do local e passam a variar de acordo com os projectos de investimento individual.

Prefiro falar de processo de autonomização, em vez de libertação, a propósito destas transformações individualizantes ao nível da experiência, porque este processo não equivale necessariamente a um aumento de liberdade. Podemos de facto considerar este processo mais como a imposição de novas formas e de novas estratégias de coacção do que de uma autêntica libertação. Como a propósito mostrou Michel Foucault, as estratégias modernas de coacção, correspondentes a este processo de autonomização, fazem mais apelo a modalidades morais do que físicas de coacção, jogando com a interiorização individual das normas da autonomia, contando, deste modo, mais com a cumplicidade dos indivíduos na sua imposição, em nome da eficácia dessa imposição, do que com as modalidades dolorosas da coacção física.[15]

1.7.2.2      Culpabilização e racionalização

Mas, como já tive ocasião de referir, estas transformações não afectam a totalidade da experiência nem se manifestam, em toda a parte, do mesmo modo. A sociabilidade moderna não destrói a totalidade das formas tradicionais da sociabilidade. Convivem antes umas com as outras, negociando entre si soluções de compromisso, mais ou menos bem sucedidas. A dificuldade em compatibilizar, por vezes, as exigências de cada uma destas modalidades da experiência dá ocasião à emergência de um outro fenómeno inerente à experiência moderna, o fenómeno da culpabilização, com a concomitante autonomização do campo terapêutico, no domínio da experiência de si.

A culpa, ao contrário da falta, é o sentimento da incomensurabilidade das exigências da modernidade e da eventual divergência em relação às exigências da tradição. Manifesta-se nomeadamente na dificuldade e, por vezes, na impossibilidade de conciliar o reconhecimento das expectativas dos outros e o respeito pela sobrevivência dos laços localizados com as exigências da autonomia na realização da experiência de si.[16]

As exigências inerentes ao prosseguimento da construção de sempre novos quadros afectivos e profissionais contrasta com as exigências inerentes às fidelidades familiares e locais. Ao fenómeno da culpabilização decorrente deste antagonismo corresponde o processo de racionalização, que consiste na necessária invenção de sempre novas razões plausíveis, em função das expectativas dos outros interiorizadas pelos indivíduos. Este processo pode inclusivamente dar hoje origem a um processo de esquizofrenização da experiência. Assim, os discursos que acompanham as rupturas, as emigrações, os divórcios, o alijamento dos idosos por parte dos familiares e a sua instalação em lares da terceira idade podem oferecer eloquentes exemplos deste processo esquizofrenizante de racionalização.

Estes processos de culpabilização e de racionalização contribuem para a instauração das novas modalidades de coacção que caracterizam a experiência moderna.

1.7.2.3      A autonomização dos domínios da experiência

À autonomização da experiência de si em relação à experiência do mundo natural corresponde o processo moderno de instrumentalização do mundo não humano, simbolicamente representado pela terceira pessoa, pelo “ele”. É o mundo dos fenómenos do mundo natural, daquilo que é excluído tanto da relação subjectiva como da relação intersubjectiva, do que é aberto à relação de apropriação e de manipulação. Este processo tende hoje a marcar as relações humanas por parte da burocracia, para a qual o outro homem deixa de ser um interlocutor, “tu” a quem se fala e de quem se escuta, para se tornar objecto, objectivado em discursos em que é referido como utente, mencionado pelo uso da terceira pessoa.

Mas à autonomização da experiência de si em relação à experiência dos outros corresponde o aparecimento da dialéctica resultante do confronto entre a subjectividade e a alteridade, representada simbolicamente pela relação pronominal “eu” vs. “tu”, característica da intersubjectividade.

A instauração da modernidade corresponde, portanto, deste ponto de vista, a uma aprendizagem do complexo jogo pronominal, dando origem à formalização do dispositivo gramatical.

1.7.2.4      A institucionalização e a autonomização da modalidade disciplinar do saber

Este processo está intimamente associado à emergência de uma nova modalidade de saber, a do saber disciplinar, distinto da sabedoria tradicional, da soma das aptidões aprendidas do testemunho dos detentores legítimos da herança do passado.

A sabedoria tradicional adquire-se a partir do testemunho, através da convivência, e não se limita aos conhecimentos discursivamente formulados. O modelo originário deste processo é o da iniciação, mas a relação do aprendiz com o mestre oferece também um bom exemplo deste modelo. É um processo que exige a inserção numa comunidade total de vida, naquilo a que Tönnies deu o nome de Gemeinschaft.[17] Por seu lado, o saber disciplinar moderno adquire-se através da adopção de um método de indagação dos fenómenos, pela aquisição de uma disciplina. A formulação do saber disciplinar é eminentemente discursiva e não envolve, como a sabedoria tradicional, a totalidade dos domínios da experiência. Tende antes para a aquisição de um saber especializado e, nessa medida, não implica a inserção numa comunidade total de vida, mas a referência a formas societárias diferenciadas de relações intersubjectivas, constitutivas daquilo a que Tönnies deu o nome de Gesellschaft.

A sabedoria tradicional enraiza-se numa experiência particular do mundo, ao passo que o saber disciplinar moderno tem uma pretensão de validade universal. O especialista e o perito são as novas figuras do saber disciplinar e a sua competência não é, em princípio, delimitada pelas fronteiras locais de uma comunidade, mas pelas fronteiras dos diferentes domínios da experiência. O limite da competência do especialista ou do perito é o do domínio da experiência em que é competente, em qualquer tempo e lugar.

Com a constituição do saber disciplinar moderno, autonomiza-se a função discursiva, expressiva ou simbólica em relação à função pragmática do saber. O dizer e o fazer competentes passam a desempenhar funções distintas. Enquanto para a sabedoria tradicional, ao dizer é atribuída uma função pragmática, para o saber disciplinar moderno as regras pragmáticas que regulam a intervenção do especialista autonomizam-se em relação às regras do discurso competente, dando origem ao aparecimento de duas figuras distintas, a do cientista e a do técnico. Assim, por exemplo, a formulação do saber médico deixa de se confundir com a intervenção na cura dos doentes, o discurso do direito já não se confunde com a aplicação da justiça, o discurso da ciência não é a aplicação técnica da ciência, ao contrário do saber tradicional, em que, por exemplo, o feiticeiro pretende curar através da enunciação de fórmulas encantatórias, cuja eficácia depende da sua enunciação.

Estas duas modalidades do saber, a discursiva e a pragmática, nem sempre são mutuamente exclusivas, mas coabitam de algum modo no seio do saber moderno, como se pode ver, por exemplo, ainda hoje na prática psicanalítica, em que o discurso continua a ser usado como processo de intervenção terapêutica.

É, no entanto, desta autonomização da função pragmática em relação à função discursiva da competência que decorre a autonomização moderna do campo científico em relação ao campo técnico.


