Pedagogia da Comunicação, Cinema e Ensino:

Dimensões Pedagógicas do Cinema

 

(publicado em Educación y Medios de Comunicación en

el Contexto Iberoamericano" da Universidade Internacional de Andalucia, La Rabida, 1995)

 

Vítor Reia-Baptista, Universidade do Algarve

 

 

            A inclusão de estudos mediáticos nos diferentes níveis de ensino é uma medida necessária para uma formação integral e adequada às características culturais do cidadão das sociedades modernas onde o fenómeno comunicativo global assume grande importância social, cultural e pedagógica.

            Neste contexto, em que o cinema se integra perfeitamente, o estudo da dimensão pedagógica dos fenómenos fílmicos e cinemáticos torna-se um acto de aquisição de conhecimentos e de reflexão crítica sobre uma faceta preponderante da nossa história cultural recente, ou seja, destes últimos cem anos em que a humanidade tem deixado as suas marcas narrativas e multiculturais em imagens e sons interligados de formas várias.

            Os conhecimentos transmitidos pelos veículos de comunicação audio-visual, principalmente através da televisão e do cinema, constituem aquilo que alguns autores têm chamado um autêntico currículo paralelo, cujas implicações pedagógicas importa conhecer, estudar e investigar no próprio âmbito escolar uma vez que interferem, decididamente, com o processo normal de ensino-aprendizagem - currículo institucional, quer no que respeita aos efeitos cognitivos mais específicos, quer no toca a esfera mais global dos valores, atitudes e padrões de comportamento[1].

            Em 1976, Marcello Giacomantonio, um dos primeiros autores a reflectir sobre as implicações pedagógicas dos media, classificou o cinema como «o segundo veículo de modelos de comportamento, depois da TV»[2]. Giacomantonio elaborou esta apreciação para o contexto italiano da época, em que a televisão já detinha uma quota apreciável do tempo individual de visionamento em ganho crescente à exposição cinematográfica, no entanto, noutros contextos geográficos e culturais dessa altura, o cinema ainda continuava a ser o primeiro veículo de modelos de comportamento, tal como o tinha sido para uma série de gerações anteriores, cujos padrões de comportamento cultural importa conhecer, para melhor compreendermos a nossa relação com os contextos mediáticos.

            Para isso é preciso conhecer os canais de comunicação, e o cinema muito especialmente, na sua história, nas suas teorias, métodos, estéticas e linguagens, nas suas abordagens sociológicas e psicológicas, bem como nos seus mecanismos conjunturais de produção, distribuição e difusão, tentando depois relacionar as características mais importantes desses canais com o campo que temos vindo a designar como pedagogia da comunicação [3].

            No caso do cinema em geral e mais especificamente em alguns dos seus géneros mais paradigmáticos, para que se chegue a um conhecimento aprofundado das suas possíveis dimensões pedagógicas - implicações e efeitos em diferentes gerações de público cinéfilo, torna-se necessário um conjunto de estudos vários, mas unidos pela natureza sincrética da própria arte cinematográfica, a que poderíamos chamar antropologia fílmica. Tais estudos devem reflectir, necessariamente, o eclectismo crítico já adquirido pela actividade de inúmeros estudiosos cinéfilos em todo o mundo ao longo destes cem anos de história e cultura dos géneros cinematográficos, assim como não poderão deixar de abordar as características polissémicas das linguagens fílmicas presentes em cada um desses géneros.

            No âmbito de uma pedagogia da comunicação, da qual os estudos de antropologia fílmica são parte inerente[4], podemos apontar, para o caso do cinema, três grandes tipos de dimensão pedagógica que poderemos designar como: afirmativa, interrogativa e hereje.

