Pedagogia da Comunicação,
Cinema e Ensino:
(publicado em Educación
y Medios de Comunicación en
el Contexto Iberoamericano" da
Universidade Internacional de Andalucia, La Rabida, 1995)
Vítor Reia-Baptista, Universidade do Algarve
A
inclusão de estudos mediáticos nos diferentes níveis de ensino é uma medida
necessária para uma formação integral e adequada às características culturais
do cidadão das sociedades modernas onde o fenómeno comunicativo global assume
grande importância social, cultural e pedagógica.
Neste
contexto, em que o cinema se integra perfeitamente, o estudo da dimensão
pedagógica dos fenómenos fílmicos e cinemáticos torna-se um acto de aquisição
de conhecimentos e de reflexão crítica sobre uma faceta preponderante da nossa
história cultural recente, ou seja, destes últimos cem anos em que a humanidade
tem deixado as suas marcas narrativas e multiculturais em imagens e sons
interligados de formas várias.
Os
conhecimentos transmitidos pelos veículos de comunicação audio-visual,
principalmente através da televisão e do cinema, constituem aquilo que alguns
autores têm chamado um autêntico currículo paralelo, cujas implicações
pedagógicas importa conhecer, estudar e investigar no próprio âmbito escolar
uma vez que interferem, decididamente, com o processo normal de
ensino-aprendizagem - currículo institucional, quer no que respeita aos efeitos
cognitivos mais específicos, quer no toca a esfera mais global dos valores,
atitudes e padrões de comportamento[1].
Em
1976, Marcello Giacomantonio, um dos primeiros autores a reflectir sobre as
implicações pedagógicas dos media, classificou o cinema como «o segundo veículo
de modelos de comportamento, depois da TV»[2].
Giacomantonio elaborou esta apreciação para o contexto italiano da época, em
que a televisão já detinha uma quota apreciável do tempo individual de
visionamento em ganho crescente à exposição cinematográfica, no entanto,
noutros contextos geográficos e culturais dessa altura, o cinema ainda
continuava a ser o primeiro veículo de modelos de comportamento, tal como o
tinha sido para uma série de gerações anteriores, cujos padrões de comportamento
cultural importa conhecer, para melhor compreendermos a nossa relação com os
contextos mediáticos.
Para
isso é preciso conhecer os canais de comunicação, e o cinema muito
especialmente, na sua história, nas suas teorias, métodos, estéticas e linguagens,
nas suas abordagens sociológicas e psicológicas, bem como nos seus mecanismos
conjunturais de produção, distribuição e difusão, tentando depois relacionar as
características mais importantes desses canais com o campo que temos vindo a
designar como pedagogia da comunicação [3].
No
caso do cinema em geral e mais especificamente em alguns dos seus géneros mais
paradigmáticos, para que se chegue a um conhecimento aprofundado das suas
possíveis dimensões pedagógicas - implicações e efeitos em diferentes gerações
de público cinéfilo, torna-se necessário um conjunto de estudos vários, mas
unidos pela natureza sincrética da própria arte cinematográfica, a que
poderíamos chamar antropologia fílmica. Tais estudos devem reflectir,
necessariamente, o eclectismo crítico já adquirido pela actividade de inúmeros
estudiosos cinéfilos em todo o mundo ao longo destes cem anos de história e
cultura dos géneros cinematográficos, assim como não poderão deixar de abordar
as características polissémicas das linguagens fílmicas presentes em cada um
desses géneros.
No
âmbito de uma pedagogia da comunicação, da qual os estudos de antropologia
fílmica são parte inerente[4], podemos
apontar, para o caso do cinema, três grandes tipos de dimensão pedagógica que
poderemos designar como: afirmativa, interrogativa e hereje.