A emergência dos campos sociais

1.8        Introdução

Ao autonomizar a experiência subjectiva em relação à experiência do outro e ao constituir-se, deste modo, a esfera da experiência intersubjectiva, a modernidade desencadeia um processo de progressiva autonomização dos diferentes campos sociais, correspondendo cada um a um dos domínios autónomos da experiência intersubjectiva. Para este processo contribuem factores históricos que têm como denominador comum uma nova maneira de fundamentar racionalmente a experiência.

Em vez de apelar para a maneira habitual herdada do passado de fundamentar a crença e a confiança na apreensão sensorial do mundo natural, nas regularidades constitutivas da legitimidade das experiências subjectiva e intersubjectiva, a modernidade pretende apelar para a indagação crítica metodicamente conduzida.

O processo de indagação crítica metodicamente conduzida nunca será, no entanto, completamente realizado, e há domínios da experiência tradicional irredutíveis a qualquer projecto de indagação racional, que escapam, por conseguinte, total ou parcialmente, ao controlo da razão moderna. É o caso da experiência da lingua e da experiência afectiva, acerca das quais qualquer empreendimento racional as desconstrói à nascença. De uma maneira geral, o domínio da afectividade é, por natureza, resistente aos procedimentos de fundamentação racional, tal como os quadros do sentido dependem da natureza indiscutível da lingua que os fundamenta. Mas muitos outros domínios da experiência quotidiana apresentam idêntica característica, a de se destruirem sempre que pretendemos compreendê-los racionalmente. É por isso que a modernidade é um projecto sempre inacabado, permanecendo inevitavelmente amplas franjas da experiência de fora das fronteiras do seu espaço de intervenção.

A fundamentação racional da experiência moderna está intimamente associada às novas modalidades do saber, distintas da sabedoria tradicional. O saber moderno visa a explicação dos fenómenos, a formulação das regras do seu funcionamento e a compreensão da sua organização, em vez das explicações herdadas da tradição. O resultado é, como vimos, o aparecimento da figura do especialista que substitui a do sábio.

Sabemos que o aparecimento das Universidades esteve, na Europa do fim da Idade Média, intimamente associado a este processo. É impossível compreender a autonomização dos campos sociais sem o desenvolvimento das ciências modernas e o aparecimento das especializações científicas. Deter uma licenciatura corresponderá doravante a possuir a competência legítima para intervir eficazmente num determinado domínio da experiência e para formular as regras de conduta a seguir nesse domínio.

Ao contrário do sábio que, nas sociedades tradicionais, possui uma competência não especializada sobre o conjunto da experiência, o licenciado é perito num dos domínios da experiência. Enquanto a competência do sábio é esotérica, não só porque é válida apenas junto da sua comunidade de pertença, mas porque foi adquirida através do convívio com  um mestre, a validade da competência do licenciado é exotérica, porque não está restrita ao espaço de uma comunidade concreta, é universalmente reconhecida e é adquirida, no espaço aberto da Escola, pela aplicação metodicamente conduzida da razão.

Com a autonomização dos campos sociais, autonomiza-se igualmente a competência para a formulação discursiva das regras da competência para intervir eficazmente em cada um dos campos sociais. Autonomiza-se assim, para os campos sociais, a função discursiva da função pragmática.

O desempenho da função simbólica de um campo social equivale à formulação discursiva da ciência e as suas diferentes etapas de formalização correspondem àquilo a que Michel Foucault deu o nome de formação discursiva.[18]

Por seu lado, o desempenho da função pragmática equivale à tecnicidade de um determinado campo social. A maneira de desempenhar historicamente esta função não depende apenas do nível de formalização discursiva, mas pressupõe um determinado estádio da evolução da invenção técnica.

Ao contrário da modalidade tradicional da experiência, a modalidade moderna fundamenta-se, portanto, na distinção entre função discursiva e função pragmática, entre os valores de adequação do discurso e os valores de eficácia técnica, entre a esfera da palavra e a esfera da acção.

Os detentores da legitimidade simbólica e pragmática num determinado domínio da experiência formam um corpo social. A sua legitimidade adquire-se, não através da transmissão de uma sabedoria, mas pela aquisição de uma disciplina, no duplo sentido do termo, o do saber discursivamente formulado, e o de uma hexis ou um ethos, espécie de hábito adquirido, ao longo da formação, que habilita os seus detentores para o exercício competente de uma profissão, das decisões, dos gestos e das atitudes adequados à intervenção num determinado domínio da experiência. É a este processo que damos o nome de disciplinarização moderna da experiência.

Podemos distinguir facilmente, ao longo do processo de constituição da modernidade, algumas viragens fundamentais, a partir da invenção e da adopção dos dispositivos técnicos utilizados pelos campos sociais na sua intervenção nos domínios da experiência de que detêm a competência legítima.

A autonomização moderna dos diferentes domínios e das diferentes dimensões da experiência é um processo eminentemente secularizante, na medida em que a religião deixa de ser o quadro unificador e homogeneizador da totalidade da experiência. Cada um dos domínios autonomizados da experiência passa a ser constituído como um campo autónomo, dotado de legitimidade para criar, impor, manter, sancionar e restabelecer os valores e as regras, tanto constitutivas como normativas, que regulam um domínio autonomizado da experiência. Abordarei, por isso, neste capítulo, a génese, a natureza, as funções, a legimidade, o processo de inculcação, o sistema de sanções, o regime de funcionamento, a simbólica e o corpo dos campos sociais.

Antes, porém, convém esclarecer o sentido da expressão campo social. Não devemos entender aqui o termo campo num sentido espacial, mas energético, à maneira da física, que fala de campo de forças para designar a tensão gerada pelo confronto entre pólos de sentido oposto. É portanto num sentido tensional que utilizo a expressão campo social. Com esta metáfora física pretendo sublinhar o efeito tensional sobre a experiência que resulta do confronto entre campos autónomos, cada um deles com a pretensão de regular um determinado domínio da experiência, a partir da delimitação de um determinado quadro do sentido.

É na fronteira entre campos de legitimidade que esta tensão se gera e se manifesta. A luta pela mobilização do conjunto da experiência por cada um dos campos traduz esta natureza tensional da racionalidade moderna dos campos sociais. Veja-se, a propósito, o debate interminável entre o político, o médico, o económico, o jurídico, o religioso acerca das questões da droga ou da despenalização do aborto, cada um dos campos sociais procurando impor os seus quadros próprios de sentido em ordem à regulação da experiência destas questões.

Mas devemos notar que um dos aspectos interessantes desta tensão é o surgimento moderno de novas questões, a partir do momento em que se consuma esta autonomização dos campos. A sexualidade, o aborto, tal como a infância, as mulheres, a droga, a velhice não são evidentemente experiências modernas, mas autonomizam-se como questões modernas, a partir de perspectivações estabelecidas autonomamente pelos campos sociais modernos, que se encarregam de as tematizar.