            Como exemplos de uma pedagogia afirmativa, encontramos um número imenso de obras e géneros cinematográficos que ostentam estruturas narrativas e matizes dramatúrgicas diversas quer quanto à sua forma de organização sintagmática, quer quanto ao agrupamento paradigmático dos seus conteúdos. No entanto, esse vasto conjunto de obras e géneros apresenta quase sempre um aspecto comum, determinante da sua dimensão pedagógica: desenvolve uma tese (ou uma história) conjunturalmente consentânea com os valores e as normas dominantes do contexto sociocultural em que se insere. O conjunto de exemplos mais paradigmáticos que ostentam esta dimensão, são os que deram corpo à galeria de géneros a que se convencionou chamar cinema hollywoodesco. Embora com excepções pontuais e conjunturais, como iremos ver adiante, este tipo de cinema tem como característica fundamental laborar nos dogmas vigentes, criando e repetindo estruturas narrativas reconhecidas, como por exemplo as estruturas melodramáticas oriundas da dramaturgia cénica do industrialismo, nas suas várias formas de acção quotidiana e fictiva, assentes em bases ideológicas e éticas socialmente aceites. Encontramos no cinema hollywoodesco inúmeros exemplos deste tipo de dimensão pedagógica desde os primórdios de Porter ou Griffith, passando por Ford ou Hawks, até aos mais recentes filmes de Spielberg ou Stone entre muitos outros.[5]  O grande papel pedagógico deste super paradigma terá sido a criação, a preservação e o enaltecimento de uma identidade histórica e cultural de um povo - o norteamericano - que não tendo nem história nem cultura comuns, nem sequer meios para as adquirir em processos pedagógicos tradicionais, uma vez que a sua condição de emigrantes desgarrados, pobres e muitas vezes analfabetos não lhes permitiria a aquisição de conhecimentos histórico-culturais, ou linguísticos em quantidade suficiente e em tempo útil para o exercício de uma cidadania que reflectisse um sentimento nacional coeso tão necessário ao desenvolvimento e à manutenção da nova nação americana. O cinema serviu às mil maravilhas para tal fim.

            Este paradigma, que de facto se tem mantido sempre mais ou menos activo em todas as cinematografias de cariz acentuadamente nacionalista, foi de algum modo interrompido nas décadas de 60 e 70 pelo aparecimento de uma dimensão pedagógica mais interrogativa no cinema mundial em geral, mas muito especialmente no europeu e no japonês, que irá contagiar o cinema norteamericano até mesmo no coração da sua maior capacidade produtiva - a fábrica de sonhos de Hollywood, dando, inclusivamente, origem a estudos de reflexão crítica sobre as razões, causas e efeitos, da mudança que se operava no paradigma de Hollywood, a que alguns autores chamaram mesmo «a crise de Hollywood». De entre esses estudos, a reflexão elaborada por Jerzy Toeplitz (1974), merece um destaque especial por ter sido talvez o autor que primeiro e melhor se apercebeu do valor real da mudança que se estava a operar. 

            De facto, na década de 60, o cinema assume um nova dimensão pedagógica, acompanhando o próprio evoluir da sociedade e contribuindo para essa evolução. Interrogando alguns dos principais dogmas vigentes, tais como: a apresentação heróico-nacionalista das guerras e dos conflictos; o respeito pelas instituições militares, políticas, familiares, académicas, religiosas, etc…, o cinema passa a questionar, também, a existência de estruturas narrativas pré-estabelecidas e uniformemente definidas como géneros a observar para cada um desses temas. Para além dessas interrogações e inobservâncias mais directas, o cinema vai servir-se de igual modo de outras linguagens com características de comunicação muito próprias, tais como a música popular "folk - rock", que marcou as gerações dessa época e de épocas vindouras, o desenvolvimento de figuras e modelos de sátira em contextos temáticos supostamente menos apropriados à sua utilização e o recurso a estruturas assentes em estratégias de subjectividade narrativa onde se deixam claros alguns mecanismos de identificação dos protagonistas com o público receptor.

            Neste contexto, parece-me interessante reflectir um pouco sobre o papel pedagógico dos filmes que abordaram os temas de guerra e mais concretamente o caso do Vietnam - talvez o acontecimento mais marcante da sociedade norteamericana nessas duas décadas.