Como
exemplos de uma pedagogia afirmativa, encontramos um número imenso de obras e
géneros cinematográficos que ostentam estruturas narrativas e matizes
dramatúrgicas diversas quer quanto à sua forma de organização sintagmática,
quer quanto ao agrupamento paradigmático dos seus conteúdos. No entanto, esse
vasto conjunto de obras e géneros apresenta quase sempre um aspecto comum,
determinante da sua dimensão pedagógica: desenvolve uma tese (ou uma história)
conjunturalmente consentânea com os valores e as normas dominantes do contexto
sociocultural em que se insere. O conjunto de exemplos mais paradigmáticos que
ostentam esta dimensão, são os que deram corpo à galeria de géneros a que se
convencionou chamar cinema hollywoodesco. Embora com excepções pontuais e
conjunturais, como iremos ver adiante, este tipo de cinema tem como
característica fundamental laborar nos dogmas vigentes, criando e repetindo
estruturas narrativas reconhecidas, como por exemplo as estruturas
melodramáticas oriundas da dramaturgia cénica do industrialismo, nas suas
várias formas de acção quotidiana e fictiva, assentes em bases ideológicas e
éticas socialmente aceites. Encontramos no cinema hollywoodesco inúmeros
exemplos deste tipo de dimensão pedagógica desde os primórdios de Porter ou
Griffith, passando por Ford ou Hawks, até aos mais recentes filmes de Spielberg
ou Stone entre muitos outros.[5] O grande papel pedagógico deste super
paradigma terá sido a criação, a preservação e o enaltecimento de uma
identidade histórica e cultural de um povo - o norteamericano - que não tendo
nem história nem cultura comuns, nem sequer meios para as adquirir em processos
pedagógicos tradicionais, uma vez que a sua condição de emigrantes desgarrados,
pobres e muitas vezes analfabetos não lhes permitiria a aquisição de
conhecimentos histórico-culturais, ou linguísticos em quantidade suficiente e
em tempo útil para o exercício de uma cidadania que reflectisse um sentimento
nacional coeso tão necessário ao desenvolvimento e à manutenção da nova nação
americana. O cinema serviu às mil maravilhas para tal fim.
Este
paradigma, que de facto se tem mantido sempre mais ou menos activo em todas as
cinematografias de cariz acentuadamente nacionalista, foi de algum modo interrompido
nas décadas de 60 e 70 pelo aparecimento de uma dimensão pedagógica mais
interrogativa no cinema mundial em geral, mas muito especialmente no europeu e
no japonês, que irá contagiar o cinema norteamericano até mesmo no coração da
sua maior capacidade produtiva - a fábrica de sonhos de Hollywood, dando,
inclusivamente, origem a estudos de reflexão crítica sobre as razões, causas e
efeitos, da mudança que se operava no paradigma de Hollywood, a que alguns
autores chamaram mesmo «a crise de Hollywood». De entre esses estudos, a
reflexão elaborada por Jerzy Toeplitz (1974), merece um destaque especial por
ter sido talvez o autor que primeiro e melhor se apercebeu do valor real da
mudança que se estava a operar.
De
facto, na década de 60, o cinema assume um nova dimensão pedagógica,
acompanhando o próprio evoluir da sociedade e contribuindo para essa evolução.
Interrogando alguns dos principais dogmas vigentes, tais como: a apresentação
heróico-nacionalista das guerras e dos conflictos; o respeito pelas
instituições militares, políticas, familiares, académicas, religiosas, etc…, o
cinema passa a questionar, também, a existência de estruturas narrativas
pré-estabelecidas e uniformemente definidas como géneros a observar para cada
um desses temas. Para além dessas interrogações e inobservâncias mais directas,
o cinema vai servir-se de igual modo de outras linguagens com características
de comunicação muito próprias, tais como a música popular "folk -
rock", que marcou as gerações dessa época e de épocas vindouras, o
desenvolvimento de figuras e modelos de sátira em contextos temáticos
supostamente menos apropriados à sua utilização e o recurso a estruturas
assentes em estratégias de subjectividade narrativa onde se deixam claros
alguns mecanismos de identificação dos protagonistas com o público receptor.
Neste
contexto, parece-me interessante reflectir um pouco sobre o papel pedagógico
dos filmes que abordaram os temas de guerra e mais concretamente o caso do
Vietnam - talvez o acontecimento mais marcante da sociedade norteamericana
nessas duas décadas.
