As mídias e as linguagens totalitárias

Wellington Pereira, Universidade Federal de Pernambuco

1. Introdução :

O objetivo deste texto é discutir como, nas últimas décadas, a cultura passou a ser regida pelo do discurso midiático, que tem como regra nomear as formas político-sociais a partir da lógica da sociedade de consumo.

Uma das formas de legitimação do campo midiático é a transformação dos fatos sociais em espetáculo. Portanto, as formas de sociabilidade, a partir da produção estético-cultural dos diferentes povos, são apresentadas como “eventos” nos quais predomina o valor do “tempo de exposição”, um dos recursos retóricos da linguagem midiática.

A retórica dos meios de comunicação procura negar as diferentes formas de sociabilidade a partir de três operações : 1) imposição de um modelo socioeconômico que ignora as diferenças culturais entre os povos;  2) negação das subjetividades como ferramentas úteis na decodificação das patologias do mundo do trabalho ; 3) aniquilamento do imaginário das minorias sociais através de um totalitarismo lingüístico que age, principalmente, de duas formas : praticando terrorismo conceptual e legitimando sistemas políticos ditatoriais, através de narrativas sem verossimilhança.

Se na « democracia midiática », o totalitarismo lingüístico promove a « extinção » do passado e a antecipação do futuro, subordinados às regras do tempo da exibição, é importante  verificar como podemos pensar as lutas das minorias sociais que procuram recuperar seus valores socioculturais através das subjetividades materializadas nas produções artísticas ou na reações contra  a violência exercida pelo Estado.

Através da análise de uma reportagem publicada na revista Veja e da reações da « cultura dos pobres » ás violências conceituais da mídia, vamos procurar demonstrar como este totalitarismo lingüístico no campo jornalístico se  evidencia, considerando os seguintes aspectos :  1) distorção conceptual ; 2) a “desconstrução” da subjetividade ; 3) estratégias de sobrevivência .

2 . A distorção conceptual da revista Veja.

 No jornalismo informativo, todas as premissas são verdadeiras, porque, na maioria, são falsas.

A partir deste silogismo, podemos dizer que o jornalismo construído nas narrativas da revista Veja fere o princípio dos melhores exercícios retóricos, pois sequer admite que, filosoficamente, a mentira deve cotejar a verdade.

O jornalismo baseado na reprodução dos referentes sociais não pode falsear a realidade nem provocar distorções conceituais, sequer ser instrumento de propaganda totalitária.

Uma das regras da propaganda totalitária é a negação das realidades históricas e estético-sociais distintas.

 Portanto, no discurso totalitário as ideológicas e políticas não são apreendidas na confrontação dos valores, mas na sustentação de um modelo estético que privilegia a unidade das formas, dos discursos e das ações. Neste sistema a linguagem passa a ser apenas um instrumento de representação dos referentes sociais.

As distorções conceptuais no campo jornalístico podem ser evitadas no exercício democrático da palavra e da construção dos discursos analógicos, o que implica enfatizar processos narrativas capazes de reconhecer a importância da “polifonia” das vozes no texto informativo.

Na narrativa jornalística, o gênero mais adequado aos discursos polifônicos, teoricamente, é a reportagem.

 No texto-reportagem, narradores e personagens devem ser « estruturados » de acordo com a configuração dos segmentos sociais e da compreensão do deslocamento social dos indivíduos, considerando a subjetividade  um dos componentes das mobilizações estéticas ou políticas na luta pela cidadania.

A revista Veja, em sua edição do dia 10 de maio de 200, nega, explicitamente, a possibilidade do leitor compreender como a luta pela  cidadania pode ser inscrita tanto no campo das subjetividades, que alimentam o imaginário sociocultural dos povos, como por razões socioeconômicas, ao distorcer conceitos sobre o Movimento dos Sem Terra (o MST).

O título de capa da edição, que tem como matéria principal uma reportagem sobre o MST, distorce as informações em dois níveis : 1) lingüístico ; 2) analógico.

No nível lingüístico, percebemos a distorção a partir do título : A tática da baderna, e do subtítulo : MST usa o protesto da reforma agrária para pregar a revolução socialista. Em nível analógico, a associação grosseira das cores da bandeira do MST ao vermelho do Partido dos Trabalhadores (o PT).

