Linguagens Fílmicas, Cinema e Pedagogia da Comunicação

 

Vítor Reia-Baptista, Universidade do Algarve

 

('Comunicar', Nº4, Março, Grupo Pedagógico Andaluz, Huelva, 1995)

 

 

A Pedagogia da Comunicação, à falta de outra expressão melhor, poderá ser a designação geral de um campo do conhecimento que estudará, por um lado, a dimensão pedagógica dos media - nas suas vertentes de educação para os media e educação pelos media, e por outro, as tecnologias de comunicação educativa - nas suas vertentes teórica e técnica de comunicação aplicada à educação. Como exemplo concreto de objectos de estudo da Pedagogia da Comunicação é aqui abordado o caso do Cinema enquanto veículo de múltiplas implicações pedagógicas.

 

Não existem grandes dúvidas, nos campos científico-pedagógicos que de algum modo têm estudado os diferentes fenómenos mediáticos da comunicação cultural e de massas, sobre a existência de um marcante efeito pedagógico que caracteriza o Cinema nas suas mais variadas formas e géneros.

Reconhecendo esse efeito, tem sido usual a utilização do Cinema como veículo educativo e ideológico ao longo dos tempos por diferentes sectores socio-políticos e económico-culturais. Lenin, por exemplo, afirmou bem alto, em tom de panfleto, as qualidades do Cinema como veículo educativo[1]. A Igreja Católica, como outro exemplo, vem utilizando o Cinema desde bastante cedo, através dos seus secretariados para o audivisual e outras instâncias afins, como forma eficaz de catequese. E Hollywood vem, de facto, produzindo filmes desde os inícios da história da 7ª arte, por necessidades de negócio mas também de ideologia, que têm moldado os gostos e os hábitos culturais de gerações inteiras e sucessivas.

Isto, para apenas referir três fontes díspares e insuspeitas de conivências político-culturais entre si, porque de resto,  poder-se-ia criar uma lista de "pedagogos cinematográficos" tão longa que ficasse digna de inclusão no Guinness : Griffith, Hays, Eisenstein, Medvekin, Goebbels, Grierson, McCarthy, etc ...

Como é óbvio, nem todas estas figuras se teriam aproximado do Cinema com  os mesmos objectivos pedagógicos em vista, muito menos com as mesmas estratégias didáticas nem, certamente, a coberto dos mesmos códigos estéticos, éticos e ideológicos. Mas de facto, todos eles reconheceram que através do cinema, ou à volta dele, existiam mecanismos de aprendizagem e/ou manipulação que valeria a pena conhecer e, sobretudo, controlar.

Donde, e como já alguém articulou, QUE FAZER ?

Levar as "criancinhas" ao Cinema? Levar o Cinema às "criancinhas"?

Claro que sim, mas não só. Levar também, através do Cinema, o Inglês, o Francês, a Música, a História, a Literatura, etc...

É por estas alturas do raciocínio que a maior parte dos ministérios de educação que se prezam, europeus e não só, não querendo ficar fora de qualquer listagem actualizada de inovadores pedagógicos, apelam, geralmente, à utilização dos audiovisuais no ensino, expressão que, com maiores ou menores alterações consoante os contextos, inclui toda a panóplia de meios de comunicação, mais ou menos educativos, mais ou menos de massas, mais ou menos individuais, mais ou menos à distância, mais ou menos sofisticados, mais ou menos... utilizados, donde, incluindo também o Cinema.

Acontece que, apelar à utilização desses meios pode ser algo muito digno, inovador, reformador, revolucionário até. Mas utilizá-los na prática educativa é, em contrapartida, algo extraordinariamente complexo, com constantes implicações pedagógico-didáticas e por vezes mesmo científicas quer ao nível da sua utilização curricular mais óbvia, quer a níveis de compreensão intertextual menos previsíveis ou identificáveis.

E agora?

Tendo exortado o professorado à inovação pedagógica, quem fornece aos professores a bagagem e as armas necessárias para tal exercício, ou como, muito concretamente, no campo da arte cinematográfica, suas técnicas, tecnologias ou respectivas linguagens fílmicas?

De facto, têm-se registado algumas curtas, magras e esporádicas incursões no âmbito das Tecnologias Educativas, que deixam professores, alunos e formandos em geral, a saber para que servem os botões do "on" e do "off", mas pouco mais.

Existem, é certo, alguns exemplos um pouco mais gordos, de maior duração, com um carácter mais sistematizado e abrangente em algumas instituições que desenvolvem actividades de formação de professores. Com alguma sorte, talvez os agentes educativos destes casos fiquem a saber também, para que servem os botões do "replay" e do "forward", continuando, no entanto, provavelmente, a confundir Vídeo com Cinema, ou Canais com Linguagens.

É que a questão essencial mantém-se:

Numa perspectiva sistematizada de reforma curricular e inovação pedagógica, quem é que vai formar, em todas as vertentes necessárias do conhecimento adequado, os largos grupos de professores que, supostamente, deverão mexer na matéria, ou aind, como e em que contextos científico-pedagógicos se deverão formar esses grupos - a massa crítica do campo em questão?