Mas
de modo a entendermos um pouco melhor a dimensão de alguns dos problemas
temáticos em causa, penso ser extremamente interessante comparar dois
acontecimentos históricos paralelos no tempo e semelhantes na sua natureza,
embora de implicações mediáticas tão diferentes, como foram a guerra do Vietnam
e a guerra colonial que Portugal manteve em África. Vejamos alguns números
caracterizantes de ambos os conflictos. A guerra do Vietnam durou, no seu
período mais intenso, aproximadamente 10 anos, ou seja de 1965 a 1975[6], enquanto
a guerra colonial durou um período
intenso de 13 anos, ou seja de 1961 a 1974. Os norteamericanos sofreram 58.000
mortos (números oficiais aproximados) numa população de 225 milhões de
habitantes o que equivale a uma taxa de 0,025% de vítimas mortais da guerra,
enquanto os portugueses sofreram 12.000 mortos (números oficiais aproximados)[7] numa
população de 10 milhões de habitantes o que equivale a uma taxa de 0,12% de
vítimas mortais da guerra, ou seja uma percentagem 4,5 vezes maior em relação à
da guerra do Vietnam. Sem nos alongarmos muito mais sobre estas comparações,
será lógico concluir que os números de vítimas não mortais e de traumas de
guerra deverão ser proporcionalmente semelhantes aos atrás referidos. Coloca-se
então a seguinte questão: como se justifica que uma criança portuguesa em idade
escolar saiba hoje uma quantidade razoável de coisas sobre a longínqua guerra
do Vietnam e não saiba quase rigorosamente nada sobre a guerra colonial que os
seus próprios familiares travaram nas ex-colónias portuguesas de África e da
qual ainda sofrem traumas violentíssimos?
A resposta é simples: justifica-se,
muito provavelmente, pelo tratamento mediático que teve e ainda continua a ter
o conflicto do Vietnam nos seus mais diferentes aspectos, enquanto que o
tratamento mediático do conflicto colonial português foi e continua a ser quase
nulo.
No
caso da guerra do Vietnam o papel pedagógico das exposições mediáticas foi e
continua a ser exemplar a vários níveis, apresentando efeitos cognitivos e,
consequentemente, implicações ideológicas de índole e sinal diferentes
consoante os contextos socio-culturais em que se processaram, tendo contribuído
em determinado momento, de forma decisiva, para a aquisição de uma cultura
anti-belicista e mesmo anti-norteamericana que marcou em muito, pelo menos uma
geração de jovens em todo o mundo. Dessas
exposições às mensagens mediáticas, a que foi veiculada pelo cinema assumiu
dimensões pedagógicas preponderantes em dois contextos ideológico-culturais
diametralmente opostos e que podem ser estudados como exemplos paradigmáticos
de "estratégias pedagógicas" com objectivos diferentes e
temporalmente sequentes: uma, interrogativa do dogma heróico- nacional da
guerra, ou seja, da imagem pró-americana da guerra, que passaremos a analisar
de seguida e outra, afirmativa, de retorno ao paradigma hollywoodesco
tradicional, mas agora, com a capacidade de reafirmar o dogma, anteriormente
questionado, através da inclusão dos próprios elementos interrogativos de
formalismo narrativo e conteúdo temático introduzidos pelo paradigma anterior,
podendo estes ser capitalizados na cultura cinéfila das audiências, com a
finalidade de reabilitar o próprio dogma, ou seja, para o caso, reabilitar a
imagem norteamericana do pós-guerra. Esta foi a estratégia seguida por inúmeros
filmes, aliás com bastante sucesso, dos quais se destacam as séries de ROCKYs e
de RAMBOs protagonizadas por Sylvester Stallone.
Quanto
ao paradigma da pedagogia hereje, são muito poucos os exemplos do cinema de
Hollywood a que podemos fazer referência. Aliás, o mais importante cineasta
deste paradigma, Luís Buñuel, sempre foi visceralmente avesso a algumas das
principais características hollywoodescas, tratando-se, aqui, já não de
questionar o dogma, mas de o subverter e de o minar por dentro parecendo querer
aceitá-lo, o que envolve, obviamente, uma problemática significativamente
diferente e que não analisaremos neste contexto.