Ao forjar a aproximação semântica das palavras baderna e socialismo, a revista Veja esvazia o sentido histórico dos movimentos sociais e, usando uma linguagem totalitária, mostra que a reforma agrária não é mais importante para a produção agrícola, como podemos ler à página 44 :

«  (...) de um ponto de vista agrícola, portanto, a reforma agrária não tem mais nenhuma razão de ser(...) ».

A revista procura desqualificar o MST, tentando provar o improvável : a reforma agrária não é compatível com a produção agrícola.

Na página 45, Veja utiliza a imagem de João Stedile, líder do MST, numa montagem fotográfica, e o compara a James Bond, o agente 007. Tudo isto para dizer que Stedile tem licença para matar. Ora, nenhum regime democrático dá licença aos seus cidadãos para matar.

Com estas distorções conceptuais na reportagem sobre o MST, a revista Veja nega aos seus leitores a possibilidade de ampliar o entendimento sobre a luta dos brasileiros contra a exclusão social. Mas  Veja sedimenta um processo de exclusão, porque no campo semântico, distorce as verdadeiras razões da luta do Movimento dos Sem Terra são apresentadas numa superposição de conceitos que danifica o significado das palavras e das ações sociais.

A reportagem de Veja sobre o MST confirma um dos princípios da retórica do jornalismo informativo : o totalitarismo lingüístico.

No campo jornalístico, uma das formas do totalitarismo lingüístico é o “reenquadramento” das realidades, ou seja, a determinação de conceitos e formas sociais a priori: investigar o mundo a partir de uma pauta que preestabelece valores éticos, estéticos e políticos, adequando a fala dos sujeitos ao conteúdo da informação.

Philippe Breton, em seu livro, A manipulação da palavra mostra como este « reenquadramento do real » pode ser detectado em dois níveis : 1) a naturalização do real ; 2) a deformação de imagens1. Esta naturalização do real se elabora a partir  de « palavras enganosas » que procuram desqualificar historicamente os fatos sociais . A deformação de imagens se processa através de um certo pretexto para mostrar a realidade de forma objetiva, o que justificaria o « realce na imaginação », um dos recursos redacionais utilizados na abertura dos textos-reportagem2. Neste sentido, fica fácil entender a comparação entre Stedile e James Bond.

A superposição de conceitos e imagens provoca confusões, no nível da cognição, e procura demonstrar que as lutas das minorias sociais marcham em sentido contrário à “objetividade”, das chaves de compreensão do mundo moderno de acordo com as regras do totalitarismo lingüístico. Portanto, as formas  estéticas e políticas produzidas pelos diversos grupos em sociedades não seriam suficientes para entendermos a complexidade na construção das realidades, do ponto de vista do jornalismo referencial. Isto implica em aceitarmos as subjetividades sociais como um conjunto de impressões que precisam ser materializadas por métodos que lhes darão um sentido objetivo.

3. Negação da subjetividade .

No jornalismo contemporâneo, as narrativas que tratam de relatos humanos aparecem como a negação do mundo referencial e da busca da « objetividade » características do jornalismo informativo.

O perfil e a reportagem são gêneros jornalísticos que aproximam as formas discursivas do jornalismo das subjetividades sociais.

No jornalismo, as histórias de vida, os relatos impressionista, servem como recursos narrativos para ultrapassar os limites de compreensão das formas sociais impostos pela linguagem referencial do jornalismo informativo.

 Mas, no processo jornalístico, as “razões sensíveis” são limitadas pela “interpretação” do mundo, ou “Le monde à commenter”, com explicita  Patrick Chraudeau, em seu livro, Le discours d’information médiatique- la construction du miroir social3.

A “doação” de uma interpretação das formas sensíveis do mundo, no discurso jornalístico, não leva em consideração as experiências vivificadas por indivíduos de sociedades distintas que produzem, antes de tudo, formas estéticas que definem os diferentes processos de sociabilidade, provocando um instinto de combinação que serve para fugir das dominações normativas que representam uma ameaça à democratização dos discursos na narrativa jornalística.

Em verdade, caberia a um das especialidades da prática jornalística, o jornalismos cultural, recuperar, através de seus gêneros, a formas sensíveis engendradas por cada grupo em sociedade, procurando entender as manifestações artísticas como representação do mundo sensível. mete a duas premissas: 1) as diferenças estéticas são anunciadas em função do “evento”; 2) as narrativas que tratam de fatos inscritos no campo da fenomenologia são tratados como fatos que não pertencem à construção referencia da linguagem do jornalismo informativo.