Para designar um campo social utilizo a forma masculina de um adjectivo substantivado: o político, o económico, o jurídico, o médico, o científico. É uma convenção destinada a distinguir um campo social das suas materializações e manifestações políticas, económicas, jurídicas, médicas, científicas. Assim, o político não se confunde com a política, que tem a ver com a sua materialização conjuntural no jogo partidário. O económico não se confunde com a economia nem o religioso com a religião, o médico com a medicina, o científico com a ciência. Como veremos, o económico não se limita às manifestações económicas, mas intervém também em práticas que escapam ao domínio da economia, tal como o religioso não se esgota na prática das Igrejas, mas intervém também noutras esferas de actividade.

1.9        A génese dos campos sociais

Um campo social é o resultado ou o efeito de uma génese, de um processo de autonomização secularizante bem sucedido, graças à aquisição da capacidade de impor, com legitimidade, regras que devem ser respeitadas num determinado domínio da experiência, baseadas numa indagação racional metodicamente conduzida.

Este processo está intimamente associado à constituição do sujeito e à sua progressiva emancipação das coacções que impedem a sua autonomização no seio da tradição. Entre os factores desta coacção, contam-se os determinismos herdados da tradição e legitimados de maneira transcendente assim como a ausência de controlo dos fenómenos da natureza.

Apesar de não ser exclusivo de nenhuma época nem de nenhuma sociedade em particular, este processo tornou-se explicitamente mobilizador da civilização ocidental, a partir do século XIII, tendo-se acelerado a partir do século XVII e acabando por se alastrar aos outros continentes, na sequência da intensificação do contacto entre os povos e as culturas.

Lewis Mumford considera a invenção do vidro, da imprensa e do relógio mecânico as invenções mais importantes do processo de viragem da modernidade.[19] «A invenção e o aperfeiçoamento do relógio constituiram o passo decisivo em direcção da automação; porque fornece o protótipo a muitas outras máquinas automáticas; e acaba por atingir um grau de perfeição, no cronómetro do século XVIII, que estabelece um critério para outros refinamentos tecnológicos.»[20] De facto, é com a invenção deste dispositivo técnico de medição do tempo que assistimos a um processo de naturalização de uma experiência artificial da temporalidade, independente dos ritmos naturais da experiência: «A máquina que mecanizou o tempo fez mais do que regular as actividades do dia: sincronizou as reacções humanas, não com o nascer e o pôr do Sol, mas com os movimentos das agulhas do relógio; introduziu assim em todas as actividades a mensuração exacta e o controlo temporal estabelecendo um critério independente permitindo figurar e subdividir a totalidade do dia.»[21]

Mas já desde a Antiguidade encontramos inúmeros inventos técnicos que prenunciam este esforço de emancipação. A invenção da escrita alfabética deverá ter desempenhado indiscutivelmente um papel fundamental no desencadeamento deste processo.

O domínio da saúde, da gestão dos valores da vida, e o domínio do direito, da gestão dos valores da justiça, contam-se entre os primeiros domínios a conquistar, já nos finais do século XIII, a sua autonomia, instituindo-se como campos sociais dotados de autonomia em relação ao religioso.[22]

1.10     A natureza dos campos sociais

Por campo social entendo uma instituição dotada de legitimidade indiscutível, publicamente reconhecida e respeitada pelo conjunto da sociedade, para criar, impor, manter, sancionar e restabelecer uma hierarquia de valores, assim como um conjunto de regras adequadas ao respeito desses valores, num determinado domínio específico da experiência.

A especificidade de um campo social consiste, por conseguinte, na averiguação do domínio da experiência sobre o qual é competente e sobre o qual exerce uma competência legítima.

Por instituição devemos entender uma categoria abstracta e arbitrária. Não devemos por isso confundir instituição com organização, na medida em que tanto pode abarcar uma ou várias organizações como pode não se concretizar em nenhuma organização. Assim, por exemplo, o campo médico não se limita à organização da medicina, com as suas organizações hospitalares, mas abarca o conjunto dos discursos e dos procedimentos autorizados que têm a ver com gestão dos valores da saúde, a sua manutenção, preservação e o seu restabelecimento.

É também fundamental entender correctamente as noções de valor e de regra para compreender um campo social. Um valor é um bem em nome do qual os indivíduos e a sociedade estão dispostos a sacrificar outros bens. É o caso por exemplo da saúde, da integridade territorial, física ou moral, do poder, da riqueza, da salvação, bens em nome dos quais estamos dispostos a determinados sacrifícios e que são regulados na modernidade por campos sociais diferenciados. A noção de valor é, por conseguinte, uma noção relativa, podendo variar de acordo com o número e a importância dos bens em nome dos quais estamos dispostos a sacrificar outros bens. Não devemos portanto confundir relatividade dos valores com relativismo, na medida em que o lugar relativo que ocupam não é indiferente mas indiscutivemente aceite.

Existem duas modalidades de regras: constitutivas ou definitórias e normativas.[23] As regras constitutivas ou definitórias são aquelas que constituem ou definem a realização de determinado acto, ao passo que as regras normativas impõem uma maneira de realizar um acto cuja definição pre-existe a essas regras. Um campo social não cria apenas regras normativas, não prescreve apenas a maneira conforme ou adequada de realizar determinados actos, constitui ou define também os actos que pertencem à sua esfera de competência e de influência.

1.11     As funções dos campos sociais

Como já dissémos, um campo social desempenha dois tipos de funções dentro do seu domínio específico de competência: funções expressivas ou discursivas e funções pragmáticas ou técnicas.

As funções expressivas ou discursivas consistem no exercício da competência legítima por parte de um campo social para enunciar os princípios, os valores e as regras que têm curso dentro do domínio da experiência sobre o qual tem competência.

Por seu lado, as funções pragmáticas ou técnicas consistem no exercício da competência legítima por parte de um campo social para intervir, com eficácia, com vista à criação, à inculcação, à manutenção, ao sancionamento e ao restabelecimento da sua ordem de valores. As funções pragmáticas de um campo social são, por conseguinte, de natureza pedagógica e terapêutica. As funções de natureza pedagógica têm a ver com a inculcação da sua legitimidade ao conjunto da sociedade, ao passo que as funções terapêuticas têm a ver com a intervenção destinada ao restabelecimento da sua ordem de valores própria.

As funções terapêuticas dividem-se, por seu lado, em ortésicas e em protésicas. Enquanto as primeiras visam o restabelecimento do bom funcionamento de um órgão, as segundas visam a substituição de um órgão estragado ou perdido por dispositivos técnicos. Foi sobretudo esta natureza protésica das funções técnicas dos campos sociais que esteve na origem da visão eufórica da modernidade, expressa, no século XVIII, pelos enciclopedistas que consideravam o progresso técnico moderno como um prolongamento da obra criadora de Deus.[24]

1.12     A legitimidade dos campos sociais

Uma das características fundamentais de um campo social é o facto de deter uma legitimidade exclusiva, tanto para enunciar as regras que devem ser observadas por todos, como para intervir com eficácia no domínio da experiência sobre o qual detém competência.