            Mas de modo a entendermos um pouco melhor a dimensão de alguns dos problemas temáticos em causa, penso ser extremamente interessante comparar dois acontecimentos históricos paralelos no tempo e semelhantes na sua natureza, embora de implicações mediáticas tão diferentes, como foram a guerra do Vietnam e a guerra colonial que Portugal manteve em África. Vejamos alguns números caracterizantes de ambos os conflictos. A guerra do Vietnam durou, no seu período mais intenso, aproximadamente 10 anos, ou seja de 1965 a 1975[6], enquanto a  guerra colonial durou um período intenso de 13 anos, ou seja de 1961 a 1974. Os norteamericanos sofreram 58.000 mortos (números oficiais aproximados) numa população de 225 milhões de habitantes o que equivale a uma taxa de 0,025% de vítimas mortais da guerra, enquanto os portugueses sofreram 12.000 mortos (números oficiais aproximados)[7] numa população de 10 milhões de habitantes o que equivale a uma taxa de 0,12% de vítimas mortais da guerra, ou seja uma percentagem 4,5 vezes maior em relação à da guerra do Vietnam. Sem nos alongarmos muito mais sobre estas comparações, será lógico concluir que os números de vítimas não mortais e de traumas de guerra deverão ser proporcionalmente semelhantes aos atrás referidos. Coloca-se então a seguinte questão: como se justifica que uma criança portuguesa em idade escolar saiba hoje uma quantidade razoável de coisas sobre a longínqua guerra do Vietnam e não saiba quase rigorosamente nada sobre a guerra colonial que os seus próprios familiares travaram nas ex-colónias portuguesas de África e da qual ainda sofrem traumas violentíssimos?

A resposta é simples: justifica-se, muito provavelmente, pelo tratamento mediático que teve e ainda continua a ter o conflicto do Vietnam nos seus mais diferentes aspectos, enquanto que o tratamento mediático do conflicto colonial português foi e continua a ser quase nulo.

            No caso da guerra do Vietnam o papel pedagógico das exposições mediáticas foi e continua a ser exemplar a vários níveis, apresentando efeitos cognitivos e, consequentemente, implicações ideológicas de índole e sinal diferentes consoante os contextos socio-culturais em que se processaram, tendo contribuído em determinado momento, de forma decisiva, para a aquisição de uma cultura anti-belicista e mesmo anti-norteamericana que marcou em muito, pelo menos uma geração de jovens em todo o mundo.         Dessas exposições às mensagens mediáticas, a que foi veiculada pelo cinema assumiu dimensões pedagógicas preponderantes em dois contextos ideológico-culturais diametralmente opostos e que podem ser estudados como exemplos paradigmáticos de "estratégias pedagógicas" com objectivos diferentes e temporalmente sequentes: uma, interrogativa do dogma heróico- nacional da guerra, ou seja, da imagem pró-americana da guerra, que passaremos a analisar de seguida e outra, afirmativa, de retorno ao paradigma hollywoodesco tradicional, mas agora, com a capacidade de reafirmar o dogma, anteriormente questionado, através da inclusão dos próprios elementos interrogativos de formalismo narrativo e conteúdo temático introduzidos pelo paradigma anterior, podendo estes ser capitalizados na cultura cinéfila das audiências, com a finalidade de reabilitar o próprio dogma, ou seja, para o caso, reabilitar a imagem norteamericana do pós-guerra. Esta foi a estratégia seguida por inúmeros filmes, aliás com bastante sucesso, dos quais se destacam as séries de ROCKYs e de RAMBOs protagonizadas por Sylvester Stallone.

            Quanto ao paradigma da pedagogia hereje, são muito poucos os exemplos do cinema de Hollywood a que podemos fazer referência. Aliás, o mais importante cineasta deste paradigma, Luís Buñuel, sempre foi visceralmente avesso a algumas das principais características hollywoodescas, tratando-se, aqui, já não de questionar o dogma, mas de o subverter e de o minar por dentro parecendo querer aceitá-lo, o que envolve, obviamente, uma problemática significativamente diferente e que não analisaremos neste contexto.

 

            Alguns exemplos de pedagogia interrogativa no cinema.

            Os exemplos que aqui se seguem, não esgotam, obviamente, esta estratégia, mas, de facto, eles apresentam-se sequencialmente tão interligados na sua evolução estrutural que a explicitam e ilustram sem grandes lacunas, pelo menos no que respeita aos três sub-paradigmas estruturais já referidos: música, sátira e subjectividade narrativa.