O que predomina é o exercício descritivo das ações dos indivíduos e das formas estéticas e políticas, sem considerar a importância de figuras de linguagem, como a metáfora, na interpretação e construção das realidades sociais, como nos explica Michel Maffesoli:

“Há uma outra categoria, também amplamente desconsiderada ao longo de toda a modernidades, que pode ser um bom meio de apreender a globalidade societal: a metáfora (...)”4.

A recusa do uso da metáfora como ferramenta para a compreensão dos fatos sociais no jornalismo impresso evidencia como o jornalismo, sobretudo o informativo, privilegiar apenas o que é da ordem da “objetividade”.

Para veicular a sensibilidade dos personagens e narradores, enfatizando, também, as habilidades estéticas dos leitores, o jornalismo cultural deveria assumir a condição de sujeito semiótico, saindo do plano linear dos relatos, dos enunciados que “objetivam” os acontecimentos para “realçar” as atitudes dos indivíduos.

Na lógica discursiva do jornalismo cultural, as atitudes estéticas dos sujeitos são acaçapadas pelo tempo da obsolescência do espetáculo, negligenciado a riqueza do imaginário dos diversos grupos sociais.

No jornalismo cultural, a difusão do imaginário de povos distintos se faz através de uma linguagem de antecipação, que nos faz pensar as produções artísticas a partir de modelos estético e sociais preestabelecidos, e da obsolescência da sociedade de consumo. Assim, o significado das manifestações culturais se esgota na fragmentação dos sujeitos e de suas culturas.

Na verdade, o jornalismo cultural, com pretensões a veicular as manifestações estéticas, não estabelece uma organização de sentidos(epistème), mas a ocultação destes. Por isto, nos cadernos culturais, vender as expressões artísticas é mais importante do que interpretá-las.

No exercício de leitura das narrativas produzidas pelo jornalismo cultural, se faz necessário entender como as sensibilidades sociais são negadas, “apagadas”, em nome de uma “democratização” da veiculação dos conteúdos das culturas clássica e erudita. Na verdade, falsa democracia no uso de conceitos que reforçam apenas o fetiche  das mercadorias da indústria cultural.

As formas sensíveis da sociedade veiculados pelo jornalismo cultural obedecem a três formas discursivas: 1) crítica das obras de arte levando em consideração um cânon (imposição de modelos literários, musicais, fílmicos), capaz de reduzir as expressões estéticas de povos diferentes às leis do mercado editorial; 2) a apresentação das obras de artes sem quaisquer perspectivas analíticas; 3) vínculo do gosto estético à lógica da sociedade do espetáculo, como nos explica Guy Debord:

“O espetáculo é o momento em que a mercadoria ocupou totalmente a vida social. Não apenas a relação com a mercadoria é visível, mas não se consegue ver nada além dela: o mundo que se vê é o seu mundo. A produção econômica moderna espalha, extensa e intensivamente, sua ditadura”.5

As formas de apresentação das artes no jornalismo cultural não levam em consideração as sensibilidades sociais, mesmo quando se privilegia alguma forma narrativa que corresponde a modelos estéticos legitimados pela indústria cultural, as telenovelas, por exemplo, ou gêneros que pertencem a estruturas historicamente definidas, como é o caso do romance, gênero, por excelência, representante da sociedade burguesa.

Há no jornalismo cultural uma negação do mundo sensível, ao mesmo tempo em que se configura uma distribuição dos fatos estéticos através de rubricas: cinema, teatro, música, literatura, lazer. Portanto, a difusão das formas estéticas em “categorias” especializadas nos leva  à premissa: as artes não dialogam entre si; mas são construções autônomas que se legitima no espetáculo.

4. Estratégias de sobrevivência.

Os estudos sobre recepção, no campo da Comunicação, têm privilegiado a análise do discurso da dominação, considerando dois aspectos: 1) o Estado como fomentador das alienações individuais e coletivas; 2) a sociedade industrial como produtora de bens simbólicos que retira dos homens sua consciência crítica. Dificilmente, enfatiza a voz dos dominados ou como eles reagem à dominação midiática.

Estas análises geralmente inspiradas nos conceitos de força de trabalho e alienação trazem, de persi, uma violência: os totalitarismos manipulam sempre as formas sensíveis.

Sem procurar negar a importâncias das análises feitas sobre a relação entre os indivíduos e os meios de comunicação, ousamos afirmar que os processos de dominação só podem ser compreendidos se levarmos em consideração as estratégias de sobrevivência articuladas pelos “dominados” para fugir às configurações do poder.