Devemos distinguir duas modalidades de legitimidade de um campo social: a própria e a vicária. Por legitimidade própia entende-se a que um campo social possui dentro do seu domínio próprio da experiência, ao passo que a legitimidade vicária é aquela que um campo social possui num domínio da experiência que não lhe é próprio, por delegação de um outro campo social. Esta distinção revelar-se-à muito importante quando considerararmos as relações que os diferentes campos sociais estabelecem entre si, relações que dão origem àquilo a que daremos o nome de dimensões dos campos sociais. Assim, por exemplo, o campo médico possui, além da sua legitimidade própria no domínio da saúde, legitimidade vicária noutros domínios da experiência, tais como os domínios escolar, científico, político, económico. Como veremos, nem sempre esta delegação de competências por parte de outros campos sociais é isenta de tensões e de conflitos.

1.13     O sistema de sanções dos campos sociais

Uma das manifestações da legitimidade de um campo social tem a ver com a faculdade para impor sanções sempre que a sua ordem de valores é violada. Um campo social tem à sua disposição modalidades físicas e morais de sanções.

As sanções morais ou simbólicas que um campo impõe aos prevaricadores ou violadores da sua ordem específica compreendem o conjunto dos processos de exclusão. Podem ir da simples repreensão e da ironia até à interdição de utilização dos recursos que o campo social põe à disposição da sociedade e à frequentação dos seus espaços próprios. Por seu lado, as sanções físicas compreendem as penalidades materiais impostas aos prevaricadores da sua ordem própria de valores.

1.14     Regularidade e regimes de funcionamento dos campos sociais

Um campo social apresenta regimes diferenciados de funcionamento. Podemos distinguir entre regimes acelerados e regimes lentos de funcionamento.

Um campo social funciona em regime acelerado quando mobiliza o conjunto dos domínios da experiência em torno das suas regras próprias, sobrepondo-se ao funcionamento dos outros campos sociais. Assim, por exemplo, por ocasião das revoluções, o campo político apresenta um regime acelerado de funcionamento. Nesse período, os restantes domínios da experiência são mobilizados pelo funcionamento do campo político.

O funcionamento lento de um campo é o regime que vigora em período normal, durante o qual se estabelece um relativo equilíbrio entre a mobilização de um campo com a mobilização dos restantes campos.

O equilíbrio dos regimes de funcionamento dos campos sociais é, no entanto, sempre relativo e instável. Devido à natureza autónoma de cada um dos campos, cada um tende a sobrepor a sua lógica e os valores que entende regular à lógica e aos valores dos restantes campos, a acelerar o seu próprio regime de funcionamento.

Um campo social pode acelerar o seu regime de funcionamento por ocasião da ocorrência de fenómenos exógenos que fazem perigar a sua própria ordem de valores. É o caso de uma epidemia ou de uma catástrofe natural que obriga à mobilização colectiva em torno do campo médico. Mas pode também acontecer por ocasião da ocorrência de fenómenos endógenos ao próprio campo social. É o caso da eclosão de uma revolução, que mobiliza o conjunto da sociedade em torno do campo político, ou de uma peregrinação de massa, que mobiliza a sociedade em torno do campo religioso.

1.15     A simbólica dos campos sociais

Não existe campo social sem a sua simbólica própria. É pela imposição de uma simbólica própria que os campos sociais asseguram a sua visibilidade pública. Podemos distinguir dois tipos de simbólica dos campos sociais: a formal e a informal.

A simbólica formal é constituída por fardas, insígnias, rituais. É regulada por regras, tanto constitutivas como normativas, caracterizadas pelo rigor das suas manifestações e pela exclusividade do seu uso por parte dos membros competentes que formam o seu corpo social. Como exemplos, citemos as alfaias, as vestes e os rituais litúrgicos, as vestes religiosas, as togas dos académicos e dos juizes, as paradas, as fardas e os distintivos hierárquicos dos militares.

Podemos considerar o conjunto dos símbolos formais como um sistema de mecanismos ambivalentes que asseguram, por um lado, a sua visibilidade externa, mas, por outro lado, restringem o seu domínio aos detentores legítimos das suas marcas e dos seus rituais.

Por seu lado, a simbólica informal consiste no apagamento sistemático de marcas distintivas. A simbólica informal, ao contrário da formal, destina-se a assegurar a permeabilidade da sociedade por parte do campo em que vigora.

A distinção entre estes dois tipos de simbólica é um dos critérios para distinguir entre campos sociais cuja autonomização e constituição está associada à primeira modernidade e campos sociais cuja autonomização e constituição ocorre na modernidade tardia, como é o caso do campo dos media. Os primeiros são, por isso, dotados de uma competência legítima esotérica, ao passo que os segundos são dotados de uma competência exotérica.

Mas devemos considerar o fenómeno da contaminação da simbólica das instituições cuja autonomização se dá na primeira modernidade pela simbólica dos campos sociais emergentes na modernidade tardia. Os clérigos tendem assim a eliminar o uso das vestes talares e a a adoptar uma simbólica informal, à semelhança dos campos sociais mais recentes, para assegurar uma maior permeabilidade do religioso no mundo contemporâneo. Este processo é particularmente ambivalente, como terei ocasião de referir.

1.16     O corpo social e os sistemas de acreditação dos campos sociais

As entidades detentoras da competência legítima de um campo formam o seu corpo social. No exercício, tanto da sua competência discursiva, como da sua competência pragmática, o corpo social tende a ostentar as marcas simbólicas da sua competência, no caso dos campos que possuem uma simbólica formal, ou a ostentar a ausência dessas marcas, no caso dos campos que possuem uma simbólica informal.

De entre as questões fundamentais com que um corpo social está confrontado conta-se a do seu sistema de acreditação, assim como a da compatibilização desse sistema com a modalidade  tradicional de legitimação que persiste no domínio da experiência que lhe é próprio.

1.17     Conclusão: a instituição da publicidade

Com a autonomização e constituição modernas dos campos sociais, institui-se aquilo a que damos o nome de publicidade. A publicidade é o processo de tornar público, resultante da compatibilização entre a legitimidade de um campo com a legitimidade dos diferentes campos sociais. Este processo resulta da fragmentação da experiência induzida pelo processo moderno de especialização e da imposição desta lógica ao conjunto da sociedade.[25]

É este processo que está na origem da autonomização e da constituição de um campo especializado na regulação dos valores da publicidade, a que dou o nome de campo dos media, de que tratarei no próximo capítulo.