 

            Exemplo 1:  DR. STRANGELOVE; OR, HOW I LEARNED TO                                             STOP WORRYING AND LOVE THE BOMB                                                   (GB;1963).

            Este filme pode ser classificado no nosso paradigma interrogativo como representativo de uma fase inicial que podemos designar como "era da inocência" e na qual as preocupações reais com coisas sérias como a situação mundial de guerra fria e o futuro da humanidade em geral, ou se tratavam de forma exacerbadamente trágica, na tradição do teatro existencialista e algum teatro absurdista como o de Ionesco po exemplo, ou então de forma exacerbadamente satírica, como é o caso de Dr. STRANGELOVE, numa tradição de farsa cinematográfica bem implantada desde os filmes de "Laurel and Hardy", "Marx brothers" e "Chaplin" que influenciarão, por sua vez,  algumas das obras mais marcantes do teatro do absurdo[8]. Mesmo assim, este filme, realizado pelo norteamericano Stanley Kubrick e financiado pela companhia norteamericana Columbia, não encontrou condições para ser produzido em Hollywood, pelo que foi rodado no Reino Unido com o actor Peter Sellers a dar corpo a três personagens diferentes: um cientista psicopata germano-americano, defensor do holocausto nuclear e de práticas nazis (é preciso não esquecer que embora contemporâneo da guerra fria e da crise de Cuba, ainda nem sequer tinham passado vinte anos sobre o termo da 2º guerra mundial, com o lançamento das bombas nucleares sobre o Japão); um adido militar britânico de suposto bom senso quasi-neutral; e o presidente dos E.U.A.

            O filme, baseado no romance Red Alert  de Peter George teve um sucesso razoável na Grã-Bretanha onde recebeu 3 importantes prémios: melhor filme; melhor filme britânico; e prémio especial das Nações Unidas. Em contrapartida, recebeu 4 nomeações para os oscars não tendo recebido nenhum. O filme, ilustrando bem uma certa inocência ainda possível nessa época, termina com uma sátira cerrada aos níveis de desenvolvimento tecnológico levada a cabo na figura de um major-piloto-"cow-boy"-cavaleiro da bomba. A última sequência de imagens mostra-nos vários ângulos do cogumelo nuclear introduzindo a música já como elemento identificador de uma função narrativa em total alusão ao espaço e ao tempo de recuperação nuclear, «we'll meet again, don't know where , don't know when», mas ainda fora do paradigma "folk-rock" que virá a caracterizar os filmes seguintes.

 

            Exemplo 2:  THE GRADUATE (U.S.A., 1967).

            Se o filme anterior podia ser considerado como um exemplo da era da inocência, este terá de ser considerado forçosamente como um dos filmes que melhor ilustrou o momento da perda dessa inocência, imediatamente antes de 68 e de tudo o que esse ano simbolizou.           Baseado no romance homónimo de Charles Webb (1963), realizado por Mike Nichols e magistralmente interpretado por Dustin Hoffman, que, aliás, teve aqui a seu primeiro grande papel, com o qual nos é apresentada, ainda que de modo introdutório, uma nova personagem a que não estávamos habituados na nossa cultura cinematográfica - o anti-herói. Esta personagem será posteriormente desenvolvida, ao nível da interpretação pelo próprio Dustin Hoffman em filmes como MIDNIGHT COWBOY (1969) e LITTLE BIG MAN (1970) e ao nível da realização, para além destes dois filmes realizados respectivamente por John Schlesinger e Arthur Penn, também por Ralph Nelson em SOLDIER BLUE (1970)  e de novo por Nichols em CATCH 22 (1970). Na estrutura narrativa de THE GRADUATE, a sátira, embora presente, reveste-se subtilmente de uma ironia crítica a duas instituições basilares da sociedade: a família (e muito especialmente o matrimónio) e a universidade, ambas preparando ideologicamente uma juventude que tinha o seu destino traçado. Também a narração subjectiva se encontra aparentemente ausente, excepto nas sequências indutoras de silêncio subaquático, ou de aquário, sendo de notar que a canção suporte do genérico inicial se chama exactamente «Sounds of Silence», não passando despercebida, no entanto, uma enorme facilidade de identificação narrativa com o protagonista «Benjamin». Mas é a música de "Simon and Garfunkel" que faz a grande marca geracional deste filme. Para além da canção já referida, uma outra, «Mrs. Robinson» - nome da figura feminina adulta, candidata a sogra sedutora do jovem e inexperiente «Benjamin», foi de tal maneira marcante de uma época e de um estado de espírito, que ainda hoje se torna fácil associar as idéias de anti-inocência, de moralidade dupla, de anti-heroismo machista, mas também de luta por um ideal mais puro e fresco, às harmonias de vozes, aos acordes e às letras dos autores que foram cantaroladas por toda uma geração universal, mesmo de expressão linguística diferente da anglo-saxónica, que aceitando e consumindo as formas da mensagem, logo absorvia e interiorizava o seu conteúdo. Era a prova empírica de que Mcluhan tinha razão[9] - os media, pelo menos em determinados contextos, são as mensagens.