Alguns exemplos de
pedagogia interrogativa no cinema.
Os
exemplos que aqui se seguem, não esgotam, obviamente, esta estratégia, mas, de
facto, eles apresentam-se sequencialmente tão interligados na sua evolução
estrutural que a explicitam e ilustram sem grandes lacunas, pelo menos no que
respeita aos três sub-paradigmas estruturais já referidos: música, sátira e
subjectividade narrativa.
Exemplo
1: DR. STRANGELOVE; OR, HOW I LEARNED
TO STOP
WORRYING AND LOVE THE BOMB (GB;1963).
Este filme pode ser
classificado no nosso paradigma interrogativo como representativo de uma fase
inicial que podemos designar como "era da inocência" e na qual as
preocupações reais com coisas sérias como a situação mundial de guerra fria e o
futuro da humanidade em geral, ou se tratavam de forma exacerbadamente trágica,
na tradição do teatro existencialista e algum teatro absurdista como o de
Ionesco po exemplo, ou então de forma exacerbadamente satírica, como é o caso
de Dr. STRANGELOVE, numa tradição de farsa cinematográfica bem implantada desde
os filmes de "Laurel and Hardy", "Marx brothers" e
"Chaplin" que influenciarão, por sua vez, algumas das obras mais marcantes do teatro do absurdo[8]. Mesmo
assim, este filme, realizado pelo norteamericano Stanley Kubrick e financiado
pela companhia norteamericana Columbia, não encontrou condições para ser
produzido em Hollywood, pelo que foi rodado no Reino Unido com o actor Peter
Sellers a dar corpo a três personagens diferentes: um cientista psicopata
germano-americano, defensor do holocausto nuclear e de práticas nazis (é
preciso não esquecer que embora contemporâneo da guerra fria e da crise de
Cuba, ainda nem sequer tinham passado vinte anos sobre o termo da 2º guerra
mundial, com o lançamento das bombas nucleares sobre o Japão); um adido militar
britânico de suposto bom senso quasi-neutral; e o presidente dos E.U.A.
O
filme, baseado no romance Red Alert de Peter George teve um sucesso razoável na
Grã-Bretanha onde recebeu 3 importantes prémios: melhor filme; melhor filme
britânico; e prémio especial das Nações Unidas. Em contrapartida, recebeu 4
nomeações para os oscars não tendo recebido nenhum. O filme, ilustrando bem uma
certa inocência ainda possível nessa época, termina com uma sátira cerrada aos
níveis de desenvolvimento tecnológico levada a cabo na figura de um
major-piloto-"cow-boy"-cavaleiro da bomba. A última sequência de
imagens mostra-nos vários ângulos do cogumelo nuclear introduzindo a música já
como elemento identificador de uma função narrativa em total alusão ao espaço e
ao tempo de recuperação nuclear, «we'll meet again, don't know where , don't
know when», mas ainda fora do paradigma "folk-rock" que virá a
caracterizar os filmes seguintes.
Exemplo
2: THE GRADUATE (U.S.A., 1967).
Se o filme anterior
podia ser considerado como um exemplo da era da inocência, este terá de ser
considerado forçosamente como um dos filmes que melhor ilustrou o momento da
perda dessa inocência, imediatamente antes de 68 e de tudo o que esse ano
simbolizou. Baseado no romance homónimo de Charles Webb (1963),
realizado por Mike Nichols e magistralmente interpretado por Dustin Hoffman,
que, aliás, teve aqui a seu primeiro grande papel, com o qual nos é
apresentada, ainda que de modo introdutório, uma nova personagem a que não
estávamos habituados na nossa cultura cinematográfica - o anti-herói. Esta
personagem será posteriormente desenvolvida, ao nível da interpretação pelo
próprio Dustin Hoffman em filmes como MIDNIGHT COWBOY (1969) e LITTLE BIG MAN
(1970) e ao nível da realização, para além destes dois filmes realizados
respectivamente por John Schlesinger e Arthur Penn, também por Ralph Nelson em
SOLDIER BLUE (1970) e de novo por
Nichols em CATCH 22 (1970). Na estrutura narrativa de THE GRADUATE, a sátira,
embora presente, reveste-se subtilmente de uma ironia crítica a duas
instituições basilares da sociedade: a família (e muito especialmente o
matrimónio) e a universidade, ambas preparando ideologicamente uma juventude
que tinha o seu destino traçado. Também a narração subjectiva se encontra
aparentemente ausente, excepto nas sequências indutoras de silêncio
subaquático, ou de aquário, sendo de notar que a canção suporte do genérico
inicial se chama exactamente «Sounds of Silence», não passando despercebida, no
entanto, uma enorme facilidade de identificação narrativa com o protagonista
«Benjamin». Mas é a música de "Simon and Garfunkel" que faz a grande
marca geracional deste filme. Para além da canção já referida, uma outra, «Mrs.