Devemos, no entanto, distinguir cuidadosamente os conceitos de espaço, de esfera e de dimensão públicos. Por espaço público entende-se o conjunto dos territórios abertos à circulação de todos, não apropriáveis por indivíduos nem por entidades particulares. É o caso das estradas, das praças, da orla marítima, nas quais qualquer um é livre de se deter, pelas quais todos podem passar e circular. A esfera pública é constituída pelo conjunto dos discursos e das acções que têm a ver com o domínio da experiência dos todos, que interferem com a experiência da interacção e da sociabilidade. Tem a ver com o direito de cada um à livre expressão e à liberdade de acção, independentemente da natureza pública ou privada do espaço em que este direito se exerce. A dimensão pública, por seu lado, é a relação que cada um dos campos sociais possui com os restantes campos sociais. A dimensão pública corresponde, portanto, à noção de interface entre os diferentes campos sociais. Neste sentido, até os espaços privados da domesticidade são atravessados por dimensões públicas. Assim o espaço privado da vida doméstica comporta dimensões públicas política, económica, religiosa.


A autonomização do campo dOS MEDIA

1.18     Introdução

Como vimos, logo na primeira parte, são os dispositivos de mediação que delimitam os objectos da percepção e da sensação que integram o Mundo vivido. No entanto, só na modernidade tardia esses dispositivos se problematizam, autonomizando-se num campo próprio. Enquanto a experiência tradicional se alimenta da amnésia da arbitrariedade ou do esquecimento naturalizante dos quadros da experiência formados pelos dispositivos de percepção do mundo, a experiência moderna procede da autonomização desses dispositivos e da instituição de um campo dotado de legitimidade para superintender à experiência de mediação, instituição a que dou o nome de campo dos media. O processo de autonomização do campo dos media dá-se, por conseguinte, na sequência do acesso à consciência reflexiva moderna que está na origem da instauração do projecto de desconstrução e de problematização dos quadros do sentido da experiência.

Podemos já antever no Método de Descartes uma das manifestações deste processo reflexivo e problematizande de desconstrução, a partir da crítica da experiencia espontânea, objecto da suspeita de fundar uma relação enganadora e falaciosa ao mundo. É por isso que o Método deriva de uma vontade, profundamente moderna, de fundar uma experiência universalmente válida, independente não só do enraizamento na experiência tradicional de uma cultura particular, mas sobretudo dos mecanismos enganadores da percepção sensorial. Encetado no século XVII, este processo desconstrutor da experiência nunca mais cessaria de ser aprofundado pela reflexão filosófica dos últimos três séculos, cavando-se, por  conseguinte, cada vez mais profundamente o hiato intransponível entre a realidade em si e a experiência fenomenal.

A consumação da autonomização do campo dos media só virá, no entanto, a ocorrer com o advento da modernidade tardia, no termo da fragmentação dos campos sociais que surgiram com a primeira modernidade. É só na segunda metade do século XX que se coloca a questão da compatibilização da legitimidade de cada um dos campos sociais com a dos restantes campos.

O campo dos media não se limita, no entanto, a superintender à mediação dos diferentes domínios da experiência e dos diferentes campos sociais. Faz também emergir, nas fronteiras dos campos sociais instituídos, novas questões, como a droga, o sexismo, o aborto, a ecologia, para as quais nenhum dos campos detém legitimidade indiscutível nem consegue encontrar soluções consensuais e impô-las ao conjunto da sociedade. São doravante estas novas questões que irão mobilizar o debate público que o campo dos media se encarrega de promover e publicitar. Fazendo intervir, ao mesmo tempo, problemas de natureza científica, política, económica, religiosa, médica, estas novas questões mostram os limites da legitimidade de cada um dos campos sociais instituídos ao longo da modernidade para a formulação e a imposição de valores consensuais e de regras susceptíveis de regular os comportamentos adequados. É no campo dos media que estas novas questões se irão reflectir e problematizar.

As particularidades do campo dos media reflectem-se na natureza da sua génese, das funções que desempenha, da sua legitimidade, do seu sistema de sanções, do seu regime de funcionamento, da sua simbólica, do seu corpo social e do seu sistema de acreditação.

1.19     A génese do campo dos media

É a natureza tensional da relação entre os diferentes campos sociais que está na origem da emergência e da progressiva autonomização do campo dos media. Mas é a coalição entre os domínios científico e técnico da modernidade que contribui hoje, de maneira decisiva, para a consumação da autonomia deste novo campo.

A natureza do campo dos media está, por conseguinte, intimamente associada ao desempenho das funções de regulação indispensáveis à gestão das relações entre os diferentes campos sociais. Deste ponto de vista, o campo dos media vive do despoletamento, da exacerbação ou da naturalização das tensões derivadas do facto de os diferentes campos sociais concorrerem entre si com vista à mobilização do conjunto da sociedade para o respeito das suas ordens de valores e ao pretenderem impor as suas regras de comportamento.

A autonomização do campo dos media obedece, por conseguinte, a imperativos de natureza, ao mesmo tempo, lógica e estratégica. Mobiliza, por um lado, os indivíduos e o conjunto da sociedade em torno de valores comuns, contrariando a tendência fragmentadora da modernidade que a autonomização dos campos sociais implica. O campo dos media é, deste ponto de vista, um alidado poderoso da pretensão mobilizadora dos outros campos sociais. É que, não podendo já contar com os mecanismos da repressão física, em virtude dos ideais modernos de emancipação do sujeito, os campos sociais contam doravante com os mecanismos retóricos da linguagem para o convencimento e a mobilização em torno dos valores e das regras que o campo dos media se encarrega de criar, promover e impor ao conjunto da sociedade. Mas, por outro lado, o campo dos media gere os dispositivos de percepção da realidade e constitui, deste modo, a própria experiência do mundo moderno, assegurando a sua percepção para além das fronteiras que delimitam o mundo vivido das comunidades tradicionais.

A autonomização do campo dos media seria, no entanto, impossível sem a constituição do paradigma cibernético no termo de autonomização do campo científico. É a emergência da cibernética como novo paradigma científico, na modernidade tardia, que autonomiza efectivamente os dispositivos de mediação, ao conferir-lhes o estatuto de objecto de questionamento científico e ao considerá-los objecto de intervenção técnica.[26]

Estas razões lógicas e estratégicas da emergência do campo dos media serão melhor compreendidas se tivermos em conta a sua própria natureza.

1.20     A natureza do campo dos media

O campo dos media é a instituição que possui a competência legítima para criar, impor, manter, sancionar e restabelecer a hierarquia de valores assim como o conjunto de regras adequadas ao respeito desses valores, no campo específico da mediação entre os diferentes domínios da experiência sobre os quais superintendem, como vimos, na modernidade, os diferentes campos sociais.