 

            Exemplo 3:  EASY RIDER (1969).

            Perdida a inocência, um ano depois de 68, Dennis Hopper o jovem actor rebelde dos anos 50, parceiro de James Dean em REBEL WITHOUT A CAUSE (1955) e GIANT (1956), torna-se realizador debutante com este filme, que também interpreta ao lado de Peter Fonda e Jack Nicholson, o qual terá sido de todos os filmes geracionais o que assumiu mais veementemente esse papel. A sátira e narrativa subjectiva não estão muito presentes, à excepção de algumas situações pontuais de "viagem" alucinogénica e de percursos motociclistas, em contrapartida, a música "rock" faz-se ouvir como bandeira de uma geração, tendo algumas imagens do filme - as motas e os seus cavaleiros da estrada - ficado intimamente ligadas aos sons ácidos das guitarras eléctricas em distorção contida, ao ritmo de uma batida motorizada, contundente e às vozes ásperas e roucas dos "Steppenwolf" em «Born to be Wild». O tema da guerra do Vietnam ainda não está aqui explicitamente exposto, mas a iconologia de alguns dos principais elementos compositores do filme, leva-nos a identificar símbolos de associação óbvia: "O capitão América" (Peter Fonda) e a sua mota de bandeira correspondente, estampada no depósito de gasolina - o motor de um movimento contínuo em busca de liberdade por uma juventude algo desolada, já com a noção de que ande por onde andar, provavelmente irá terminar sempre num mesmo sítio, eventualmente sem retorno. Este tema, aliás, está directamente ligado com um outro paradigma fílmico, geracional - o "roadmovie", que mereceria uma análise só por si, mas por agora, interessa reter essencialmente a ideia de revolta e rebeldia, já não só contra as instituições basilares como a família e a escola, senão também contra a lei dominante e contra a autoridade policial que a faz observar, ainda que tal afronta possa custar a morte aos ousados. E entre a morte na estrada, ou no Vietnam, a escolha para uma geração apresenta-se óbvia.

 

 

            Exemplo 4:  M.A.S.H. (1970)

            Introduzido o tema da morte, já não como destino trágico, mas sim como destino quase inevitável, pelo menos para uma determinada geração, de novo os filmes de guerra voltam à sátira demolidora e ao humor negro, em situações explícitas de guerra e de tragédia, como única saída para o beco sem saída em que o seu público geracional se encontrava. Os únicos elementos que ainda não aparecem explicitamente narrados são o espaço, o tempo e o nome da guerra do Vietnam. Tal como no já referido CATCH 22 em que a acção se desenrola num tempo e num espaço distantes, a libertação da Itália na 2ª guerra mundial, também M.A.S.H[10] coloca a sua acção noutro espaço e noutro tempo, a guerra da Coreia. No entanto, é praticamente impossível ver este filme realizado por Robert Altman e não associar as imagens e os sons que nos atingem com a situação real que nessa altura se viviva de forma intensamente dramática e trágica no Vietnam. Entre os múltiplos recursos narrativos a que Altman recorre, encontra-se a música-canção «Suicide is painless» de Jonnhy Mandel e Mike Altman, que logo na sequência de apresentação se desenvolve em harmonias que de imediato associamos à tonalidade de grupos muito populares da época e que deram corpo ao movimento que se viria a chamar de canção de protesto, contando-se entre esses, por exemplo, "Peter, Paul and Mary". Um outro ícone que aqui é introduzido como elemento imediatamente identificador de uma situação é o helicóptero, ainda não o seu ruído, esse virá mais tarde, mas a sua imagem e a sua marca de poder verdadeiramente superior, omnipresente e aparentemente inatingível.