E para agarrar apenas o caso do Cinema, possivelmente ainda o mais potente e explosivo dos media:

Quem transforma o professor, eventualmente interessado, num consistente cineclubista, num sagaz analista dos géneros cinematográficos, num competente contextualisador de referências intertextuais, num conhecedor da história, das técnicas, das teorias e das correntes estéticas, num descodificador seguro de mensagens interculturais, políticas, económicas, sociais, étnicas, éticas, estéticas e poéticas, em suma, num hábil leitor das linguagens fílmicas e conhecedor da arte cinematográfica em toda a amplitude dos seus dialectos?

Uma formação adequada no campo da Pedagogia da Comunicação poderia conferir essas capacidades.

Especialmente se encararmos a Pedagogia da Comunicação como um campo mais vasto do que o proposto por Raymond Ball para o estudo dos fenómenos socio-linguísticos que caracterizam os processos de aquisição de capacidades individuais no âmbito da comunicação verbal (Ball, 1971). Assim, a Pedagogia da Comunicação, embora reconhecendo a paternidade inicial do termo a R. Ball, poderá ser considerada como o campo de estudos priveligiado e adequado de uma área do conhecimento, cuja definição resulta da intersecção de vários sectores do conhecimento: mediático, pedagógico, artístico e tecnológico. O estudo e a investigação dessa intersecção de sectores poderá fornecer os conhecimentos necessários à caracterização da verdadeira dimensão pedagógica dos media, em contextos escolares e extra-escolares, bem como o conhecimento das implicações pedagógicas que decorrem da utilização das diferentes tecnologias de comunicação educativa.

Assim, e de novo no caso específico do Cinema, o professor deverá ser capaz de explicar que o facto real ou o herói histórico podem não ter muito a ver com a acção ou o herói dramáticos, que estes já não são exactamente o mesmo que as suas imagens fílmicas, que estas não têm as mesmas características quando se repetem no cinema e no vídeo, que este não é percebido da mesma forma em casa e na escola, que esta actividade de consumo mediático em contexto educativo, não é senão uma parte, mais sistematizada e mais controlada em termos de progressão pedagógica, de todo um currículo mediático bem mais vasto e paralelo.

Considerações semelhantes poderiam ser desenvolvidas para os restantes media, dando origem a uma autêntica estrutura curricular, sistémica, da Pedagogia da Comunicação. Tal não é o objectivo deste artigo, mas sim, e apenas, propor algumas notas de reflexão sobre a problemática em questão.

 

Se até aqui aflorei alguns aspectos mais gerais das componentes pedagógicas do Cinema e a necessidade do seu estudo sistematizado, parece-me agora conveniente abordar uma faceta mais específica e "sui generis" do Cinema como fenómeno mediático, cultural e educativo - o carácter do Cinema como "Pedagogia Herege".

Neste campo,  um dos "pedagogos" mais importantes terá sido o grande mestre Luís Buñuel (Reia-Baptista, 1987). Isto, sem qualquer ofensa ao espírito libertário do cinesta, assumida e declaradamente anti-pedagógico, que deverá descansar no Valhalla dos cineastas ateus e hereges de todas as ortodoxias, bebericando "cocktails" ao lado das mais deslumbrantes e tresloucadas valquírias que já passaram deste ecrã para melhor.

Porquê, contudo, este assomo de heresia pedagógico-cinéfila?

Por duas razões.

Primeiro, porque a verdadeira essência, e a característica mais eficaz, do efeito pedagógico do Cinema consiste na sua capacidade de abordar sistemas de valores - dogmas - numa perspectiva herege ou, em alguns casos, pseudo-herege. Entenda-se aqui o termo heresia no verdadeiro sentido da palavra, tal como ele era definido pela teologia da idade média: um erro doutrinário cometido deliberadamente em desafio à autoridade (Wakefield & Evans, 1969, 2).

Segundo, porque na aldeia global em que vivemos, inadvertidamente ou não, cada vez se consomem mais falsas heresias como se de verdadeiras se tratasse. Paradoxo? Talvez, ou seja, dogmas travestidos de heresias para que passem exactamente como tal, fortalecendo, no entanto, o dogma inicial. Passemos aos exemplos com a ajuda preciosa dos géneros hollywoodescos.

Depois  de  um  longo  período,  com  muitas  e  honrosas  excepções,  a que

podemos chamar de dogmatismo puro do cinema americano, em que os heróis vaqueiros, polícias ou agentes secretos, eram brancos e genuinamente bons, enquanto que os vilões, bandidos ou sabotadores eram intrinsecamente maus, negros, soviéticos ou índios, veio uma vaga de anti-heroismo que deliciou as gerações de 60 e as converteu ao Cinema e à História (com H grande), exactamente pela proposta cinéfila de subversão dos valores dominantes.