Robinson» - nome da figura feminina adulta, candidata a sogra sedutora do jovem
e inexperiente «Benjamin», foi de tal maneira marcante de uma época e de um
estado de espírito, que ainda hoje se torna fácil associar as idéias de
anti-inocência, de moralidade dupla, de anti-heroismo machista, mas também de
luta por um ideal mais puro e fresco, às harmonias de vozes, aos acordes e às
letras dos autores que foram cantaroladas por toda uma geração universal, mesmo
de expressão linguística diferente da anglo-saxónica, que aceitando e
consumindo as formas da mensagem, logo absorvia e interiorizava o seu conteúdo.
Era a prova empírica de que Mcluhan tinha razão[9] - os media,
pelo menos em determinados contextos, são as mensagens.
Exemplo 3: EASY RIDER (1969).
Perdida
a inocência, um ano depois de 68, Dennis Hopper o jovem actor rebelde dos anos
50, parceiro de James Dean em REBEL WITHOUT A CAUSE (1955) e GIANT (1956),
torna-se realizador debutante com este filme, que também interpreta ao lado de
Peter Fonda e Jack Nicholson, o qual terá sido de todos os filmes geracionais o
que assumiu mais veementemente esse papel. A sátira e narrativa subjectiva não
estão muito presentes, à excepção de algumas situações pontuais de
"viagem" alucinogénica e de percursos motociclistas, em
contrapartida, a música "rock" faz-se ouvir como bandeira de uma
geração, tendo algumas imagens do filme - as motas e os seus cavaleiros da
estrada - ficado intimamente ligadas aos sons ácidos das guitarras eléctricas
em distorção contida, ao ritmo de uma batida motorizada, contundente e às vozes
ásperas e roucas dos "Steppenwolf" em «Born to be Wild». O tema da
guerra do Vietnam ainda não está aqui explicitamente exposto, mas a iconologia
de alguns dos principais elementos compositores do filme, leva-nos a
identificar símbolos de associação óbvia: "O capitão América" (Peter
Fonda) e a sua mota de bandeira correspondente, estampada no depósito de
gasolina - o motor de um movimento contínuo em busca de liberdade por uma
juventude algo desolada, já com a noção de que ande por onde andar,
provavelmente irá terminar sempre num mesmo sítio, eventualmente sem retorno.
Este tema, aliás, está directamente ligado com um outro paradigma fílmico,
geracional - o "roadmovie", que mereceria uma análise só por si, mas
por agora, interessa reter essencialmente a ideia de revolta e rebeldia, já não
só contra as instituições basilares como a família e a escola, senão também
contra a lei dominante e contra a autoridade policial que a faz observar, ainda
que tal afronta possa custar a morte aos ousados. E entre a morte na estrada,
ou no Vietnam, a escolha para uma geração apresenta-se óbvia.
Exemplo 4: M.A.S.H. (1970)
Introduzido
o tema da morte, já não como destino trágico, mas sim como destino quase
inevitável, pelo menos para uma determinada geração, de novo os filmes de
guerra voltam à sátira demolidora e ao humor negro, em situações explícitas de
guerra e de tragédia, como única saída para o beco sem saída em que o seu
público geracional se encontrava. Os únicos elementos que ainda não aparecem
explicitamente narrados são o espaço, o tempo e o nome da guerra do Vietnam.