            Com a introdução destes elementos na nossa cultura cinematográfica, ficamos quase na posse total de toda uma gama de ferramentas interpretativas de uma situação, logo necessariamente pedagógicas. Falta-nos apenas explicitar o nome das coisas, ou seja, do conflicto - Vietnam e introduzir mecanismos ainda mais aprofundados de subjectividade fílmica, ou seja, estratégias de exposição que prendam o público, do princípio ao fim, a uma linha condutora do acto narrativo, identificando-se com as teses nele expostas.

            Seria possível indicar um bom número de exemplos fílmicos que desenvolveram exactamente esses aspectos, no entanto, pouco se adiantaria de muito significativo a tudo o que já foi exemplificado. Por esta altura e até 1975, a imagem dos E.U.A. terá atingido os níveis mais baixos de popularidade e de credibilidade deste século entre gerações contemporâneas, deixando-se os próprios exemplos do cinema afirmativo enredar pelas dúvidas colocadas em torno do dogma social norteamericano. Assim, é preferível dar um salto no tempo e abordar agora, ainda no seio do mesmo paradigma, aqueles filmes que, fazendo uso pleno de todas as aquisições narrativas já referidas, fecham este círculo temático e pedagógico.

 

            Exemplo 5: TAXI DRIVER (1976).

            Terminado o conflicto armado do Vietnam, seria necessário começar a lidar com os traumas por ele originados e nesse contexto há um conceito que se vai tornando o centro das atenções: o veterano de guerra. Neste filme, realizado por Martin Scorsese, Robert De Niro encarna magistralmente essa figura na personalidade do veterano  "Travis", cuja visão subjectiva do que o rodeia nos é comunicada através de uma subtil alternância de situações de recepção: o público percebe, sentado e recolhido no escuro, na segurança e no conforto da plateia,  tudo o que "Travis" percebe sentado e recolhido ao volante do seu taxi, cujos faróis funcionam como olhos felinos, cinemáticos, na noite circundante e estranha, iluminando, num crescendo de sequências denunciantes de uma esquizofrenia em contenção extrema, uma galeria de violências alheias, mas que mais não são do que os reflexos das violências e dos horrores subcutâneos do protagonista, desfilando à cadência de 24 imagens por segundo até à sequência de libertação, onde todos os nervos, dos personagens e da audiência, se juntam numa explosão derradeira e catárquica que deixa a descoberto e e ferida todos os traumas por mais escondidos que estivessem.

            Terminar assim um filme, seria praticamente impossível mesmo num paradigma intensamente interrogativo. Donde, no epílogo desta película, é passada uma ligeira esponja audiovisual, antiséptica e analgésica, sobre as úlceras em aberto: "Travis" recebe o agradecimento da sociedade personalizada na doce e serena Cybill Shepherd, no entanto, a música jazzística de Bernard Herrmann (de facto, um pouco fora do paradigma musical que vínhamos seguindo) acompanha o último deambular pelas luzes nocturnas da cidade, deixando no ar a mensagem de que talvez nem todos os horrores tivessem passado.

           

            Exemplo 6:  APOCALYPSE NOW (1979).

            Realizado por Francis Ford Coppola e baseado no romance de Joseph Conrad Heart of Darknesss , este filme demonstrou que, de facto, o horror da guerra ainda perdura passados alguns anos sobre o seu termo, que talvez perdure mesmo sempre e que talvez até seja importante que perdure, ou, pelo menos, que o não esqueçamos. Trata-se da visão apocalípica imediata, presente, do FIM, tal como o título da canção do grupo "The Doors" - "The End", utilizada para criar o ambiente auditivo de não retorno de uma viagem ao centro mais recôndito do horror. De novo voltamos a ver, e a ouvir, essencialmente ouvir, os helicópteros - um dos efeitos sonoros mais conseguidos de toda a história do cinema. De novo voltamos à identificação narrativa pela subjectividade do protagonista. De novo, e sempre, a música cáustica, ácida, mas também suave como veludo terminal a encher os nossos ouvidos. De novo, e por fim, o retorno às figuras proféticas e apocalípticas de Dennis Hopper como fotógrafo que está ali para registar o FIM, e de Marlon Brando como sacerdote supremo do horror celebrando uma autêntica liturgia dos mistérios traumáticos da guerra.