A polissemia do poder nos leva a diversos campos da produção de discursos e de bens culturais. Mas, evidentemente, o que nos interessa é verificar como podemos confrontá-los com os significados produzidos pela mídia.

Em primeiro lugar, o campo midiático se define pela configuração de textos, imagens e sons que atendem às regras de veiculação de enunciados na sociedade da informação. Neste sentido, podemos afirmar que a produção cultural através dos meios de comunicação obedece a três formas conceituais: 1) o Estado como organizador e introdutor de “novas práticas culturais;  2) a idéia de cultura atrelada ao consumo; 3) a cultura dos pobres como algo desprovido de consciência político-filosófica, reconhecida apenas como elemento da subjetividade, da derrisão e do lazer.

Na sociedade contemporânea, a organização das culturas é concebida de forma autoritária, no amálgama entra as “democracias declarativas” que impõem uma visão de mundo antes mesmo de explicitá-la, num processo inverso à democracia jacobine, como nos explica André Akoun:

“La démocratie jacobine est une démocratie démonstrative. Les hommes du pouvoir ne viennent pas devant l’Assemblée pour délibérer mais pour expliquer des décisions prises(...) ».6

A democracia midiática se legitima a partir do volume de informações veiculadas que se confunde com democratização dos saberes. Neste caso, a construção do texto gera estereótipos, bem explicitados por Robert Darnton:

“(...) Mas a redação de notícias é fortemente influenciada por estereótipos e concepções prévias sobre o que deve ser a” matéria “(...)”.7

 Como podemos perceber, o jornalismo informativo é uma forma de conhecimento estabelecida à priori que dialoga com os leitores encetando “linguagens totalitárias” disfarçadas nas armadilhas dos conteúdos embalados como mercadorias. Mas como resistir a estas armadilhas?

A resistência se efetiva através da cultura das minorias sociais, aqui compreendidas como as manifestações estéticas que resgatam o valor estético das culturas populares e das novas tribos urbanas na luta contra os paradigmas da “cultura de eventos”.

Portanto, a cultura das minorias resiste à falsa democracia midiática e se legitima nos prazeres cotidianos, na vivacidade impetrada contra o tempo burocrático e, sobretudo, na transfiguração do político. Esta cultura reconhece que, nos intervalos intersticiais da existência, há formas de dobrar as formas do poder totalitário: os quinze minutos de atraso nos compromissos oficiais, o cafezinho na repartição pública, como inversão dos graus de servidão, o que explicita Maffesoli:

“Ao lado das explosões, de diversas ordens, que esburacam o tecido social, quando este se torna demasiado apertado, existem outras maneiras, mais suaves, de desestabilizar o político, de mostrar a sua relatividade e o seu aspecto limitado. Pode ser a abstenção, a astúcia, a ironia, as inversões carnavalescas e ainda muitas outras modulações (...)”. 8

O importante é percebermos que a cultura das minorias reage à imposição dos conteúdos, por parte da mídia, que é  uma facetas do totalitarismo lingüísticos, e consegue distinguir a essência do político e a farsa do espetáculo, porque tecem o real com a complexidade das formas sensíveis produzidas em sociedade.

 


Referências bibliográficas:

1 – BRETON, Philippe- A manipulação da palavra, São Paulo, Edições Loyola, 1999, pp. 90/91.

2 - SODRÉ, Muniz et alii- Técnica de reportagem- notas sobre a narrativa jornalística, São Paulo, Summus Editorial, 1986; p. 71.

3 – CHARAUDEAU, Patrick- Le discours d’information médiatique, Paris, Nathan, 1997.

4 -  MAFFESOLI, Michel- Elogio da razão Sensível, Petrópolis, RJ, Vozes, 1998, p.147.

5- DEBORD, Guy-A sociedade do espetáculo-, Rio de Janeiro, contraponto, 1997.

6 – AKOUN, André- L’illusion sociale, Paris, Puf, 1989.

7 –DARNTON, Robert - O beijo de Lamourette - mídia, cultura e revolução, São Paulo, Companhia das Lestas, 1990.

8 –MAFFESOLI, Michel - A transfiguração do político - a tribalização do mundo, Porto alegre, Editora Sulina, 1997.

* Wellington Pereira é professor do Departamento de Comunicação da UFPB e Doutor em Sociologia.