O termo media utilizado para especificar a natureza deste campo presta-se a alguns equívocos. Generalizou-se o uso do termo latino medium, no singular, ou media, no plural, para designar o conjunto da imprensa escrita, da radiodifusão e da televisão. Não é neste sentido que utilizo este termo na expressão campo dos media. Trata-se antes de uma noção abstracta que utilizo para designar a instituição, que se autonomiza, na modernidade tardia, que é dotada de legitimidade para superintender à gestão dos dispositivos de mediação da experiência e dos diferentes campos sociais. Domínios da experiência como os da moda, da publicidade, do management, das relações públicas, das redes telemáticas, tal como os já mencionados sectores jornalísticos, partilham obviamente esta característica. Mas nem todo o funcionamento destes sectores pertence ao campo dos media nem o campo dos media se restringe ao funcionamento destes sectores. Assim, por exemplo, a administração de uma empresa jornalística, embora pertença obviamente ao sector jornalístico, não faz parte do campo dos media. Por seu lado, os dispositivos de microscopia electrónica ou as redes telemáticas, por exemplo, embora não façam parte do domínio jornalístico, são dispositivos intimamente associados ao campo dos media, na medida em que autonomizam tecnicamente a nossa percepção do mundo em relação aos dispositivos naturais de percepção.

A emergência do campo dos media só ocorreu na segunda metade do século XX e a sua consumação apenas viria a correr efectivamente a partir dos meados dos anos 80, altura em que o nosso planeta fica completamente coberto pelos satélites de telecomunicações e em que são implantados os dispositivos técnicos da telemática que estão na origem das actuais redes da informação mediática. É a partir dessa altura que assistimos efectivamente à autonomização de um domínio específico destinado à criação e à gestão dos dispositivos da informação mediática.

1.21     As funções do campo mediático

No campo dos media, as funções discursivas predominam sobre as funções pragmáticas. Podemos inclusivamente dizer que é a gestão dos discursos que caracteriza a sua natureza. Mas o discurso não se limita, no campo dos media, a expressar os valores  e as regras de comportamento que cria e impõe; assume uma função eminentemente pragmática, na medida em que a sua prática dominante consiste num conjunto de actos de linguagem. Equivale, por isso, a um fazer, a uma intervenção dotada de efeitos que se repercutem sobre o conjunto dos outros domínios da experiência e sobre os campos sociais que exercem sobre eles o seu domínio competente.[27]

O efeito mais notável que o campo dos media exerce sobre a nossa experiência do mundo é o chamado efeito de realidade, o facto de a realidade tender para o resultado do funcionamento dos dispositivos de mediação, autonomizando-se em relação à percepção imediata do mundo e sobrepondo-se à percepção espontânea dos nossos órgãos sensoriais.

Do efeito de realidade decorre o efeito de simulação ou a performatividade dos dispositivos mediáticos, a sua capacidade para antecipar, modelar e substituir o real. Deste ponto de vista, o campo dos media consuma a natureza ortésica e protésica da tecnicidade moderna, ao dotar-nos de dispositivos que substituem o funcionamento e os órgãos sensoriais de percepção da realidade.

1.22     A legitimidade do campo dos media

O campo dos media não gere propriamente um domínio da experiência específico, mas um domínio constituído por uma parte dos domínios da experiência que os restantes campos sociais nele delegam. É por isso que dizemos que o campo dos media possui uma legitimidade de natureza delegada ou vicária.

A parte que os restantes campos sociais delegam no campo dos media é uma parte da sua função discursiva ou expressiva e constitui o domínio público ou exotérico da sua competência. É por isso que o campo dos media é, ao mesmo tempo, constitui e é constituído pelo público, instância que é contemporânea da sua própria formação.

Os campos sociais seleccionam, de entre as diferentes formas de expressão da sua legitimidade, aquela que é destinada ao público, reservando no entanto para si a expressão especializada e esotérica. É por isso que, à medida que o campo dos media se autonomiza, cada um dos outros campos tende a profissionalizar um corpo próprio encarregado de assegurar esta função de mediação, encarregado sobretudo de redigir releases ou comunicados destinados ao público. Assistimos assim ao aparecimento de gabinetes de imprensa, de serviços de relações públicas, de profissionais em marketing, que se encarregam desta função de publicidade.

1.23     O sistema de sanções do campo dos media

Ao contrário dos outros campos sociais, que têm à sua disposição sistemas morais e físicos de sancões que aplicam aos prevaricadores da sua ordem de valores e das suas regras de comportamento, o campo dos media tem à sua disposição a privação da publicidade para os que não se sujeitam à sua ordem de valores de mediação e não cumprem as regras do seu discurso.

O efeito mais notório deste sistema de sanções é o da privação de visibilidade pública, com a consequente perca da existência social das suas vítimas. É por isso que cada vez mais a realidade se confunde com aquilo que é mediatizado pelo campo dos media.

1.24     Regularidade e regimes de funcionamento do campo dos media

Ao contrário da natureza intermitente do funcionamento dos restantes campos sociais, o campo dos media funciona de maneira contínua, tendendo a confundir-se com o próprio pulsar da vida social. A mobilização do conjunto da sociedade para o respeito dos seus valores e das suas regras de funcionamento é, por isso, constante, não exigindo processos particulares de inculcação.

O seu funcionamento não obedece, no entanto, a um regime constante, mas apresenta alterações significativas. De uma maneira geral, o regime de aceleração do campo dos media acelera-se quando a sua ordem de valores corre o risco de ser posta em causa, quando as suas regras de funcionamento são violadas ou quando se assiste ao exacerbamento da tensão nas suas relações com outros campos sociais. Como exemplos deste exacerbamento refiram-se as questões recentemente suscitadas pelas relações do campo dos media com o campo jurídico a propósito da revelação de elementos de processos não transitados em julgado, da divulgação dos nomes de réus antes da sua condenação pelos tribunais, da revelação das fontes.

1.25     A simbólica do campo dos media

O facto de se tratar de um campo destinado a assegurar a mediação entre os diferentes campos sociais determina a natureza informal da sua simbólica. Deste modo, os membros do seu corpo social tendem a manifestar a sua pertença ao campo através do apagamento sistemático de quaisquer marcas distintivas e olhar com desconfiança todas as manifestações que denotem publicamente lugares diferenciados na hierarquia do campo.

Esta natureza informal da simbólica do campo dos media é um factor importante de equívocos das relações entre membros do corpo social do campo dos media e membros dos corpos sociais de campos que possuem simbólicas formais (clero, magistrados, professores, militares). Mas é igualmente um dos factores que está na origem da ambivalência vivida no decurso dos processos de modernização dos campos sociais que possuem uma simbólica formal. Essa modernização é encarada, por um lado, como abandono de marcas formais distintivas, indispensável à sua imposição num mundo secularizado, mas, por outro lado, como perca da sua invisibilidade pública, da consequente afirmação e reconhecimento da sua legitimidade por parte do público.