Tal como no já referido CATCH 22 em que a acção se desenrola num tempo e num
espaço distantes, a libertação da Itália na 2ª guerra mundial, também M.A.S.H[10] coloca a
sua acção noutro espaço e noutro tempo, a guerra da Coreia. No entanto, é
praticamente impossível ver este filme realizado por Robert Altman e não
associar as imagens e os sons que nos atingem com a situação real que nessa
altura se viviva de forma intensamente dramática e trágica no Vietnam. Entre os
múltiplos recursos narrativos a que Altman recorre, encontra-se a música-canção
«Suicide is painless» de Jonnhy Mandel e Mike Altman, que logo na sequência de
apresentação se desenvolve em harmonias que de imediato associamos à tonalidade
de grupos muito populares da época e que deram corpo ao movimento que se viria
a chamar de canção de protesto, contando-se entre esses, por exemplo,
"Peter, Paul and Mary". Um outro ícone que aqui é introduzido como
elemento imediatamente identificador de uma situação é o helicóptero, ainda não
o seu ruído, esse virá mais tarde, mas a sua imagem e a sua marca de poder
verdadeiramente superior, omnipresente e aparentemente inatingível.
Com
a introdução destes elementos na nossa cultura cinematográfica, ficamos quase
na posse total de toda uma gama de ferramentas interpretativas de uma situação,
logo necessariamente pedagógicas. Falta-nos apenas explicitar o nome das
coisas, ou seja, do conflicto - Vietnam e introduzir mecanismos ainda mais
aprofundados de subjectividade fílmica, ou seja, estratégias de exposição que
prendam o público, do princípio ao fim, a uma linha condutora do acto
narrativo, identificando-se com as teses nele expostas.
Seria
possível indicar um bom número de exemplos fílmicos que desenvolveram
exactamente esses aspectos, no entanto, pouco se adiantaria de muito
significativo a tudo o que já foi exemplificado. Por esta altura e até 1975, a
imagem dos E.U.A. terá atingido os níveis mais baixos de popularidade e de
credibilidade deste século entre gerações contemporâneas, deixando-se os
próprios exemplos do cinema afirmativo enredar pelas dúvidas colocadas em torno
do dogma social norteamericano. Assim, é preferível dar um salto no tempo e
abordar agora, ainda no seio do mesmo paradigma, aqueles filmes que, fazendo
uso pleno de todas as aquisições narrativas já referidas, fecham este círculo
temático e pedagógico.
Exemplo 5: TAXI DRIVER
(1976).
Terminado
o conflicto armado do Vietnam, seria necessário começar a lidar com os traumas
por ele originados e nesse contexto há um conceito que se vai tornando o centro
das atenções: o veterano de guerra. Neste filme, realizado por Martin Scorsese,
Robert De Niro encarna magistralmente essa figura na personalidade do
veterano "Travis", cuja visão
subjectiva do que o rodeia nos é comunicada através de uma subtil alternância
de situações de recepção: o público percebe, sentado e recolhido no escuro, na
segurança e no conforto da plateia,
tudo o que "Travis" percebe sentado e recolhido ao volante do
seu taxi, cujos faróis funcionam como olhos felinos, cinemáticos, na noite
circundante e estranha, iluminando, num crescendo de sequências denunciantes de
uma esquizofrenia em contenção extrema, uma galeria de violências alheias, mas
que mais não são do que os reflexos das violências e dos horrores subcutâneos
do protagonista, desfilando à cadência de 24 imagens por segundo até à
sequência de libertação, onde todos os nervos, dos personagens e da audiência,
se juntam numa explosão derradeira e catárquica que deixa a descoberto e e ferida
todos os traumas por mais escondidos que estivessem.
Terminar
assim um filme, seria praticamente impossível mesmo num paradigma intensamente
interrogativo. Donde, no epílogo desta película, é passada uma ligeira esponja
audiovisual, antiséptica e analgésica, sobre as úlceras em aberto:
"Travis" recebe o agradecimento da sociedade personalizada na doce e
serena Cybill Shepherd, no entanto, a música jazzística de Bernard Herrmann (de
facto, um pouco fora do paradigma musical que vínhamos seguindo) acompanha o
último deambular pelas luzes nocturnas da cidade, deixando no ar a mensagem de
que talvez nem todos os horrores tivessem passado.