Filmes como THE MISFITS, DOCTOR STRANGELOVE, CHEYENNE AUTUMM, BONNIE & CLIDE e THE GRADUATE prepararam o caminho para o grande sucesso e enorme impacto ideológico (e portanto pedagógico) do cinema que, no início dos anos 70, haveria de fornecer a vastos grupos de jovens muitos dos argumentos para a condenação da presença norte-americana pelo mundo fora, rejeitando por tabela o próprio sonho americano na sua essência ou nos seus reflexos mais palpáveis.

Este foi o efeito de filmes como SOLDIER BLUE, CATCH 22, THE LITTLE BIG MAN e M.A.S.H., para referir apenas alguns do início da década. Os valores realmente assimilados pela juventude dessa época tiveram, de facto, muito a ver com o carácter complexo e pluridimensional dos anti-heróis que os veicularam. Nunca a cotação do sonho americano terá estado tão por baixo como nesses anos e essencialmente, por incrível que pareça, graças à actividade da sua principal e mais leal fábrica de sonhos - Hollywood.

Entretanto, a lição tinha sido bem aprendida pela grande Meca do Cinema.

Se é um facto que a pedagogia herege do  novo cinema americano tinha servido para subverter uma primeira imagem da moral histórico-social dominante, o mesmo efeito pedagógico também serviria, provavelmente, para subverter a subversão.

Inicia-se, assim, um novo período, que ainda se vem mantendo, em que a pedagogia pseudo-herética vai impregnar a grande maioria dos filmes concebidos, desenhados e produzidos  em Hollywood para  as  camadas  mais  jovens  e culturalmente menos vacinadas do público, com iguais, senão maiores, doses de sucesso e eficácia pedagógica.

Trata-se agora de reafirmar valores anteriormente abalados recorrendo a veículos que pareciam querer negá-los, tais como a música rock ou a sub-cultura dos "ghettos" e dos "gangs", rebeldes de origem, mas perfeitamente servis quando subtilmente tratadas pelos códigos específicos da dramaturgia fílmica ao serviço dos códigos gerais da moral socio-política dominante.

Qualquer lista de filmes exemplificando o que se disse tornar-se-ia tão longa e tão igual que não vale a pena sequer começá-la.

 

A televisão, por seu lado, manifesta exactamente a mesma tendência, só que bem mais exacerbada, embora também mais simplista e primitiva, do que no Cinema - o que aliás é normal - e apresenta, até, alguns dos casos mais expressivos e subtis do pseudo-heretismo fílmico. Atente-se, por exemplo, no papel de séries como  MCGYVER, onde, aliando valores identificados com o pacifismo anti-armas de fogo, a ecologia, a amizade e a solidariedade, nos leva, de facto, a achar que aqueles rapazes que de vez em quando faziam uns trabalhitos para a CIA até eram uns tios simpáticos e honestos. E não são só as crianças que assim reagem. A própria geração de pais, vacinada contra a guerra do Vietname nos anos 60/70, acompanha, por inércia, o visionamento dos seus descendentes, não podendo deixar de se render às habilidades do pseudo-anti-herói.

 

Mas voltemos a agarrar o exemplo cinéfilo apontado como verdadeiramente paradigmático da pedagogia herege: a obra de Luís Buñuel.

Por várias vezes, Buñuel terá afirmado não querer ensinar nada a ninguém, não ter nenhuma mensagem a transmitir e, sobretudo, não querer ser encarado como um pedagogo. Ele era, dizia, única e exclusivamente um contador de histórias, mais ou menos surrealistas, que tinha por profissão a realização de filmes. 

No entanto,  e a coberto de uma utilização respeitosamente linear e escrupulosamente profissional dos códigos da realização e da produção cinematográficas, Buñuel conseguiu contar história após história, qual delas mais corrosiva, mais subversiva e herege. E herege, aqui, em sentido teológico e pedagógico. Aliás, a influência exercida pela obra surrealista de Luís Buñuel na actual geração de cineastas e cinéfilos europeus, assim como no campo do vídeo musical, é enorme e, embora raramente reconhecida, em muito equivalente à influência exercida pelo neorealismo italiano nas gerações anteriores, desde o cinema de pós-guerra europeu em geral ao realismo de cozinha inglês, passando pela nova vaga francesa.

Aliás, num contexto latino ou ibero-americano, Buñuel deveria já hoje ser alvo de estudos tão aprofundados como o são Cervantes, Camões ou outros grandes nomes da cultura ibérica e latina. A sua influência directa e indirecta no processo de formação de uma mentalidade latina, moderna, distante e crítica em relação aos dogmas e aos valores socio-religiosos dominantes foi e continua a ser enorme.

Então, volta a colocar-se a inevitável e inadiável questão:

Quando e como começaremos a preparar os nossos professores para o estudo sistematizado e para a investigação rigorosa desta e doutras realidades semelhantes?

 

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

ARNHEIM, R. (1957), Film as Art , (ed. de 1971), Los Angeles, Univ. of California Press.

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WAKEFIELD, W. L. & EVANS A. P.(1969), Heresies of the High Middle Ages , New York, Columbia University Press.



[1] Referência à célebre frase de Lenin que considerava o cinema , devido às suas potencialidades educativas, como "a mais importante de todas as artes", citado por Einsenstein (1929, 53).