1.26     O corpo social e o sistema de acreditação do campo dos media

Uma das questões mais controversas do campo dos media é a do sistema de acreditação do seu corpo social. Vimos que para a autonomização e institucionalização dos campos sociais contribuíu de maneira decisiva o aparecimento de novos pocessos de acreditação do saber. O aparecimento da figura do especialista, acreditado com o diploma universitário, representou um papel fundamental na autonomização dos campos sociais que emergiram com a primeira modernidade. Representaram, de algum modo, uma ruptura para com a natureza da legitimidade da experiência tradicional, herdeira de uma sabedoria ancestral, adquirida através do convívio com um mestre de quem adquirira a competência que guardava como um segredo.

O corpo social próprio ao campo dos media, por seu lado, encara de maneira particularmente ambivalente o diploma universitário como instrumento de acreditação da sua competência. Sendo o domínio próprio da sua competência legítima o da mediação dos diferentes domínios da experiência e dos restantes campos sociais, tende a postular a exigência de um saber interdisciplinar e a promover a ruptura em relação à natureza disciplinar que caracteriza a ciência moderna.

Deste modo, numa época em que os saberes atingiram um nível extremamente elevado de especialização, a sua legitimidade é encarada de maneira particularmente ambivalente. Por um lado, os saberes disciplinares tornam-se cada vez mais inacessíveis aos que que não pertencem aos corpos sociais especializados. O corpo social do campo dos media tende assim a ser considerado com desconfiança por parte dos corpos dos campos sociais especializados, que o acusam de atraiçoar a especificidade do seu saber sempre que os publicitam. Mas, por outro lado, os corpos acreditados dos campos sociais especializados precisam cada vez mais da publicitação do seu saber, por parte do campo dos media, para assegurarem a visibilidade da sua própria legitimidade.

Assistimos assim a uma relação paradoxal, feita de sedução e de desconfiança, entre, por um lado, os campo sociais especializados, e, por outro lado, o campo dos media. É esta relação paradoxal que permite compreender a relação ambivalente do seu corpo social com a instituição científica. Embora dependa dela para a sua acreditação, sob pena de regresso às formas arcaicas e esotéricas pré-modernas, não pode deixar de desconfiar da natureza especializada do campo científico, sob pena de pôr em causa a sua própria natureza interdisciplinar. Não admira, por isso, que faça depender o sistema de acreditação do seu corpo, ora da experiência espontânea daquilo que designa habitualmente por tarimba, correndo os riscos do corporativismo tradicional, ora da aquisição de um diploma universitário, correndo os riscos da disciplinarização do saber.

1.27     Conclusão

Gostaria de concluir este trabalho, mostrando a estreita relação da autonomização do campo dos media com a experiência, na era da modernidade tardia. Como tive ocasião de mostrar, o campo dos media desempenha funções predominantemente simbólicas: assegura, ao mesmo tempo, o funcionamento dos dispositivos de representação e reflecte, como num espelho, os diferentes domínios da experiência.

É a natureza especular e representativa do seu funcionamento que confere ao campo dos media a especificidade da seu domínio próprio de competência, o da mediação entre os diferentes campos sociais, religando entre si o mundo fragmentado moderno.

É porque depende sobretudo da enunciação de um discurso próprio, o discurso mediático, que o desempenho desta função simbólica, especular e representativa, que é a experiência discursiva, que acaba por ser o domínio de competência específico da campo dos media.

O discurso mediático possui, além das características de qualquer outra modalidade de discurso, um conjunto de traços distintivos que definem a sua natureza e o seu modo de funcionamento e o distinguem dos outros discursos. Vou apenas referir dois conjuntos de características do discurso mediático.

O primeiro conjunto tem a ver com as regras da enunciação. Ao contrário dos outros discursos, o discurso mediático é antes um discurso de natureza exotérico, isto é, compreensível independentemente da situação interlocutiva particular. É este primeiro traço que assegura a relação de mediação entre todos os domínios da experiência e entre todos os campos sociais. Do ponto de vista formal, esta característica resulta da aplicação por parte do corpo social próprio do campo dos media de todo um conjunto de regras discursivas. De entre essas regras, merece particular referência à da supressão ou, pelo menos, ou  do uso reduzido ao mínimo das marcas dícticas, isto é, do jogo pronominal que refere os interlocutores, assim como o tempo e o lugar da enunciação mediática. A esta regra de eliminação das marcas dícticas dou o nome de processo de objectivação do discurso ou, se preferirmos, de apagamento das marcas da subjectividade. Trata-se evidentemente de um processo estratégico que visa criar as condições simbólicas de representação exotérica da experiência do mundo, na medida em que não é pelo facto de o locutor não dizer “eu” que deixa de estar presente na enunciação do seu discurso.

O segundo conjunto de regras tem a ver com o jogo retórico ou de figuração do discurso. Ao contrário dos outros campos sociais, que procuram na autonomização conceptual e terminológica a eficacidade simbólica da sua própria autonomização, o discurso mediático procura na transposição conceptual e na metaforização terminológica o exercício da sua relação especular com os diferentes domínios da experiência e a eficacidade simbólica da sua função de mediação entre os outros campos sociais. Os exemplos mais notáveis destes processos de metaforização encontram-se nos títulos da imprensa e nos discursos jornalísticos, mas atingem um alto nível de criatividade nos discursos publicitários, feitos de aproximações ousadas e, por vezes, brilhantes de terminologias originárias de campos sociais distintos. «Guerrilha na bolsa», «Empate nas sondagens», «Portugal abre guerra da língua», «Ministro chamuscado» são alguns exemplos de processos de metaforização do discurso dos media.

Estas características enunciativas e retóricas não dão conta obviamente de todas as diferenças que o discurso mediático apresenta em relação aos discursos dos outros campos sociais. Faltam ainda estudos minuciosos que permitam averiguar, de maneira sistemática e ponderada, as suas características tanto lexicais, sintáxicas e semânticas como enunciativas, retóricas e pragmáticas. Mas a evocação breve e resumida de algumas regras que o discurso mediático apresenta apenas nos domínios enunciativo e retórico é suficiente para mostrar que as relações que o campo dos media estabelece com a experiência são de natureza predominantemente simbólica.

A natureza simbólica das relações do campo dos media com a experiência são particularmente paradoxais. Por um lado, é graças à natureza discursiva ou simbólica das suas relações com a experiência que o campo dos media assegura as funções de publicitação ou de visibilidade pública do mundo e dos diferentes campos sociais. Mas, por outro lado, estas funções só podem ser asseguradas se o discurso mediático resultar de um processo de naturalização objectivante, pela opacificação ou pelo apagamento sistemático das marcas enunciativas. A eficácia do funcionamento do campo dos media resulta por isso daquilo a que dou o nome de processo de naturalização das regras de representação especular da realidade.