 

            Estava, assim, completo o círculo, ficando depois deste requiem a sensação de que muito pouco restava para dizer sobre o assunto. E, de facto, a maior parte dos filmes que se seguiram e que de algum modo tocaram no tema do Vietnam apenas confirmaram esta suposição. Quanto ao valor pedagógico do paradigma, parece absolutamente claro, pelo menos para a geração que o consumiu, que muito se aprendeu vendo alguns destes filmes.

           

 

REFERÊNCIAS

BALL, R. (1971): Pédagogie de la Communication , Presses Universitaires de France, Paris.

GIACOMANTONIO, M. (1981): Os Meios Audiovisuais , Edições 70, Lisboa.

JENSEN, S. A. (1994): En rejse gennem Portugals historie , Gad, København.

MCLUHAN, M. (1994): Understanding Media , Routledge, London

METZ, C. (1974): Film Language , Oxford University Press, New York.

MITRY, J. (1963): Esthétique et Psychologie du Cinéma , Éditions Universitaires, Paris.

MONACO, J. (1981): How to Read a Film , Oxord University Press, Oxford, N. Y.

NICHOLS, B. (1976): Movies and Methods , University of California Press, L. A.

REIA-BAPTISTA, V. (1987): The Heretical Pedagogy of Luís Buñuel, Lunds University, Lund.

REIA-BAPTISTA, V. (1995): «El lenguaje cinematográfico en la pedagogía de la cominicación», em COMUNICAR , nº4, 106-110, Huelva.

ROBINSON, D. (1981): World Cinema , Eyre Methuen, London.

TOEPLITZ, J. (1974): Hollywood and After , G. Allen & Unwin Ltd, London.

SAPERAS, E. (1993): Os Efeitos Cognitivos da Comunicação de Massas , Edições Asa, Lisboa.



[1] Sobre esta confluência de aspectos, é interessante observar o que nos diz, sobre o assunto, Saperas (1993).

[2] Giacomantonio (1981), p. 26.

[3] Não no sentido restrito que Ball (1971) confere ao termo, mas no sentido mais global em que a expressão "Pedagogia da Comunicação" tem sido utilizada na Escola Superior de Educação da Universidade do Algarve para designar o conjunto de estudos que ali se têm desenvolvido em torno da dimensão pedagógica dos media, quer no âmbito da formação de professores, quer no âmbito do estudo das ciências da comunicação.

[4] Sobre as implicações mais gerais do cinema numa pedagogia da comunicação, ver Reia-Baptista (1995).

[5] Ver, como lista de exemplos adequados, qualquer obra suficientemente compreensiva sobre o tema como é o caso de World Cinema  de David Robinson (1981).

[6] De facto, os conselheiros militares norteamericanos já se encontravam no Vietnam desde 1961 e as primeiras tropas foram enviadas em 1963, ainda em vida do presidente Kennedy,  mas só em 1965 é que o conflicto se intensificou de forma generalizada.

[7] O historiador dinamarquês Svend Arne Jensen apresenta, no entanto, um número não referenciado de 35.000 mortos, Jensen (1994) p. 197.

[8] É notória a influência que os filmes de Stan Laurel e Oliver hardy exerceram em alguns autores teatrais absurdistas, designadamente em «À espera de godot» de Beckett.

[9]  McLuhan (1994). Marshall McLuhan tinha-o dito já em 1964 «the medium is the message» e a história da música "Pop" e "Rock" demonstram-no bem até à exaustão, quer no campo da aprendizagem ideológica quer no campo restrito da aprendizagem cognitiva.

[10] As iniciais significam "Mobile Army Surgical Hospital", mas a palavra "mash" associa-se à ideia de mistela, mistura de águas e resíduos, restos,  vísceras, etc…