Exemplo 6: APOCALYPSE NOW (1979).
Realizado
por Francis Ford Coppola e baseado no romance de Joseph Conrad Heart of Darknesss , este filme
demonstrou que, de facto, o horror da guerra ainda perdura passados alguns anos
sobre o seu termo, que talvez perdure mesmo sempre e que talvez até seja
importante que perdure, ou, pelo menos, que o não esqueçamos. Trata-se da visão
apocalípica imediata, presente, do FIM, tal como o título da canção do grupo
"The Doors" - "The End", utilizada para criar o ambiente
auditivo de não retorno de uma viagem ao centro mais recôndito do horror. De
novo voltamos a ver, e a ouvir, essencialmente ouvir, os helicópteros - um dos
efeitos sonoros mais conseguidos de toda a história do cinema. De novo voltamos
à identificação narrativa pela subjectividade do protagonista. De novo, e
sempre, a música cáustica, ácida, mas também suave como veludo terminal a
encher os nossos ouvidos. De novo, e por fim, o retorno às figuras proféticas e
apocalípticas de Dennis Hopper como fotógrafo que está ali para registar o FIM,
e de Marlon Brando como sacerdote supremo do horror celebrando uma autêntica
liturgia dos mistérios traumáticos da guerra.
Estava,
assim, completo o círculo, ficando depois deste requiem a sensação de que muito
pouco restava para dizer sobre o assunto. E, de facto, a maior parte dos filmes
que se seguiram e que de algum modo tocaram no tema do Vietnam apenas
confirmaram esta suposição. Quanto ao valor pedagógico do paradigma, parece
absolutamente claro, pelo menos para a geração que o consumiu, que muito se
aprendeu vendo alguns destes filmes.
REFERÊNCIAS
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Paris.
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Lisboa.
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TOEPLITZ,
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Allen & Unwin Ltd, London.
SAPERAS, E. (1993): Os Efeitos Cognitivos da Comunicação de
Massas , Edições Asa, Lisboa.
[1] Sobre esta confluência de aspectos, é
interessante observar o que nos diz, sobre o assunto, Saperas (1993).
[2] Giacomantonio (1981), p. 26.
[3] Não no sentido restrito que Ball (1971)
confere ao termo, mas no sentido mais global em que a expressão "Pedagogia
da Comunicação" tem sido utilizada na Escola Superior de Educação da
Universidade do Algarve para designar o conjunto de estudos que ali se têm
desenvolvido em torno da dimensão pedagógica dos media, quer no âmbito da
formação de professores, quer no âmbito do estudo das ciências da comunicação.
[4] Sobre as implicações mais gerais do
cinema numa pedagogia da comunicação, ver Reia-Baptista (1995).
[5] Ver, como lista de exemplos adequados,
qualquer obra suficientemente compreensiva sobre o tema como é o caso de World Cinema de David Robinson (1981).
[6] De facto, os conselheiros militares
norteamericanos já se encontravam no Vietnam desde 1961 e as primeiras tropas
foram enviadas em 1963, ainda em vida do presidente Kennedy, mas só em 1965 é que o conflicto se intensificou
de forma generalizada.
[7] O historiador dinamarquês Svend Arne
Jensen apresenta, no entanto, um número não referenciado de 35.000 mortos,
Jensen (1994) p. 197.
[8] É notória a influência que os filmes de
Stan Laurel e Oliver hardy exerceram em alguns autores teatrais absurdistas,
designadamente em «À espera de godot» de Beckett.
[9]
McLuhan (1994). Marshall McLuhan tinha-o dito já em 1964 «the medium is
the message» e a história da música "Pop" e "Rock"
demonstram-no bem até à exaustão, quer no campo da aprendizagem ideológica quer
no campo restrito da aprendizagem cognitiva.
[10] As iniciais significam "Mobile Army
Surgical Hospital", mas a palavra "mash" associa-se à ideia de
mistela, mistura de águas e resíduos, restos,
vísceras, etc…