Não admira, por conseguinte, que o campo dos media estabeleça relações de natureza tensional com os outros campos sociais. Enquanto a representação da experiência produzida pelo discurso do campo dos media procede da naturalização dos dispositivos de percepção espontânea do mundo, a representação da experiência resultante dos discursos dos restantes campos sociais depende do respeito das disciplinas que visam a desnaturalização desconstrutora e de crítica dos quadros expontâneos que ditam o sentido da experiência quotidiana.

Esta tensão é particularmente visível nas atitudes ambivalentes dos corpos sociais dos restantes campos em relação ao corpo social do campo dos media. Embora aqueles não possam prescindir do contributo deste para a imposição da sua visibilidade pública, não podem deixar de considerar o discurso medático com suspeição, acusando-o de atraiçoar os seus valores e de não respeitar a autenticidade e o rigor dos seus discursos especializados.

Ao longo do processo de implementação da modernidade, a autonomização de cada um dos diferentes campos sociais resultou da luta bem sucedida pela imposição da sua competência num dos doínios da experiência. Como vimos, a autonomização do campo dos media coloca o mundo actual perante novas lutas que se situam nas fronteiras dos domínios da experiência que escapam ao domínio dos campos sociais instituídos. O papel mais importante do campo dos media será provavelmente cada vez mais a sua capacidade de tematização pública e de publicização do confronto entre os discursos especializados em torno das questões suscitadas por estes domínios.


OBRAS CITADAS

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[1] Cfr. Daniel Bell, The Coming of Pós-Industrial Society: a Venture in Social Forecasting, Nova Iorque, Basic Books, 1973; The Cultural Contradictions of Capitalism, Nova Iorque, Basic Books, 1976.

[2] Ver Francis Fukuyama, O Fim da História e o Último Homem, Lisboa, ed. Gradiva, 1992.

[3] Pierre Bourdieu, Le Sens Pratique, Paris, ed. de Minuit, 1980, página 88.

[4] Ver nomeadamente Jean-Marc Ferry, Les Puissances de l’Expérience, vol. 1. Le Sujet et le Verbe, Paris, ed. du Cerf, 1991.

[5] René Descartes, Discours de la Méthode pour bien conduire sa Raison, in Oeuvres et Lettres, Paris, Bibl. de la Pléiade, ed. Gallimard, 1953, páginas 125-179 (or.: 1637).

[6] Ver Marcel Détienne e Jean-Pierre Vernant, Les Ruses de l’Intelligence. La Métis des Grecs, col. Champs, Paris, ed. Flammarion, 1974.

[7] Op. cit., vol. 1, página 43.

[8] Ver a este propósito a obra de Erving Gofman, Frame Analysis, 1974 (trad. francesa: Les Cadres de l’Expérience, Paris, ed. de Minuit, 1991).

[9] Recorde-se que símbolo vem do grego synbolon. Na origem, um synbalon é um objecto que se parte de modo a que pela junção das duas partes se possa estabelecer o reconhecimento de um mensageiro.

[10] Desenvolvi este exemplo no meu livro Comunicação e Cultura, Lisboa, ed. Presença, 1999, 2ª ed., página.

[11] Recorde-se que traditio vem do verbo latino tradere que significa transmitir, entregar, dar, deixar por herança, confiar, ceder, abandonar, trair, atraiçoar, contar, narrar, ensinar, transmitir aos discípulos.

[12] Esta ruptura está inscrita na própria etimologia do termo que aparece tardiamente no século VI. Da raiz indo-europeia de modernus, mod- ou med-, derivaram os termos gregos medomai (tomar conta de ou meditar), medimnos (medida), medo (proteger ou governar), e os termos latinos modus (medida), modestus (comedido), medeor (cuidar de, tratar, medicar), medicus, medicina, medicamentum, remedium, moderatio, moderari. Como diz Emile Benveniste, por modernus entende-se uma medida de coacção, supondo reflexão, premeditação, e que é aplicada a uma situação desordenada.» (E. Benveniste, Vocabulaire des Institutuions Indo-européennnes, Paris, ed. de Minuit, 2º volume, 1969, página 128.

[13] Prefiro utilizar o termo autonomização para me demarcar das ressonâncias funcionalistas associadas aos termos fragmentação e diferenciação, habitualmente utilizados por alguns autores, para falar da modernidade.

[14] Ver Max Weber, L’Ethique Protestante et l’Esprit du Capitalisme, Paris, ed. Plon, 1964 )or.: 1920), páginas 121, 143, 191, 194.

[15] Ver Michel Foucault, Surveiller et Punir, Paris, ed. Gallimard, 1975.

[16] Ver sobre este ponto Anthony Giddens, Modernidade e Identidade Pessoal, Oeiras, ed. Celta, 1997.

[17] Ver Ferdinand Tönnies, Communauté et Société, Paris, Presses Universitaires de France, (or.: Gemeinschaft und Gesellschaft, 1887).

[18] Cfr. Michel Foucault, Archéologie du Savoir, Paris, ed. Gallimard, 1969, páginas 44 e ss.

[19] Ver nomeadamente Lewis Mumford, Le Mythe de la Machine, vol. 1. La Technologie et le Développement Humain, Paris, ed. Fayard, 1973, páginas 382-383, vol. 2, Le Pentagone de la Puissance, Paris, ed. Fayard, 1974, páginas 236-237.

[20] Op. cit., vol. 2, 1974, página 236.

[21] Op. cit., vol. 1, 1973, páginas 382-383.

[22] A institucionalização do campo médico esteve associada à prática da dissecação dos cadáveres e é já nos finais do século XIII que esta prática é atestada na Universidade Montpellier. A criação do direito civil, no século XIV, na Universidade de Bolonha pode ser considerada uma etapa fundamental da autonomização do campo jurídico.

[23] Tomo esta distinção de John Rawls, Teoria da Justiça, Lisboa, ed. Presença, 1993.

[24] Ver nomeadamente

[25] Ver a este propósito a obra fundamental de Jürgen Habermas, L’Espace Public. Archéologie de la Publicité comme Dimension Constitutive de la Société Bourgeoise, Paris, ed. Payot, 1978.

[26] Acerca desta relação do campo dos media com a emergência do paradigma cibernético ver o meu livro Estratégias da Comunicação, Lisboa, ed. Presença, 1997, 2ª ed., páginas 74-95. Ver também a obra fundamental sobre a história da tecnicidade de Gilbert Simondon, Du Mode d’Existence des Objets Techniques, Paris, ed. Aubier-Montaigne, 1990, 2ª. ed.

[27] Sobre os actos de linguagem ver sobretudo John Langshaw Austin, How to Do Things with Words, Oxford, Clarenton Press, 1962, e John R. Searle, Speech Acts, Cambridge Univ. Press, 1969.